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REFLEXÕES SOBRE A IMPORTÂNCIA DA DIDÁTICA PARA A (RE)CONSTRUÇÃO DA PRÁTICA DOCENTE DO PROFESSOR DO ENSINO SUPERIOR

REFLECTIONS ON THE IMPORTANCE OF PROFESSIONAL TEACHING FOR THE (RE)CONSTRUCTION OF TEACHING PRACTICE OF HIGHER EDUCATION TEACHERS

Elizabeth Antônia Leonel de Moraes Martines 1
Universidade Federal de Rondônia, Brasil
João Marcos de Araújo Paz 2
Centro Universitário São Lucas, Brasil

REAMEC ? Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática

Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil

ISSN-e: 2318-6674

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 8, núm. 1, 2020

revistareamec@gmail.com

Recepção: 22 Outubro 2019

Aprovação: 14 Janeiro 2020



DOI: https://doi.org/10.26571/reamec.v8i1.9280

Esta Revista utiliza-se da Licença Creative Commons Attribution 4.0 International License. Os artigos e demais trabalhos publicados na Revista REAMEC passam a ser propriedade da revista. Uma nova publicação do mesmo texto, de iniciativa de seu autor ou de terceiros, fica sujeita à expressa menção da precedência de sua publicação neste periódico, citando-se a edição e a data dessa publicação. Para o artigo ser publicado é condição obrigatória o envio da Declaração de Responsabilidade e Transferência de Direitos Autorais.

Resumo: Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a importância da didática para o desenvolvimento profissional dos professores do ensino superior e sobre a constituição da identidade docente, a partir de uma pesquisa exploratória sobre a evolução da didática e das experiências docentes ao longo de vinte anos por parte de um dos autores. Os autores refletem sobre a importância da didática para a formação permanente dos docentes do ensino superior, entendendo que o problema se mostra relevante, já que o número de docentes deste nível de ensino em todo país vem crescendo com o aumento das instituições de ensino superior (IES) e junto a isso, existe a necessidade da formação destes para atuarem como docentes, visto que a maioria não teve formação didático-pedagógica para esta função. Os autores defendem a perspectiva de multidimensionalidade adotada por vários autores na contemporaneidade, ao entender que esta articula organicamente diversas dimensões da didática (humanista, técnica e política-cultural) e refletem sobre sua importância no desenvolvimento profissional do professor do ensino superior.

Palavras-chave: Ensino superior, Didática, Desenvolvimento profissional do professor.

Abstract: This work aims to reflect on the importance of didactics for professional development of higher education teachers and on the constitution of theacher identity, from an exploratory research on the evolution of didactics and teaching experiences over twenty years on the part of from one of the authors. The authors reflect on the importance of didactics for the permanent training of higher education teachers, understanding that the problem is relevant, since the number of teachers at this level of education across the country has been growing with the increase in higher education institutions ( IES) and along with that, there is a need for training these to act as teachers, since most did not have didactic-pedagogical training for this function. The authors defend the perspective of multidimensionality adopted by several authors today, when they understand that it organically articulates several dimensions of didactics (humanistic, technical and cultural-political) and reflect on its importance in the professional development of higher education teachers.

Keywords: Higher education, Professional teaching, Teacher professional development.

1 INTRODUÇÃO

O conhecimento humano vem sendo produzido de forma cumulativa ao longo de séculos, mas também sofre rupturas e descontinuidades, onde paradigmas, teorias e práticas firmemente estabelecidos entram em crise, passam por reformulações ou são substituídos. (KUHN, 1996). O conhecimento acumulado também vem sendo transmitido de geração em geração, pai/mãe (ou afins) para filho(a), de mestres para seguidores e somos considerados a espécie que tem como característica fundamental e por excelência, a capacidade de aprender ( BRUNER, 2001; MATURANA; VARELA, 2001). No entanto, a forma de como a disseminação ou transmissão do conhecimento é feita está em constante mutação nas diferentes culturas, ao longo do tempo em uma mesma cultura ou mesmo dentro de diferentes setores de uma sociedade. (POZO, 2002). Esse fato pode ser constatado no contexto educacional como um todo, mas neste trabalho, procuraremos dar destaque para o ensino superior, mais especificamente.

No meio acadêmico, o conhecimento tem se encontrado cada vez mais acessível, visto que o número de instituições de nível superior no Brasil vem aumentando constantemente: segundo o INEP (2014) cerca de 2.400 Instituições de Ensino Superior (IES) estão instaladas no país, fazendo com que haja a diversificação de instituições de ensino e, consequentemente, a facilitação para a entrada de novas pessoas no meio acadêmico. Conjuntamente, o número de docentes que atuam no ensino superior em todo país vem crescendo com o aumento das instituições e junto a isso, a necessidade da formação destes para atuarem como docentes, visto que muitos são detentores de amplo conhecimento técnico, prático e/ou teórico, no entanto, a maioria não teve formação para esta função e desconhecem os aspectos relativos à educação.

A nova LDBEN/ 96 (Lei 9.394 / 96) ratifica a formação de professores para o ensino superior através de cursos de pós-graduação stricto sensu(mestrado e doutorado), enfatizando a formação de especialistas e desconsiderando toda uma vasta pesquisa sobre a importância da formação inicial e continuada para o exercício da docência.

A partir da década de 1990, o MEC tem divulgado diretrizes para a elaboração de currículos no ensino superior (os quais vieram substituir os chamados currículos mínimos para os cursos de graduação) e, paralelamente, criou um sistema de avaliação para acompanhamento e autorização de funcionamento dos cursos da educação superior no Brasil, sendo que já temos uma pesquisa incipiente com professores do ensino superior e de construção de Projetos Pedagógicos nas IES ( MARTINES, 2005; CAVALCANTI, 2016; KHUN, 2017; SOUSA, 2018 entre outras), mas, estas ainda são consideradas insuficientes.

