Educação em Ciências

APROXIMAÇÕES ENTRE A ABORDAGEM DE CONTROVÉRSIAS SOCIOCIENTÍFICAS E A PEDAGOGIA FREIREANA

APPROXIMATIONS BETWEEN THE SOCIOSCIENTIFIC ISSUES APPROACH AND FREIREAN PEDAGOGY

APROXIMACIONES ENTRE EL ENFOQUE DE CONTROVERSIAS SOCIOCIENTÍFICAS Y LA PEDAGOGIA FREIREANA

Carla Krupczak *
Universidade Federal do Paraná, Brasil
Joanez Aparecida Aires **
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática

Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil

ISSN-e: 2318-6674

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 9, núm. 2, e21039, 2021

revistareamec@gmail.com

Recepção: 20 Dezembro 2020

Aprovação: 28 Abril 2021

Publicado: 30 Maio 2021



DOI: https://doi.org/10.26571/reamec.v9i2.11547

Os direitos autorais são mantidos pelos autores, os quais concedem à Revista REAMEC –Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática -os direitos exclusivos de primeira publicação. Os autores não serão remunerados pela publicação de trabalhos neste periódico. Os autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalhopublicada neste periódico (ex.: publicar em repositório institucional, em site pessoal, publicar uma tradução, ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial neste periódico. Os editores da Revista têm o direito de proceder a ajustes textuais e de adequação às normas da publicação.

Resumo: Diversas estratégias educacionais vêm sendo propostas por educadores e pesquisadores da área de ensino de ciências, a exemplo da abordagem de controvérsias sociocientíficas, a qual tem como principal objetivo desenvolver a criticidade dos cidadãos. Tal criticidade já foi extensamente defendida e definida por muitos pesquisadores, inclusive por um dos mais importantes pensadores brasileiros: Paulo Freire. Todavia, a obra de Freire ainda não foi pensada em conjunto com a abordagem de controvérsias sociocientíficas, numa perspectiva de propor o uso das duas de forma unificada. Tendo em vista esta lacuna, o objetivo deste artigo é analisar possíveis aproximações entre a abordagem de controvérsias sociocientíficas e a Pedagogia Freireana, de modo a propor uma estratégia para utilização das duas abordagens de forma conjunta. Para tanto, realizamos uma pesquisa teórica exploratória, visando construir hipóteses sobre o tema. Foram analisadas as principais obras de Paulo Freire e alguns dos mais importantes artigos sobre controvérsias sociocientíficas, sendo comparadas as metodologias propostas, buscando pontos de aproximação entre elas. As análises indicaram que a abordagem de controvérsias sociocientíficas e a Pedagogia Freireana possuem vários aspectos em comum, a exemplo da dialogicidade, do uso de temas de interesse dos estudantes e da busca pela transformação da realidade. Por isso, foi possível propor uma estratégia com base nas duas abordagens de modo que uma complementasse a outra.

Palavras-chave: Paulo Freire, Questões Sociocientíficas, Educação em Ciências.

Abstract: Several educational strategies have been proposed by educators and researchers in the field of science teaching, as an example of the approach of socioscientific issues, which main goal is to develop citizenship criticism. Such criticism has already been widely defended and defined by many researchers, including one of the most important Brazilian thinkers: Paulo Freire. However, Freire's work has not yet been thought of in conjunction with the approach to socioscientific issues, with a view to proposing the use of the two in a unified way. In view of this gap, the aim of this article is to analyze possible approximations between the approach to socioscientific issues and Freirean Pedagogy, in order to propose a strategy for using the two approaches together. For this, we conducted an exploratory theoretical research, aiming to build hypotheses on the topic. The main works of Paulo Freire and some of the most important articles on socioscientific issues were analyzed, and the proposed methodologies were compared, looking for points of approximation between them. The reflections indicated that the approach to socioscientific issues and Freirean Pedagogy have several aspects in common, such as dialogicity, the use of topics of interest to students and the search for the transformation of reality. Therefore, it was possible to propose a strategy based on the two approaches so that one complemented the other.

Keywords: Paulo Freire, Socioscientific Issues, Science Education.

Resumen: Diversas estrategias educativas han sido propuestas por educadores e investigadores en el área de la enseñanza de las ciencias, como el abordaje de las controversias sociocientíficas, cuyo principal objetivo es desarrollar la criticidad ciudadana. Dicha crítica ya ha sido ampliamente defendida y definida por muchos investigadores, incluido uno de los pensadores brasileños más importantes: Paulo Freire. Sin embargo, el trabajo de Freire aún no ha sido considerado en conjunto con el abordaje de las controversias sociocientíficas, con miras a proponer el uso de las dos de manera unificada. Ante esta brecha, el objetivo de este artículo es analizar posibles aproximaciones entre el enfoque de las controversias sociocientíficas y la Pedagogía Freireana, con el fin de proponer una estrategia para el uso conjunto de los dos enfoques. Para ello, realizamos una investigación teórica exploratoria, con el objetivo de construir hipótesis sobre el tema. Se analizaron los principales trabajos de Paulo Freire y algunos de los artículos más importantes sobre controversias sociocientíficas, y se compararon las metodologías propuestas, buscando puntos de aproximación entre ellas. Los análisis indicaron que el abordaje de las controversias sociocientíficas y la Pedagogía Freireana tienen varios aspectos en común, como la dialogicidad, el uso de temas de interés para los estudiantes y la búsqueda de la transformación de la realidad. Por lo tanto, fue posible proponer una estrategia basada en los dos enfoques para que uno complementara al otro.

Palabras clave: Paulo Freire, Cuestiones Sociocientíficas, Enseñanza de las Ciencias.

