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PATRIMÔNIO CULTURAL E PERTENCIMENTO: CONTRIBUIÇÃO PARA PENSAR O CURRÍCULO NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Jeane Costa Amaral; Lenira Haddad; Maria Assunção Folque
Jeane Costa Amaral; Lenira Haddad; Maria Assunção Folque
PATRIMÔNIO CULTURAL E PERTENCIMENTO: CONTRIBUIÇÃO PARA PENSAR O CURRÍCULO NA EDUCAÇÃO INFANTIL
CULTURAL HERITAGE AND BELONGING: CONTRIBUTION TO THINKING ABOUT EARLY CHILDHOOD CURRICULUM
Revista de Educação Pública, vol. 30, 2021
Universidade Federal de Mato Grosso
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Resumo: O artigo apresenta parte de uma pesquisa que buscou compreender as dimensões teóricas e práticas que compõem a relação criança, cidade e patrimônio no âmbito da educação infantil e abrangeu duas cidades históricas. A análise de- corre da pesquisa de cunho etnográfico realizada em Penedo, AL, envolvendo o acompanhamento das crianças de duas escolas municipais em suas saídas às ruas da cidade, mobilizadas por diver- sos motivos. Cinco episódios que dimensionam a força da cultura local são considerados esteio para a participação, significação e/ou ressigni- ficação do patrimônio cultural pelas crianças rompendo com a distância que separa os saberes e fazeres da cultura local da cultura escolar.

Palavras-chave: Educação Infantil, Cidade, Infância, Patrimônio cultural.

Abstract: The article presents part of a research that sought to understand the theoretical and practical dimen- sions that make up the relationship between child, city and heritage in the context of early childhood education and covered two historic cities. The analysis stems from the ethnographic research carried out in Penedo, AL, involving the monito- ring of children from two municipal pre-schools on their way out onto the city streets, mobilized for several reasons. Five episodes that measure the strength of local culture are considered the mainstay for the participation, meaning and / or resignification of cultural heritage by children, bre- aking the distance that separates knowledge and practices from local culture from school culture.

Keywords: Early Childhood Education, City, Childhood, Cultural heritage.

Carátula del artículo

Artigos

PATRIMÔNIO CULTURAL E PERTENCIMENTO: CONTRIBUIÇÃO PARA PENSAR O CURRÍCULO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

CULTURAL HERITAGE AND BELONGING: CONTRIBUTION TO THINKING ABOUT EARLY CHILDHOOD CURRICULUM

Jeane Costa Amaral
Universidade Estadual de Feira de Santana, Brasil
Lenira Haddad
Universidade de Évora, Brasil
Maria Assunção Folque
Universidade de Évora, Brasil
Revista de Educação Pública
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
ISSN: 0104-5962
ISSN-e: 2238-2097
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 30, 2021

Recepção: 01 Maio 2021

Aprovação: 24 Julho 2021


INTRODUÇÃO

O presente artigo apresenta os resultados parciais de uma pesquisa realizada em duas cidades históricas com relevantes patrimônios culturais, Évora, em Portugal, e Penedo, no estado de Alagoas, no Brasil, que buscou compreender as dimensões teóricas e práticas que compõem uma proposta que relaciona Criança, Cidade e Patrimônio, no âmbito da Educação Infantil (CCP_EI). O estudo se insere em um programa mais amplo de pesquisa e extensão denominado “A criança, a cidade e o patrimônio: diálogos entre os saberes e fazeres das comunidades penedense e eborense” (HADDAD, 2018), que tem como campo de investigação e ação essas duas cidades, a partir de uma parceria entre a Universidade Federal de Alagoas e a Universidade de Évora. Os vários projetos que compõem esse programa têm como base o pressuposto de que o reconhecimento do patrimônio cultural é um recurso imprescindível para a educação da infância, para a formação dos profissionais e para a elaboração de um currículo que espelhe as características regionais e locais da cultura de uma sociedade na sua diversidade. A visão de patrimônio defendida no projeto referido não é aquela que vê o edifício como pedra sobre pedra, mas a que postula a perspectiva de que o patrimônio só faz sentido a partir do seu reconhecimento e do seu uso pelos cidadãos (HADDAD et al, 2021, no prelo).

O conceito tradicionalmente difundido de patrimônio muitas vezes nos remete a bens materiais tangíveis: edifícios, palácios, monumentos, obras de arte, enfim, algo palpável, visível e de grande “vulto” e destaque histórico que nos foi deixado de herança. Nogueira e Ramos Filho (2019, p. 6) chamam atenção para o sentido etimológico da palavra patrimônio:

[...] advém de patrimonium, uma junção de “patri”, termo designador de “pai”, com “monium”, que exprime “recebido”, para referir-se à “herança”. Desde a noção mais antiga que manifesta o desejo de transmitir os bens da família, até a noção mais contemporânea, que desenvolve a ideia de um patrimônio a ser transmitido para as gerações futuras, nota-se como o conceito é uma construção social. (NOGUEIRA, RAMOS FILHO, 2019, p. 6)

Nessa perspectiva, patrimônio é uma herança que será transmitida pelas gerações, pelo desejo de perpetuar a história, de garantir que os ensinamentos e as tradições do passado se eternizem. Dessa maneira, podemos pensar que não existe apenas herança no campo do tangível, mas do intangível; que todas as boas ou más memórias, vivências, práticas culturais, saberes e fazeres também podem ser transmitidos e considerados um patrimônio.

O francês Hugues de Varine Bohan faz uma análise abrangente acerca do patrimônio, apresentando-o em três categorias e definições: “[...] os elementos pertencentes ao meio ambiente, que tornam o local viável para habitar; os saberes e fazeres das comunidades que habitam esse meio ambiente; e os objetos construídos pela mão do homem, desde uma colher até as edificações mais sofisticadas” (VARINE BOHAN,1975 apud DUARTE, 2019, p. 20).