Segundo Bolfer (2008, p. 17), ?apenas a partir de 2001, é que começa a se destacar a pesquisa em relação à formação do professor universitário e, em termos de formação continuada no espaço da instituição de educação superior, encontramos poucos trabalhos.?. A revisão bibliográfica realizada por esta autora apontou que ?[...] a maioria dos trabalhos destaca a questão da identidade e da prática docente. Em número menor, temos aqueles que tratam de processos e possibilidades de formação docente continuada? (BOLFER, 2008, p. 15) e atualmente, predomina o conceito de desenvolvimento profissional do professor.

Diante do exposto, este estudo tem como objetivo historicizar o desenvolvimento da didática e refletir sobre sua importância para a formação de professores do ensino superior, com vistas ao desenvolvimento profissional, à (re)construção da prática docente e da identidade do professor. O trabalho apresenta a seguir o referencial teórico, a metodologia utilizada e a discussão ocorre na seção 4.1 Da didática e suas transformações ao longo da história didática e o professor do ensino superior, a qual se subdivide em duas subseções: 4.1.1 Da exaltação à negação: a busca da relevância . 4.1.2 O processo de (re)construção da prática educativa e da identidade docente.

2 REFERENCIAIS TEÓRICOS

Segundo Pimenta et al. (2013), ?há 355 anos, Comênio convidava os educadores a pensar questões educacionais, propondo o ideal utópico de um método que tivesse a capacidade de ensinar tudo a todos, especialmente o domínio da leitura e escrita [...]? como um alicerce à compreensão e interpretação de textos da Bíblia Sagrada. Este momento é considerado o nascimento da Didática, que surgiu ?[...] no estopim de uma revolução política e social?, a qual se opunha à hegemonia do poder do clero católico na condução do destino dos homens ( PIMENTA et al., 2013, p. 143 ).

Embora se utilizando de outras áreas do conhecimento como a psicologia, a antropologia e a sociologia, a didática está incluída na grande área de conhecimento intitulada Ciências da Educação, definindo-se como uma ciência do ensino. O termo ?didática? provém do grego e é uma palavra derivada do verbo didasko, significando ?ensinar, instruir, esclarecer, demonstrar? (FAZENDA et al, 1998).

De diversas maneiras o termo didática vem sendo confundido e em muitos casos sendo empregado como adjetivo (para elogio de uma aula ou de um professor) e, até de forma equivocada, sendo confundido como sinônimo de ?pedagogia? e não como uma área de estudo da filosofia de ensino: a didática é uma parte ou seção específica da pedagogia e se refere ao conteúdo que será usado para o ensino e os processos que serão empregados para a construção do conhecimento. Compete à pedagogia a articulação de diferentes discursos das ciências da educação, de conceituá-los no confronto com a prática educacional em contraste com os problemas colocados pela prática social da educação. De modo que, enquanto a pedagogia pode ser definida como a ciência e a arte da educação, a didática pode ser conceituada como a ciência e a arte do ensino (HAYDT, 2008).

Dependendo das circunstâncias e momentos históricos, a didática pode ser caracterizada como a ciência do ensino, a arte do ensino, uma teoria da instrução, uma teoria da formação ou até como uma tecnologia de suporte metodológico para as disciplinas curriculares (PIMENTA et al., 2013).

De acordo com Libâneo (2006), a didática tem um núcleo próprio de estudos: a relação ensino?aprendizagem, na qual estão implicados os objetivos, os conteúdos, os métodos e as formas de organização do ensino. Para alguns, o campo de estudo da didática é entendido como uma disciplina técnica e que tem como objetivo principal a esquematização do ensino e nessa perspectiva, a didática estuda a técnica de ensino em todos os seus aspectos práticos e operacionais (PILETTI, 2003).

Dentre tantas conceituações e definições, a didática sempre estará voltada às questões e processos relativos ao ensino, moldados conforme cada momento histórico e cultural. Entretanto, o ato de ensinar é uma prática social complexa, efetuada por seres humanos entre seres humanos; o ensino é transformado pela ação e relação entre os sujeitos, educador e educandos, alocados em contextos diversificados: institucionais, espaciais, culturais, temporais, sociais. Fazendo com que, dialética e dialogicamente, haja a transformação dos sujeitos envolvidos no processo ao mesmo tempo em que estes transformam/conservam o meio sociocultural em que estão inseridos (PIMENTA; ANASTASIOU, 2010).

3 METODOLOGIA

A pesquisa foi realizada de acordo com os referenciais da pesquisa qualitativa, sendo do tipo exploratória, com revisão da literatura sobre as temáticas que fazem uma intersecção de vários campos do conhecimento (principalmente ensino superior, prática docente, formação profissional e identidade docente) e o estabelecimento de um diálogo reflexivo a respeito, baseado na práxis docente no ensino superior de um/a dos autores. Para a pesquisa bibliográfica foram selecionados livros, teses/dissertações e artigos em periódicos que permitissem reflexões sobre a história da didática e sua importância para os professores do ensino superior no seu processo de desenvolvimento profissional enquanto formadores de profissionais de várias áreas. A partir deste material, uma professora experiente estabeleceu um diálogo com os demais autores e a literatura levantada para tecer reflexões que pudessem auxiliar na formação permanente e no desenvolvimento profissional de professores para o ensino superior.

4 DISCUSSÃO DOS DADOS

4.1 Da didática e suas transformações ao longo da história

Vários autores apontam que a didática e seu ensino vêm se transformando durante o tempo, com a alternância da priorização de uma ou outra das dimensões inerentes à prática da didática, como buscaremos historicizar nesta seção.

Nos últimos anos da década de 1950 e nos primeiros de 1960, o Brasil passou por um período de grande discussão político-social e educacional, no qual o debate sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN) mobilizou toda área educacional, no entanto a matriz liberal predominou. Neste contexto a didática fez o discurso escolanovista, onde a problemática passa por superar a escola tradicional, afirmando-se a necessidade de partir dos interesses espontâneos e naturais da criança e conceitos como individualidade, atividade e liberdade, estão na base da proposta didática. Trata-se de uma proposta didática psicológica que enfatiza uma dimensão humanista (RUIZ, 2002).

