Artigos

O MULTICULTURALISMO E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS

THE MULTICULTURALISM AND THE TRAINING OF TEACHERS OF BIOLOGY

Aparecida Gasquez de Sousa
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Brasil
Maranei Rohers Penha
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Brasil
Érica Jaqueline Pizapio Teixeira
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Brasil

REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática

Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil

ISSN-e: 2318-6674

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 7, núm. 3, 2019

revistareamec@gmail.com

Recepção: 11 Outubro 2019

Aprovação: 21 Outubro 2019



DOI: https://doi.org/10.26571/reamec.v7i3.9277

Os direitos autorais são mantidos pelos autores, os quais concedem à Revista REAMEC –Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática -os direitos exclusivos de primeira publicação. Os autores não serão remunerados pela publicação de trabalhos neste periódico. Os autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalho publicada neste periódico (ex.: publicar em repositório institucional, em site pessoal, publicar uma tradução, ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial neste periódico. Os editores da Revista têm o direito de proceder a ajustes textuais e de adequação às normas da publicação.

Resumo: O debate acerca do multiculturalismo e da diversidade cultural vem se intensificando nas últimas décadas. Tal debate não pode ficar à margem das discussões acerca das necessidades formativas dos professores, pois as escolas compõem a sociedade, e os professores irão se deparar com questões relativas à diversidade cultural nos espaços educacionais, principalmente nas salas de aula. Documentos recentes que norteiam a formação de professores, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores para a Educação Básica, trazem orientações para que essa temática seja contemplada nos cursos de licenciatura de todas as áreas. Este artigo, de natureza bibliográfica, tem como objetivo discutir a inserção do multiculturalismo em currículos de cursos de licenciatura de Ciências Biológicas. A partir do referencial teórico de Moreira (2002), Canen (2010), Silva (2000) e Hypólito e Moreira (2003), são vislumbrados alguns caminhos para a inserção dessa temática nos currículos de formação de professores da referida disciplina, tais como dinâmicas de sensibilização de identidades; ancoragem social de conteúdos; necessidade de reescrever o conhecimento a partir da visão dos diferentes grupos, de forma a desafiar a lógica de construção dos conhecimentos que privilegiou o eurocentrismo, o masculino e o branco; e discussões sobre a pseudoneutralidade da Ciência.

Palavras-chave: Diversidade cultural, Currículo, Formação de professores de Ciências.

Abstract: The debate about multiculturalism and cultural diversity has been intensified in recent decades. This debate cannot be excluded from the discussions about teachers’ formation needs, because schools are placed in a society and teachers will be faced with issues related to cultural diversity in educational spaces, especially in classrooms. Recent documents that guide teacher formation, such as the Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores para a Educação Básica [National Curriculum Guidelines for the training of teachers of Basic Education], provide instructions that this topic be included in undergraduate courses in all areas. This article, of a bibliographic nature, aims to discuss about the insertion of multiculturalism in the curricula of Biology undergraduate courses. From the theoretical framework of Moreira (2002), Canen (2010), Silva (2000) and Hypólito and Moreira (2003), some possibilities for the insertion of multiculturalism in the teacher formation curricula of this subject are considered, such as identity awareness-raising dynamics; social related content; the need to rewrite knowledge from the perspective of different groups, in order to challenge the logic of knowledge construction that favors eurocentrism, a masculine and white point of view; and discussions about the pseudo neutrality of science.

Keywords: Cultural diversity, Curriculum, Science teacher training.

1. INTRODUÇÃO

O debate acerca do multiculturalismo e da diversidade cultural vem se intensificando nas últimas décadas, o que pode ser visto como reflexo da globalização. Atualmente, há mais facilidade de comunicação entre os povos e uma maior exposição das diferenças culturais. Assim, intensificam-se os movimentos sociais dos mais variados segmentos que reivindicam espaços e maior reconhecimento social.

Esse debate não pode ficar à margem das discussões acerca das necessidades formativas dos professores, pois as escolas compõem a sociedade e, nelas, os professores irão se deparar com questões relativas à diversidade cultural nos espaços educacionais, especialmente em suas salas de aula. Por isso, documentos recentes que norteiam a formação de professores, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores para a Educação Básica, trazem orientações para que essa temática seja contemplada nos cursos de licenciatura de todas as áreas do conhecimento (BRASIL, 2015).

