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FOTOGRAFIA E ESTÉTICA PARA A PEDAGOGIA DA IMAGEM
PHOTOGRAPHY AND AESTHETICS FOR IMAGE PEDAGOGY
Revista de Educação Pública, vol.. 30, 2021
Universidade Federal de Mato Grosso

Artigos

Revista de Educação Pública
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
ISSN: 0104-5962
ISSN-e: 2238-2097
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 30, 2021

Recepção: 14 Dezembro 2020

Aprovação: 12 Junho 2021


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: Neste ensaio abordamos o tema da pedagogia da imagem e intencionamos responder à se- guinte questão: o que revela a fotografia para uma pedagogia da imagem? Ao examinarmos a imagem técnica e dialética amparados na filosofia de Vilém Flusser e Walter Benjamin temos como objetivo estabelecer uma relação entre imagem fotográfica, estética e pedagogia. Como resultado, argumentamos que, mesmo na incessante reprodução técnica, enxergamos caminhos para uma pedagogia da imagem a partir da fotografia quando esta tem o poten- cial de ecoar além da técnica e dos aparelhos fotográficos, possibilitando processos de cria- ção e imaginação que superam a vida automa- tizada pelos aparelhos.

Palavras-chave: Imagem Técnica, Fotografia, Imagem dialética, Pedagogia.

Abstract: In this essay we approach the theme of image pedagogy and intend to answer the following question: what does photography reveal for an image pedagogy? When examining the technical and dialectical image supported by the philosophy of Vilém Flusser and Walter Benjamin, we aim to establish a relationship between photographic image, aesthetics and pedagogy. As result, we argue that, even in the incessant technical reproduction, we see ways for a pedagogy of image from photography, when it has the potential to echo beyond the technique and photographic devices, enabling creation and imagination that overcome life automated by gadgets.

Keywords: Technical Image, Photography, Dialectical Image, Pedagogy.

INTRODUÇÃO

A palavra “lugar” significa delimitar um espaço, marcar uma posição. O lugar que escolhemos é a fotografia, onde deixamos muitos espaços em branco para análise, fazendo desse local uma pincelada com tinta-pensamento em uma tela em branco. A nossa tela de exposição é a educação. Aqui, a abordagem sugere educação estética e tem como fio condutor a dialética da imagem e suas potencialidades pedagógicas. Para dar movimento a essa cena, buscamos uma filosofia da fotografia com Walter Benjamin e Vilém Flusser, que pensaram a imagem para além do que ela foi programada. Afinal, o que pode a fotografia?

Pretendemos, neste ensaio, esboçar um breve mapa filosófico das imagens técnicas, focando na sua estética, em seus reflexos dentro da sociedade industrial e capitalista e em suas potencialidades como elemento essencial de comunicação na contemporaneidade. Desse modo, este ensaio trata da fotografia como uma imagem técnica e de seus possíveis desdobramentos no processo de um desejo de pedagogia da imagem. Para que aconteça um discurso reflexivo entre espectador/estudante e imagem, ela deve conter algo que vá além do que é proposto pelo aparelho fotográfico.

Como parte do referencial teórico, nos apoiaremos em Walter Benjamin, discutindo conceitos de magia e imagem dialética relacionados à fotografia. A imagem fotográfica, além do seu caráter documental, codifica o mundo e nos dá a possibilidade de alcançarmos outros níveis de pensamento; um pensamento reflexivo a partir de códigos inscritos nas imagens. A partir de Vilém Flusser, buscamos mobilizar os conceitos de imagem técnica, embriaguez criadora, estética da superfície, entre outros correlacionados com a fotografia e seus possíveis desdobramentos no processo do desejo de pedagogia da imagem.

Diante da diversidade de perspectivas para abordar o tema em questão elegemos a seguinte questão problema para nossa investigação: o que pode a fotografia para uma pedagogia da imagem?

Como objetivos para o presente ensaio, apontamos: conceituar fotografia e imagem técnica a partir do pensamento de Vilém Flusser e Walter Benjamin, relacionar conceitos desses autores com a pedagogia da imagem e identificar aspectos de convergência entre ambos quanto a quesitos estéticos e políticos. O pensamento dos dois filósofos, além de seu caráter interdisciplinar, esboça uma crítica para o nascimento de um novo sujeito diante da reprodutibilidade técnica. Pensar através de imagens desloca o sujeito de um tempo tradicional – em que, somente a mão do homem era necessária na produção – para um tempo em que surgem as máquinas no caminho desse processo.