Saviani (1980, 1999) nos esclarece que o movimento escolanovista se baseou na tendência do humanismo moderno, predominando na educação brasileira de 1945 até 1960, tendo entre 1960 a 1968, o que se pode caracterizar como sua crise com sua articulação à tendência tecnicista. Nesta época, o ensino da didática assumiu uma perspectiva idealista e centrada na dimensão técnica do ensino-aprendizagem. É idealista, pois a análise da prática pedagógica da maioria das escolas, não é objeto de reflexão. Também assumiu caráter técnico, pois ao considerar o ensino existente como ?tradicional?, os professores a transformaram com novas técnicas e métodos novos, dentro dos princípios escolanovistas. Os condicionamentos socioeconômicos e estruturais da educação geralmente não foram levados em consideração. A prática pedagógica do professor dependeria exclusivamente da vontade e do conhecimento do professor que poderia aplicá-los às diferentes realidades em que se encontrasse (RUIZ, 2002).

Saviani (1999) também questionou a pedagogia da escola nova, desmistificando seu pretenso caráter emancipador dotado de todas as virtudes, pois considera que entre nós, ela trouxe efeitos mais nocivos do que benéficos, uma vez que uma proposta pedagógica como esta exigia reformulações no sistema escolar, profundas e caras; logo, o seu sucesso só ocorreu em escolas ou núcleos experimentais circunscritos a pequenos grupos de elite. (MARTINES, 2005). Para ele, o ideário escolanovista gerou consequências negativas nas redes oficiais organizadas no sistema tradicional, inclusive na América Latina, à medida que ?[...] penetrou na cabeça dos educadores [...]? destas redes que servem à população menos privilegiada, pois, acabou ?[...] provocando um afrouxamento da disciplina e a despreocupação com a transmissão de conhecimentos [...].? (SAVIANI, 1999, p. 22).

Ao vir associado a um processo de desvalorização da escola pública promovido por uma política educacional de expansão da rede de ensino (inclusive do ensino privado), acabou rebaixando o nível do ensino destinado à população menos favorecida, as quais, geralmente, têm na escola o único meio de acesso ao conhecimento elaborado. Em contrapartida, aprimorou o ensino destinado à elite com a criação de escolas que realmente implantaram o ideário da escola nova (MARTINES, 2005), investindo na capacitação de professores e equipando suas estruturas com laboratórios, ateliês de arte, ginásios de esporte etc.

No período da ditadura militar, a educação passou a ser vinculada à segurança nacional e o seu papel foi ligado ao desenvolvimento nacional, paralelamente à expansão industrial. A didática, assim como em tempos anteriores, continuou com os preceitos: atividade, individualidade, experimentação, mas com o acréscimo de novos aspectos, como produtividade, eficiência, racionalização, operacionalização e controle.

Nesse momento, a didática assumiu uma visão industrial ou técnico-científica, que visa ensinar para se obter um ?produto?, nesse contexto, a construção de instrumentos para avaliação, mensuração de aprendizado e recursos a serem utilizados no âmbito de aprendizado, passou a ser o conteúdo básico da didática. Assim, esse período foi marcado pelo ?silenciar da dimensão política? e o assentamento da neutralidade do técnico, o que implica numa prática pedagógica dissociada entre o técnico e o fator político-social, onde o processo de ensino-aprendizagem não leva em conta o contexto social que lhe é inerente (RUIZ, 2002).

A partir da metade da década de 1970 levantaram-se críticas a esse modelo, as quais levaram a um resultado positivo: a denúncia da falsa neutralidade do técnico e o desvelamento dos reais compromissos das afirmações aparentemente neutras levou a busca de uma prática pedagógica como ação social/cultural e politicamente orientada.

Isto, então, veio conferir outra dimensão importantíssima ao campo da didática além das dimensões humanista e técnica e os teóricos críticos vêm se ocupando especialmente deste viés: sua dimensão política, tão bem enfatizada por autores como Saviani, Luckesi, Candau, Alves, entre outros.

Entretanto, alguns autores chegaram até à negação da própria dimensão técnica na prática docente, afirmando que a dimensão de eficácia do trabalho pedagógico é uma invenção do pragmatismo pedagógico e que as técnicas seriam produtos de burocracia e instrumentos de poder exercido pelo professor. Criticou-se as noções de eficácia, racionalidade, organização, ?instrumentalização?, ?disciplina?, que estariam indissoluvelmente ligadas ao modelo burocrático capitalista. Assim, a afirmação da dimensão política veio acompanhada pela negação da dimensão técnica e humanística e, outra vez, as diferentes dimensões são contrapostas, uma levando à negação das outras. A afirmação da dimensão política e estrutural da educação supõe a negação do caráter pessoal e da competência técnica ( LIBÂNEO, 1982; CANDAU, 2000; 2014).

No atual momento, o desafio é a transformação da didática instrumental, carregada de técnicas e receitas que devem ser aplicadas à prática pedagógica, para uma didática fundamental, que visa à utilização e integração das dimensões técnica, política e humana, visando assim não somente métodos e técnicas para formação de docentes, mas trazendo à didática a reflexão do compromisso com a conservação e/ou transformação social, através da busca de práticas pedagógicas eficientes, situadas em contextos sócio históricos culturais que se alteram, instituindo identidades que por sua vez vão influenciando em contextos instituídos (CANDAU, 2014).

4.1.1 Da exaltação à negação: a busca da relevância

O processo de formação de educadores inclui quesitos curriculares que servem de orientação para o ?que fazer? educativo: a prática pedagógica. Entre estes, a didática tem ocupado lugar de destaque. Entretanto, o papel da didática na formação de educadores tem levantado questões de discussão intensa. Exaltada ou negada, a didática que se volta para a reflexão sistemática e busca de meios para a resolução dos problemas da prática pedagógica, está no momento sendo colocada em questão, passando de um momento de tranquilidade (em que havia uma suposta afirmação de sua importância) para uma forte contestação de seu papel (quando não é inócuo é prejudicial). A acusação de inocuidade se dá, em geral, por parte dos professores de graus mais elevados de ensino, tendo em vista que muitos levam em consideração que o domínio do conteúdo seria o essencial para ser um bom professor. A acusação de prejudicial vem de análises mais aprofundadas das funções da educação, em que a responsabilidade da alienação dos professores em relação ao seu trabalho é da didática (SALGADO, 1982).