Nesse artigo, por meio de uma pesquisa bibliográfica, temos como objetivo principal refletir sobre a inserção do multiculturalismo nos currículos de cursos de formação inicial de professores de Ciências Biológicas. Além desta introdução e das considerações finais, o estudo apresenta os seguintes tópicos: procedimento metodológico, discussões sobre universalismo e multiculturalismo; contribuição da Antropologia e debates na sociedade globalizada; multiculturalismo: alguns apontamentos; e emergência da inserção do multiculturalismo nos currículos de cursos de licenciatura de Ciências Biológicas.

2. PROCEDIMENTO METODOLÓGICO

Para traçarmos o cenário geral das pesquisas desenvolvidas em nosso país nos últimos anos em relação à temática do multiculturalismo e à formação de professores de Ciências Biológicas, desenvolvemos uma pesquisa de cunho bibliográfico. Segundo Pizzani, Silva, Bello e Hayashi (2012, p. 58), a “pesquisa bibliográfica é a revisão da literatura sobre as principais teorias que norteiam o trabalho científico”. As autoras (2012, p. 58) acrescentam ainda que “essa revisão é o que chamamos de levantamento bibliográfico ou revisão bibliográfica, a qual pode ser realizada em livros, periódicos, artigo de jornais, sites da Internet entre outras fontes”.

No desenvolvimento desta pesquisa, selecionamos fontes bibliográficas incluídas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores para a Educação Básica, que trazem orientações sobre a temática da diversidade. Essas fontes estão disponíveis no portal do Ministério da Educação e Cultura (MEC) e incluem livros impressos e disponíveis em formato digital, assim como artigos publicados em periódicos e revistas online. O estudo de tais bibliografias permitiu a compreensão do tema multiculturalismo e da formação de professores de Ciências Biológicas, tanto no aspecto científico da investigação dessa temática, quanto a respeito da inserção dela no contexto dos cursos de formação inicial de professores.

Dessa maneira, organizamos as discussões resultantes das nossas leituras da seguinte maneira: iniciamos com uma breve contextualização histórica acerca do debate universalismo/multiculturalismo, incluindo as contribuições da Antropologia e a emergência da temática no atual período da globalização; na seção seguinte, trazemos alguns apontamentos sobre as concepções de multiculturalismo; e, por fim, discutimos sobre as possibilidades de inserção da temática em questão nos currículos de formação de professores de Ciências Biológicas.

3. UNIVERSALISMO E MULTICULTURALISMO: A CONTRIBUIÇÃO DA ANTROPOLOGIA E O DEBATE NA SOCIEDADE GLOBALIZADA

O termo “universal” pode apresentar vários sentidos, sendo necessário distingui-lo de termos como “uniforme” e “comum”. “Universal” está mais ligado à tradição intelectual do período histórico correspondente ao Iluminismo, situado espacial e temporalmente na Europa do século XVIII. Para os pensadores iluministas, era necessário compreender a passagem da animalidade humana para a vida em sociedade, no seio da qual os homens deixariam o estado da natureza, passando a obedecer a regras de conduta e às instituições, de modo a preservar o convívio social, a família e o Estado. Para atingir a felicidade, o homem deveria ser guiado pela razão e por um conjunto de valores de natureza moral, além de cultivar um espírito de liberdade e de responsabilidade (ORTIZ, 2015).

Outro sentido dado ao “universalismo” está relacionado a uma das características da linguagem, competência inerente à humanidade. Toda linguagem se materializa em uma língua em particular, pertencente à história e à cultura de um determinado povo. Desde os primórdios, os homens já conheciam uma protolinguagem[4], que passou por diferentes fases evolutivas, assim como o tamanho do nosso crânio. Portanto, a linguagem é universal, mas essa universalidade termina quando começam a cultura e a língua (ORTIZ, 2015).