Ademais, para os autores referenciados, as imagens, e, especialmente a fotografia, aparecem como um potente instrumento artístico capaz de produzir o pensamento e ampliar a compreensão dialética da realidade social, tão necessárias nos contextos educativos contemporâneos. Uma aproximação que parte da análise da vida técnica da imagem, da sua existência para além da “caixa preta” de Flusser, da aura das obras de arte que, com Walter Benjamin teria sua existência intimamente afetada diante das reproduções técnicas que só foram possíveis com o advento da fotografia. Porém, Benjamin se utilizará da matéria prima de seu pensamento filosófico a imagem dialética para sempre resgatar dentro da própria imagem os fragmentos necessários do tempo para sua afirmação de que, mesmo na crítica há espaço para a criação dialética e para a possível subversão da ordem social e dos comportamentos estabelecidos.

Retomamos aqui o tema da fotografia e faremos uma tentativa de encontro do pensamento dos dois filósofos sobre as imagens técnicas, assim como dos impactos da excessiva presença dessas imagens na educação contemporânea. Ambos filósofos não puderam presenciar o que acontece hoje com a reprodução técnica na era digital, mas previram, de forma lúcida, o que elas evocariam, negativamente, no rastro da história: a reprodução “infernal”, a automatização e a perda da memória. Por outro lado, entendemos que as proposições de Benjamin e Flusser sobre a produção e disseminação das imagens ainda representam, uma potência dialética, um recurso artístico de expressão do pensamento e da criatividade humana capazes de ir além dos processos negativos que elas carregam.

A principal preocupação que nos guia para essa interpretação de conceitos e reflexões é o alcance dessas imagens dentro do campo da educação. Até que ponto as imagens técnicas, que, a princípio, suprimiriam sua “aura” diante da excessiva reprodução o que, consequentemente resultaria em uma perda da memória – poderiam constituir como pedagogia? Que pedagogia é essa e o quanto ela se torna necessária e urgente nos dias atuais?

NA SUPERFÍCIE DA IMAGEM E SEUS RASGOS

Quando pegamos um álbum de fotografias da família, voltamos no tempo, resgatando memórias através daquelas imagens. Recebemos diversos tipos de informações por revistas e jornais em que as imagens contam histórias em sua superfície. Fotografamos viagens, acontecimentos importantes, reuniões, cenas, fatos, e uma diversidade de coisas que, de alguma forma, nos afetam, e necessitamos registrar incansavelmente o tempo em um gesto de eterno retorno.

Assim, a fotografia poderia se definir, superficialmente, como formas de narrativas que vão construindo, de modo simbólico, nossas histórias. Elas são “seres” onipresentes, resgates de um tempo, são nostálgicas, têm o papel de nos informar, de impactar e de emocionar. Para além destas definições simplistas, vamos tentar imprimir outras cenas na “estética da superfície” das imagens.

Para tanto, recorremos ao autor Vilém Flusser (1920-1991), filósofo tcheco nascido em Praga e que viveu no Brasil de 1940 a 1972. O filósofo, chamado por diversos outros autores de “filósofo da comunicação”, lecionou na Universidade de São Paulo (USP) e também na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). Seu pensamento faz marcações espaciais a partir do conceito da pós-história e situa o nascimento da fotografia no final do século XIX, como um ponto crucial para uma fronteira entre a escrita como linguagem verbal e a linguagem fotográfica, imagética. É na imprevisibilidade do que as imagens podem ecoar que Flusser coloca seu pensamento e coração. Como sujeito que por questões políticas teve que se lançar por terras estrangeiras, também nas questões intelectuais colocou sua filosofia em movimento para pensar e transitar por diferentes áreas do conhecimento.

Ao perceber e analisar as transformações que acontecem na sociedade contemporânea, Flusser identificou um movimento de ruptura na história, justamente porque se configura o instante em que a imagem técnica toma o lugar da escrita como forma principal de comunicação.

Como forma de indicar o momento cultural de uma civilização, Flusser recorria frequentemente às categorias como “pós-história” e “sociedade pós-industrial”, fenômenos irrompidos a partir do momento em que a imagem técnica ocupa o lugar da escrita, o que acontece no final do século XIX com o surgimento da fotografia e de novas formas de se relacionar com as imagens, como a virtualização. A era da tecnoimagem, um processo circular que retraduz textos em imagens, é constituída com ou por máquinas. (TAUCHEN, 2015, p. 41)[3]

Neste instante em que as imagens técnicas tomam o lugar da escrita, as chamadas “linhas” que a compõem se transformam em algo um tanto abstrato na visão de Flusser, e é justamente essa abstração por ele proposta que instiga o raciocínio com base na estética da superfície desses novos meios de produzir informações.