1. INTRODUÇÃO

Paulo Freire foi um importante educador brasileiro, tendo escrito diversos livros e desenvolvido uma metodologia de ensino conhecida como Pedagogia Crítica, Pedagogia Freireana ou Educação Problematizadora. Sua proposta baseia-se na utilização de temas geradores para as aulas, os quais devem ser identificados na realidade dos estudantes, por meio da investigação temática. O estudo e discussão dos temas geradores busca desenvolver nos educandos o pensamento crítico para a compreensão da realidade, a qual é perpassada por aspectos econômicos, sociais, políticos, ambientais, éticos, de modo a estimulá-los a agir para mudar as situações de exploração e exclusão (FREIRE, 1987).

As controvérsias sociocientíficas (CSC) são situações de cunho científico e tecnológico também fortemente ligadas a aspectos sociais, políticos, ambientais, econômicos, éticos, entre outros, tendo como objetivo principal estimular o desenvolvimento da criticidade e consequente atuação consciente do cidadão na sociedade (ZEIDLER; NICHOLS, 2009; KARISAN; ZEIDLER, 2017; KRUPCZAK; LORENZETTI; AIRES, 2020).

A partir dessas duas breves definições, é possível perceber que existem pontos de conexão entre a Pedagogia Freireana e a abordagem de CSC, a exemplo do pensamento crítico e da ação sobre a realidade. No entanto, estas e outras relações ainda não foram muito exploradas na literatura. De modo mais amplo, encontramos aproximações entre a Pedagogia Freireana e o ensino de ciências nos trabalhos de Delizoicov e seus orientados e, de modo mais específico, relacionando Freire e as CSC, podemos encontrar algumas discussões nos trabalhos apresentados em eventos por Santos et al. (2012) e Sousa e Gehlen (2015) e no artigo de Santos (2009). No entanto, estes não apresentam detalhes de como a abordagem de CSC poderia ser usada em uma perspectiva Freireana. Pensando nisto, este artigo tem o objetivo de analisar possíveis aproximações entre a abordagem de controvérsias sociocientíficas e a Pedagogia Freireana, de modo a propor uma estratégia para utilização das duas abordagens de forma conjunta.

Esta é uma pesquisa teórica exploratória, pois, segundo Gil (2002, p. 41),

estas pesquisas têm como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a constituir hipóteses. Pode-se dizer que estas pesquisas têm como objetivo principal o aprimoramento de ideias ou a descoberta de intuições.

Portanto, para explorar o assunto e construir hipóteses, analisamos e comparamos as principais obras de Paulo Freire e alguns dos principais artigos sobre controvérsias sociocientíficas, buscando encontrar pontos de aproximação entre as duas abordagens, ou seja, aspectos que são próximos e que permitem desenvolver estratégias didáticas que utilizam as duas abordagens ao mesmo tempo.

O artigo começa com uma breve explicação sobre alguns aspectos fundamentais da abordagem de CSC e da Pedagogia Freireana. Posteriormente, são discutidas algumas aproximações entre elas, buscando apresentar as relações entre os pressupostos teóricos e pedagógicos das duas perspectivas, indicando possibilidades de complementação e uso conjunto das abordagens.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A ABORDAGEM DE CONTROVÉRSIAS SOCIOCIENTÍFICAS

Controvérsias sociocientíficas são situações de cunho científico e tecnológico que “são usualmente controversas por natureza, mas tem o elemento adicional de requerer um grau de raciocínio moral ou de avaliação dos conceitos éticos no processo de tomada de decisões sobre possíveis soluções para estas controvérsias” (ZEIDLER; NICHOLS, 2009, p. 49, tradução nossa). Kolstø (2001) acrescenta que as CSC estão presentes nos meios de comunicação com frequência, sendo motivo de disputa entre diferentes grupos sociais, como políticos, ambientalistas, economistas, religiosos, entre outros.

Mundim e Santos (2012, p. 791) colocam que as CSC têm como características: “[...] relacionar-se a ciência; envolver formação de opinião e escolhas; ter dimensão local, nacional ou global; envolver discussão de valores e ética; estar relacionado à vida; envolver discussão de benefícios, riscos e valores, entre outras”.

Alguns exemplos de CSC são: a eutanásia, a construção de barragens de mineração, pesquisas com células-tronco, uso de energia nuclear, uso de agrotóxicos para a produção de alimentos, transgênicos, transumanismo, clonagem, entre outros.

Em função de suas características, as CSC são assuntos interessantes para as aulas, tornando os conteúdos mais significativos, o que permite que eles sejam melhor compreendidos e incorporados pelos estudantes (ZEIDLER; NICHOLS, 2009). Uma pesquisa realizada por Eastwood et al. (2012), com turmas de Ensino Médio dos Estados Unidos, indica que estudantes que aprendem os conteúdos por meio de CSC entendem melhor os conceitos científicos e sabem aplicá-los em situações reais do cotidiano.

A abordagem de CSC também permite envolver os estudantes em discussões, processos de tomada de decisão, argumentação, raciocínio lógico, análise de dados, entre outros (EASTWOOD et al., 2012). Por isso, a abordagem de CSC vem sendo defendida como forma de estimular a formação para a cidadania crítica e consciente (SADLER, 2004; REIS, 2004; ZEIDLER; NICHOLS, 2009; KARISAN; ZEIDLER, 2017; HODSON, 2018).

Segundo Hodson (2018), as sociedades são cada vez mais dependentes da ciência e tecnologia, então as CSC serão cada vez mais comuns, sendo essencial que os cidadãos saibam enfrentá-las. Reis (2004) destaca que ao discutir CSC, os estudantes podem analisar os interesses e argumentos de todos os grupos sociais envolvidos na temática. Assim, os educandos podem entender como cada população é afetada por determinadas decisões e pesar os prós e contras.