Tal problemática pode ser compreendida se vislumbrada pela sua estrutura histórica. Ela acontece em um contexto concreto, no qual o ensino da Didática se constrói segundo características específicas que devem ser analisadas levando em consideração o contexto educacional e político-social em que se situam. Como o objeto de estudo da didática é o processo de ensino-aprendizagem, subentende-se que toda proposta didática está impregnada, quer seja explícita ou implicitamente, da concepção do processo de ensino aprendizagem.

Para a abordagem humanista é a relação interpessoal o centro do processo. Tal abordagem leva a uma perspectiva subjetiva, individualista e afetiva do processo de ensino-aprendizagem. Nesta abordagem, mais do que um problema de técnica, a didática deve centrar suas forças no processo de aquisição de atitudes como: calor humano, empatia, consideração positiva intencional, entre outras, no qual a didática é ?privatizada?.

O crescimento pessoal e intragrupo é desvinculado dos fatores políticos e socioeconômicos, fazendo com que sua construção estrutural seja posta entre parênteses. Por outro lado, apesar de unilateral e reducionista, pondo a dimensão humana como único centro configurador do processo de ensino-aprendizagem, a abordagem humanista demonstra a importância dessa dimensão. Sem dúvida o componente afetivo e de interação intersubjetiva está contido no processo de ensino-aprendizagem e não pode ser ignorado no processo de formação das novas gerações (CANDAU, 2014). Mas, isto não é suficiente.

Em relação à abordagem técnica, ela refere-se ao processo de ensino-aprendizagem como ação intencional, sistemática, que procura proporcionar melhores condições de aprendizagem. Características como objetivos instrucionais, seleção de conteúdo, estratégias de ensino e avaliação, entre outras, constituem ponto principal de sua preocupação. São as características consideradas como objetivo racional do processo de ensino-aprendizagem. Porém, quando tal dimensão é separada das demais, tem-se o tecnicismo. Uma vez que a dimensão técnica é privilegiada, analisada de forma dissociada de suas raízes político-sociais e ideológicas, vista como algo ?neutro? e instrumental, a questão do ?fazer? e o de ?como fazer? é separada das perguntas sobre o ?por que fazer? e o ?para que fazer?, sendo vista de forma abstrata e descontextualizada.

Se o tecnicismo parte da teoria unilateral do processo de ensino-aprendizagem, que é configurado a partir da dimensão técnica, este, no entanto é um aspecto que não pode ser ignorado para a adequada compreensão do processo de ensino-aprendizagem. O domínio do conteúdo e as aquisições de habilidades básicas, assim também como a busca da estratégia que ajude na aprendizagem em cada situação concreta de ensino, constituem problemas fundamentais para toda proposta pedagógica. Entretanto, a análise desta problemática só adquire significado quando é contextualizada entre as variáveis envolvidas no processo (CANDAU, 2014).

Uma vez que todo processo de ensino-aprendizagem é ?situado?, a dimensão político-social lhe é inerente. Ele acontece em uma cultura específica, trata com pessoas que tem posições sociais diferentes e definidas na organização social em que vivem. Os fatores advindos desses fatos influem diretamente no processo de ensino-aprendizagem. A dimensão político-social não é um aspecto do processo de ensino-aprendizagem. Ela está contida em toda a prática pedagógica, que possui em si uma dimensão político-social. No entanto, a afirmação da dimensão política da educação em geral, e de prática pedagógica em especial, tem sido acompanhada durante tempos, não somente da crítica ao reducionismo humanista ou tecnicista, mas tem chegado até mesmo à negação destes no processo de ensino-aprendizagem.

Tal visão reducionista, dissociada ou justaposta da relação entre as dimensões é difícil de ser superada, mas os autores contemporâneos passaram a defender uma perspectiva de multidimensionalidade que articula organicamente diversas dimensões da didática como o centro configurador no processo de ensino-aprendizagem e nesta perspectiva, estes autores propõem que a didática ?se situe? (CANDAU, 2014), isto é , leve em consideração: o contexto sociocultural do processo educativo, as relações interpessoais envolvidas, seus sujeitos historicamente constituídos e os aportes técnicos que contribuam para melhorar o processo de ensino-aprendizagem dos envolvidos.

Na mesma linha, Savianidefende uma pedagogia histórico-crítica, que, por estar ?[...] articulada com os interesses populares valorizará, pois, a escola; não será indiferente ao que ocorre em seu interior; estará empenhada em que a escola funcione bem; portanto, estará interessada em métodos de ensino eficazes.? (1999, p. 79). Para esta pedagogia, os métodos se situam

[...] para além dos métodos tradicionais e novos, superando por incorporação as contribuições de uns e de outros. Portanto, serão métodos que estimularão a atividade e iniciativa dos alunos sem abrir mão, porém, da iniciativa do professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre si e com o professor, mas sem deixar de valorizar o diálogo com a cultura acumulada historicamente; levarão em conta os interesses dos alunos, os ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico, mas sem perder de vista a sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e graduação para efeitos do processo de transmissão-assimilação dos conteúdos cognitivos (SAVIANI, 1999, p. 79).

Estes métodos devem manter ?[...] continuamente a vinculação entre educação e sociedade [...]?, tendo sempre como ponto de partida a prática social (1º. Passo), que é comum a professor e alunos, embora estes se encontrem em níveis diferentes de compreensão (conhecimento e experiência) da prática social. O 2º. Passo seria a problematização: ?trata-se de detectar que questões precisam ser resolvidas no âmbito da prática social e, em consequência, que conhecimento é necessário dominar.?. Já o 3º. Passo consiste na instrumentalização, isto é, em ?se apropriar dos instrumentos teóricos e práticos necessários ao equacionamento dos problemas detectados na prática social?. O 4º. Passo foi chamado de catarse: ?trata-se da efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados agora em elementos ativos de transformação social?, para em seguida chegar à própria prática social, em novos níveis de compreensão tanto do professor como dos alunos, compreendendo-se a educação como ?mediação no seio da prática social? e professores e alunos são vistos como ?agentes sociais ativos, reais? (SAVIANI, 1999, p. 79-83).

