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POR QUE DEVEMOS FALAR DE UMA COMPLEMENTARIDADE DE SENTIDO E REFERÊNCIA?
Michael Friedrich Otte; Luiz Gonzaga Xavier de Barros; Alexandre Silva Abido;
Michael Friedrich Otte; Luiz Gonzaga Xavier de Barros; Alexandre Silva Abido; Geslane Figueiredo da Silva Santana; Luciene de Paula
POR QUE DEVEMOS FALAR DE UMA COMPLEMENTARIDADE DE SENTIDO E REFERÊNCIA?
WHY SHOULD WE SPEAK ABOUT A COMPLEMENTARITY OF SENSE AND REFERENCE?
REAMEC ? Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, vol. 8, núm. 1, pp. 77-95, 2020
Universidade Federal de Mato Grosso
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Resumo: Até por volta de 1800, a filosofia ocidental acreditava que havia dois tipos de concepção no mundo: as mentais e as físicas. Daí, as extensas discussões sobre o conhecimento analítico e sintético que dominou a filosofia de Kant, o maior filósofo do Iluminismo. Porém, a partir dos estudos peirceanos, a discussão sobre as concepções ampliou, dando origem à complementaridade, que, atualmente, aborda as concepções de extensão e de intensão da lógica e da filosofia. No contexto educacional frequentemente se afirma que a matemática é uma linguagem, uma vez que ela fornece tanto um meio de comunicação quanto uma substanciação dos nossos pensamentos. Como consequência, a fluidez matemática passa a ser considerada a mais importante. Nessa perspectiva, os princípios pedagógicos subjacentes ao ensino da matemática se tornam semelhantes aos utilizados no ensino de línguas. Mas, a matemática não é mera linguagem. A linguagem é um instrumento maravilhoso do espírito humano, contudo serve muito melhor à lógica, à poesia e à retórica do que à matemática. Dessa forma, este artigo objetiva mostrar que a abordagem da educação matemática elementar deve consistir em ensinar a ler um termo além da sua correspondência entre letras e sons, e também em permitir a compreensão de como um conjunto de habilidades pode ser trabalhado completamente de forma abstrata em relação ao conteúdo, abrangendo a complementaridade de intensão e extensão. A metodologia semiótica é utilizada como aporte para analisar sobre o que é realmente a matemática.

Palavras-chave: Semiótica, Complementaridade, Linguagem, Matemática.

Keywords: Semiotics, Complementarity, Language, Mathematics

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POR QUE DEVEMOS FALAR DE UMA COMPLEMENTARIDADE DE SENTIDO E REFERÊNCIA?

WHY SHOULD WE SPEAK ABOUT A COMPLEMENTARITY OF SENSE AND REFERENCE?

Michael Friedrich Otte1
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Luiz Gonzaga Xavier de Barros2
Universidade Anhanguera de São Paulo, Brasil
Alexandre Silva Abido3
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Geslane Figueiredo da Silva Santana4
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Luciene de Paula5
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
REAMEC ? Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
ISSN-e: 2318-6674
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 8, núm. 1, 2020

Recepção: 03 Outubro 2019

Aprovação: 28 Janeiro 2020


1 INTRODUÇÃO

O ilustre matemático Reuben Hersh (1927-2020), questionava, em 1997, O que é realmente a Matemática?no seu livro que tinha esse título. Ele propunha considerar os objetos matemáticos como entidades sociais e reconhecer que a matemática é uma realidade essencialmente social, objetivando evitar a alternativa entre o idealismo e o empirismo, que dominava as discussões sobre esse assunto. As entidades sociais, dizia ele: ?não são nem mentais nem físicas, mas têm aspectos mentais e físicos.? ( 1997, p. 14, tradução nossa). Para ele, as questões sobre a natureza dos objetos matemáticos somente poderiam ser respondidas de acordo com uma perspectiva social.

A partir desse entendimento, podemos concluir que o conceito de uma teoria evolui paralelamente às mudanças de nossa visão sobre a sociedade.

Um exemplo da mudança de valores de uma sociedade, pode ser caracterizado com o ocorrido na Revolução Francesa. Luís XVI (1754-1793), o último rei de França, não aceitava que Maximilien de Robespierre (1758-1794) e os jacobinos o podiam julgar, porque tradicionalmente o próprio rei era o Estado e a lei. Como se poderia levar o rei ao tribunal, se ele próprio personificava a lei? As sociedades e os estados modernos emergiram no rescaldo da Revolução Francesa e foram caracterizados, de um lado, com ideais individualistas (liberdade, igualdade) e, de outro, através de uma estrutura formal de leis e sistemas jurídicos. Foi dessa maneira que os Códigos Civil e Penal dos franceses transformaram a sociedade tradicional em uma sociedade moderna.

A estrutura formal de leis foi um produto de opiniões, adotado pelos românticos na França e na Alemanha, que transformou o conhecimento, especialmente a matemática, e as opiniões sobre o nosso lugar na sociedade e no universo. Por falta de espaço, citamos duas testemunhas, Novalis (1772-1801) [6] e Georg Hamann (1730-1788), respectivamente.

Novalis:

A designação por meio de tons e traços é uma abstração admirável. Quatro letras significam Deus para mim; em alguns traços um milhão de coisas. Como é fácil a manipulação do Universo, como é viva a concentricidade do mundo espiritual! A teoria da linguagem é a dinâmica do reino espiritual. Uma palavra de comando move exércitos; a palavra liberta nações (1960, p. 412, tradução nossa).