No Brasil, só no final do século XX, com a redemocratização política e o fortalecimento de grupos organizados que buscavam o fortalecimento do direito à memória como elemento de cidadania, é que o conceito de patrimônio começa a ter outros contornos segundo uma perspectiva mais crítica. Nogueira e Ramos Filho (2019) destacam alguns momentos processuais que contribuíram para a ampliação desse conceito no Brasil: 1) momento em que foram privilegiados o patrimônio material e as memórias luso-coloniais até a década de 60; 2) incorporação do conceito de bem natural para o patrimônio com a criação do Centro Nacional de Referência Cultural, em 1975; e 3) reconhecimento e institucionalização das diferenças e do direito à memória da cidadania, preconizadas no artigo n.º 216 da Constituição de 1988.

O patrimônio cultural brasileiro é assim definido no referido artigo da constituição:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;

II – os modos de criar, fazer e viver;

III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. (BRASIL, 1988, p. 100)

O reconhecimento do patrimônio cultural como um direito a memórias de diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, implementado como lei na Constituição de 1988, contribuiu para o fortalecimento de políticas públicas em defesa e em prol da visibilidade de saberes e fazeres de diferentes grupos étnicos- culturais. Na atual legislação, destaca-se o Decreto nº 3551/2000, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, bens que constituem patrimônio cultural brasileiro, e cria o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial (PNPI). Ambos ampliaram a preservação e o registro das formas e expressões, dos modos de vida, de criar e de fazer, bem como dos objetos, artefatos e lugares, salvaguardando bens de caráter processual e dinâmico e que fazem parte do patrimônio cultural brasileiro, ampliando esse conceito, abarcando as nossas diferenças e trazendo à cena manifestações antes silenciadas.

Contudo, esse reconhecimento e as iniciativas de registro e catalogação desse arcabouço patrimonial trazem subjacentemente a necessidade de outros reconhecimentos históricos e de uma política educativa que garanta que a interpretação do patrimônio cultural seja feita, “antes de tudo, ‘com’ e ‘para’ a população local” (NOGUEIRA, RAMOS FILHO, 2019, p.14, destaque dos autores). Implica dizer que o patrimônio cultural, independentemente de ser considerado um patrimônio instituído por algum órgão de proteção patrimonial, só se constitui enquanto memória e história quando valorizado, vivenciado e explorado por seus cidadãos e ressignificado por eles. Conforme aponta Gonçalves,

[...] o patrimônio cultural é derivado da combinação de agentes e ações, de escolhas individuais e decisões coletivas, de procedimentos, recomendações e normas, de circunstâncias históricas: não pode simplesmente ser assumido como um dado natural, e as ações educativas que o tomam como objeto restringem seu potencial quando não explicitam seus condicionantes históricos. (GONÇALVES, 2014, p. 91)

Ao falar da legitimação do patrimônio cultural, a autora chama a atenção para as ações educativas que restringem o potencial desse patrimônio quando apenas mapeiam, identificam, selecionam, estudam e protegem, por meio de tombamentos, de registro ou de outros mecanismos de salvaguarda, mas ignoram os processos sociais de memórias, de representações e agentes que o produzem.

Dessa maneira, as práticas educativas devem também favorecer a reflexão sobre a noção de patrimônio cultural ligada aos valores e significados atribuídos no presente e no passado, para diferentes sujeitos e grupos. Essa noção põe sob suspeição a ideia do processo educativo que opõe educadores e educandos como esclarecidos e não esclarecidos. (GONÇALVES, 2014).

Ao tratar das relações entre a experiência da infância e da cultura, Pereira (2016, p. 48) afirma que “a cultura é ao mesmo tempo o mundo que se apresenta para nós e a forma como esse mundo nos diz quem somos nós”. Dessa maneira, considerar os saberes locais como saberes válidos carregados de sentido e significados junto à educação das crianças, percebendo-as como parte de suas vivências em diferentes contextos, é um dos pressupostos fundamentais para a real valorização do patrimônio cultural de onde se vive.

Buscar articular as experiências e os saberes das crianças, valorizando as manifestações culturais locai se vivenciais, promovendo a integração intergeracional em seus territórios está implicado no Art. 3º das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI):

O currículo da Educação Infantil é concebido como um conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade (BRASIL, 2009, p. 1).

A partir dessa premissa trazida pelas DCNEI, podemos afirmar que dar visibilidade às experiências e aos saberes das diferentes infâncias contribui para a compreensão, no âmbito da educação infantil, de como é possível proporcionar o encontro do patrimônio cultural com a cultura escolar, abrindo trilhas e estabelecendo diálogos com diversos atores, em busca de sentidos.

Infelizmente, temos assistido ao distanciamento entre a atividade de aprender na escola e a vida em toda a sua complexidade e riqueza cultural, artística, cientifica que, como nos diz Niza (1996, apud FOLQUE, 2014, p. 958), cria uma cultura própria e “está em muitos aspetos totalmente afastada da herança social e cultural e das atividades autênticas em que nos envolvemos na vida”. A escola tem criado, ao longo do tempo, um conjunto de atividades que só acontecem na escola e que se manifestam e reproduzem através da produção de materiais didáticos de massa vendidos em todo e qualquer contexto. São exemplos dessas atividades os exercícios desprovidos de significado, como o treino de escrita fazendo páginas de letras ou de números; o treino da coordenação óculo-manual através do colorir entre os traços de figuras pré-desenhadas e promovidas nas apostilhas; a fragmentação da vida e da cultura num planejamento desprovido de sentido social e cultural (aprender as cores pela semana do amarelo, a semana do azul, etc.); a estimulação dos sentidos, um a um, em atividades sensoriais; ou trabalhar as formas geométricas em fichas, perdendo a noção que todos estes conceitos ou dimensões apenas existem como partes integrantes de um todo complexo que é a atividade humana (FOLQUE, 2014).

Aprender se dá por meio da mudança na participação das crianças nas atividades próprias da(s) cultura(s) (LAVE, WENGER, 1991; ROGOFF, 1998), e podemos verificar que “quando a participação legítima periférica dos indivíduos evolui para uma participação e um domínio de aptidões e conhecimentos mais complexos, que são relevantes para a prática da comunidade que lhes permite assumir um papel de participação plena” (FOLQUE, 2017, p. 53, destaque da autora).