A abordagem de CSC também permite o desenvolvimento do pensamento crítico, o qual

[...] é um processo que visa produzir decisões razoáveis e reflexivas sobre o que acreditar ou fazer e que engloba certas disposições e habilidades. Quer um indivíduo avalie criticamente uma afirmação de conhecimento ou adote uma posição, ele/ela deve tentar produzir um determinado efeito como resultado de seu pensamento. Este resultado pode ter um componente de raciocínio, um componente de ação ou ambos (YACOUBIAN; KHISHFE, 2018, p. 799, tradução nossa).

Assim, o pensamento crítico é fundamental para a tomada de decisão e depende de habilidades como observação, análise de fontes, dedução, entre outros. Os cidadãos precisam desenvolver uma consciência coletiva, de modo que as decisões sejam tomadas em grupo (YACOUBIAN; KHISHFE, 2018).

Percebe-se, portanto, que a abordagem de CSC tem o potencial de desenvolver diversas habilidades essenciais para os cidadãos, o Quadro 1 resumo as principais.

Quadro 1
Principais habilidades estimuladas pela inclusão de CSC nas aulas
Habilidades sociais Comunicação, trabalho cooperativo, debater a fundamentação das opiniões, apoio entre os indivíduos, saber escutar a opinião do outro, autoestima...
Habilidades cognitivas Poder de argumentação, capacidade de analisar e explicar, pesquisa e recolha de informações, detecção de incoerências em dados, avaliação da credibilidade das fontes, pensar de forma crítica e formular opiniões próprias, reavaliar as próprias posições, construção de hipóteses, independência intelectual, compreender as diversas dimensões de uma situação...
Fonte: Krupczak, 2019, p. 71.

Além disso, os pesquisadores vêm defendendo que as CSC permitem abordar a natureza da ciência de forma contextualizada (KOLSTØ, 2001; ZEIDLER et al., 2002; ZEIDLER; NICHOLS, 2009; LEDERMAN; ANTINK; BARTOS, 2014; KARISAN; ZEIDLER, 2017). Segundo Zeidler e Nichols (2009, p. 53, tradução nossa), “[...] as unidades de estudo de CSC proporcionam o contexto para os alunos entenderem, através de experiências cuidadosamente elaboradas, que o conhecimento científico é carregado de teoria, social e culturalmente construído”.

Uma das maneiras de organizar aulas sobre CSC é utilizando as quatro etapas propostas por Hodson (2018). Na primeira etapa, os alunos devem compreender os impactos da ciência e da tecnologia na sociedade e no ambiente e como elas são determinadas culturalmente. Os estudantes precisam entender que as tecnologias trazem benefícios, mas também riscos. Por vezes, os problemas podem ser percebidos só muito tempo depois, como aconteceu com os CFCs e o DDT. Por isso, é preciso estar atento e pesar os benefícios e malefícios de uma decisão.

Na segunda etapa, os estudantes aprendem a reconhecer que a ciência e tecnologia estão ligadas com a distribuição de riquezas e que algo que beneficia um grupo da sociedade pode prejudicar outro. Por exemplo, todos são afetados pela poluição, mas as pessoas mais pobres o são com mais intensidade. O lixo produzido nas grandes cidades sempre é mandado para regiões mais pobres, expondo esta população a maiores riscos de contaminação (HODSON, 2018).

Na terceira etapa da proposta de Hodson (2018), os alunos devem discutir e analisar todos os aspectos envolvidos na CSC estudada, buscando propor soluções justas, éticas e sustentáveis. Os estudantes devem dialogar de forma educada, respeitando as opiniões e valores uns dos outros. Espera-se que sejam desenvolvidas a confiança mútua, o trabalho cooperativo, empatia, entre outros. Devem ser construídas soluções coletivas “[...] a fim de que as decisões em ciência e tecnologia reflitam sabedoria e justiça, em vez de interesses setoriais poderosos” (HODSON, 2018, p. 39).

Na quarta etapa, os estudantes devem realizar ações sociopolíticas, agindo sobre a CSC estudada. É o momento em que os educandos devem transformar a realidade, buscando construir um mundo melhor. Hodson (2018) defende que a escola deve formar cidadãos ativos:

Não é o suficiente que os estudantes aprendam que ciência e tecnologia são influenciadas por forças sociais, políticas e econômicas; eles precisam aprender como participar e eles precisam experimentar a participação. Além disso, eles precisam encorajar outros a participar: pais, avos, amigos, parentes, vizinhos e empresas locais. Não é o suficiente que estudantes sejam críticos de sofá! (HODSON, 2018, p. 45).

Os alunos devem perceber que eles podem ser pessoas ativas, contribuindo para a sociedade hoje. Alguns exemplos de ações sociopolíticas que podem ser realizadas são: a limpeza de um rio; a criação de vídeos e outros materiais de divulgação de informações; criar e cumprir metas de economia de água e energia; diminuir a produção de lixo e reciclar; organizar petições e abaixo-assinados; plantar árvores, organizar e participar de protestos; escrever para jornais; entre outros.

Para Hodson (2018), existem ações sociopolíticas que são de ação direta – como reciclar, economizar água ou limpar uma praia – e outras de ação indireta – como escrever para jornais, organizar protestos ou petições. O autor considera que o primeiro tipo é muito importante, mas não resolve os problemas de forma definitiva. Além disso, acaba despolitizando as situações e tirando a responsabilidade de pessoas, empresas e governos. Por exemplo, limpar um rio é uma ação direta muito boa, mas nada impede que a poluição retorne. Assim, além da limpeza os estudantes poderiam identificar as fontes de lixo e resíduos e orientar estas pessoas e empresas sobre os efeitos deste ato, além de exigir fiscalização das autoridades competentes.