Hamann:

Uma lei nunca é tão perturbadora e ofensiva quanto um veredito baseado em aprovação conveniente. A primeira não toca em nada na minha autoestima, e estende-se exclusivamente à minha ação, por isso iguala todos aqueles que se encontram na mesma situação. Uma decisão arbitrária sem lei é sempre uma escravidão para nós (1988, p. 59, tradução nossa).

A linguagem para Hamann é exatamente o oposto do que foi afirmado pelas teorias linguísticas do Iluminismo. Tanto Novalis quanto Hamann enfatizaram a criatividade da linguagem e do simbolismo, uma vez que tudo parece dissolver-se em linguagem ou semiótica em geral.

A visão da matemática como linguagem tem sido especialmente ressaltada entre os estudiosos da lógica, das ciências humanas e em contextos educacionais. De acordo com Edward Effros (1935-2019), mesmo que se tenha a premissa de que a matemática seja uma linguagem, já que fornece tanto um meio de comunicação quanto uma substanciação dos nossos pensamentos, e ainda que esse aspecto da matemática explique seu papel fundamental na ciência moderna, o argumento de que deveríamos nos concentrar no ensino de métodos de resolução de problemas representa um mal-entendido básico sobre o objetivo da educação matemática. Afinal, não incluímos álgebra no currículo do ensino médio para permitir que os alunos resolvam os problemas das palavras (1998).

Norbert Wiener (1894-1964) elucida essas transformações de uma visão funcional para o estruturalismo teórico ao caracterizar o novo individualismo intelectual afirmando que:

[...] aquele que se concentrar em seus próprios estados mentais se voltará, quando se tornar matemático, para a prova de teoremas matemáticos, e não para os próprios teoremas, e será obrigado a se opor a provas inadequadas de teoremas adequados. [...] Para nós, hoje em dia, o principal tema dos matemáticos do período romântico pode parecer pouco romântico e repulsivo. A nova matemática se dedicou ao rigor, [...] O que a nova geração em matemática havia descoberto era o matemático; assim como o que os românticos haviam descoberto na poesia foi o poeta e o que descobriram na música foi o músico (WIENER, 1951, p. 92-96, tradução nossa).

Este artigo irá argumentar contra o paradigma de que a matemática é uma linguagem e a favor de que ela é uma atividade que muda de acordo com as concepções estabelecidas pela sociedade. A abordagem metodológica se fundamenta na semiótica peirceana, com o aporte de uma análise teórica que busca desmistificar a realidade dos objetos matemáticos.

2 PALAVRAS E COISAS

Antes da Revolução Científica do século XVII, o conhecimento clássico era completamente determinado por seu objeto. Pensar significava pensar no próprio ser. A natureza do pensamento científico estava na própria compreensão do que existia. ?A lógica e a metodologia aristotélica, em seus princípios gerais, são uma verdadeira expressão da metafísica aristotélica? (CASSIRER, 1953, p. 4, tradução nossa), e os métodos de investigação sempre tiveram que ser congruentes com os objetos investigados.

Então, em certo período da história, aconteceu que palavras e coisas se separaram e a interpretação comum de nossas impressões sensoriais pareceu se tornar totalmente não confiável. ?Desde o final do século XVI, mais e mais autores optam pela certeza do método e, portanto, o método matemático ganha importância, porque é o mais seguro? (SCHÜLING, 1969, p. 76, tradução nossa). É um mérito de Michel Foucault (1926-1984) ter trazido essa concepção para o centro de nossa atenção. No início do século XVII, Foucault afirmou:

[...] a escrita deixou de ser a prosa do mundo, semelhanças e sinais dissolveram sua antiga aliança; as similitudes se tornaram enganosas. [...] O pensamento deixa de se mover no elemento de semelhança. A semelhança não é mais a forma de conhecimento, mas a ocasião do erro. [...] ?É um hábito frequente?, diz Descartes, nas primeiras linhas de seu Regulae, ?quando descobrimos várias semelhanças entre as coisas, atribuir a ambas igualmente, mesmo em pontos em que são realmente diferentes, aquilo que reconheceram verdadeiro apenas um deles?. A era da semelhança está chegando ao fim. [...] E assim como a interpretação no século XVI [...] era essencialmente um conhecimento baseado na semelhança, a ordenação das coisas por meio de signos constitui todas as formas empíricas de conhecimento como conhecimento baseado na identidade e na diferença (1973, p. 47-51 e p. 56-57, tradução nossa).

Vários autores apontaram que o principal impacto da Revolução Científica do século XVI/XVII veio de uma mudança nos hábitos do pensamento e, em particular, de uma campanha pela certeza cognitiva individual. Foi o problema central de René Descartes (1596-1650) e o objetivo geral do seu Discurso sobre o Método. ?Fiquei especialmente encantado com a matemática por causa da certeza e evidência de seus raciocínios. Mas, no começo, eu não percebi sua utilidade genuína, pensando que eles tinham apenas contribuído para o avanço das artes mecânicas? (DESCARTES, 2001, Regra I, tradução nossa).

Havia, no entanto, um segundo problema do conhecimento causado por mudanças nas relações sociais. Uma pessoa é uma manifestação da existência social dentro de um espaço de possibilidades e situada dentro de um mundo e de uma tradição cultural. Isso elucida a controvérsia entre a perspectiva analítica de Gottfried Leibniz (1646-1716) e a visão intuitiva e geométrica de Descartes.