O estado de Alagoas, segundo o mapeamento do Patrimônio Cultural de Alagoas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)[4], embora seja o segundo menor estado do Brasil, detém um amplo e rico patrimônio imaterial derivado das suas vertentes étnicas: brancos, indígenas e negros. Bumba meu boi, Guerreiro, Coco de Roda, Pastoril, Fandango, Cavalhada, Chegança, Maracatu, Reisado são exemplos dentre as 30 manifestações que compõem o seu folclore.

Penedo, como um dos municípios mais antigos do estado, para além do patrimônio histórico traduzido no arcabouço arquitetônico ainda conservado e tombado pelo IPHAN/AL em 1996, também possui uma vasta riqueza no que diz respeito ao patrimônio cultural. No Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) do IPHAN (2015), foram identificadas as seguintes referências culturais no município de Penedo: cinco celebrações – Festa do Bom Jesus dos Navegantes, Festa da Padroeira Nossa Senhora do Rosário, Festa de Santo Antônio, Lavagem do Beco e Corrida de Embarcações; duas edificações – Casa de Axé do Pai de Santo Bobô e Casa de Farinha de Manoel Vieira (povoado Tabuleiro dos Negros); cinco formas de expressão – Guerreiro, Pastoril, Coco de Roda, Banda de Pífano e Lenda do túnel do Convento Nossa Senhora dos Anjos; dois lugares – Feira Livre e Várzea da Marituba; e treze ofícios – Modos e saberes da pesca, Caça de jacaré, Modo de fazer culinário, Moqueca de jacaré, Macasada e quebra-queixo, Modos e práticas da rizicultura, Artesanato com palha de Ouricuri, Ofício de santeiro, Modo de fazer escultura em pedra, Artesanato de miniatura em madeira, Modo de fazer bonecos de carnaval, Práticas e modos de construir em taipa e Ofício de tirador de coco.

Diante dessa diversidade de saberes e fazeres, que certamente há de ser muito maior, ainda invisibilizados ou silenciados, em sua maioria oriundos de origem africana e indígena que resistem, ainda hoje, no município de Penedo, cabe perguntar: esses saberes e fazeres estão sendo acessados como patrimônios culturais nos currículos escolares, como componentes importantes? Estão sendo valorizados como elementos que interligam gerações, conectam memórias e ressignificam práticas sociais locais?

Em levantamento realizado na cidade de Penedo, antes da nossa entrada em campo com 190 profissionais da educação infantil (coordenadores, professores e auxiliares), por meio de um questionário com oito questões relacionadas à temática criança, cidade e patrimônio, verificou-se que a aproximação das crianças dos saberes e fazeres locais via instituição escolar era incipiente. Apenas 40% das respondentes afirmaram já terem realizado algum trabalho com as crianças voltado para o patrimônio imaterial, e apenas 3,8% indicaram estabelecer algum vínculo com grupos culturais da cidade.

Neste artigo, trataremos de uma das dimensões que se destacou nas saídas com as crianças nas ruas da cidade de Penedo, AL, ao longo de uma pesquisa de cunho etnográfico, que evidenciou a força da cultura popular e a valorização da cultura local como esteio para a participação, a significação e/ou a ressignificação do patrimônio cultural pelas crianças. A seguir, apresentamos o recorte da referida pesquisa e cinco episódios que deram visibilidade ao patrimônio cultural latente nas ruas de Penedo, AL.

A PESQUISA

O recorte da pesquisa de que se trata o artigo, refere-se à etapa que envolveu duas ações interrelacionadas que se desenvolveram concomitantemente. Uma, refere-se ao desenvolvimento de um projeto denominado A cidade de Penedo, com objetivo de promover saídas na cidade e de ocupar seus espaços. A outra ação refere-se à realização de um projeto de correspondência entre as crianças de duas cidades históricas, Penedo, AL, e Évora, em Portugal, denominado Projeto cá e lá, que tinha como objetivo comunicar características de suas cidades às crianças dos distintos países. Esses projetos contaram com a colaboração de uma professora que havia se destacado na realização do diagnóstico por já promover algumas atividades que envolviam saídas com as crianças pela cidade. Ambos os projetos envolveram duas turmas de crianças de 5 e 6 anos de duas escolas municipais distintas da cidade de Penedo, uma situada no centro histórico da cidade (turma A) e outra em área rural do município (turma B), sob a responsabilidade dessa mesma professora. No decorrer do projeto A cidade de Penedo, essas crianças trocaram correspondências com duas turmas de crianças de 3 a 6 anos de dois jardins de infância.

Em Penedo, essas duas ações ocorreram no período de outubro a dezembro de 2019 com uma periodicidade de uma a duas vezes por semana e se concretizaram por meio de atividades e saídas na/pela cidade, planejadas e organizadas com a colaboração da professora das duas turmas de crianças. Algumas das saídas às ruas relativas ao projeto de correspondência não foram definidas a priori, mas surgiram das interlocuções que foram se desencadeando a partir das perguntas e curiosidades feitas pelas crianças por meio das cartas trocadas e do grupo de WhatsApp das professoras envolvidas nos dois países. Essas comunicações possibilitaram que desenvolvêssemos com as crianças proposições que incluíram: visitas contextualizadas aos espaços patrimoniais materiais; descobertas do patrimônio imaterial; contato com o patrimônio natural da cidade; exploração dos espaços públicos abertos; e incursões à deriva pela cidade. Dessa forma, a correspondência entre as turmas de crianças serviu como uma metodologia para ampliar o olhar das crianças para a sua própria cidade.

Ambos os projetos foram apresentados às crianças das duas escolas de Penedo, juntamente com a notícia de que a respectiva professora iria a Portugal, pois naquele momento tinha sido selecionada para participar do Programa de Residência Pedagógica e Cultural em Évora[5].