Para se realizar esta pedagogia histórico-crítica defende-se a necessidade de ?competência política-técnica? por parte do professor, isto é, a identificação dos fins da educação (fins a atingir) que ?implica imediatamente competência política e mediatamente competência técnica; a elaboração dos métodos para atingi-los implica, por sua vez, imediatamente competência técnica e mediatamente política.? (SAVIANI, 2003, p. 63-4).

Uma proposta que pode ser relacionada com a de Saviani vem sendo defendida por muitos pesquisadores-educadores ( BRUNER, 2001; POZO, 2002; SACRISTÁN; PÉREZ GÓMEZ, 1998) e que nos parece promissora nesta perspectiva de multidimensionalidade é a que adota o conceito de (sub)comunidades de aprendizagem (em que seus membros se especializam em aprender) na qual o professor não se sinta onipotente e monopolizador das ações e reflexões, mas todos ?constroem ?andaimes? uns para os outros?, desenvolvem ?a capacidade de julgar, tornam-se autoconfiantes e capazes de trabalhar bem uns com os outros.? ( BRUNER, 2001, p. 29-30).

Nestas subcomunidades (as salas de aula) ?os membros do grupo devem se ajudar mutuamente a ver o estado da situação e aprender o macete da função? que deve desempenhar ou que está desempenhando no grupo, através de uma pedagogia interativa e intersubjetiva. Ao contrário do que dizem os críticos tradicionais, Bruner defende que essas subcomunidades de aprendizagem ?não reduzem o papel do professor nem sua ?autoridade?. O que acontece é que o professor assume a função adicional de incentivar outros a compartilhá-la.? (p. 30).

Na próxima seção, refletiremos sobre as questões até aqui discutidas relacionando-as com a prática educativa no ensino superior e sobre a (re)construção da identidade do docente deste nível de ensino.

4.1.3 O processo de (re)construção da prática educativa e da identidade docente

A princípio, cabe salientar que todos somos educadores e educandos ao mesmo tempo, aprendizes e mestres, levando em consideração que ensinamos e somos ensinados, de forma contínua em todos os momentos de nossa vida. Não precisando necessariamente de preparação para tal, aprendemos de forma natural ( POZO, 2002; CANDAU, 2014). O trabalho docente é parte constituinte do processo educativo mais globalizado, pois os membros da sociedade são instruídos e munidos de capacitação na vida social, porém quando se tratar de educador profissional, passamos a ter uma mudança de ótica.

Por muito tempo, não houve em nosso país, nenhum tipo de preocupação ou atenção com a formação do professor para a atuação no Ensino Superior. Crenças há muito divulgadas de que ?quem sabe, sabe ensinar? e ?o professor bom nasce feito? contribuíram para que a escolha de professores direcionados a cursos superiores fosse determinada principalmente por sua competência no exercício da profissão correspondente (GIL, 2010).

A educação superior possuía um caráter humanístico e seu acesso era privilégio de poucos, provenientes de famílias com condições financeiras elevadas, até pouco tempo atrás. Portanto, com o ingresso no ensino superior, buscavam o aprimoramento pessoal relativo à uma profissão (BARBOSA, 2011). Com isso, a didática empregada (ou sua falta) pelo professor não era relevante no meio acadêmico. Mas, com o aumento das instituições de ensino superior (IES), o acesso facilitado a elas, o sistema de avaliação do MEC para autorização de funcionamento e de abertura/manutenção de cursos e a busca de melhoria da qualidade (MEC, 2017), em um mundo que vem sofrendo profundas mudanças nas últimas décadas, a demanda e a exigência de preparação dos docentes deste nível de ensino tem sido cada vez mais enfatizada. Segundo Malheiros (2012), tal processo deve ser norteado por três aspectos, que são relacionados entre si: formação teórico-científica, formação didática e formação prática.

A formação teórico-científica refere-se ao conhecimento específico da disciplina que o futuro professor irá lecionar; a formação didática tem como finalidade a capacitação do professor a utilizar ou desenvolver metodologias adequadas para o ensino do conteúdo e a formação prática tem como objetivo central a iniciação do professor no ambiente escolar, fazendo com que este se familiarize com a sala de aula.

Laneve (1993) também destaca o saber da prática na construção do saber didático, o qual se dá não só pela pesquisa, mas também pela experiência dos professores, ou seja, daquilo que fazem e do que podem vir a fazer na escola. A prática dos professores é rica em possibilidades para a constituição da teoria, pois contém saberes que advêm da ação direta, da intuição, do bom senso, da capacidade pessoal de julgamento, do poder de decisão. Para Martins

Após décadas de ensino bancário (FREIRE, 1996), onde o docente possuía a ?verdade final? do conhecimento e o aluno realizava a etimologia própria de sua nomenclatura, ou seja, aluno que significa ?sem luz?, vivemos um tempo em que a busca constante pela melhora das práticas educativas está cada vez mais presente (MARTINS, 2012, p. 27).

Baseado em Zabala (1998), Martins (2012)utiliza o conceito de prática educativa que vem sendo utilizado recentemente na área da educação, apoiado na proposta de que esta é uma prática social que necessita do permanente processo de ação-reflexão-ação, no qual devemos relacionar, reflexivamente, o planejamento, a aplicação do plano e a avaliação da aprendizagem em contextos que precisam sempre ser levados em consideração para não incorrermos no tecnicismo apolítico. O cuidadoso planejamento da sequência das atividades, levando-se em consideração os sujeitos (concretos, históricos) envolvidos no processo e seu contexto é que fará a intervenção pedagógica ter efeitos positivos sobre o ensino-aprendizagem necessário para uma boa formação do aprendente.