A noção de diversidade que emerge no atual período da globalização é um importante tema para estudos da Antropologia já há algum tempo. Ao realizarem trabalhos de campo no final do século XIX, os antropólogos descobriram, por exemplo, que diferentes grupos indígenas constituíam culturas com identidades muito próprias. Mesmo havendo correntes teóricas universalistas, a Antropologia se consolidou como uma ciência que valoriza a unicidade e a identidade de cada cultura (ORTIZ, 2015). Essa característica da disciplina também foi destacada por Gusmão (2008), pois, segundo a autora, desde o início dos anos de 1940, antropólogos como Ruth Benedict, Margaret Mead, M. Herskovits e outros já se mostravam interessados pela diversidade humana, que foi aflorada e exposta devido a duas guerras mundiais e às lutas em prol da libertação dos povos coloniais (GUSMÃO, 2008).

Franz Boas é considerado o antropólogo que, no início do século XX, marcou uma ruptura no quadro teórico da Antropologia. Tal ruptura ocorreu em três níveis: no nível das ideias, no nível dos métodos e no nível dos valores.

No plano das ideias, há uma oposição ao pensamento de que a história humana se ordenou a partir de um único processo evolutivo. Esse pensamento estava relacionado ao determinismo biológico, pois muitos pensadores do século XIX defendiam que havia uma estreita relação entre aspectos biológicos e sociais, sendo essa a premissa para o estabelecimento de um determinismo entre a raça e o meio e para a definição de identidades nacionais. Em seus estudos, Boas e outros antropólogos norte-americanos do século XX concluíram que não existem relações mais aprofundadas entre as características biológicas/traços raciais e as configurações de uma dada cultura (ORTIZ, 2015).

Boas também passou a questionar o pensamento de que a evolução humana obedecia a leis universais, assumindo um movimento unidirecional, segundo o qual a humanidade passa por fases bem definidas: estado selvagem, barbárie e civilização.

A epopeia humana podia então ser narrada através de uma sequência de acontecimentos: a infância da raça humana, o aprendizado da pesca e o uso do fogo, a invenção do arco e da flecha, o advento da cerâmica, a domesticação dos animais, o cultivo do milho, a idade do ferro, a descoberta do alfabeto fonético. A proposta culturalista toma o rumo oposto, negando a temporalidade unilinear da história, o que significa a impossibilidade de apreendê-la a partir de um ponto zero, marco inaugural de todo um processo. (ORTIZ, 2015, p. 91).

Os antropólogos norte-americanos não só negam que haja um marco zero para o processo de evolução da humanidade, como também exemplificam esse posicionamento recorrendo à refutação do mito adâmico. Segundo essa concepção, haveria uma língua-mãe, criada por Deus, comum a todos os seres humanos, da qual todas as outras línguas teriam se originado. A partir de pesquisas, esses antropólogos mostraram que os povos apresentam culturas muito diversificadas e singulares e não passam, necessariamente, por processos de evolução unilinear (ORTIZ, 2015).

Quanto ao método, a crítica era direcionada ao comparativismo, muito utilizado pela Antropologia britânica. A disciplina pautava-se pelo princípio de que, para compreender as condições e as diversas características das sociedades humanas, era necessária uma investigação comparativa. Os norte-americanos achavam essa metodologia discriminatória e vinculada às visões/concepções distorcidas da história da humanidade. Eles propunham a adoção de um método mais seguro: pesquisas aprofundadas e detalhadas de cada cultura, levando em conta suas particularidades, sem a preocupação de buscar generalizações ou origens comuns. Também se opunham ao etnocentrismo, ou seja, à crença de que uma etnia é superior à outra, defendida por pesquisadores evolucionistas que qualificavam os povos primitivos de bárbaros e selvagens e de infantis e imaturos, aqueles que estavam passando da fase de barbárie para a “civilização” (ORTIZ, 2015).

Nesse contexto, é dado destaque para a linguagem como uma característica que reforça a diversidade. O relativismo cultural considera a cultura em sua própria estrutura e não busca por generalizações. Cada cultura possui seus próprios valores, que foram sendo tecidos no meio social, representando a forma como é realizada a avaliação dos acontecimentos, das pessoas, dos seus atos, dos objetos – enfim, do mundo.

Em seu percurso histórico, a Antropologia evoluiu em seus métodos e na forma de interpretar a cultura, passando da alienidade (compreensão do outro como estranho ao seu mundo) à alteridade (descoberta e comprometimento com o outro). Assim, esta disciplina precisou desconstruir os seus pressupostos e buscar explicações mais compreensivas e analíticas das realidades dos grupos sociais (GUSMÃO, 2008).