De acordo com Ian Hacking (1936- ) ?Leibniz tinha certeza de que a verdade matemática é constituída pela prova, enquanto Descartes pensava que as condições da verdade nada têm a ver com demonstrações? (1984, p. 211, tradução nossa). Isso não significa que Descartes estivesse menos preocupado com a verdade ou com a certeza. Ao contrário: ?A única atividade no mundo, que realmente diz respeito a Descartes, é o pensamento e a busca da verdade. Se ele tivesse composto a oração do Pai Nosso, sem dúvida conteria a invocação e não nos conduza ao erro? (GELLNER, 1992, p. 7, tradução nossa).

Uma personificação discutivelmente importante do individualismo cartesiano, bem como das preocupações sociais de Leibniz, pode ser encontrada no movimento protestante e em seu princípio de Sola Scriptura. Martinho Lutero (1483-1546), tendo sido convocado pelo imperador Carlos V para renunciar a seus ensinamentos religiosos, exigiu que seus erros fossem provados na Bíblia. O texto da Bíblia era a única autoridade a qual ele se curvaria. O jovem imperador ficou genuinamente chocado. Se fosse concedido se defender à luz das escrituras a quem contradiz os conselhos e o entendimento comum do Estado e da Igreja, então ?[...] não teremos nada no cristianismo que seja certo ou conclusivo? (RYRIE, 2017, p. 28, tradução nossa).

Para Leibniz, a matemática ou lógica, nos séculos XVI/XVII, foi uma arte para produzir provas que deveriam convencer as pessoas a aceitar algo e educá-las. Desse modo, Leibniz não seguiu o princípio da Sola Scriptura, porém confiou mais em provas lógicas da existência de Deus.

Foi essa transformação que Foucault chamou de transição de um tempo de Interpretação para a era da Representação. O pensamento é um signo e uma doutrina sobre a qual Leibniz e os ?[...] pensadores por volta de 1700?, concordaram (PEIRCE, CP 5.470, tradução nossa). A ideia de calcular com o famoso . desconhecido da álgebra, exemplifica os novos sinais de papéis livres que foram adquiridos. Desde então, a semiótica tornou-se peça central da epistemologia e a matemática passou a ser considerada como atividade que opera essencialmente por meio de símbolos e diagramas, ou seja, a semiótica tornou-se fundamental.

A partir da semiótica, a forma de perceber as ideias mudou completamente. Agora, não precisamos defender uma ideia em detrimento a outra que seja contraditória. Considerando os exemplos contraditórios entre Leibniz e Descartes, referenciados acima, é possível perceber que ambos tinham suas razões e suas limitações. Atualmente, é preciso conhecer o contexto de cada situação para escolher a melhor ferramenta, o melhor caminho, a melhor verdade. A perspectiva semiótica nos mostrou que tanto o pensamento analítico de Leibniz (referência) quanto o intuicionismo de Descartes (sentido) são importantes para a evolução da matemática.

Para reforçar o entendimento das mudanças que ocorrem ao longo do tempo e como elas implicaram em mudanças nas ciências, inclusive na educação matemática, vamos apresentar, a seguir, transformações ocorridas tanto na interpretação da geometria quanto na da álgebra, por meio do desenvolvimento de alguns conceitos, ideias, teorias, percepções e fundamentos que embasaram as ciências, bem como retratar algumas implicações nas ciências matemáticas.

3 TRANSFORMAÇÃO NA INTERPRETAÇÃO DA GEOMETRIA

O desenvolvimento histórico da matemática é concebido como uma sequência de inovações simbólicas ou linguísticas. Em Os Elementos de Euclides, por exemplo, elogia-se a mente científica que aparece no arranjo organizado de problemas e de teoremas, mas não se percebe que a geometria de Euclides é uma teoria das figuras numa metafísica que não inclui uma teoria do espaço. Portanto, certos problemas, como o da duplicação do cubo, não podem ser resolvidos dentro do contexto da geometria euclidiana, entretanto, podem ser facilmente resolvidos, por exemplo, utilizando o princípio da continuidade. Mas, os gregos não conseguiram concluir que na matemática poder-se-ia conceber uma solução totalmente desassociada da construtibilidade.

A Revolução Copernicana da Epistemologia de Immanuel Kant (1724-1804) trouxe a ideia de espaço, concebendo-a como uma espécie de meio subjetivo. ?O espaço não é um conceito empírico. [?] O espaço é uma representação necessária, a priori, que serve como base de todas as intuições externas? (KANT, 1787, B39, tradução nossa). O uso que Kant faz da ideia de espaço é frequentemente criticado em círculos da filosofia analítica, no entanto, é criticado por razões erradas, nomeadamente por uma insuficiência da sua lógica. Eis o que Milton Friedman (1912-2006)escreve:

A concepção de Kant de prova matemática é, naturalmente, anátema para nós. Entretanto, as figuras espaciais produzidas, não são constituintes essenciais das provas, mas, na melhor das hipóteses, ajudam (e muito possivelmente induzem em erro) [...] A própria prova é um objeto puramente formal ou conceitual, idealmente uma sequência de expressões em uma determinada linguagem formal (1992, p. 58, tradução nossa).

Para Friedman, a matemática é uma questão de lógica. De acordo com a filosofia analítica, a matemática e a lógica formais não falam sobre objetos. ?Elas não dizem nada sobre objetos, dos quais queremos falar, mas lidam apenas com a maneira como falamos sobre objetos? (HAHN, 1988, p. 150, tradução nossa). Dessa forma, as provas da geometria clássica talvez devam ser consideradas mais adequadamente em analogia aos experimentos mentais nas ciências naturais.