Um total de 11 saídas foram realizadas com as crianças das duas escolas de Penedo. Com a turma A, composta de 20 crianças de 5 a 6 anos, foram realizadas nove saídas a pé para os seguintes lugares: feira livre; praça do coreto Jácome Calheiros; Correios; Teatro Sete de setembro; loja de artesanato Zureta; orla do Rio São Francisco; saída à deriva no entorno da escola; saída à deriva no centro histórico; e Casa do Patrimônio. Vale ressaltar que a localização da escola no Centro Histórico possibilitou que as saídas ocorressem a pé, sem a necessidade de fazer uso do ônibus escolar.

Com as crianças da turma B, composta de 7 crianças da escola localizada na zona rural da cidade, foram realizadas apenas duas saídas: a primeira para o Balneário Santa Amélia, e a segunda, com toda a escola, para o Circuito Penedo de Cinema[6], ambas com uso do ônibus escolar. Foram programadas ainda mais duas saídas que não foram realizadas: a ida aos Correios e a visita à Casa de Farinha. No primeiro caso, segundo a coordenação da escola, havia dificuldade de ajustar o horário do transporte; no segundo, pela não localização por parte da professora de uma Casa de Farinha em funcionamento no período em que a pesquisa foi realizada.

Para esta etapa da pesquisa, foram utilizados como instrumentos de produção de dados: registros de áudio, fotos e vídeos, diário de campo, além de duas entrevistas semiestruturas com a professora partícipe da pesquisa e com a técnica da Secretaria Municipal de Educação, que coordenava a educação infantil do município de Penedo.

Para este artigo, foram selecionados cinco episódios que se revelaram como encontros que possibilitaram um desvelamento da cultura local latente na vida cotidiana, nas ruas e nos diversos espaços territorializados pelas crianças e que, muitas vezes, são silenciados ou invisibilizados nas práticas educativas escolares. Os quatro primeiros episódios ocorreram com as crianças da turma A, e o último com a turma B, conforme Quadro 1.

Quadro 1
Patrimônios culturais vivenciados com as crianças nos percursos realizados nas ruas de Penedo/Alagoas

elaborado pelas autoras (2021).

MANIFESTAÇÕES POTENCIALIZADORAS DA CULTURA POPULAR VIVENCIADAS PELAS CRIANÇAS A PARTIR DO SEU TERRITÓRIO

Neste tópico, apresentamos os cinco episódios selecionados que dimensionam a força da cultura local e que são considerados esteio para a participação, significação e/ou ressignificação do patrimônio cultural pelas crianças.

O primeiro episódio refere-se à ida à feira livre da cidade. Segundo o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) do IPHAN (2015), a feira livre de Penedo é um patrimônio cultural inventariado como um lugar da tradição popular. Entretanto, essa foi a primeira vez que as crianças foram a esse lugar como uma atividade escolar: havia o intuito de comprar frutas para fazer uma salada de frutas na escola. Nos deparamos com toda a singularidade presente naquele espaço, no qual se misturam diversos tipos de mercadorias, pessoas, trocas e saberes.

As crianças tiveram oportunidade de consumir, comprar e explorar frutas e verduras, assim como experimentar, negociar com os feirantes, encontrar familiares e personalidades icônicas da cidade, como a Poderosa, um animador de festas que se veste de Boneca e que fez questão de anunciar a presença das crianças na Feira no alto-falante, e Dona Neide da Banana, que tem uma barraca de artesanato de palha tradicional. Também se depararam com o ofício de sapateiro, pois Maria Vitória (5 anos) teve seu sapato descolado durante a passagem pela feira, e foi preciso recorrer a esse serviço, encontrado por Victor (6 anos). O sapateiro não cobrou pela gentileza.

Um exemplo de interação com os feirantes ocorreu quando o Alejandro (5 anos), que foi comprar bananas e a feirante lhe deu meia dúzia a mais que a dúzia que havia comprado e ele ficou feliz ao pagar apenas R$4,00, agradecendo à feirante pela gentileza. Circular livremente pela feira no meio das barracas com um grupo de crianças pequenas chamou a atenção dos feirantes e transeuntes, que questionavam de que escola eram e porque estavam na feira, demostrando estranhamento por perceberem aqueles corpos que se encontram invisibilizados nos espaços da educação infantil.

Em pesquisa intitulada A Feira no Centro Histórico do Penedo: um cotidiano urbano (MORAES, 2013), localizada no acervo de outro projeto[7] do mesmo programa de pesquisa e extensão mencionado anteriormente, a autora aponta a Feira Livre do Centro Histórico de Penedo como um traço da identidade local que se faz presente desde suas primeiras manifestações, no início do século XIX, até os dias atuais. Para a autora, que retrata a feira na perspectiva da arquitetura urbana, é preciso que a Feira Livre do Centro Histórico de Penedo, enquanto patrimônio cultural, seja percebida de outro ponto de vista, ou seja, há necessidade de se atentar ao contexto das práticas sociais que a geram e que lhe conferem sentido, pois é por meio das práticas culturais costumeiras que os agentes sociais tendem a atribuir novos sentidos aos itens culturais patrimoniados ao reinseri-los em seu cotidiano, podendo reiterar ou modificar os sentidos preexistentes.

Se considerarmos os objetivos preconizados no Artigo 3ª dos DCNEI (BRASIL, 2009), que fomenta o estreitamento dos laços entre a vida da escola e a vida fora dela, a vivência na Feira Livre oportuniza experiências ricas de interação com os agentes do lugar, encontros intergeracionais com feirantes, transeuntes e familiares. Segundo Nogueira e Ramos Filho (2019), se faz necessário pensar os silêncios e ocultamentos, assim como o que deve ser protegido e valorizado dentro do que se considera patrimônio e que sempre esteve presente, mas que não era considerado como tal.

