CHAMADA DE ARTIGOS - DOSSIÊ TEMÁTICO - Neoliberalismo e Sofrimento Psíquico (v. 11, n. 27, 2024)

2024-02-26

A Aceno – Revista de Antropologia do Centro-Oeste (ISSN: 2358-5587– Qualis A2), publicação eletrônica quadrimestral de caráter público, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso, convida membros da comunidade acadêmica e pesquisadores a apresentarem artigos ao dossiê temático Neoliberalismo e Sofrimento Psíquico, a ser publicado em sua edição de número 27 (v. 11, 2024), conforme proposta abaixo.

PRAZO FINAL DE SUBMISSÃO: 30 de maio de 2024

Neste dossiê, partilhamos o pressuposto de que se pode caracterizar o neoliberalismo como um sistema normativo que têm modificado profundamente os modos de subjetivação e desenvolvido uma forma de política específica relativa à produção e à gestão do sofrimento psíquico, na medida em que submete os indivíduos a um regime de concorrência generalizada. Daí por que o presente dossiê pretende discutir essa complexidade que caracteriza a relação entre neoliberalismo e sofrimento psíquico. A escolha de discutir essa complexidade desde essa perspectiva se impôs à proposta como uma maneira de enfatizar o neoliberalismo como produtor e gestor do sofrimento psíquico, uma vez que o neoliberalismo não apenas produz o sofrimento como também o gerencia. Nesse sentido, pode-se também conceber o neoliberalismo, fundamentalmente, como uma forma de vida, a qual implica uma gramática de reconhecimento, assim como uma política voltada para o sofrimento, pois a forma de vida neoliberal não extrai apenas mais produção, como também mais gozo da experiência do sofrimento. Essa forma de vida tem como proposta um tipo de individualização cujo fundamento está no modelo da empresa: deve-se dirigir e avaliar a vida como se fosse uma empresa, o que pressupõe análises de riscos e tomadas de decisões baseadas em cálculos, isto é, uma administração de si. Neste dossiê, também pretendemos assinalar como o gerenciamento da vida subjetiva realizado pelo neoliberalismo envolve ainda uma íntima relação entre neoliberalismo e psiquiatria, no interior da qual a gramática do sofrimento psíquico passou por uma reformulação significativa. Considerando o seu contexto histórico, pode-se dizer que a natureza e a atividade da psiquiatria institucional têm passado por uma importante mudança. Essa mudança está relacionada ao crescimento e ao florescimento das pesquisas realizadas no campo da neurociência, como também ao aumento das prescrições e do uso de medicamentos psiquiátricos, e da procura por ajuda psiquiátrica. Nesse processo, a psiquiatria passou a se orientar cada vez mais pela biologia, e uma das suas premissas centrais tem sido a ideia de que os transtornos psiquiátricos são resultantes de “desequilíbrios químicos”. Nesse sentido, a indústria farmacêutica e a psiquiatria se esforçaram, de maneira combinada, para tornar essa ideia amplamente popular, e esses esforços combinados resultaram em uma inflação diagnóstica. Essa relação não está desvinculada, portanto, dos processos de medicalização e farmaceuticalização que impulsionam o uso de psicofármacos, os quais, dentro da lógica neoliberal biocêntrica do sofrimento, serviriam para aumentar a produtividade dos sujeitos.

 

 

ACESSE: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/aceno/index

 

As coordenadoras

Jainara Gomes de Oliveira

Doutora em Antropologia Social

Universidade Federal da Grande Dourados (PPGANT/UFGD)

Lattes: http://lattes.cnpq.br/8570209306702278

Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9944-0492

 

Esmael Alves de Oliveira

Doutor em Antropologia Social

Universidade Federal da Grande Dourados (PPGANT/UFGD)

Lattes: http://lattes.cnpq.br/5410375038960540

Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9235-5938

 

Anaxsuell Fernando da Silva

Doutor em Ciências Sociais

Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)

Lattes: http://lattes.cnpq.br/5102487999559634

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8830-0064

 

 

Um pouco mais sobre a proposta

 

Em termos históricos, pode-se assinalar que foi nos anos de 1970 que se deu a ascensão do neoliberalismo como governamentalidade, isto é, um modo de governança que, apesar de abranger o Estado, também produz sujeitos e organiza o social. Nesse sentido, ainda que se volte para a economia, ele não pode ser entendido apenas como uma política econômica. Ao considerarmos as suas implicações políticas, nota-se que o neoliberalismo estende e dissemina os valores do mercado às variadas esferas institucionais e sociais, e submete tais esferas a uma racionalidade econômica, isto é, a um cálculo que pressupõe a utilidade, o benefício ou a satisfação. O neoliberalismo também promove, por meio de discursos e políticas institucionais, critérios que colaboram para o desenvolvimento desse cálculo e, assim, produz sujeitos que devem ser racionais e tomem decisões baseados em uma lógica de mercado. Nessa perspectiva, a racionalidade econômica seria uma reivindicação normativa, o que por sua vez exige instituições, políticas e discursos voltados para essa reivindicação (BROWN, 2005).