Martins então questiona: ?Ora, planeja-se a partir de que??. Numa perspectiva crítica, o autor responde que ?nos aproximamos da prática pedagógica que visa não somente a aula, mas à perspectiva social da educação? quando: ?A partir dos objetivos definidos socialmente para aquele nível de ensino, replaneja-se a partir da avaliação dos resultados obtidos com a ação no processo de ensino junto aos alunos.? (MARTINS, 2012, p. 28). E ainda esclarece que a função social do ensino superior visa principalmente à ?formação de profissionais multiplicadores de opinião para que a sociedade tenha não só bases epistemológicas, mas, também práticas para a solução de problemas e propostas de novos avanços em prol da comunidade humana?. Assim,

Para que a prática pedagógica ocorra de modo efetivo é necessário que os docentes, principalmente, tenham um conhecimento prévio do currículo prescrito para o curso em que se desenvolve a prática educativa. Além desse conhecimento, a possibilidade de flexibilizar os conteúdos propostos inserindo outros temas surgidos de sua própria práxis, dentro e fora da docência, captados pelo contexto vivencial no qual cada um se desenvolve e se relaciona. E, também, temáticas apontadas em reuniões de professores, debates e pesquisas acadêmicas e da própria percepção das discussões em sala de aula com os alunos e suas preocupações do dia a dia (MARTINS, 2012, p. 29).

Defende ainda que, ?a sociedade espera uma pessoa capaz de atuar como ferramenta de uso comunitário?, isto é, que atenda suas necessidades com destreza e humanidade de forma dialética, ou seja, ?ao mesmo tempo em que se educa para uma determinada função social que atende à demanda específica, também se educa a pessoa? [...]; ?ensina-se para a profissão e educa-se para a vida.? (MARTINS, 2012, p. 29). Por isso:

É preciso insistir que tudo quanto fazemos em aula, por menos que seja, incide em maior ou menor grau na formação de nossos alunos. A maneira de organizar a aula, o tipo de incentivos, as expectativas que depositamos, os materiais que utilizamos, cada uma destas decisões veicula determinadas experiências educativas, e é possível que nem sempre estejam em consonância com o pensamento que temos a respeito do sentido e do papel que hoje em dia tem a educação (ZABALA, 1998, p. 29).

Assim, vemos que a prática docente também passa por relações intersubjetivas, além da escolha dos conteúdos que serão trabalhados na aula, e na relação educador/aprendente e Zabala (1998, p. 30) defende que, no desenvolvimento da habilidade de planejar os conteúdos para que a aprendizagem se estabeleça de maneira integral, é necessário ter em mente a sigla CHA = C onteúdos, Habilidade e Atitudes.

?O QUE SE DEVE SABER? ou seja, os conteúdos conceituais, que são termos abstratos, fatos, objetos ou símbolos que são próprios de cada área do conhecimento; ?O QUE SE DEVE SABER FAZER? diz respeito aos conteúdos procedimentais, à habilidade que se tem a partir de conteúdos conceituais adquiridos e inclui ?técnicas, métodos, estratégias, ou seja, é um conjunto de ações ordenadas e com um fim. Por exemplo: leituras, desenhos, observações, cálculos, inferências etc.? e ?COMO SE DEVE SER?, que diz respeito aos conteúdos atitudinais, os quais englobam conteúdos que agrupam os valores, atitudes e normas ?que são interiorizados a partir das vivências e influências que recebemos através não só do processo educativo formal, mas também de toda nossa vida de produção de significados diante da cultura na qual estamos inseridos.? (MARTINS, 2012, p. 30).

Este tipo de aprendizagem supõe um conhecimento e uma reflexão sobre os ?[...] possíveis modelos, uma análise e uma avaliação das normas, uma apropriação e elaboração do conteúdo, que implica a análise dos fatores positivos e negativos, uma tomada de posição, um envolvimento afetivo e uma revisão e avaliação da própria prática? (ZABALA, 1998, p. 48).

Enfim, o CHA, é o planejamento que visa a uma prática educativa reflexiva, voltada para a função social e o conhecimento de como se aprende, levando o aprendente a ser avaliado de modo processual e ser tomado por uma conscientização dos objetivos da aprendizagem. Já do ponto de vista do docente, há o envolvimento integral na busca de uma prática educativa que se inter-relacione com a cultura, suas propostas e necessidades. Ou seja, sendo a educação sempre um instrumento político, é carregada de conteúdos ideológicos expressos tanto pelos currículos institucionalizados, quanto pela própria formação deficitária dos docentes, assim como uma visão de escolarização que ainda vem sendo estudada e cautelosamente afugentada de visões generalistas ou reducionistas de ser a salvadora da educação como processo único (MARTINS, 2012, p. 32).

Ao olhar para a prática docente nesta perspectiva, vemos a necessidade de um permanente movimento entre ação-reflexão-ação, entre planejamento-aula-avaliação e replanejamento, o que se manifesta também no movimento contínuo da (re)construção da identidade do professor, que vai se desenvolvendo profissionalmente de forma reflexiva, no coletivo da escola. Mas, o que entendemos por construir a identidade? Segundo Pimenta (1997, p. 6-7):

A identidade não é um dado imutável. Nem externo, que possa ser adquirido. Mas, é um processo de construção do sujeito historicamente situado. A profissão de professor, como as demais, emerge em dado contexto e momento históricos, como resposta a necessidades que estão postas pelas sociedades, adquirindo estatuto de legalidade. Assim, algumas profissões deixaram de existir e outras surgiram nos tempos atuais. Outras adquirem tal poder legal, que se cristalizam a ponto de permanecerem com práticas altamente formalizadas e significado burocrático. Outras não chegam a desaparecer, mas se transformam adquirindo novas características para responderem a novas demandas da sociedade. Este é o caso da profissão de professor.

Pimenta vem atuando na área de formação de professores na perspectiva do ?caráter dinâmico da profissão docente, como prática social? e defende que é ?na leitura crítica da profissão, diante das realidades sociais, que se buscam os referenciais para modificá-la?.