É importante destacar que após a realização das ações sociopolíticas é preciso ocorrer um momento de avaliação. Os estudantes precisam refletir sobre a prática e analisar os impactos positivos e negativos dela na comunidade e em si mesmos (HODSON, 2018).

3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PEDAGOGIA FREIREANA

Entre os vários livros que Paulo Freire escreveu, um dos mais conhecidos é "Pedagogia do Oprimido”. Neste, Freire (1987) faz críticas ao ensino tradicional, em que o docente é apenas um transmissor de conteúdos teóricos que não se aproximam da realidade do estudante e, por isso, não são interessantes para ele. Nessa perspectiva, um bom professor deve transmitir o maior número possível de conteúdos e um bom estudante deve decorar todos os conceitos ensinados com passividade. Assim,

Em lugar de comunicar-se, o educador faz ‘comunicados’ e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção ‘bancária’ da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou fichadores das coisas que arquivam. [...] Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber (FREIRE, 1987, p. 33).

Portanto, para Freire (1987), a educação bancária é aquela em que o educador é o detentor do conhecimento e sua função é transmitir estes saberes para os educandos, que são “tábuas rasas”, desprovidos de qualquer conhecimento prévio. Nesta perspectiva educacional, a consciência crítica não é estimulada e, portanto, é difícil que os estudantes tornem-se cidadãos que entendem o mundo e agem para mudá-lo. Desse modo, trata-se de uma educação que beneficia apenas os opressores, pois os oprimidos continuam dominados e inconscientes de sua situação de exploração.

De modo contrário, Freire (2013, p. 24, grifo do autor) considera que “[...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. Para o autor, o processo de ensino e aprendizagem é mútuo, ou seja, professor e aluno agem juntos e aprendem um com o outro. Isso significa que o educador não é detentor de todos os conhecimentos e o educando possui saberes que precisam ser considerados. Todos os conhecimentos prévios dos estudantes devem ser respeitados e sua autonomia preservada.

A Educação Problematizadora tem como pilar o diálogo horizontal e em cooperação, de modo que “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987, p. 39). Sousa e Gehlen (2015) esclarecem que o diálogo proposto por Freire não é uma conversa comum, mas um diálogo crítico, que busca entender a realidade para transformá-la. Dessa forma, “[...] na prática problematizadora, vão os educandos desenvolvendo o seu poder de captação e de compreensão do mundo que lhes aparece, em suas relações com ele, não mais como uma realidade estática, mas como uma realidade em transformação, em processo” (FREIRE, 1987, p. 41).

Freire (2013) afirma que os professores devem instigar os estudantes a compreender a realidade em que vivem, as injustiças e violências que presenciam, para que reflitam sobre elas e ajam de forma transformadora. Quer dizer, o autor estimula uma reflexão crítica sobre o mundo para a ação e a liberdade: “a libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 1987, p. 38).

Santos (2009) destaca que, na perspectiva Freireana, a educação é muito mais ampla do que o simples ensino de conteúdos. Ela é considera fundamental para a transformação da sociedade, principalmente em se tratando das relações entre opressores e oprimidos. A Educação Problematizadora é humanística, preocupada com as condições em que vivem as pessoas e incentiva que elas reflitam sobre suas realidades. Portanto, uma das caraterísticas fundamentais da Pedagogia Freireana é a ênfase política, considerada essencial para uma educação libertadora. Isso explica porque Paulo Freire foi expulso de vários países no período ditatorial da América Latina.

A Pedagogia Freireana propõe que as aulas sejam baseadas em temas geradores, que são problemas da comunidade. Eles são identificados pela investigação temática, a qual envolve a análise crítica da realidade, buscando compreender o contexto de uma comunidade. Os temas geradores são encontrados e compreendidos nas relações entre os indivíduos e o mundo. “Investigar o ‘tema gerador’ é investigar, repitamos, o pensar dos homens referido à realidade. É investigar seu atuar sobre a realidade, que é sua práxis” (FREIRE, 1987, p. 56).

Na investigação temática busca-se, primeiramente, encontrar as chamadas situações-limite, as quais representam conjunturas estabelecidas historicamente, geralmente não entendidas pela comunidade e consideradas determinísticas. A equipe de pesquisa, composta pelos professores, busca identificar, por meio do diálogo, qual é a consciência real que a população tem destes problemas (SOUSA; GEHLEN, 2015).

Assim, depois de identificadas as situações-limite, elas são discutidas com a comunidade, num processo de descodificação, buscando criar uma nova compreensão do problema. Problematiza-se a situação codificada e as próprias respostas que as pessoas dão a ela, buscando a conscientização. Por isso, a investigação temática é chamada de conscientizadora, porque além de permitir a identificação das situações-limite, possibilita que os indivíduos pensem de forma crítica e ativa sobre o mundo (FREIRE, 1987).

Sobre isso, Freire argumenta que:

A estas reuniões de descodificação nos ‘círculos de investigação temática’, além do investigador como coordenador auxiliar da descodificação, assistirão mais dois especialistas – um psicólogo e um sociólogo – cuja tarefa é registrar as reações mais significativas ou aparentemente pouco significativas dos sujeitos descodificadores (FREIRE, 1987, p. 64).

Finalizadas as descodificações, os pesquisadores analisam as notas do psicólogo e do sociólogo e as gravações das reuniões. O objetivo é identificar os temas geradores explícitos ou implícitos, os quais são utilizados pelos professores para planejar as aulas. Dessa forma, quando o docente apresentar o plano de ensino aos estudantes, eles se identificarão com os conteúdos, uma vez que foram gerados no seio da sua comunidade, sendo problemáticas do seu cotidiano (FREIRE, 1987).