Metaforicamente, podemos imaginar um papel escrito à tinta, e que teve sua superfície molhada e cujos escritos com tinta no papel borraram. Ao secar, se transformou em outra coisa que não poderia mais ser lida da mesma maneira. Esses borrões imprimiram na superfície da informação certa “liberdade” de leitura, mas que esconde seu peso quando pensamos, por exemplo, que os códigos inseridos nelas não seguiram uma linearidade. Uma nova superfície da velha escrita, reinventada neste mesmo lugar, que ainda e sempre sobrevive o desejo do homem pela comunicação, na ânsia pela supressão da sua solidão. Flusser nos diz que essa nova superfície, que ganhou outras dimensões, contém diferenças essenciais, mas informa tanto quanto as linhas escritas, e cabe a nós decifrá-las. Contudo, isso leva tempo e é dialético:

Essa é então, a diferença entre a linha de uma só dimensão e a superfície de duas dimensões: uma almeja chegar a algum lugar e a outra já está lá, mas pode mostrar como lá chegou. A diferença é de tempo, e envolve o presente, o passado e o futuro. (FLUSSER, 2007, p. 105)

No seu livro Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da caixa preta, originalmente publicado na Alemanha em 1983 e no Brasil em 1985, o filósofo cria um pequeno glossário que nos lembra um mapa de conceitos para poder dar uma visão do que seria uma filosofia da fotografia. Ele coloca o aparelho fotográfico como o primeiro exemplar do mundo tecnológico e a partir disso, faz, para além da caixa preta, uma análise da sociedade em seus aspectos culturais, políticos e sociológicos, um retrato desse novo modo de estar no mundo, absorvidos pela tecnologia.

De uma simples descrição superficial em que Flusser (1985, p.5) afirma que a fotografia é uma “imagem tipo-folheto produzida e distribuída por aparelho”, a partir da sua descrição da palavra imagem enquanto “superfície significativa na qual as ideias se inter-relacionam magicamente”, conseguimos visualizar um mergulho num lago gelado[4] em que a filosofia se faz urgente para a compreensão da superfície (imagem) e de tudo o que acontece entre a sua distribuição e recepção. Segundo o filósofo, as fotografias deveriam imprimir em nós algo além de uma simples cópia ou recorte da realidade.

Assim, voltamos a Flusser para lembrar o que ele chama de scanning, que seria um processo do nosso olhar de vaguear pela imagem na estética da sua superfície. Porém, é um vaguear atento e profundo, um passeio pela superfície que necessita de tempo, essencialmente. Como o flâneur[5] de Walter Benjamin, que caminha pelas cidades e se perde por elas, e, nesse sentido, possibilita se encontrar, devemos nos permitir um mergulho na imagem que ecoe em nós algumas reflexões acerca dos significados ocultos que ela pode nos revelar. Assim, poderia se configurar uma possível pedagogia da imagem quando ela é capaz de mobilizar o pensamento e quebrar a sequência linear de fatos cotidianos que encerram processos de aprendizado.

Nessa analogia, entre um passeio pela superfície da imagem e o flâneur de Benjamin, existe um abismo que a crise da modernidade instaurou na sociedade contemporânea: a repetição, o automatismo e a alienação, que não permitem e não nos dão mais tempo para uma reflexão que possa ecoar dentro do sistema social e político. Se ela não envolve o ser humano como indivíduo de uma sociedade, como pode fazê-lo na educação?

Essa estrutura que a modernidade instaurou a partir da invenção das imagens técnicas manipula os modos de compreensão e atuação dos indivíduos no mundo. Na escola, o automatismo e a rapidez com que as relações são estruturadas acabam por se mostrar deficientes no processo de ensino-aprendizagem. Tanto alunos quanto professores são afetados pelo novo modo de se comunicar, que diminuiu o tempo de reflexão sobre as coisas para um quase nada; tudo é imediato e guiado por tecnologias que, de um modo ou de outro, afetam nossas subjetividades, pois estão atreladas aos aparelhos e não aos sujeitos humanos.

Assim, para que aconteça uma filosofia da imagem fotográfica, é necessário investigarmos mais atentamente e fora de um tempo linear o que a imagem pode ou deveria instaurar: imaginação; que é a “capacidade de compor e decifrar imagens” (FLUSSER, 1985, pag.5). A ideia dessa imaginação é circular e é também um tempo que imprime magia, onde o olhar de um eterno retorno³ acontece alinhado a reflexões possíveis da imagem. Na condição do exercício da magia, exige-se um tempo, que se passa onde as coisas só fazem sentido numa junção de fragmentos conversando entre si numa dialética de significados.