No caso da educação escolar, constatamos, no mundo contemporâneo, que ao crescimento quantitativo dos sistemas de ensino não tem correspondido um resultado formativo (qualitativo), adequado às exigências da população envolvida, nem às exigências das demandas sociais, o que coloca a importância de definir nova identidade profissional do professor. Que professor se faz necessário para as necessidades formativas em uma escola que colabora para os processos emancipatórios da população? Que opere o ensino no sentido de incorporar as crianças e os jovens no processo civilizatório, com seus avanços e seus problemas? (PIMENTA, 1997, p. 7).

Assim, defende ainda que uma identidade profissional se constrói a partir da ?[...] revisão constante dos significados sociais da profissão; da revisão das tradições pedagógicas instituídas e muitas vezes reproduzidas acriticamente no cotidiano escolar, como habitus?(PIMENTA, 1997, p. 7). Segundo Martines (2005, p. 44-5):

As origens das práticas e modos de ensinar presentes nas universidades brasileiras encontram-se nesse modelo [modelo jesuítico-napoleônico] que foi se institucionalizando - instituindo-se em conjuntos de normas ou regras constitutivas que definem e determinam posições e relações em determinada área de maneira convencional - e se configurando como habitus - esquemas que permitem engendrar uma infinidade de práticas adaptadas a situações sempre renovadas, sem nunca constituir princípios explícitos ou supor a busca consciente de fins e domínio expresso dos meios necessários para alcançá-lo. O habitus permite a incorporação de alterações nos discursos e não nas práticas, instala-se coletivamente e toda tentativa de modificação acaba afetando-a apenas superficialmente, geralmente mudando-se apenas o discurso sobre a prática (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002, p. 181).

Pimenta defende também que a reconstrução da identidade profissional depende da reafirmação de práticas consagradas culturalmente e que permanecem significativas; ?[...] que resistem a inovações porque estão prenhes de saberes válidos [...]? (PIMENTA, 1997, p. 8) para o atendimento das necessidades do contexto sociocultural de uma dada população.

A (re)construção da identidade docente vai então se configurando no ?confronto entre as teorias e as práticas?, isto é, ?na análise sistemática das práticas à luz das teorias existentes, da construção de novas teorias?. (Re)Constrói-se, também, pelo significado que cada professor confere à atividade docente no seu cotidiano, enquanto ator e autor, a partir de ?seus valores, de seu modo de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus saberes, de suas angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida: o ser professor.? (PIMENTA, 1997, p. 7).

Mas, como Cavalcanti (2016), Pimenta também defende que a rede de relações que o professor estabelece com outros professores, nas escolas, nos sindicatos e em outros agrupamentos, tem forte influência na (re)construção da identidade do professor.

[...] a identidade docente é construída num processo dinâmico e contínuo de identificação e diferenciação, de construção e reconstrução das práticas, dos valores, das relações estabelecidas com os outros e o ambiente de trabalho; as mudanças não são instituídas como cópias fiéis dos discursos reguladores, há sempre adequações e mutações postas em movimento pelos professores, que na prática docente imprimem o ritmo de aceleração ou retardo, legitimação ou negação das mudanças [...] (CAVALCANTI, 2016, p. 7).

Considerando que muitos professores do ensino superior não se identificam como ?professores?, mas sim como ?pesquisadores?, Martines (2005), Pimenta e Anastasiou (2010) e Sousa (2018) realizaram pesquisas nesta área e concluíram sobre a importânciada constituição da identidade docente do professoruniversitário, a qual se daria em um processo de formação continuada ou permanente, focando o ensino, num movimento contínuo de desenvolvimento profissional e de aperfeiçoamento do currículo e das práticas.

Sousa (2018) fez um levantamento de autores que utilizam a expressão desenvolvimento profissional ( MARCELO, 2009; GARCIA, 1999; GATTI, 2014; DAY, 2000; SACHS, 2009) e relata que

[...] o desenvolvimento profissional é uma construção ao longo da carreira docente a partir de experiências de natureza diversas realizadas no contexto concreto do trabalho. É influenciado por questões relacionadas ao ambiente de trabalho, às reformas curriculares, questões de cunho pessoal como as crenças, compromissos e valores, as experiências e histórias de vida, os conhecimentos sobre a área de formação e as próprias condições da profissão. Assim, entende-se que deve ser concebido como um processo em evolução, em que os professores vão reconstruindo seus conhecimentos e, por conseguinte suas identidades profissionais (SOUSA, 2018, p. 48).

A autora informa ainda que o desenvolvimento profissional representa um amplo espectro de dimensões de aprendizagem, as quais podem ser identificadas no processo de pesquisa e/ou avaliação do docente, tais como: ?o desenvolvimento pedagógico? que ?refere-se à melhoria das atividades de ensino do professor, obtida através de competências instrumentais em algumas áreas do currículo ou na melhoria da gestão das salas de aula; o ?conhecimento e compreensão de si mesmo, que se refere à promoção de sentimentos de confiança e de autorrealização para que o professor consiga ter uma imagem equilibrada de si?; o ?desenvolvimento cognitivo, que implica o processamento de informações e a aquisição de conhecimentos pelos professores?; o ?desenvolvimento teórico, que se refere ao desenvolvimento de reflexão dos professores sobre sua atuação docente?; o ?desenvolvimento profissional obtido através de processos de investigação? e o ?desenvolvimento da carreira, a partir da assunção de novas tarefas no contexto de trabalho? (SOUSA, 2018, p. 123).

Essas várias dimensões de aprendizagem que podem ser identificadas no processo de desenvolvimento profissional do professor se dão no desempenho das inúmeras tarefas que o professor tem que executar para desempenhar bem sua função social, tais como:

[...] planejar, selecionar e organizar os conteúdos, programar tarefas, criar condições de estudo dentro da classe, incentivar os alunos para o estudo, ou seja, o professor dirige as atividades de aprendizagem dos alunos a fim de que estes se tornem sujeitos ativos da própria aprendizagem. Não há ensino verdadeiro se os alunos não desenvolvem suas capacidades e habilidades mentais, se não assimilam pessoal e ativamente os conhecimentos ou se não dão conta de aplicá-los, seja nos exercícios e verificações feitos em classe, seja na prática da vida (LIBÂNEO, 2002, p. 08).