A proposta de Freire (1987) inicia, portanto, com a identificação dos temas geradores através da investigação temática. No entanto, o autor afirma que quando não é possível realizá-la, o professor pode perguntar aos educandos quais assuntos lhes interessam e quais problemas da sua comunidade os incomodam questionando os motivos desses interesses. Dessa forma, o professor pode ter ao menos uma noção do que preocupa os alunos, o que lhe permitirá planejar suas aulas indo ao encontro dos interesses destes.

Segundo Santos (2009), pode-se resumir a Pedagogia Freireana como um processo educacional que começa com a investigação temática, a qual permite conhecer a leitura de mundo dos estudantes e a cultura em que estão imersos. Deste passo, surgem os chamados temas geradores, que são estudados nas aulas, de maneira dialógica, e utilizados como contexto para a percepção e transformação da realidade. Assim, busca-se desenvolver a criticidade dos educandos para a compreensão do mundo e ação sobre ele.

4. APROXIMAÇÕES ENTRE A ABORDAGEM DE CONTROVÉRSIAS SOCIOCIENTÍFICAS E A PEDAGOGIA FREIREANA

As ideias de Paulo Freire não foram pensadas, inicialmente, para a educação científica, mas os fundamentos da Educação Problematizadora podem ser adaptados para qualquer disciplina e nível educacional. Além disso, ela mostra-se particularmente eficaz em países pobres, historicamente explorados e com altos índices de desigualdade social, como é o caso do Brasil. Desta forma, a proposta de Paulo Freire foi utilizada e adaptada por vários pesquisadores do ensino de ciências.

Por exemplo, Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2011) sistematizaram a investigação temática de Paulo Freire na chamada Abordagem Temática Freireana, dividida em cinco etapas: (i) levantamento preliminar: em que o educador dialoga com a comunidade com o objetivo de identificar as situações-limite que afligem a população; (ii) análise das situações e escolha das codificações: a codificação é o início do processo de compreensão das situações-limites, pouco entendidas pela comunidade; (iii) diálogos descodificadores: momento de clarificação dos problemas por meio do diálogo, em que os temas geradores emergem; (iv) redução temática: os temas geradores vão sendo organizados em torno de núcleos temáticos, tomando o cuidado de não perder a riqueza e complexidade inerente às situações; (v) trabalho em sala de aula: planejamento das ações didáticas acerca dos temas geradores e aplicação nas aulas.

Já Santos (2009), sistematiza a Pedagogia Freireana para o ensino de ciências em três etapas: (i) identificação dos problemas da comunidade pela observação da realidade e diálogo; (ii) discussão e análise dos problemas encontrados e (iii) definição de ações que possam transformar a realidade e resolver os problemas. Esta proposta de Santos (2009) pode, por exemplo, ser utilizada para a abordagem de CSC. Na primeira etapa, ocorreria a identificação de uma CSC que seja pertinente e interessante para os alunos. Depois, ela seria analisada por meio do diálogo. Por fim, ocorreria o planejamento e realização de uma ação sociopolítica sobre a controvérsia analisada.

No caso específico das CSC, Santos et al. (2012) defendem que as controvérsias devem ser identificadas por meio da investigação temática Freireana. Para os pesquisadores, a Educação Problematizadora e a abordagem de CSC têm em comum que: (i) buscam compreender e atuar sobre problemas que envolvam ciência e tecnologia, (ii) utilizam assuntos relevantes e que fazem parte do cotidiano dos estudantes nas aulas, (iii) são abordagens dialógicas e (iv) envolvem pesquisa e, por isso, podem aproximar a universidade da escola.

Para Sousa e Gehlen (2015), a abordagem de CSC e a Pedagogia Freireana têm em comum:

i) que ensinar não se reduz à transmissão de conhecimento, mas envolve criar oportunidades de aprendizagem mediante a participação ativa dos educandos; ii) que os objetivos do ensino não se esgotam na aprendizagem dos conteúdos, mas abarca a formação cidadã do indivíduo; iii) a importância da postura indagadora do professor para a reflexão do educando sobre o objeto cognoscível (SOUSA; GEHLEN, 2015, p. 5).

Apesar das duas abordagens terem origens diferentes, ambas buscam utilizar temas do interesse dos educandos, tornando os conteúdos mais significativos, o que contribui para a formação de cidadãos mais conscientes e críticos, de modo a instrumentalizá-los para agir sobre a realidade.

Santos (2009), em sintonia com Freire (1987, 2013), defende que os conteúdos científicos sejam ensinados de forma contextualizada, por meio de temas socialmente relevantes, como são as CSC. A abordagem de CSC permite tornar a educação científica mais humanística, pois envolve o estudo de aspectos econômicos, sociais, políticos, éticos, ambientais, entre outros. Assim, numa perspectiva Freireana, “a introdução das CSC não serve apenas como um contexto para a aprendizagem das ciências, mas deve gerar reflexões sobre o contexto social de opressão na sociedade científica e tecnológica moderna também” (SANTOS, 2009, p. 374, tradução nossa). Portanto, a discussão sobre CSC pode ajudar os estudantes a compreender o contexto social e cultural em que vivem.

Freire (2013) afirma que a escola deve sempre buscar conectar os conteúdos com a realidade dos estudantes. Para isso, o educador propõe que sejam discutidas controvérsias locais, como a degradação do rio mais próximo. Portanto, pode-se notar, que a discussão sobre CSC vai ao encontro das recomendações de Freire.