Com a contribuição dos estudos da Antropologia, podemos perceber que o debate em torno da diversidade e da universalidade não é novo, embora emerja com mais força na atualidade, principalmente a partir dos estudos culturais inseridos nas correntes intelectuais consideradas pós-modernas. Gusmão (2008) afirma que estamos vivendo em um mundo esquizofrênico, pois a globalização implica, por um lado, integrar nações, economias e culturas, ultrapassar fronteiras, criar blocos hegemônicos e, por outro lado, grupos diversos se movimentam no espaço, reivindicando um lugar no mundo e afirmando suas características culturais singulares. Canen (2010) argumenta, nesse mesmo sentido, que atualmente os debates acerca do reconhecimento das múltiplas etnias, linguagens e culturas vem se ampliando. Isso se deve ao fato de que as diferenças buscam afirmação e expressão, ao mesmo tempo em que as políticas econômicas neoliberais contribuem para a exclusão de determinados grupos culturais.

Para Canen (2010), alguns acontecimentos mundiais, como a Segunda Guerra Mundial, começaram a desafiar uma visão do mundo dividido em classes. De fato, o conflito revelou para todos a barbárie e o ódio racial com o aniquilamento de judeus e mostrou que no mundo não existe apenas o problema de divisão entre ricos e pobres. Também temos assistido a movimentos armados de grupos étnicos marginalizados que utilizam amplamente a violência, tal como ocorre no Oriente Médio e em outras partes do mundo. Um sentimento de antiamericanismo tem crescido, pois muitos acreditam que os Estados Unidos são culpados pelo isolamento e pela violência perpetrada por esses grupos. Intensos movimentos de xenofobia e iniciativas contra a entrada de imigrantes ocorrem na Europa, mostrando para o mundo a dificuldade de integração e um crescente movimento de intolerância entre os povos (CANEN, 2010).

Nesse contexto da sociedade globalizada, o multiculturalismo surge como um movimento teórico que tem por objetivo discutir a pluralidade cultural nos mais variados campos do saber, inclusive na educação. Parte-se do princípio de que as futuras gerações precisam se preparar para conviver em sociedades cada vez mais plurais. O debate teórico acerca do multiculturalismo vem se fortalecendo nas últimas décadas a partir dos estudos culturais, levando ao surgimento de várias concepções acerca do tema. Essa questão será tratada na seção seguinte.

4. MULTICULTURALISMO: ALGUNS APONTAMENTOS

Canen (2010) discorre sobre as várias tendências de multiculturalismo na atualidade. São elas: multiculturalismo reparador, folclorismo, reducionismo identitário, guetização cultural. A seguir, voltamos a nossa atenção para essas tendências.

O multiculturalismo reparador é uma perspectiva que defende a criação de ações afirmativas que visam apenas a reparar injustiças do passado e a garantir condições de acesso a determinados espaços sociais por certos grupos. Como exemplos, temos como o sistema de reserva de cotas para minorias em instituições públicas. Ao reduzir o multiculturalismo a uma abordagem compensatória, sem buscar transformações, corre-se o risco de criar mais discriminação.

O folclorismo tende a reduzir o multiculturalismo à valorização de costumes, danças, festas, aspectos folclóricos e datas comemorativas. Certo tipo de folclorismo pode ocultar discriminações entre sujeitos de culturas diferentes. Contrapondo-se a essa perspectiva, o folclorismo em questão defende um multiculturalismo de perspectiva crítica, que busca integrar as características culturais e folclóricas a discussões sobre a construção histórica das diferenças e das relações de poder que contribuem para que certas culturas sejam consideradas dominantes, enquanto outras são consideradas inferiores.

O reducionismo identitário relaciona-se à intenção de reduzir uma identidade a um único conceito, não reconhecendo diferenças dentro das diferenças (SANTOS, 2001 apud CANEN, 2010, p. 184). Por exemplo, nessa tendência, os judeus ou os árabes são categorizados como identidades únicas – sendo assim, não se percebe a diversidade dessas categorias de identidade. O mesmo acontece com as mulheres, os negros e outros grupos alvos de preconceitos, que têm suas identidades homogeneizadas quando não se reconhece a pluralidade nesses marcadores de identidade e quando “também não se admite que a identidade seja formada de inúmeros marcadores identitários, que se manifestam de forma plural e diferenciada na construção das subjetividades” (CANEN, 2010, p. 184).