O segundo episódio decorreu de uma saída à deriva pelas ruas do Centro Histórico de Penedo. No caminho, houve um encontro fortuito com um músico amador cantando na porta da sua casa; o som da cantoria advinda do violão chamou a atenção das crianças que entusiasmadas pararam em frente à calçada onde o músico estava. Ao ser perguntado se poderíamos sentar para ouvir à música, o músico disse que sim, e continuou a tocar o que estava tocando. Logo em seguida, solicitou que as crianças sugerissem algumas músicas do repertório delas para que ele acompanhasse. Elas cantaram algumas canções que costumavam entoar na escola, como O sapo não lava o pé, Borboletinha, dentre outras. As crianças ficaram um bom tempo cantarolando na calçada com o músico e depois seguiram o caminho. Foi um momento ímpar, genuíno e culturalmente significativo, por proporcionar às crianças vivenciarem um hábito cultural dos moradores de ficarem sentados à porta de suas casas, observando o movimento das ruas.

Se considerarmos que nas práticas escolares usuais na educação infantil as crianças passam grande parte de seu tempo emparedadas dentro dos muros da escola, fica a pergunta: como esse tempo é usado? Como articular as intencionalidades pedagógicas com os hábitos culturais como esse de cantar e tocar violão na porta de casa? Entendemos que privilegiar memórias afetivas nos diferentes espaços do território pode colaborar para o fortalecimento do sentimento de pertencimento ao lugar.

O terceiro episódio ocorreu em uma saída para uma loja de artesanato da cidade, com o objetivo de comprar lembranças que seriam enviadas às crianças de Évora por intermédio da professora que participaria da Residência Pedagógica e Cultural. Tendo em vista a correspondência com as crianças de Portugal, uma ação realizada com as crianças da turma A, na qual, a partir da contação da lenda da Carranca[8], o grupo foi mobilizado a conhecer uma tradição local que envolve também um modo de fazer, o esculpir em madeira. Para que as crianças eborenses pudessem conhecer esse artefato (a carranca) e sua lenda, foi programada uma visita à loja de artesanato Zureta, onde é possível encontrar várias peças de carranca, além de comprar amostras em miniatura, escolhidas para serem levadas a Portugal.

Em Évora, a referida professora contou a lenda para a turma de crianças do jardim de infância com o qual estabeleceu correspondência. Segundo a professora, as crianças eborenses ficaram curiosas e atentas à história e repetiam o nome Carranca várias vezes, achando o soar engraçado, o mesmo impacto provocado nas crianças no Brasil, que pediram, inclusive, para aprender a escrever essa palavra. Para as crianças de Portugal, essa aproximação quanto à cultura penedense significou o despertar do imaginário de uma expressão cultural demarcada por características de saberes e fazeres locais e regionais que podem aguçar curiosidades atuais ou futuras a respeito das nossas histórias e trocas de saberes.

No quarto episódio, as crianças se depararam com a música e o teatro de uma vez só, por meio de uma experiência imprevista, não programada. Decorreu da saída aos Correios para que fosse postada uma carta direcionada às crianças de Évora. Em nosso planejamento, estava prevista a apreciação da exposição de fotos de animais da Mata Atlântica no hall de entrada do Teatro 7 de setembro, na calçada oposta à calçada dos Correios.

As crianças apreciavam as fotos, quando algumas delas começaram a perceber uma movimentação que vinha de dentro da área interna do teatro e, então, começaram a se amontoar debruçados na escadaria que dava entrada ao pórtico do grande salão do teatro. No palco, estava ocorrendo o ensaio de uma peça teatral. As crianças ficaram ali abaixadas, ouvindo os gracejos que saiam do palco, quando veio em nossa direção o diretor do espetáculo que, gentilmente, perguntou se gostaríamos de adentrar o teatro e acompanhar o ensaio. As crianças, de prontidão, aceitaram o convite e assim entraram para apreciar o ensaio do espetáculo.

Tratava-se de uma peça teatral denominada O Território é um Livro, dirigida por Alê Santos, diretor da Companhia de Teatro Lampejo, um dos grupos de teatro amador da cidade de Penedo. O espetáculo retrata a feira livre de Penedo em sua essência e homenageia Neide da Banana, que é uma das feirantes mais antigas da região e é dona de uma das barracas que as crianças visitaram no primeiro encontro mencionado.

O artista resumiu o espetáculo em poucas palavras para as crianças, que naquela altura já estavam devidamente acomodadas nas poltronas do teatro. Elas acompanharam o ensaio absortas e visivelmente empolgadas quando uma das personagens entoou, ao som de um pandeiro, uma música em ritmo de Coco de Roda, que trazia no refrão o chamamento que se faz na feira livre: “Quem quer comprar, quem quer comprar!”; um refrão bem ritmado e que foi acompanhado pelas palmas das crianças.

Ao término do ensaio, que se tratou apenas de um recorte para a apreciação, em primeira mão, das crianças convidadas, a turma agradeceu e seguiu caminho. Foi surpreendente perceber como a música ao ritmo de Coco de Roda foi cantada pelas crianças, espontaneamente, por todo caminho no retorno à escola. Além do refrão da música ter sido cantado durante todo o trajeto do retorno, no compasso do coco de roda, a partir daquele dia tornou-se a música mais cantada pelas crianças nas rodas iniciais de contação de história, na fila do lanche, em momentos de espera na sala, nas nossas saídas às ruas, sendo o ritmo batucado nas carteiras da sala em vários momentos. Foi um momento ímpar, tanto pelo conteúdo do espetáculo, que parecia traduzir nossa experiência recente na Feira Livre com as crianças, como também contemplava os elementos referentes à cultura da tradição popular e da vivência na cidade como fundantes na formação da identidade cultural e do pertencimento local.

O quinto e último episódio aqui relatado denota a necessidade de as crianças externarem suas vivências e suas histórias e pode ser resumido em uma das frases contidas no espetáculo descrito acima: “Cada canto tem uma história e alguém para nos contar”.