Freire (1987, p. 54) também recomenda o estudo de temas globais “temas de caráter universal, contidos na unidade epocal mais ampla, que abarca toda uma gama de unidades e subunidades, continentais, regionais, nacionais, etc. diversificadas ente si”. Portanto, podemos interpretar que, para Freire (1987), CSC globais também são consideradas temas geradores, visto que afetam a vida das pessoas em nível local. “Em círculos menos amplos, nos deparamos com temas e ‘situações-limite’, características de sociedades de um mesmo continente ou de continentes distintos, que têm nestes temas e nestas ‘situações-limites’ similitudes históricas” (FREIRE, 1987, p. 54).

A Pedagogia Freireana busca desenvolver a consciência crítica dos estudantes por meio do diálogo. Este é outro aspecto que a aproxima da abordagem de CSC, uma vez que esta também se caracteriza pela dialogicidade, ou seja, as CSC possibilitam e estimulam que os estudantes interajam entre si e com o mundo. É importante lembrar que Freire (2013) defende que não existe professor neutro e que ele pode apresentar suas próprias compreensões do assunto sobre o qual se dialoga, desde que não as imponha. “Como professor não devo poupar oportunidade para testemunhar aos alunos a segurança com que me comporto ao discutir um tema, ao analisar um fato, ao expor minha posição em face de uma decisão” (FREIRE, 2013, p. 132).

O educador deve respeitar as ideias dos educandos e evidenciar a pluralidade de visões que existem. O professor não deve dar respostas, mas instigar os alunos a pensar e a fazer suas próprias escolhas, estando cientes das consequências. Freire (2013) considera o docente um indivíduo político, que deve refletir sempre sobre o tipo de educação que está realizando. Ser apolítico representa concordar com a realidade de dominação existente e ser cúmplice das injustiças que ocorrem. O educador deve ter compromisso com a equidade, justiça e transformação social.

Tendo em mente estes aspectos, apontados por Freire, o educador precisa selecionar CSC que tenham potencial para gerar reflexão sobre o contexto social e cultural em que os educandos vivem e que também permita o estudo dos conteúdos científicos (SANTOS, 2009). Então, como escolher as CSC mais adequadas? Para tal, Sousa e Gehlen (2015) sugerem o uso da investigação temática Freireana.

Sousa e Gehlen (2015) afirmam que o conhecimento científico é espacial e temporalmente situado. O que quer dizer que as demandas sociais, políticas, ambientais, econômicas, etc., influenciam ou até mesmo determinam os problemas que são investigados e resolvidos. Por isso, muitas CSC importantes podem ser esquecidas e o processo de investigação temática pode ajudar a encontrá-las.

Nesse sentido, Freire (2013) discute a importância de analisar como questões atuais são apresentadas pela mídia, incluindo as CSC: “debater o que se diz, o que se mostra e como se mostra na televisão, me parece algo cada vez mais importante. Como educadores e educadoras progressistas não apenas não podemos desconhecer a televisão, mas devemos usá-la, sobretudo discuti-la” (FREIRE, 2013, p. 136). Mas, alerta:

Não temo parecer ingênuo ao insistir não ser possível pensar sequer em televisão sem ter em mente a questão da consciência crítica. É que pensar em televisão ou na mídia em geral nos põe o problema da comunicação, processo impossível de ser neutro. Na verdade, toda comunicação é comunicação de algo, feita de certa maneira em favor ou na defesa, sutil ou explícita, de algum ideal contra algo e contra alguém, nem sempre claramente referido (FREIRE, 2013, p. 136).

Na mesma linha de pensamento, Ratcliffe e Grace (2003) afirmam que a forma como uma CSC é apresentada influencia a maneira como a população a entende. Além disso, a mídia pode ser aliada da população, pois pode exigir, por exemplo, que políticos expliquem os motivos para determinadas políticas públicas e decisões. Um exemplo típico deste caso, no momento atual, pode ser a questão das vacinas contra a COVID-19, em que a função das mídias deveria ser a de esclarecer a população e cobrar dos governos.

Assim, para Freire (1987), é importante que a Educação Problematizadora envolva a leitura e discussão de textos midiáticos:

Na linha de emprego destes recursos, parece-nos indispensável análise do conteúdo dos editoriais da imprensa, a propósito de um mesmo acontecimento. Por que razão os jornais se manifestam de forma diferente sobre um mesmo fato? Que o povo então desenvolva o seu espírito crítico para que, ao ler jornais ou a ouvir o noticiário das emissoras de rádio, o faça não como mero paciente, como objeto dos ‘comunicados’ que lhes prescrevem, mas como uma consciência que precisa libertar-se (FREIRE, 1987, p. 68).

Quer dizer, Freire (1987) recomenda uma leitura crítica das informações veiculadas pela mídia, o que também deve acontecer ao analisar CSC. Santos et al. (2012) afirmam que as atitudes e comportamentos das pessoas são influenciados pela ciência e tecnologia. Por causa disto, é imprescindível que os cidadãos participem dos processos de tomada de decisão relacionados com ciência e tecnologia. Isto demanda criticidade para entender o que a mídia veicula sobre o assunto.

Não é suficiente, todavia, que os cidadãos apenas percebam que a ciência e tecnologia estão presentes no cotidiano, eles devem ser capazes de refletir e entender as contradições que elas trazem:

[...] uma das tarefas precípuas da prática educativo-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil. Curiosidade com que podemos nos defender de ‘irracionalismos’ decorrentes do ou produzidos por certo excesso de ‘racionalidade’ de nosso tempo altamente tecnologizado. E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente humanista de negação da tecnologia e da ciência. Pelo contrário, é consideração de quem, de um lado, não diviniza a tecnologia, mas, de outro, não a diaboliza. De quem a olha ou mesmo a espreita de forma criticamente curiosa (FREIRE, 2013, p. 33-34, grifo do autor).