A guetização cultural está relacionada à palavra “gueto”, que foi muito utilizada no período da Segunda Guerra Mundial para designar os locais para onde os judeus eram levados para ficarem isolados do restante da sociedade. A guetização curricular corresponde à tendência de grupos ou identidades preferirem propostas curriculares voltadas especificamente para o estudo de suas características culturais. Essa forma de multiculturalismo dificulta o diálogo entre as culturas, não permitindo trocas e intercâmbios. Canen (2010) argumenta que, se as identidades não são congeladas, as culturas também não são, podendo ocorrer hibridizações entre elas.

Moreira (2002), estudioso da temática do multiculturalismo, argumenta sobre a existência de duas concepções de multiculturalismo: o multiculturalismo benigno e o multiculturalismo crítico. O primeiro visa apenas identificar e tolerar as diferenças. Já o multiculturalismo crítico pretende desestabilizar e questionar as relações de poder na construção das diferenças (MOREIRA, 2002, p. 18). O autor defende, então, o multiculturalismo crítico, apoiando-se teoricamente nas discussões do sociólogo português Boaventura de Souza Santos e na sua opção pelo que denomina de “conhecimento-emancipação”, perspectiva em que a solidariedade é uma maneira de conhecer o outro e reconhecê-lo como sujeito produtor de conhecimento (MOREIRA, 2002).

Para Souza Santos, há dois obstáculos para a construção desse conhecimento: o silêncio e a diferença. O autor se questiona: como as sociedades que foram reduzidas ao silêncio podem, de forma livre, se pronunciar e dialogar com outras culturas? E ainda: como as culturas podem compreender os valores e práticas de outras culturas? Apesar das dificuldades, o autor português argumenta que é possível estimular a inteligibilidade e a articulação entre os diferentes. Ele admite que seja necessário impedir que o foco recaia apenas sobre as diferenças, pois isso pode contribuir para a formação de guetos, fragmentando ainda mais a sociedade (MOREIRA, 2002).

Souza Santos admite também a existência de dois tipos de multiculturalismo: o multiculturalismo conservador e o multiculturalismo emancipatório. Um exemplo de multiculturalismo conservador é o colonial. O colonizador reconhecia outras culturas e, às vezes, até criava algumas leis próprias para elas, mas sempre as considerando inferior. Essa tendência defende que a cultura eurocêntrica e branca representa tudo que há de melhor no mundo e, portanto, pode ser considerada universal. Como cultura dominante, pode até receber influências de outras culturas, à semelhança do que ocorreu na pintura moderna com a inclusão de elementos da cultura africana, mas tudo se dá com base em uma política de assimilacionismo. Já o multiculturalismo emancipatório é pós-colonial e busca o reconhecimento das culturas e a redistribuição social-econômica. Também parte do princípio de que há diferenças no contexto das culturas – e essa diversidade permite que haja tensão e resistência. O multiculturalismo emancipatório é, portanto, progressista e constitui uma forma de pensar a globalização de forma contra-hegemônica (HYPÓLITO; MOREIRA, 2003).

Ainda para Souza Santos, as diferenças devem ser pensadas sempre como construções sociais, pois não há culturas puras – sempre poderão ocorrer trocas entre diferentes culturas. Para a Sociologia crítica, é importante questionar não se há hibridizações, mas, sim, saber “quem hibridiza quem, até que ponto, em que áreas, com que resultados e com que objetivos” (HYPÓLITO; MOREIRA, 2003, p. 16). As interações entre as culturas são permeadas por relações de poder e, geralmente, as ideias dominantes são impostas pelas classes dominantes em determinado momento da história da humanidade.

Candau e Koff (2006) preferem a adoção de uma perspectiva teórica denominada de “interculturalidade” para se referirem à diversidade cultural. Os autores argumentam que o foco é a valorização do diálogo entre as diferentes culturas, sem deixar de lado ou ignorar as relações de poder que estão presentes nas relações pessoais e interpessoais. Nessa perspectiva, em decorrência de processos de hibridização cultural, a identidade está em permanente processo de construção (CANDAU; KOFF, 2006).