Esse episódio decorreu de uma roda de conversa realizada com as crianças da turma B para responder à uma carta das crianças de Évora em que indagavam sobre o que tinha na cidade das crianças dessa turma. As crianças penedenses se voltaram para os lugares do povoado de onde eram oriundas e os espaços da escola que queriam mostrar. Sugeriram o campinho localizado nos fundos do terreno da escola, onde tinha uma enorme jaqueira e onde gostavam de estar; a horta da escola; a frente e o muro da escola.

Fora do âmbito escolar, sugeriram o balneário Santa Amélia, o qual já tinham visitado; a barragem da Usina Paisa, que fica no povoado vizinho de Santa Amélia; e, por fim, uma das crianças, Carlos Gabriel (6 anos), sugeriu a Casa de Farinha. Foi retrucado pelo Jhony (6 anos), que nesse momento fez o seguinte comentário: “Não dá para ir lá não, agora. Tá sem vida!”. A professora, percebendo o interesse das duas crianças, pergunta às demais se elas também gostariam de mostrar a Casa de Farinha para as crianças portuguesas; algumas crianças acenaram positivamente. Carlos Gabriel disse: “Vamos, sim!”. A professora, retomando a fala de Jhony, disse que só poderíamos ir quando estivesse com vida, ou seja, funcionando, e teríamos que solicitar o transporte à coordenadora da escola. Sugeriu que fôssemos em grupo pedir o transporte à coordenadora, na secretaria da escola. As crianças concordaram, e Gabriel se ofereceu para fazer o pedido. Já na secretaria, transcorreu um longo diálogo que expressava seu conhecimento sobre o processo da produção da farinha de mandioca, como podemos verificar a seguir:

Gabriel: Bom dia, Tia Eva!

Eva: Bom dia!

Gabriel: Porque, assim, nos quer que a senhora arranje um motorista, para o motorista levar nós para conhecer a casa de

farinha, pra fazer farinha...

Eva: Vocês querem um transporte para levar vocês para a casa de farinha. Tá certo, vamos anotar todos os pedidos. Tá bom?! Gabriel balançou a cabeça que sim.

Professora: Mais alguma coisa, Gabriel?

Gabriel acenou negativamente.

Professora: Então vamos agradecer à tia Eva?!

Crianças: Obrigada!

Professora: Tia Eva, depois você responde para a gente qual é

o dia que o motorista pode, que você pode?

Eva: Olhe, para facilitar e não precisar fazer pedido de motorista, se o meu carro der para fazer isso eu me disponibilizo. Professora: Cabe no carro da tia Eva, nós duas e vocês todos? Perguntou para as crianças.

Crianças pensativas!

Eva: É hoje? Onde fica? Professora: Onde fica, Gabriel?

Gabriel ficou calado e Jhony levantou a mão. Professora: Explique, Jhony...

Eva: Me explique, eu não sei, eu também quero conhecer.

Jhony: É lá na Santa Amélia!

Gabriel: Tem um portão assim, aí alguém desce para abrir, aí

eu abro, a senhora entra, aí tem uma casa assim e outra assim,

aí tem um pé de coisa, aí nós entra dentro de casa... Jhony: Tem uma em cima e outra embaixo... Professora; E já tá lá, né?

Gabriel: Aí tem umas coisas lá, tem dois fogão, tem um fogão assim (fazendo o gesto circular). E outro assim! (outro gesto circular).

Professora: E esse fogão faz o quê?

Jhony: Faz farinha.

Professora: Faz farinha nesse fogão?

Gabriel: Não, é assim...

Eva: O que cozinha para fazer a farinha?

Gabriel: Nós pega, nós pega mandioca, bota no coisa e vai fazendo assim, e a mandioca vai descendo (começa a mexer o corpo para mostrar como amassa a mandioca), depois nós pega, bota no caixão, aí nós vai fazendo a farinha, vai botando no fogo, vai fazendo assim (fazendo gestos de quem está mexendo uma panela), aí vai coisano.

Professora: E quando é que sabe que a farinha está pronta?

Gabriel ficou pensativo.

Professora: Hein, Alan, quando é que sabe que a farinha está

pronta?

Allan: Não sei!

Professora: Quem é que sabe?

Sofia: Tira.

Professora: Tirar é provar, né?

Sofia balançou a cabeça que sim. Allan: Tá muito quente.

Eva: Ah, gente, já estou curiosa!

Professora: E o cheiro é bom?

Gabriel: Não, é assim! Pega a mandioca, bota no saco, bota no

coisa, baixa o pau e começa a coisar (começou a remexer o corpo todo para demostrar como mexia a mandioca). Crianças: (Risos)

Professora: E vai mexendo (imitando o gesto do Gabriel).

Sofia: E começa a bater...

Gabriel: Não! É assim não... (Fez o gesto de apertar) E aí vai coisando (mexendo o corpo novamente).

Eva: Ah, estou adorando!

Gabriel: Pega um coisa de um saco e vai coisando, tira de outro

e bota no outro (fazendo os gestos), aí chega desce o leite, aí tira, bota no coisa, aí tira do saco, bota dentro, raspa, aí quando o leite sair, pega e bota no coisa, aí bota mais outro saco, coisa, aí consegue descer, aí faz a farinha.

Professora: Mas pega a farinha e faz o quê? Gabriel: Bota um pouquinho de farinha. Professora: Aí bota no forno?

Gabriel: É!

Professora: Aí vai mexendo... Como é que mexe?

Gabriel: Mexe assim, tem um pau, que ele é um rodo. Faz assim, faz assim... (gesticulando como se estivesse puxando o rodo).

Professora: Aí quando está pronto, aí tira?

Gabriel: Pega uma folha de bananeira, vai tirando as folhas de bananeira, vai botando em umas tiras, assim... (mostrando gestualmente como é), vai cortando assim, assim, vai botando o bolo...

Professora: Aí já é o bolo, né? Gabriel balança a cabeça que sim. Eva: É uma delícia esse bolo!

Professora: Então nós vamos aguardar Tia Eva dizer que pode e nós vamos, né?

Gabriel: É!

Professora: Agradeça à tia Eva!

Gabriel: Obrigada, tia Eva.