Segundo Ian Mueller (1938-2010):

Parte da dificuldade se deve a uma falha em distinguir duas maneiras de interpretar declarações gerais como ?Todos os triângulos isósceles têm seus ângulos da base iguais?. Sob uma interpretação, a afirmação se refere a uma totalidade definida [...] e diz algo sobre cada uma delas. Sob a outra interpretação, nenhuma totalidade definida é pressuposta e a sentença tem um caráter muito mais condicional: ?Se um triângulo é isósceles, seus dois ângulos da base são iguais? (1969, p. 291, tradução nossa).

Thomas Kuhn (1922-1996) argumenta, em Uma Função para Experimentos do Pensamento (1977), que a produtividade do experimento do pensamento deve-se à sua função de reajustar a relação entre um aparato conceitual ou uma teoria e a realidade à qual é aplicada. Portanto, os experimentos mentais podem nos ensinar algo novo sobre o mundo, embora não tenhamos novos dados, ajuda-nos a reconceituar o mundo de uma maneira melhor.

Considerando o exposto em B744 da obra Crítica da Razão Pura(1787) de Kant, sobre a construção de sua prova do teorema da soma dos ângulos de um triângulo retângulo, o experimento mental a seguir, parece, de fato, revelar algumas limitações da prova de Kant: Suponha que passemos pelo perímetro de um triângulo. Em quantos graus nos viramos depois de voltarmos à nossa posição inicial? Resposta simples: 360 graus, porque nossa direção de entrada coincide com a final. Essa resposta, no entanto, embora intuitivamente convincente e óbvia, baseia-se no pressuposto de que é, por um lado, o mesmo que girar o local em um ângulo total de 360 graus ou, por outro, fazer isso passando por uma linha fechada no perímetro de um triângulo arbitrariamente grande.

Porém, em um dos casos, baseia-se em características locais do espaço, o outro não! Para triângulos arbitrários, nossa conclusão é válida apenas no plano euclidiano, mas é inválida na superfície da esfera, por exemplo. E Kant sabia que nós vivemos em uma esfera. A geometria esférica é uma generalização da geometria euclidiana. As geometrias não euclidianas só foram aceitas depois que Eugênio Beltrami (1835-1900) provou sua consistência, em 1868. A esfera comum foi recebida como modelo de espaço com curvatura positiva.

Euclides lida com o teorema da soma dos ângulos do triângulo na proposição 32 do Livro I: ?Em qualquer triângulo, se um dos lados é produzido, então o ângulo externo é igual à soma dos dois ângulos interiores e opostos, e à soma dos três ângulos internos do triângulo são iguais a dois ângulos retos?.

A prova dessa proposição faz uso das proposições 13, 29 e 31, que por sua vez se baseiam nas proposições 11, 13, 15, 23 e 27 e assim por diante, voltadas aos postulados. Essa estrutura não se fundamenta em uma conexão lógico-dedutiva, mas surge da atividade de resolver problemas geométricos planos. E, como tal, mostra uma afinidade mais próxima ao intuicionismo de Luitzen Egbertus Jan Brouwer (1881-1966) do que à abordagem axiomática de David Hilbert (1862-1943). De fato, Andréi Kolmogorov (1903-1987), um dos maiores matemáticos do século XX, interpretou a lógica intuicionista de Brouwer em termos de problemas e soluções. Afirmar uma fórmula é reivindicar conhecer uma solução para o problema representado por essa fórmula. Por exemplo, Pimplica Q é o problema de reduzir . para .; para resolvê-lo, requer um método para resolver o problema ., dada uma solução para o problema .. Kolmogorov afirmou:

Além da lógica teórica que sistematiza os esquemas de prova das verdades teóricas, pode-se também sistematizar as soluções de problemas, por exemplo, de problemas geométricos de construção. Em analogia ao princípio do silogismo, o seguinte princípio se mantém aqui: se podemos reduzir a solução de b à solução de a e a solução de c à solução de b, então também podemos reduzir a solução de c à solução de a. [...] O seguinte fato notável se aplica: De acordo com sua forma, este cálculo de tarefa coincide com a lógica intuicionista de Brouwer (1932, p. 58, tradução nossa).

Dessa forma, os objetos matemáticos são estabelecidos pela relação de identidade escolhida. Desde o século XVI, pelo menos a congruência de figuras planas foi escolhida como a relação de equivalência geométrica mais distinta. E Euclides e os gregos? No argumento muito curto do §35 (teorema 25) do livro I de Os Elementos de Euclides a palavra igual ocorre mais de 10 vezes, com três significados diferentes: congruência de figuras planas, igualdade de área e identidade numérica. O teorema afirma: ?Os paralelogramos que estão na mesma base e entre os mesmos paralelos são iguais?.


Figura 1
Diagrama do Teorema 25
Fonte: Euclides (2009, p. 124)

Levanta-se a questão sobre o que Euclides quer dizer ao usar a palavra igual? David Fowler (1937-2004) disse que: ?[...] a ideia por trás do uso da igualdade na geometria de Euclides, refere-se ao tamanho e não à forma, pois sua preocupação é ver se duas figuras planas são iguais em tamanho? (1987, p. 13, tradução nossa).

Isso contradiz a visão comum de nossos livros didáticos, que desde Leibniz já define igualdade geométrica em termos de congruência. A avaliação e o julgamento de Fowler são apoiados por uma série de passagens dos diálogos platônicos. Na República lemos, por exemplo:

Agora ninguém com um pouco de experiência em geometria vai contestar que a ciência é inteiramente o oposto do que se diz sobre ela nos relatos de seus praticantes [...] Eles falam como homens práticos e todos os seus relatos se referem a fazer coisas. Eles falam de quadratura, aplicação, adição e similares, enquanto todo o assunto é perseguido por causa do conhecimento (PLATO, 1997, Rep. VII, 527b, tradução nossa).