É preciso ter em mente, portanto, que as tecnologias melhoraram a qualidade de vida das pessoas, mas não para todo mundo, uma parte da população não tem acesso a elas. As tecnologias tornaram-se muito importantes nas sociedades, ao ponto de determinar e influenciar as atitudes e aspirações dos cidadãos. Os indivíduos passaram a ser medidos pelas coisas que possuem e o consumismo exagerado acabou tornando-se um vício para algumas pessoas. Estes problemas são reflexos do sistema de opressão que Freire critica e que deve ser analisado criticamente e transformado pelos estudantes (SANTOS, 2009). Segundo Freire (1987, p. 26), os opressores “vão se apropriando, cada vez mais, da ciência também, como instrumento para suas finalidades. Da tecnologia, que usam como força indiscutível de manutenção da ‘ordem’ opressora, com a qual manipulam e esmagam”.

As consequências do uso das tecnologias, diversas vezes, demoram para ser percebidas e entendidas. Por exemplo, os CFCs foram utilizados por décadas até que se identificasse que eles causavam a destruição da camada de ozônio. O DDT também foi usado por anos em diversas lavouras até que se percebesse que o mesmo era responsável por sérios problemas ambientais e de saúde humana. É importante que estas questões sejam discutidas com os estudantes, para que eles percebam que as decisões não devem ser tomadas de forma apressada (SANTOS, 2009).

Segundo Santos (2009), inicialmente pode parecer que a Pedagogia Freireana adaptada para a educação científica resume-se aos objetivos da educação ciência-tecnologia-sociedade (CTS) ou da alfabetização científica e tecnológica (ACT). No entanto,

Uma visão educacional Freireana enfoca questões como acesso desigual à tecnologia em todo o mundo e o contraste entre pobres e ricos. Esses são os principais contextos que Paulo Freire pretendeu transformar com sua abordagem educacional. Este não é o ponto principal dos movimentos CTS e ACT, que se preocupam com as implicações sociais da tecnologia, mas que não necessariamente levam em consideração a condição opressora da sociedade (SANTOS, 2009, p. 371, tradução nossa).

Por exemplo, a produção e descarte de lixo é uma CSC que pode ser utilizada para abordar conteúdos como propriedades da matéria, métodos de separação de misturas, entre outros. No caso da educação CTS, também seriam discutidas as consequências sociais e ambientais do descarte do lixo. Já, na Pedagogia Freireana, além disso, também ocorreriam reflexões sobre os motivos dos lixões e aterros sanitários serem sempre localizados em lugares mais pobres, o fato de existirem pessoas que precisam buscar alimentos nestes locais, como esta realidade pode ser alterada, entre outros aspectos (SANTOS, 2009).

A Pedagogia Freireana busca fomentar a transformação da realidade. Este é um dos objetivos finais da educação, nesta perspectiva. A abordagem de CSC segue o mesmo caminho, pois envolve a realização de ações sociopolíticas como forma de agir sobre a realidade. Portanto, para as duas abordagens, não basta discutir e refletir sobre os problemas ambientais e sociais, é fundamental também agir para causar mudanças. Freire afirma que:

O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da história, mas seu sujeito igualmente. No mundo da história, da cultura, da política, constato não para me adaptar, mas para mudar (FREIRE, 2013, p. 74-75, grifos do autor).

Portanto, a interpretação de Freire, de que a educação deve levar à mudança da realidade, é condizente com a realização das ações sociopolíticas sugeridas pela abordagem de CSC. Assim, “é a partir deste saber fundamental – mudar é difícil, mas é possível – que vamos programar nossa ação político-pedagógica” (FREIRE, 2013, p. 75).

Tudo que foi discutido até aqui indica que existem vários pontos em comum entre a abordagem de CSC e a Pedagogia Freireana. Desta forma, pode-se propor que a abordagem de CSC seja realizada numa perspectiva Freireana, seguindo alguns passos.

A proposta começaria com a investigação temática para a identificação de uma (ou mais de uma) CSC que seja importante para uma comunidade. Numa situação ideal, a investigação temática seria realizada, como recomenda Freire (1987), por uma equipe interdisciplinar, formada por professores de várias disciplinas, um psicólogo e um sociólogo. No entanto, sabe-se que a maioria das escolas não conta com a presença de psicólogos, por exemplo. Assim, nos casos em que não for possível reunir todos estes profissionais, a investigação temática pode ser realizada apenas pelo grupo de professores. Entretanto, mesmo assim pode não ser possível reunir todos os docentes. Primeiro porque o tempo de hora atividade é curto e uma investigação temática completa demanda vários dias. Segundo, porque muitos professores trabalham em diversas escolas, tendo poucos horários em uma mesma instituição, o que torna difícil reunir os educadores para a realização da investigação temática. Nestes casos, recomenda-se, como indica Freire (1987), que os docentes façam perguntas aos estudantes sobre os temas que os interessam e os problemas de sua comunidade que os incomodam. Dessa forma, ele pode ter uma noção de quais CSC utilizar em suas aulas.

Uma vez escolhida a CSC que será estudada, o professor deve planejar as aulas, sempre de forma dialógica. A discussão das CSC deve ser cooperativa, com as opiniões de todos os estudantes sendo respeitadas. Devem-se pesquisar informações em fontes variadas e sempre analisar a confiabilidade delas e os diferentes discursos presentes, especialmente quando veiculados pelas grandes mídias. Além disso, seguindo uma perspectiva Freireana, deve-se problematizar a realidade e questionar as injustiças e opressões que ocorrem.