Eva: A gente vai ver o dia, pode ser semana que vem?

Crianças: Pode!

Eva: Pronto, então a gente vai escolher um dia e a gente vai,

certo?! Eu também quero conhecer, quem está curioso?

Crianças: EU!!!

[...]Professora: A gente já organiza tudo, né?

Gabriel: E eu vou na frente.

Professora: Ah, entendi! Mas, rapaz!!!

Eva: Me dá um beijo!

Gabriel beija Eva.

Professora: Obrigada, tia Eva, pela atenção. Vamos embora!

As crianças se despediram e voltamos para a sala (AMARAL, 2021, p. 290-291.).

O episódio nos mostra a potência da cultura popular em relação ao modo de fazer, apresentado na narrativa de Carlos Gabriel (6 anos), que busca na memória e expressa com os movimentos do corpo o modo de manipulação da mandioca e todo o processo de fazer a farinha até chegar à confecção do bolo enrolado na casca da bananeira. Enquanto narrava, Johny e Sofia, que também compartilhavam desse saber, o apoiavam ou discordavam dele em algum ponto. Esse apoio também se manifestou na interlocução da professora, instigando-o a falar mais e, como também era conhecedora desse modo de fazer, contribuía com conectivos para ajudá-lo a comunicar os seus saberes. Por outro lado, a escuta atenta da coordenadora pedagógica também ajudou Gabriel a verbalizar e expressar o seu desejo legítimo de saída para mostrar às demais crianças e à professora a casa de farinha que tanto conhecia.

Infelizmente, essa ida não se concretizou; não foi encontrada nenhuma Casa de Farinha “com vida” para ser visitada pelas crianças na semana seguinte, e nas outras semanas, já em dezembro, a escola foi invadida por ensaios e atividades finais de outros projetos e trabalhos natalinos.

Nesse episódio foi possível revelar a intenção da professora, que para além de valorizar os saberes trazidos pelas crianças do território local, foi de mobilizar a gestora para a importância dada por ela e pelas crianças com relação às saídas, já que, nessa escola, as saídas para lugares distantes eram sempre um impeditivo, relacionado, às vezes, à questão do transporte, à mudança de rotina ou ao não envolvimento da coordenação pedagógica com essa temática.

Esse episódio também contribuiu para o despertar, pelo menos momentâneo, da coordenadora pedagógica para a temática. No nosso penúltimo dia na escola, ela entregou para a professora um banner que havia encontrado no depósito da loja de seu esposo e que achou interessante, pois retratava saberes e fazeres de um povoado vizinho ao da escola denominado Cerquinha das Laranjeiras. A professora levou o banner para a sala e muitas crianças reconheceram os espaços que estavam ali retratados. Inclusive, Arthur Miguel (5 anos), morador daquele povoado, reconheceu moradores locais nas fotografias e até mesmo sua casa. O banner foi entregue à professora para ser usado em outros momentos, em anos seguintes.

O processo de confecção da farinha é encontrado no acervo de outra pesquisa do projeto mencionado anteriormente intitulada A prática educativa da mandiocada nas comunidades quilombolas Tabuleiro dos Negros e Sapé – Alagoas (ARAÚJO, 2019). Mandiocada é o termo que se refere ao processo que vai da colheita da mandioca até o seu estado final, que é o armazenamento da farinha pronta para consumo. Entre o início e o fim, a mandioca passa pelas etapas descritas por Gabriel em sua narrativa: raspagem, ralagem, descanso no paiol, prensagem, peneiragem, cozimento, peneiragem novamente e armazenamento do produto.

Ao buscar compreender os saberes tradicionais dessa prática cultural nas comunidades quilombolas remanescentes em dois municípios alagoanos, Penedo e Sapé, a autora identificou a presença das crianças nesse processo.

As crianças não são excluídas de nenhuma atividade, mas não tem as mesmas responsabilidades dos adultos. Entre as menores, observamo-las ajudar a recolher as cascas em cestas, distribuir a água ou lanche entre as (os) que trabalham ou ainda raspar a mandioca, mas não todo o tempo. A sua mão-de-obra estava presente sempre em caráter de auxílio e nunca em atividade contínua. A própria forma de trabalhar, assim, adquire um caráter de brincadeira, podendo ser abandonada quando a criança se cansar. Elas mesmas, em outros momentos, poderiam ficar ao lado de suas mães ou avós apenas observando-as, ou brincavam de correr com as outras ao redor. Os saberes aqui são passados a elas pela vivência corporal, em que os olhos, ouvidos e corpo completo vivenciam experiências e as crianças reproduzem da sua maneira. Atentamos para um momento em que, ao final da raspagem e ralagem da mandioca, quando o dia termina, Luzinete e Daniel começam a cantar e dançar, junto com os filhos. Não foi uma roda de samba, mas momentos de dança entrecortados por risadas das pessoas que observavam ao redor, no caso dos homens, já mais alegres pela cachaça. Uma das crianças que pararam de brincar de correr entre si para observar o canto e dança dos adultos tinha um semblante de seriedade e concentração. [...] Importante também observar a atração que o canto e dança provocou nos pequenos e pequenas: sempre que os mestres Luzinete e Daniel começavam, elas se aglutinavam ao redor, e repetiam alguns versos depois entre elas. Não escutamos nenhuma palavra de proibição às crianças. Elas portavam facas quando queriam, assim como o carro de mão ou outros instrumentos pesados, e não presenciamos nenhuma sofrer algum acidente. Escutamos que já aconteceram acidentes como uma pequena de nove anos ter se cortado com a faca de raspagem, mas a forma dos adultos lidarem com o acontecimento foi de cuidar do machucado, mas com a noção de que, quando sarar, ela voltará a praticar o ofício, dessa vez pensando no que a fez se cortar para evitar outro acidente. Algumas tarefas eram disputadas por elas, como a de recolhimento das cascas com uma vassoura para folhas. Todos os instrumentos utilizados por elas eram os mesmos dos adultos, exceto algumas facas, que poderiam ser menores, de acordo com a faixa etária da pessoa. Elas não levaram brinquedos para o momento. (ARAÚJO, 2019, p. 92 e 93)

O processo narrado pela autora pôde ser confirmado através da narrativa trazida por Gabriel e ilustra o que está sendo posto neste artigo sobre o conceito de patrimônio cultural e sua articulação com a prática educativa na educação infantil. Traz como elemento balizador e reflexivo para a prática escolar a consideração de uma outra prática cultural e pedagógica calcada na oralidade e, como afirma Araújo (2019, p. 102), “uma prática educativa não dominada pela racionalidade moderna, a Mandiocada é transmitida através da fala, da observação e da experiência. Ensinar, neste contexto, está relacionado a tornar-se pessoa, a incluir-se no mundo”.