Podemos perceber que há várias concepções de multiculturalismo, sendo que algumas delas apresentam denominações diferentes para os mesmos sentidos. Mesmo com essa polissemia conceitual e a inerente complexidade do tema, trata-se de algo que não pode permanecer à margem das discussões sobre a formação de professores de Ciências Biológicas. Assim, na seção seguinte, trazemos discussões sobre as possibilidades de inserção do multiculturalismo nos currículos de formação de professores dessa disciplina.

5. A EMERGÊNCIA DA INSERÇÃO DO MULTICULTURALISMO NOS CURRÍCULOS DE CURSOS DE LICENCIATURA DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS

Os documentos que compõem a política nacional para a formação de professores, a exemplo das Diretrizes Curriculares nacionais para a formação de professores para a Educação Básica (BRASIL, 2015), trazem orientações para que a temática da diversidade cultural seja inserida nos currículos dos cursos de licenciatura de todas as áreas do conhecimento. A justificativa para a inserção de tal temática está na necessidade de preparar os educadores para enfrentarem a demanda da diversidade cultural nos espaços educacionais, principalmente nas salas de aula, onde os profissionais terão que abordar e discutir o assunto com seus alunos.

Neste texto, destacamos, em especial, a inserção do multiculturalismo nos currículos de cursos de licenciatura em Ciências Biológicas. Frisamos que as autoras estão ligadas a uma licenciatura em Ciências Biológicas ofertada em uma localidade que foi colonizada por migrantes de diversas origens de outras regiões do país. Portanto, nesse contexto, as discussões sobre o tópico do multiculturalismo revestem-se de particular relevância.

Na concepção de Forquin (2000), a questão do multiculturalismo vem ganhando espaço em numerosos países também quando se trata de inseri-lo nos currículos educacionais. Essa importância ocorre devido aos questionamentos feitos atualmente pela sociedade e pelos educadores sobre quais conteúdos devem ser inseridos no currículo e sobre as justificativas para tanto. Para esse autor (2000), a defesa do relativismo não é algo novo, tanto assim é que podem ser listados vários tipos de relativismos. O relativismo individual radical apresenta implicações céticas e depende dos valores de cada indivíduo; o relativismo sociológico e cultural considera valores e interesses de grupos humanos particulares; o relativismo epistemológico analisa os conteúdos do ensino considerados como conteúdos do saber; e o relativismo cultural contempla a pluralidade cultural dos diversos agrupamentos humanos.

Não é só a verdade ou a legitimidade dos conteúdos que importa para o currículo, mas também os elementos mítico-simbólicos, como os valores estéticos e as atitudes morais, que são referenciais de civilização. Assim, ocorre uma desconfiança sobre o relativismo, em especial, o cultural, considerado muito perigoso para ser inserido nos currículos educacionais.

Forquin (2000) tece argumentos em defesa do universalismo nos currículos educacionais. Para o autor, a escola é uma instituição de natureza universalista por excelência, e isso pode ser verificado não só no seu modo formal de funcionamento (procedimentos que obedecem a regras de transparência e equidade), como em seus conteúdos, que devem constituir saberes públicos, dotados de generalidade.

Silva (2000), estudioso brasileiro de currículo na área de estudos culturais, discorda dessa concepção e argumenta que, no caso dos saberes, dada a complexidade do mundo que vivemos, é difícil definir o que são esses “saberes gerais e universais”. Já os defensores do universalismo, como Forquin (2000), argumentam que a escola deve ensinar saberes públicos, controlados e generalizados, que têm valor em qualquer contexto e circunstância. Esses saberes

se opõem, nesse sentido, tanto aos saberes de ‘iniciação’ e esotéricos, que são transmitidos em segredo e que constituem monopólio de certos grupos fechados, quanto aos saberes puramente práticos, transmitidos por imitação ou impregnação, sem necessidade da formulação explícita, como ainda aos saberes triviais, aleatórios e fragmentados, ligados aos contextos imediatos e às circunstâncias da vida comum. (FORQUIN, 2000, p. 58).