Nesse contexto, os triângulos ou retângulos etc., de Euclides, são diagramas, isto é, são signos, em que o significado ou a referência é a própria coisa. Todavia, o que o triângulo representa é o mundo ao qual pertence, e esse mundo sofreu mudanças. Desde o século XVII que esse mundo é o mundo da ciência ou da teoria como parte de uma ciência. Consequentemente, o teorema da soma dos ângulos do triângulo teria de ser analítico, o que de fato é, de acordo com a geometria formal-axiomática como a de Hilbert ou de Giuseppe Peano (1858-1932). De acordo com a compreensão clássica de conceitos ou ideias, a ordem das extensões inverte a ordem das ideias. Isso levou Leibniz, seus contemporâneos e seus sucessores a definirem igualdade geométrica em termos de congruência e não em termos de identidade material.

4 TRANSFORMAÇÃO NA INTERPRETAÇÃO DA ÁLGEBRA

Na história da álgebra, pode-se notar algo semelhante. O Guia Completo de Álgebra(1770), de Leonhard Euler (1707-1783), começa apresentando a noção de quantidade e depois que ?a aritmética ou a arte do cálculo lida particularmente com os números, mas o mesmo se estende apenas a certos tipos de cálculos, comuns na vida cotidiana, por outro lado, a álgebra ou a análise geralmente inclui tudo o que pode acontecer com os números e seus cálculos? (EULER, p. 5, cap. 1, §7, tradução nossa).

Todas as dificuldades que os gregos tiveram com o fato de os números não serem, na realidade, quantidades, são contornadas por meio da identificação das magnitudes com as suas medidas, em vez de considerar os números como relações entre a magnitude medida e a escala utilizada. Como na geometria, esse retrocesso filosófico permitiu algum progresso no lado ativo da matemática. Esse reducionismo das relações aos objetos foi, em certo sentido, resultado da visão de Descartes a respeito da geometria analítica. Desse modo, sempre se opera em nível simbólico e todo o progresso foi atribuído à invenção de novos métodos e novos símbolos.

A história dos chamados números imaginários é um exemplo disso. Essas entidades imaginárias trouxeram grande progresso ao tratamento das equações algébricas. Mas, enquanto a unidade imaginária ganhou aceitação à aritmética apenas como símbolo para calcular, ela também produziu algumas estranhas confusões (NAHIN, 1998). Somente depois que Carl Friedrich Gauss (1777-1855) apresentou uma interpretação geométrica à unidade imaginária do modelo denominado plano numérico-gaussiano, ela se tornou um objeto matemático legítimo, que posteriormente assumiu um papel importante na matemática e na metamatemática.

A partir de então, a álgebra não foi mais concebida como uma linguagem analítica, mas como uma teoria de estruturas formais. A notação a + b (2) 1/2 ou a1 + b t, se abreviarmos (2) 1/2 por ., em que . pertença ao conjunto dos números algébricos, e a e b são racionais, sugere a ideia do conceito de espaço vetorial, porque . e. são vetores linearmente independentes sobre os racionais, exatamente da mesma forma que . e . são vetores linearmente independentes sobre os reais. No entanto, ninguém percebeu e explorou essa analogia antes do século XIX. Somente depois que a matemática moderna descobriu as noções complementares de conjunto e estruturaé que a matemática pura se desenvolveu.

O cientista John David Barrow (1952- ) caracteriza o espírito algébrico em seu livro Porque o mundo é matemático? (1992) da seguinte forma:

A linguagem matemática age como uma linguagem de computador, porque é principalmente uma linguagem com uma lógica embutida. Sabemos que não precisamos ser tão particulares com a linguagem comum. Se não nos atermos estritamente às regras da gramática e da sintaxe, somos compreendidos. Mas, se não aderirmos às regras da linguagem matemática, tudo se torna sem sentido. Frequentemente, os alunos são instruídos a pensar nas coisas para as compreenderem e avançarem. Mas, em certo sentido, o maior progresso do pensamento humano ocorreu como resultado de termos aprendido a fazer as coisas sem pensar (BARROW, 1992, p. 3, tradução nossa).

Jean-Victor Poncelet (1788-1867) identificou o segredo da generalidade algébrica noutro lugar, afirmando que se deve ao pensamento relacional e, em particular, ao princípio da continuidade. Friedrich Ludwig Gottlob Frege (1848-1925) expressou uma ideia semelhante ao dizer que a ascensão da aritmética à álgebra se deve ao pensamento funcional e baseado na introdução do conceito de função (FREGE, 1969).

Considerando a sequência de expressões aritméticas: 2.1. + 1, 2.2. + 2, 2.3. + 3 e, assim sucessivamente, poderíamos generalizá-las, concentrando-nos na forma comum, por meio da expressão: 2.x. + x. Ou seja, podemos afirmar que temos a ideia de uma função.

Dessa forma, Frege reintroduziu o pensamento relacional na aritmética, pois o conceito de função já havia sido conhecido pelos matemáticos por meio da teoria da geometria analítica de Descartes que construiu funções ou curvas, em vez de figuras geométricas. Apenas por meio do conceito de função a noção de variável algébrica bem como a visão estrutural da teoria matemática ganhou entrada na matemática. Por essa razão, Descartes pode ser considerado o primeiro que realmente teve uma compreensão profunda do pensamento relacional. Provavelmente Leibniz já havia reconhecido isso, e, no entanto, criticara Descartes por não ter seguido radicalmente as consequências de uma perspectiva da axiomática formal.