Uma contribuição que acentua a relevância da didática na formação docente trazendo benefícios ao docente e ao discente de graduação/pós-graduação reúne as várias tarefas citadas por Libâneo (2002, p. 8) ?planejar, selecionar e organizar os conteúdos, programar tarefas, criar condições de estudo dentro da classe?: é a compreensão das etapas da aula e de métodos ativos para uma aprendizagem significativa, sendo que os trabalhos em grupo são considerados muito importantes para tornar o aluno mais ativo no processo de aprendizagem. Certamente, um professor que conheça dinâmicas de funcionamento dos grupos beneficiará sua prática docente ao ser capaz de adequar diferentes técnicas para atingir objetivos diversos, e neste sentido, podemos citar alguns autores importantes ( HERNANDEZ, 1996; HERNANDEZ; VENTURA, 1998; ANDREOLA, 2003; OSÓRIO, 2003; LEMOV, 2011).

Podemos ainda ressaltar que, para verificar se os alunos assimilaram o conteúdo e se sabem aplicá-lo em outras situações e na vida, é necessário avaliar. E esta é uma área da didática que sofreu muitas mudanças ao longo do tempo ( MARTINES, 2005) e que se mostra extremamente complexa e atravessada por interesses diversos, que o professor deveria conhecer para realizar avaliações mais justas e eficientes. Quanto à questão da avaliação, também seria útil ao professor e bom para o aluno que os docentes do ensino superior conhecessem um pouco da evolução do processo de avaliação do desempenho discente, as mudanças ocorridas ao longo do processo e procedimentos de avaliação que pudessem ser utilizados de forma complementar para a realização de avaliações tecnicamente eficientes e socialmente mais justas ( PENA-FIRME, 1994; LUCKESI, 1996; MARTINES, 2005).

Assim, sem pretender esgotar o assunto, vimos como é complexa e multidimensional/ multirreferencial a questão da didática relativamente à formação docente para o ensino superior através de uma pesquisa bibliográfica e reflexão a partir das experiências vividas numa prática educativa ao longo de mais de vinte anos de atuação em salas de aula no ensino superior brasileiro.

5 CONSIDERAÇÕES

O trabalho teve como objetivo historicizar o desenvolvimento da didática e refletir sobre sua importância para a formação de professores do ensino superior, com vistas ao desenvolvimento profissional, à (re)construção da prática docente e da identidade do professor. Entendemos que este foi atingido ao discutirmos como a didática surgiu e foi se transformando ao longo da história, passando de uma fase em que houve a exaltação de sua importância à negação da mesma.

No processo histórico, a busca da relevância levou os estudiosos a identificar três dimensões que se articulam e precisam ser levadas em consideração no processo de (re)construção da prática educativa e da identidade docente. São as dimensões humanística, técnica e sociopolítica.

Atualmente, autores críticos da área da Didática destacam essa multidimensionalidade que articula organicamente diversas dimensões da didática como o centro configurador no processo de ensino-aprendizagem e nesta perspectiva, estes autores propõem que a didática leve em consideração: o contexto sociocultural do processo educativo, as relações interpessoais envolvidas, seus sujeitos historicamente constituídos e os aportes técnicos que contribuam para melhorar o processo de ensino-aprendizagem dos envolvidos.

Podemos perceber que muitas destas variáveis se relacionam com o processo de formação na graduação/pós-graduação, outras com a prática educativa exercida no contexto institucional no qual o docente atua, outras devem ser permanentemente situadas em relação ao contexto social mais amplo, incluindo-se aí o avanço do conhecimento técnico da área da didática. Tanto a (re)construção da identidade como o desenvolvimento profissional do professor do ensino superior passa então a ser visto como uma permanente formação que articule ação-reflexão-nova ação e que não pode ficar a cargo apenas do professor, individualmente.

Neste momento em que a sociedade brasileira vem enfrentando enormes desafios nas últimas décadas, entre eles, o de melhorar a qualidade da educação em todos os níveis, tanto governos, pesquisadores e instituições estão implicados com formação de professores, pesquisas e reformulação dos currículos do ensino superior com vistas à formação dos docentes que atuam neste nível de ensino, através de cursos de pós-graduação lato sensu (especializações e aperfeiçoamentos) e stricto sensu (mestrados profissionais e acadêmicos, doutorado, pós-doutorado).

Alguns projetos investem nas concepções de formação permanente e de desenvolvimento profissional, através de projetos coletivos que envolvem ação-reflexão-ação da prática educativa, especialmente de projetos de pesquisa-ação. Estes aproximam pesquisadores das universidades dos professores em formação (inicial ou continuada) numa perspectiva de multirreferencialidade e multidimensionalidade da prática educativa e da didática.

Assim, as pesquisas e as reflexões apontam para as inúmeras contribuições que a Didática pode trazer para a transformação ou para a manutenção de uma sociedade e para o desenvolvimento dos agentes sociais envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, especialmente quando ela é pensada numa perspectiva de multirreferencialidade, ou seja, como didática fundamental e não apenas instrumental.

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Autor notes

1 Doutora em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano (USP). Professora aposentada da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Porto Velho, RO, Brasil; docente do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática. Endereço para correspondência: Av. Pedro Paulo de Sousa, 1750, Bloco H, apto. 1306, Goiânia 2, Goiânia, GO, Brasil, CEP: 74.663-520. E-mail bethmartines@gmail.com.
2 Especialista em Metodologia do Ensino Superior pelo Centro Universitário São Lucas, Porto Velho / RO. Endereço para correspondência: Rua Salgado Filho, 3525. Bairro São João Bosco, Porto Velho, RO, Brasil. CEP 76.803-776. E-mail joaomarcosaraujopaz@gmail.com.

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