Os universalistas defendem que a cultura geral funciona como um saber gerador, um saber-esquema que serve de base para outros conhecimentos que vão se acumulando, ao contrário dos outros tipos de saberes que são apenas pontuais. Quando se defende o multiculturalismo nos currículos, corre-se o risco de criar um currículo que valorize um ecletismo disforme, com conteúdos folclóricos, amorfos, comuns, insignificantes. O autor destaca a importância da justificativa para ensinar os conteúdos, que devem ser válidos para todos, e não apenas para alguns.

O universalismo começou a despertar desconfiança por estar relacionado à valorização do etnocentrismo dos grupos que historicamente foram dominantes em relação a outros povos. Forquin (2000, p. 65) propõe que é possível “opor um universalismo etnocêntrico e dominador a um universalismo aberto e tolerante”. Assim, a escola deve reconhecer e valorizar as diferenças em seus currículos, mas sempre se esforçando para buscar o que há de mais constante e geral, ou seja, o que há de “menos cultural” no saber acumulado pelo homem (FORQUIN, 2000, p. 65).

Silva (2000), ao discordar de Forquin (2000), argumenta que o universalismo não é a solução, mas, sim, o problema. O autor esclarece que o universalismo/multiculturalismo não é um problema epistemológico, mas, do ponto de vista sociológico, é um problema político – os universais são elementos constitutivos dos discursos que criam as diferenças. Assim, de certa maneira, os universais não podem ser a solução para a diferença porque “eles estão na origem das produções das diferenças” (SILVA, 2000, p. 78).

Moreira (2002), na mesma linha argumentativa de Silva (2000), defende a inserção da temática do multiculturalismo nos currículos educacionais e, principalmente, nos de formação de professores. A pesquisa que o autor realizou com estudiosos sobre o multiculturalismo trouxe algumas contribuições para os currículos de formação de professores de Ciências. Entre tais contribuições, estão listados os seguintes aspectos: o reconhecimento da importância de que, nos cursos de formação, os licenciandos se sintam aceitos e acolhidos como pessoas, de forma a que possam expressar suas ideias, estimulando os outros a fazerem o mesmo; a prática e a valorização das múltiplas linguagens no processo de formação; a necessidade de se reescrever o conhecimento a partir da visão dos diferentes grupos, de forma a desafiar a lógica de construção dos conhecimentos que privilegiou o eurocentrismo, o masculino, o branco. Além disso, os conhecimentos são vistos como construções histórico-sociais de homens e mulheres, inseridos em um contexto e com uma finalidade e, portanto, devem ser questionados.

Moreira (2002) também cita uma implicação do multiculturalismo para a prática pedagógica, que é sua ancoragem social. Isso corresponde a tentar compreender como, historicamente, determinadas posturas ou conceitos preconceituosos foram se cristalizando nas disciplinas e se tornando, aos poucos, uma pretensa verdade universal.

Outra implicação, para a prática pedagógica, do reconhecimento do multiculturalismo é o abandono do daltonismo cultural por parte dos professores. Uma postura daltônica impede esses profissionais de reconhecerem a riqueza das diferenças em suas salas de aula e de desenvolverem uma prática pedagógica que valorize a diversidade, uma vez que tal postura enxerga os alunos como sujeitos iguais, com necessidades semelhantes (MOREIRA, 2002).

Canen (2010) também traz contribuições para a inserção da temática em questão nos currículos de formação de professores de Ciências. Um caminho sugerido é o desenvolvimento de dinâmicas de sensibilização de identidades, nas quais os alunos vão compreendendo a construção de suas identidades a partir de vários “marcadores identitários”, como família, escola, religião, gênero e outros. Assim, eles vão concebendo a identidade como provisória e fruto do arranjo desses diversos marcadores.

Outro caminho é a ancoragem social de conteúdos, que deve ser trabalhada no currículo em ação. Tal estratégia corresponde a associar discursos de diversas áreas com o objetivo de denunciar a discriminação e o racismo. A autora (2010) cita o exemplo de uma professora que, ao ensinar as características da pele humana trabalhava com textos sobre a noção de raça e etnia, promovendo discussões sobre o racismo.