Após o estudo e compreensão da CSC, deve-se pensar em formas de resolver o problema e transformar a realidade, o que pode ser feito por meio de ações sociopolíticas. Para decidir quais ações podem ser realizadas, Hodson (2018) recomenda que os estudantes pesquisem exemplos que tenham sido feitos por outras pessoas, para entender o que funcionou e o que não deu certo. Além disso, é importante que os educandos combinem ações sociopolíticas diretas, que causam impactos mais pontuais, com outras indiretas, que chegam mais próximas da “raiz” do problema. Dessa forma, os estudantes estarão se tornando cidadãos ativos e conscientes e, principalmente, colaborando para a transformação da realidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve o objetivo de analisar possíveis aproximações entre a abordagem de controvérsias sociocientíficas e a Pedagogia Freireana, de modo a propor uma estratégia para utilização das duas abordagens de forma conjunta. As discussões realizadas indicaram que os pontos em comum são: que ensinar não é apenas transmitir os conteúdos; que se deve priorizar a utilização de temas atuais e de interesse dos estudantes; o diálogo para a discussão dos assuntos estudados; a busca por desenvolver o pensamento crítico e consciente; a ação sobre os problemas para a transformação da realidade.

No entanto, também pode-se notar uma diferença importante: na abordagem de CSC o professor não precisa, necessariamente, realizar uma investigação temática para determinar a controvérsia que será discutida nas aulas. O docente pode escolher a CSC que julgar mais interessante ou próxima dos estudantes. Já na Pedagogia Freireana, o professor precisa realizar a investigação temática, a qual leva a um problema da comunidade, que pode ou não ser uma CSC.

Como as semelhanças são maiores que as diferenças, pode-se propor a união das duas abordagens, de modo que uma complemente a outra. Assim, a investigação temática pode ser incorporada à abordagem de CSC, de forma que a controvérsia estudada não seja escolhida pelo professor, mas identificada da comunidade ou dos interesses dos estudantes. Além disso, a transformação da realidade destacada na Pedagogia Freireana pode ser realizada na abordagem de CSC por meio das ações sociopolíticas.

Este artigo indica a possibilidade de que a abordagem de CSC seja realizada em uma perspectiva Freireana, devido às semelhanças que existem entre elas. Esperamos, futuramente, aplicar tal proposta em sala de aula, de modo a verificar a funcionalidade da mesma na melhoria da educação científica e aspectos que podem ser melhorados, repensados ou alterados.

Agradecimentos

Ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e em Matemática da Universidade Federal do Paraná.

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APÊNDICE 1

FINANCIAMENTO

Financiado pelas próprias autoras.

CONTRIBUIÇÕES DE AUTORIA

Resumo/Abstract/Resumen: Carla Krupczak e Joanez Aparecida Aires

Introdução: Carla Krupczak e Joanez Aparecida Aires

Referencial teórico: Carla Krupczak e Joanez Aparecida Aires

Análise de dados: Carla Krupczak e Joanez Aparecida Aires

Discussão dos resultados: Carla Krupczak e Joanez Aparecida Aires

Conclusão e considerações finais: Carla Krupczak e Joanez Aparecida Aires

Referências: Carla Krupczak e Joanez Aparecida Aires

Revisão do manuscrito: Carla Krupczak e Joanez Aparecida Aires

Aprovação da versão final publicada: Carla Krupczak e Joanez Aparecida Aires

CONFLITOS DE INTERESSE

Os autores declararam não haver nenhum conflito de interesse de ordem pessoal, comercial, acadêmico, político e financeiro referente a este manuscrito.

DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA

O conjunto de dados que dá suporte aos resultados da pesquisa foi publicado no próprio artigo.

CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM

Não se aplica.

APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

Não se aplica.

COMO CITAR - ABNT

KRUPCZAK, Carla. AIRES, Joanez Aparecida. Aproximações entre a abordagem de controvérsias sociocientíficas e a pedagogia freireana. REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática. Cuiabá, v. 9, n. 2, e21039, maio-agosto, 2021. http://dx.doi.org/10.26571/reamec.v9i2.11547.

COMO CITAR - APA

Krupczak, C. Aires, J. A. (2021). Aproximações entre a abordagem de controvérsias sociocientíficas e a pedagogia freireana. REAMEC - Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, 9 (2), e21039. http://dx.doi.org/10.26571/reamec.v9i2.11547.

LICENÇA DE USO

Licenciado sob a Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0). Esta licença permite compartilhar, copiar, redistribuir o manuscrito em qualquer meio ou formato. Além disso, permite adaptar, remixar, transformar e construir sobre o material, desde que seja atribuído o devido crédito de autoria e publicação inicial neste periódico.

DIREITOS AUTORAIS

Os direitos autorais são mantidos pelos autores, os quais concedem à Revista REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática - os direitos exclusivos de primeira publicação. Os autores não serão remunerados pela publicação de trabalhos neste periódico. Os autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalho publicada neste periódico (ex.: publicar em repositório institucional, em site pessoal, publicar uma tradução, ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial neste periódico. Os editores da Revista têm o direito de proceder a ajustes textuais e de adequação às normas da publicação.

PUBLISHER

Universidade Federal de Mato Grosso. Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemática (PPGECEM) da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática (REAMEC). Publicação no Portal de Periódicos UFMT. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da referida universidade.

EDITOR

Marcel Thiago Damasceno Ribeiro

Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6404-2232

Lattes: http://lattes.cnpq.br/5484650266886844

Autor notes

* Mestra em Educação em Ciências e em Matemática pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e em Matemática da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Paraná, Brasil. Endereço para correspondência: Estrada Avencal Antinha, sem número, chácara, São José dos Pinhais, Paraná, Brasil, CEP: 83185-990.
** Doutora em Educação Científica e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora no Departamento de Química da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Paraná, Brasil. Endereço para correspondência: Av. Cel. Francisco H. dos Santos, 100, Jardim das Américas, Curitiba, Paraná, Brasil, CEP: 81530-000.

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