O conceito de função matemática, sobre o qual se baseia a noção de direito natural, foi ?[...] aplicado aos fenômenos físicos, aparecendo, pela primeira vez, em 1546, na literatura da humanidade em um manual de artilheiros? (ZILSEL, 2003, p. 110, tradução nossa), dezoito anos antes do nascimento de Galileu Galilei (1564-1642) e, exatamente, meio século antes do nascimento de Descartes.

A diferença é que existe uma concepção intensional (sentido) ou uma extensional (referência) de função (FONSECA, 2010), isto é, ou a função é identificada como um algoritmo ou como algum tipo de variável livre que faz parte de uma lei da natureza (concepção intensional) ou ela é identificada em expressões como uma maçã é uma fruta(concepção extensional).

Em proposições como uma maçã é uma fruta não seria natural interpretar uma maçã como um lugar reservado, como fez Frege, porque isso pressuporia atribuir nomes individuais a todas às maçãs deste mundo (QUINE, 1974). Existem ideias de uma maçã ou de uma função, mas que acabam sendo representações de ideias particulares colocadas para um determinado uso.

Pierre Boutroux (1880-1922), Jules Henri Poincaré (1854-1912) ou Charles Sanders Peirce (1839-1914), adotaram a perspectiva intencional (sentido) das funções, assumindo função como um conceito por direito próprio, enquanto que Georg Ferdinand Ludwig Philipp Cantor (1845-1918), Bertrand Arthur William Russell (1872-1970) ou Frege adotaram a perspectiva extensional (referência) das funções, reduzindo função a conjuntos (OTTE, 1990).

Como foi dito, a analogia cartesiana entre aritmética e geometria realizou tanto a identificação de magnitudes com números quanto a interpretação geométrica de equações algébricas. Descartes, em 1619, já havia projetado um programa e um método pelos quais os problemas de magnitude contínua e discreta poderiam ser tratados analogicamente (ADAM; MILHAUD, 1936).

Um exemplo clássico que demonstra claramente a complementaridade da aritmética e da geometria ou do discreto e do contínuo, vem do paradoxo de Zenão que conta a história do herói grego Aquiles e da tartaruga. Esse paradoxo poderia ser resolvido passando de uma visão teórica extensional do contínuo para uma intencional, usando o conceito de função. Vejamos: Aquiles corre dez vezes mais rápido que a tartaruga, embora a tartaruga tenha de início um estágio de vantagem à frente. Para cada estágio x (x> 0) percorrido por Aquiles, a tartaruga percorre a distância f(x) = 1/10x + 1estágio.

Essa função, como modelo do movimento relativo da tartaruga à posição em pé de Aquiles, permite-nos agora reproduzir o paradoxo em um novo nível devido ao seu duplo carácter: o aspecto contínuo do movimento não contradiz a perspectiva discreta. Permanece correto que a tartaruga esteja na posição x (n+1)assim que Aquiles estiver na posição x.. Entretanto, a representação usando o conceito de função permite-nos liberar o movimento de Aquiles da fixação unilateral no discreto x. (i= 0, 1, ...), vendo o movimento como um todo.

Ou seja, o movimento relativo de Aquiles e o da tartaruga é uma função linear, pois ambos os movimentos são uniformes: f(x) = ax + b(isto é, quando Aquiles atinge ., a tartaruga está em f (x)).

A pergunta Em que ponto Aquiles realmente alcança da tartaruga?,fica agora: Qual é o ponto fixo de f(x)?O ponto fixo de f(x)pode ser calculado simplesmente em função das constantes . e b: x = f(x) = ax + b. Aparentemente resolvemos o problema adotando um ponto de vista relacional, ou seja, adotando uma visão de mundo que fornece objetos e relações entre objetos com igual status ontológico.

Isso constitui essencialmente o que foi chamado de transição do pensamento sobre objetos para um pensamento relacional complementar. Essa transição ocorreu apenas no final do século XVIII. Em que sentido isso é uma solução? O paradoxo do movimento leva a uma complementaridade no conceito de função! Mostra, em primeiro lugar, a necessidade de ter o conceito de relação funcional como modelo ou como objeto matemático individual. E, em segundo lugar, ter disponível a eficácia dos cálculos simbólicos, que nos permitem escrever o ponto de encontro (OTTE, 1990).

Nesse sentido, o matemático Salomon Bochner (1899-1982) afirma:

As funções são um atributo distintivo da matemática moderna, talvez a mais profunda de todas. [...] Na sua estrutura mais interna a matemática grega era uma matemática inteiramente sem funções e sem qualquer orientação para as funções. [...] Pela aparência exterior, a matemática grega era geométrica e não analítica e, pela estrutura interna, era representacional e não operacional (1966, p. 217, tradução nossa).

5 CIÊNCIAS MATEMÁTICAS

Jacob Klein (1899-1978) introduz seu estudo fundamental sobre a transformação da concepção helenística da matemática e da ciência com as seguintes palavras:

A criação de uma linguagem matemática formal foi de importância decisiva para a constituição da física matemática moderna. Se a apresentação matemática é considerada como um mero dispositivo, preferido apenas porque os insights da ciência natural podem ser expressos por símbolos da maneira mais simples e exata possível, o significado do simbolismo bem como dos métodos especiais das disciplinas físicas em geral serão mal compreendidos (1992, p. 1, tradução nossa).

Observemos de passagem que a matematização da ciência natural introduz representações que podem até contradizer os fatos físicos. Por exemplo, Thomas Kuhn indica que o termo Massa tem significados diferentes na Mecânica newtoniana clássica e na Teoria Especial da Relatividade de Einstein: a massa newtoniana é estável, independente da velocidade, enquanto a einsteiniana depende da velocidade.