Para o geógrafo Milton Santos (2007), a história do homem se realiza plenamente a partir das manifestações existenciais no seu território, no seu lugar de origem. Partindo desse pressuposto, conhecer as manifestações que traduzem a nossa existência, nossos modos de vida, de subsistência e, mais do que isso, saber compartilhá-las é uma forma de garantir que nossa identidade cultural se fortaleça e que nosso espaço de origem possa ser valorizado.

Abrir espaço na escola, desde a infância, escutando as histórias e memórias das crianças, contribui para fortalecer os saberes próprios de seus territórios, como também suas identidades culturais, pois, como mostrou Carlos Gabriel (6 anos), ao descrever, detalhadamente, o processo de fazer farinha, as crianças produzem narrativas acerca das suas próprias memórias e identidades coletivas. Cabe também à instituição de educação infantil e seus profissionais acolher os saberes das crianças, reconhecê-los como importantes e significativos, assim como ampliar o seu repertório, contribuindo para que possam melhor nomear as tradições.

CONCLUSÃO

Conhecer as manifestações que traduzem a nossa existência, nossos modos de vida, de subsistência e, mais do que isso, saber compartilhá-las, é uma forma de garantir que nossa identidade cultural se fortaleça e que nosso espaço de origem possa ser valorizado.

De maneira geral, os momentos/episódios nos mostram que, para além da valorização do patrimônio cultural, vivenciar a cidade e seus territórios, no âmbito da educação infantil, requer investimento em dois elementos fundamentais. O primeiro diz respeito à força da vivência de experiências reais que se reflete na compreensão de que estar nas ruas com as crianças constitui uma perspectiva de interação e interlocução com a cultura presente em qualquer território. O segundo é a escuta das crianças e seus interesses, considerando as crianças como cidadãos que têm direitos e podem opinar sobre suas infâncias. Oportunizar que as crianças vivam suas infâncias, com todas as possiblidades constitui uma perspectiva intrínseca à educação infantil.

Os momentos/episódios demonstram que os interesses e percepções das crianças estão atrelados às suas vivências reais e, portanto, perpassam manifestações culturais que são expressadas e vividas nos seus territórios. Dessa maneira, a cultura latente percebida e que faz parte do “espaço banal” ou da “horizontalidade” (SANTOS, 1998) não pode ser silenciada nas práticas pedagógicas da educação infantil. As culturas locais devem ser valorizadas e inseridas como patrimônios a serem valorizados e ressignificados.

Assim, ouvir as crianças e dar a elas a oportunidade de viver experiências reais na cidade de Penedo contribuiu para a compreensão, no âmbito da educação infantil, de como podemos proporcionar o encontro entre a cidade e o patrimônio cultural em seus diferentes aspectos. Com a cultura escolar abrindo trilhas e em diálogo com diversos atores, em busca de sentidos, ajuda na participação da criança com toda a sua “positividade” (ABRAMOWICZ, 2011), tanto na construção da obra da cidade quanto na preservação e consequente renovação do patrimônio cultural do seu território.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
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AMARAL, J. C. A criança, a cidade e o patrimônio no âmbito da educação infantil: identidade cultural, pertencimento e participação. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Gradução em Educação, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2021.
ARAÚJO, L. G. de. A prática educativa da mandiocada nas comunidades quilombolas Tabuleiro dos Negros e Sapé – Alagoas. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Sergipe, São Cristovão, 2019.
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HADDAD, L.; BEZELGA, I.; FOLQUE, M.A.; AMARAL, J.C. Projeto A criança, a cidade e o patrimônio: diálogos com os saberes e fazeres das comunidades penedense e eborense. (No prelo, 2021).
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Notas
Notas
[4] Informação disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/959/ Acesso em 03/04/2021.
[5] Esse programa constitui a segunda etapa do projeto A criança, a cidade e o patrimônio que consistiu na imersão de 15 profissionais do município de Penedo em instituições de jardins de infância eborenses cooperantes da Universidade de Évora que desenvolvem trabalho com a cidade/comunidade, habitando a cidade e o seu patrimônio numa relação cotidiana. A residência envolveu a imersão dessas profissionais em instituições de educação infantil eborense para conhecer o cotidiano das práticas pedagógicas, o acompanhamento das crianças em suas saídas pela cidade, a participação em eventos oferecidos na Universidade de Évora e vivências em locais culturalmente relevantes do ponto de vista do patrimônio cultural.
[6] Evento histórico realizado entre as décadas de 1970 e 1980 e resgatado há quatro anos. É realizado sempre no mês de novembro. Para mais informações, ver: https://circuitopenedodecinema.com.br/. Acesso em: 25 abr. 2021.
[7] Projeto intitulado A criança, a cidade e o patrimônio: construindo um acervo dos saberes e fazeres da comunidade penedense (HADDAD, 2020) é voltado à realização de um levantamento da produção acadêmica sobre o patrimônio cultural da cidade de Penedo, AL no período de 2013 a 2020.
[8] Escultura que imita uma cabeça humana ou de animais utilizada nas embarcações do Rio São Francisco.
Quadro 1
Patrimônios culturais vivenciados com as crianças nos percursos realizados nas ruas de Penedo/Alagoas

elaborado pelas autoras (2021).
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