Outro importante componente que pode ser inserido no currículo é a avaliação diagnóstica multicultural. Tal estratégia tem como objetivo permitir reconhecer a diversidade de culturas e as diferenças na sala de aula. Essa avaliação requer um acompanhamento contínuo dos estudantes, por meio de trabalhos em grupo, testes e diários reflexivos, nos quais os alunos relatem suas experiências e o impacto das aulas em suas vidas.

É importante também discutir, no currículo de Ciências, a pseudoneutralidade da ciência, principalmente no que diz respeito ao racismo científico que imperava na Segunda Guerra. Como uma forma de discurso, a Ciência contribuiu com argumentos que justificavam as desigualdades contra todos aqueles que fossem considerados diferentes, por conta do “gênero, raça, religião, cultura, ou a qualquer outro determinante de identidade” (CANEN, 2010, p. 178).

Para Boaventura de Souza Santos, é necessário desenvolver, nos currículos educacionais, uma hermenêutica de suspeita a tudo que é e oficial e desenvolver uma forma de pensamento independente, uma reconstrução emancipatória que busque fugir das doutrinações que nos foram impostas. As escolas só se justificam se promoverem a cidadania verdadeira, a criticidade e a luta por uma transformação emancipatória (HYPÓLITO; MOREIRA, 2003).

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos perceber que a temática da diversidade vem sendo alvo de debates já há algum tempo, principalmente nos estudos realizados pela Antropologia. Com as recentes mudanças trazidas pela globalização, as facilidades de comunicação e de visibilidade tornam as diferenças mais visíveis. Assim, o debate acerca do universalismo e do multiculturalismo emerge com grande intensidade, fortalecendo movimentos sociais e exigindo respostas por parte dos agentes governamentais e da sociedade civil para o trato e o acolhimento à diversidade.

A pluralidade cultural precisa ser debatida nos mais variados campos do saber, principalmente na educação, pois as futuras gerações precisam se preparar para conviver em sociedades cada vez mais plurais. Apesar de não haver uma única interpretação para o conceito de multiculturalismo, é ponto assente que se trata de uma temática importante e que deve ser inserida nos currículos escolares, em especial nos currículos de formação de professores. Neste estudo, constatamos que, entre as possibilidades para a inclusão do multiculturalismo nos currículos de licenciatura de Ciências Biológicas, temos as seguintes estratégias: o estudo das identidades; a perspectiva social de conteúdos; a demanda de reescrita do conhecimento a partir do olhar de diferentes populações, oportunizando a construção de conhecimentos centrados em outras realidades que não a da Europa, a do gênero masculino e a do homem branco; e a discussão sobre a pseudoneutralidade da ciência.

Abordar o multiculturismo é mais um desafio que está posto para os profissionais da educação. Os cursos de formação inicial de professores, especialmente o de Ciências Biológicas, são espaços determinantes para a apropriação de conhecimentos que possibilitam mudanças e transformações na vida dos licenciandos e, posteriormente, no exercício da profissão de professor, no desenvolvimento do processo de ensino e na aprendizagem dos alunos.

Agradecimentos

Agradecemos ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (Ifro), aos Professores Doutores da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), que deram o suporte necessário para subsidiar o estudo em questão. Agradecemos também à Fundação de Amparo ao Desenvolvimento das Ações Científicas e Tecnológicas e à Pesquisa de Rondônia (Fapero), pelo apoio financeiro.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Resolução n.º 2, de 01 de julho de 2015. Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores para a Educação Básica. Diário Oficial [da] União, Poder Executivo, Brasília, DF, 2 de julho de 2015, Seção 1, p. 8-12. Disponível em: https://bit.ly/2o5nNlV. Acesso em: 10 fev. 2017.

CANDAU, V. M.; KOFF, A. M. N. S. e. Conversas com... sobre a didática e a perspectiva multi/intercultural. Revista Educação & Sociedade, ano XXVII, n. 95, maio/ago, 2006.

CANEN, A. Sentidos e dilemas do multiculturalismo: desafios curriculares para o novo milênio. In: LOPES, A. C.; MACEDO, E. (Orgs.). Currículo: debates contemporâneos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

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Notas

[4] Protolinguagem é uma língua ancestral que deu origem a outra(s) língua(s) ou família(s) linguística(s). Disponível em: https://bit.ly/2MSoWJF. Acesso em: 12 jul. 2019.

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