Consideremos a expressão: m = m. / (1- v./c.) 1/2, onde . e m. são a massa e a massa inicial, respectivamente, . é a velocidade e . é a velocidade da luz. Quando assumimos que a velocidade da luz . tende ao infinito, obtemos m = m.. No entanto, essa tendência ao infinito é explicitamente impossível pelos fatos físicos, que se tornaram conhecidos por meio do experimento de Morley-Michelson. Foram esses fatos que estimularam a teoria da relatividade de Albert Einstein (1879-1955).

Outro exemplo interessante em que a representação matemática formal contradiz à realidade física, é o seguinte: para alterar as condições em uma rede elétrica, é necessário diferentes interruptores que alteram o fluxo de eletricidade. Um resultado da teoria formal do autômato é que, independentemente do tamanho e da complexidade da rede, sempre se consegue com dois interruptores de um determinado tipo reverter todas as direções do fluxo de corrente nas linhas. Nos anos 1950, por outro lado, matemáticos como Andrei Andreyevich Markov (1856-1922), um pioneiro da matemática construtiva, mostraram que, ao contrário da representação matemática, o número de interruptores de inversão não é independente do número de canais de entrada e saída da rede. Lee Cecil Fletcher Sallows (1944- )analisou esta contradição entre a prova formal e a realidade objetiva e descobriu que na máquina real ocorrem certos feedbacks, devido à inércia dos sistemas de materiais. Um fluxo de corrente não pode ser instantaneamente interrompido ou vice-versa. Isto, em última análise, leva a efeitos diferentes dos que aparecem no diagrama estático da matemática. E Sallows, conclui que a noção de que tudo pode ser dito em uma língua diferente não está isenta de suas armadilhas (1990).

Portanto, podemos perceber novamente que a matemática da ciência natural depende de uma independência relativa de sentido e referência.

A matemática lida com objetos, no entanto, esses objetos pertencem a algum mundo modelo, a algum universo limitado do discurso, pois a matemática não é uma ciência empírica como a física ou a biologia. Portanto, temos de criar mundos-modelo. E esse fato dá igual importância às intenções e extensões dos termos matemáticos, de modo que a matemática ou a lógica não são linguagens meramente formais.

A título de exemplo, podemos recordar os intensos debates entre Frege e Hilbert ou entre Russell e Peano. Um dos temas dessas discussões dizia respeito à apresentação axiomática do número. A crítica de Russell era que a caracterização axiomática do número conduzia a uma situação em que: ?[...] cada número-símbolo se torna infinitamente ambíguo. [...] queremos que os nossos números não se limitem a verificar fórmulas matemáticas, mas que se apliquem corretamente a objetos comuns? (RUSSELL, 1998, p. 9, tradução nossa). Russell parecia, no entanto, não ter percebido claramente que a axiomática formal era um método muito geral da matemática e que, portanto, necessitava de algumas aplicações para estabelecer o seu estatuto como conhecimento real. Agora a matemática pura querendo assegurar a sua autonomia como profissão e libertar-se de todas as aplicações, escolheu o fundamento teórico como substituto. Mas, a matemática estritamente formalista, como foi desenvolvida pela escola de Hilbert, não prestou, a princípio, atenção suficiente ao peso das ferramentas teóricas que estavam estritamente ligadas à axiomática.

Há outro problema com a visão algorítmica ou linguística da matemática: não se pode realizar provas de impossibilidade, como a duplicação do cubo, a trissecção do ângulo etc., pois são uma espécie de certidão de nascimento da matemática moderna e culminaram no trabalho de Kurt Friedrich Gödel (1906-1978). A prova da impossibilidade para duplicar o cubo com meios euclidianos, por exemplo, tornou-se possível assim que se modelou as construções geométricas em termos aritméticos, criando a noção de número construtível e, finalmente, mostrou que a raiz cúbica de . não era um número construtível.

6 CONCLUSÃO

Quando deparamos com algo novo e completamente desconhecido, a única coisa que podemos fazer é representá-lo por meio de algum símbolo ou nome arbitrário. Podemos até representar o completamente desconhecido, usando de algum índice, como no caso do famoso . da álgebra simbólica, ou no contexto do hipotético raciocínio dedutivo da teoria axiomática.

Em muitas ocasiões não basta ter uma ideia. É preciso agir e aplicá-la. Uma equação algébrica deve ser solucionável, uma teoria deve ser aplicável, uma máquina deve funcionar e um conceito científico é essencialmente uma função. Uma lâmpada que não dá luz, uma faca que não corta, um saca-rolhas que não tira a rolha, são todos inúteis, não servem à sua função. As representações matemáticas ou científicas ganharam significado apenas na aplicação. As estruturas ou teorias axiomáticas formais são instrumentos do mesmo modo que os mapas, diagramas, símbolos etc.

A verdade e os fundamentos de uma teoria axiomática residem, portanto, no futuro, nas aplicações pretendidas. Qualquer teoria axiomática formal possível tem um grande número de aplicações. O que os axiomas descrevem são conceitos ou classes de objetos, ao invés de objetos particulares. Os axiomas da Peano não respondem à pergunta: O que são números, qual é o número 1 ou 2? Os números podem ser qualquer coisa, até mesmo jogos (Conway-Numbers, Hackenbusch-Games, Chessboard-Computer etc.).

Assim, como já foi dito, a matemática moderna ou a ciência teórica falam em termos das noções complementares de conjunto e de estrutura. A objetividade e o desenvolvimento operativo dos conceitos estão interligados. Esse interesse pela fertilidade operativa dos conceitos científicos e matemáticos cresceu enormemente durante a Revolução Científica que começou no século XVI e se prolongou até o século XVIII.