Na formulação neoliberal, o Estado e a sociedade seriam organizados e regulados pelo mercado. Nesse sentido, a racionalidade do mercado anima o Estado, ou seja, as práticas estatais passam a ser medidas considerando a lucratividade, como também o cálculo do custo e benefício. São os termos do mercado que enquadram o discurso político, e o Estado torna-se um ator do mercado. A saúde da economia, bem como o seu crescimento, está assim na base que dá legitimidade ao Estado, uma vez que o Estado assume a responsabilidade em relação à saúde da economia, e as práticas estatais são submetidas racionalmente aos termos da economia. Essa racionalidade política também economiza os modos de subjetivação ao prescrever um sujeito-cidadão racional e calculista, bem como ao construí-lo e interpelá-lo, em termos normativos, como “empreendedor de si mesmo”. Trata-se de um sujeito que, para ser considerado moralmente autônomo, precisa desenvolver a capacidade de cuidar de si mesmo, isto é, tornar-se responsável exclusivamente por si próprio, o que, por conseguinte, submete a moralidade a uma deliberação racional que se preocupa apenas com os custos, os benefícios e as consequências da ação individual.

Dessa maneira, pode-se caracterizar o neoliberalismo como um sistema normativo que têm modificado profundamente os modos de subjetivação e desenvolvido uma forma de política específica relativa à produção e à gestão do sofrimento psíquico, na medida em que submete os indivíduos a um regime de concorrência generalizada. Daí por que o presente dossiê pretende discutir essa complexidade que caracteriza a relação entre neoliberalismo e sofrimento psíquico (ALBINO; OLIVEIRA, 2021a; 2021b; OLIVEIRA, 2022). A escolha de discutir essa complexidade desde essa perspectiva se impôs à proposta como uma maneira de enfatizar o neoliberalismo como produtor e gestor do sofrimento psíquico, uma vez que o neoliberalismo não apenas produz o sofrimento como também o gerencia. Nesse sentido, pode-se também conceber o neoliberalismo, fundamentalmente, como uma forma de vida, a qual implica uma gramática de reconhecimento, assim como uma política voltada para o sofrimento, pois a forma de vida neoliberal não extrai apenas mais produção, como também mais gozo da experiência do sofrimento. Essa forma de vida tem como proposta um tipo de individualização cujo fundamento está no modelo da empresa: deve-se dirigir e avaliar a vida como se fosse uma empresa, o que pressupõe análises de riscos e tomadas de decisões baseadas em cálculos, isto é, uma administração de si (SAFATLE; da SILVA JUNIOR; DUNKER, 2021). 

Neste dossiê, também pretendemos assinalar como o gerenciamento da vida subjetiva realizado pelo neoliberalismo envolve ainda uma íntima relação entre neoliberalismo e psiquiatria, no interior da qual a gramática do sofrimento psíquico passou por uma reformulação significativa. Considerando o seu contexto histórico, pode-se dizer que a natureza e a atividade da psiquiatria institucional têm passado por uma importante mudança. Essa mudança está relacionada ao crescimento e ao florescimento das pesquisas realizadas no campo da neurociência, como também ao aumento das prescrições e do uso de medicamentos psiquiátricos, e da procura por ajuda psiquiátrica. Nesse processo, a psiquiatria passou a se orientar cada vez mais pela biologia, e uma das suas premissas centrais tem sido a ideia de que os transtornos psiquiátricos são resultantes de “desequilíbrios químicos”. Nesse sentido, a indústria farmacêutica e a psiquiatria se esforçaram, de maneira combinada, para tornar essa ideia amplamente popular, e esses esforços combinados resultaram em uma inflação diagnóstica. Essa relação não está desvinculada, portanto, dos processos de medicalização e farmaceuticalização que impulsionam o uso de psicofármacos, os quais, dentro da lógica neoliberal biocêntrica do sofrimento, serviram para aumentar a produtividade dos sujeitos. Nesse sentido, a lógica da competição e da autorresponsabilização tem efeitos na forma como a psiquiatria biológica transforma um conjunto de sintomas em diagnósticos psiquiátricos. Trata-se de uma questão particularmente relevante, uma vez que o processo de psiquiatrização relacionados aos diagnósticos clínicos funciona como uma engenharia adequada à lógica do empreendedorismo, uma lógica que abriga a ideia de que os sujeitos devem se responsabilizar por seus próprios fracassos. Nesse sentido, o sentimento de fracasso ganhou uma tradução pela psiquiatria, isto é, tornou-se um sintoma que exprime um diagnóstico de depressão ou ansiedade, por exemplo (DARDOT; LAVAL, 2016; CAPONI; DARÉ, 2020).

Referências

ALBINO, Chiara; OLIVEIRA, Jainara Gomes de. Neoliberalismo e saúde pública. ______. (Org.). Saúde e políticas da vida. Recife: Seriguela, 2021a, p. 17-44.

ALBINO, Chiara; OLIVEIRA, Jainara Gomes de. O governo neoliberal das vidas precárias. _______. (Org.). Neoliberalismo, neoconservadorismo e crise em tempos sombrios. Recife: Seriguela, 2021b, p. 245-272.

BROWN, Wendy. Neoliberalism and the end of liberal democracy. ______. Edgework: critical essays on knowledge and politics. Princeton: Princeton University Press, 2005.

CAPONI, Sandra; DARÉ, Patricia K. Neoliberalismo e sofrimento psíquico: A psiquiatrização dos padecimentos no âmbito laboral e escolar. Mediações - Revista de Ciências Sociais, v. 25, n. 2, p. 302-320, 2020.

DARDOT, P.; LAVAL, C. A fábrica do sujeito neoliberal. ______. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

OLIVEIRA, J. G. de. Políticas de reconhecimento e sofrimento psíquico entre mulheres. Projeto de Pós-doutorado. PPGANT/UFGD, 2022.

SAFATLE, V.; da SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (Orgs.). Introdução. ______. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2021, p. 9-13.