A preocupação de Descartes diz respeito à questão da representação interna ? uma ideia ? que nos fornece a informação. A semelhança entre representação e representado não se manterá, dada à natureza da interação causal entre o observador e o mundo. Descartes acreditava mais na resolução de problemas do que na construção de teorias e provas formais. Leibniz acreditava em teoria formal e na identidade lógica. Leibniz inventou a prova formal como a conhecemos hoje (HACKING, 1984).

Leibniz, no entanto, obteve as ideias essenciais da aritmetização da geometria de Descartes, que foi, ao mesmo tempo, também uma geometrização da aritmética. Criticou Descartes por não ter ido suficientemente longe na busca dos primeiros fundamentos axiomáticos do conhecimento. Descartes era um geômetra e não gostava muito de aritmética ou álgebra, e Leibniz, era um formalista e algébrico. As intuições de Descartes foram pessoais e não puderam ser ensinadas e comunicadas. Entretanto, são mais férteis que qualquer prova formal. Em contraste, Ian Hacking escreve:

Geralmente o lemos como um ego, preso no mundo das ideias, tentando descobrir o que corresponde às suas ideias, e ponderando questões da forma: Como posso saber? Por trás do seu trabalho há uma preocupação muito mais profunda. [...] acho que é levado a um novo tipo de preocupação. Não posso duvidar de uma verdade eterna quando a estou contemplando de maneira clara e distinta. Mas, quando deixo de contemplar, é uma questão de saber se há verdade ou falsidade no que me lembro de ter percebido. Bréhier sugeriu que proposições demonstradas podem ser falsas [...] Elas existem na mente apenas como percepções. Elas têm algum status quando não são percebidas (1984, p. 220-221, tradução nossa).

Hacking comete um equívoco, pois o conhecimento científico ou matemático é o conhecimento social. Descartes, como matemático, ficava satisfeito quando era capaz de resolver seus problemas e não estava interessado em construir teorias universais e demonstrar verdades eternas. Devemos nos lembrar que as mesmas divergências prevalecem até hoje.

William Timothy Gowers (1963- ), ilustre matemático e medalhista Fields (1998), aborda uma situação semelhante na cultura matemática atual, identificando duas culturas diferentes de fato:

As duas culturas que desejo discutir serão familiares a todos os matemáticos profissionais. Falando vagamente, quero dizer a distinção entre os matemáticos que consideram seu objetivo central como sendo resolver problemas e aqueles que estão mais preocupados em construir e compreender teorias (2000, p. 65, tradução nossa).

Gowers se vê como um solucionador de problemas, identificando Michael Francis Atiyah (1929-2019), outro medalhista Fields (1966), como um teórico e como seu homólogo.

Dessa maneira, o dever da linguagem em todas as áreas da autorreflexão humana, é repetir as mesmas coisas de maneiras sempre novas. Somente assim, o homem poderá tentar tomar consciência de si mesmo e do seu destino. Entretanto, a matemática não é uma linguagem e aqui se aplica o que Sallows observou, em 1990, que a noção de que tudo pode ser dito em uma língua diferente não está isenta de suas armadilhas.

A abordagem da educação matemática elementar deve consistir em ler um termo além da sua correspondência entre letras e sons, e também levar à compreensão de como um conjunto de habilidades pode ser trabalhado de modo completamente abstrato em relação ao conteúdo, abrangendo a complementaridade do sentido (intensão) e referência (referência). O contexto histórico epistemológico em As palavras e as coisas de Foucault e as transformações na interpretação da geometria e álgebra e a matemática da ciência natural exemplificam a independência relativa do sentido e da referência, o que reforça a importância de discutir e estudar com mais profundamente a complementaridade do sentido e referencia na educação matemática.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas
6 Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (1772-1801), conhecido cientificamente pelo pseudônimo Novalis, foi um dos mais importantes representantes do romantismo alemão no final do século XVIII.
Autor notes
1 Doutor em Matemática pela Universidade de Goettingen e pela Universidade de Munster (Alemanha). Professor visitante estrangeiro da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Endereço para correspondência: Rua Presidente Marques, 585, Ap. 101, Bairro Quilombo, Cuiabá - MT, Brasil, CEP: 78045-175.E-mail:michaelontra@aol.com.
2 Doutor em Matemática pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Universidade Anhanguera de São Paulo (UNIAN). Endereço para correspondência: Rua Las Vegas, 135, Vargem Grande Paulista, São Paulo, Brasil, CEP: 06730-000. E-mail: lgxbarros@hotmail.com.
3 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Endereço para correspondência: Rua Peru, 50, Ed. New Avenue, Ap. 2304, Bairro Pico do Amor, Cuiabá-MT, Brasil, CEP: 78065-070. E-mail: alexandreabido@gmail.com.
4 Doutora em Ciências e Educação Matemática (REAMEC). Professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Endereço para correspondência: Rua Toledo, 735, Bairro Jardim Terra Rica, Sinop-MT, Brasil, CEP: 78 557 548. E-mail: geslanef@hotmail.com.
5 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Técnico em Assuntos Educacionais pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Endereço para correspondência: Rua Peru, 50, Ed. New Avenue, Ap. 2304, Bairro Pico do Amor, Cuiabá-MT, Brasil, CEP: 78065-070. E-mail: luciene.ufmt@gmail.com.

Figura 1
Diagrama do Teorema 25
Fonte: Euclides (2009, p. 124)
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