Ele nos diz que:

Ao circular pela superfície, o olhar tende a voltar sempre para elementos preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores preferenciais do significado. Deste modo, o olhar vai estabelecendo relações significativas. O tempo que circula e estabelece relações significativas é muito específico: tempo de magia. Tempo diferente do linear, o qual estabelece relações causais entre eventos. No tempo linear, o nascer do sol é a causa do canto do galo; no circular, o canto do galo dá significado ao nascer do sol, e este dá significado ao canto do galo. Em outros termos: no tempo da magia, um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O significado das imagens é o contexto mágico das relações reversíveis. (FLUSSER,1985, p.7)

Quanto ao caráter mágico que é instalado nesse tempo de observação, Flusser aponta ser essencial para a compreensão do que as imagens podem significar e suas possíveis mensagens para além de sua superfície. As imagens, para Flusser, têm o poder de “remagicizar” o mundo a partir do momento em que instaura nele uma ponte entre homem e mundo, e não um muro entre eles.

A função dos aparelhos é executar uma função técnica. Os sujeitos que operam os aparelhos, são chamados por Flusser de funcionários. Nesse caso, temos um outro embate: traduzir imagens técnicas e também fazer com que os funcionários não se deixem guiar apenas pelos aparelhos. As imagens tradicionais como a pintura e o desenho imaginaram o mundo. Os sujeitos que antigamente operavam no ato da criação com suas próprias mãos, tinham suas “caixas-pretas” um tanto passíveis de preenchimento, pois eram acessíveis pela própria subjetividade. Era uma magia de outra ordem. As imagens técnicas copiam o mundo exatamente como ele é, podendo ecoar vazios ou meras repetições sem conteúdo. Para se fazê-las, não é mais necessária a mão do homem, do artista ou do aprendiz: o aparelho copia o mundo dentro de sua caixa preta. Ali, a magia acontece dentro da caixa-preta e não temos domínio sobre o processo.

E nesse caminho, segundo Flusser, acontece uma idolatria em relação às imagens. Elas tomaram conta da ideia de representar o mundo e isso leva o homem à uma alienação que impede o pensamento crítico sobre essas formas de decifrá-lo. Essa idolatria é construída historicamente em oposição à textolatria – crise dos textos. O filósofo coloca texto e imagem de frente a um espelho para pensar quais alegorias ambos provocarão e pontua o essencial: há deslocamento da realidade pelo homem. Cava-se um buraco em que não há espaço para a ponte entre homem e mundo. Os conceitos ficam vagando entre as duas margens, fracos e sem lugar. A esses processos de idolatria, Flusser denomina alienação. Estão inseridos em uma aura de magia que se esgota quando ela própria se aliena.

Assim, o filósofo toma conceitos essenciais como: imagem técnica, aparelho, informação e programa para nos dar uma visão de um mapa da superfície das imagens técnicas e com um pensamento filosófico e crítico, tentando adentrar, por frestas, às superfícies da imagem.

Segundo o autor, a automatização gerada a partir da técnica, embala toda a vida contemporânea e dificulta a tomada de consciência de todo o processo. Por exemplo, ao pensar em um texto, ficamos diante de uma tela de um computador para “escrever” nossas ideias. Essa ideia não será escrita pela mão em um papel, mas será digitalizada pelo teclado em uma tela, e depois será transferida virtualmente para uma impressora, que fará a transformação do texto da tela em imagem num papel. Esse processo de elaboração, a princípio muito simples e que estamos acostumados a realizar sem pensar, pode ser levada a todas as esferas dos meios de comunicação contemporâneos e a partir dela pode ser constatada a automatização da vida acontecendo em diversos sentidos. Analogicamente, é como se estivéssemos presos dentro de um programa e só funcionássemos a partir dos aparelhos.

No caminho desse complexo processo a que estamos presos e que nos dá uma falsa noção de “liberdade”, existe a possibilidade de jogo, que nada mais é que um exercício filosófico de elaborar o pensamento dentro de um sistema que se apresenta automático, fechado e capturado por aparelhos. Nesse sentido, a fotografia e, igualmente, todas as linguagens artísticas, nos apresentam a possibilidade de jogar contra os aparelhos, pois, como a escrita de um texto elaborado inicialmente por imagens e transcodificado na linguagem escrita, ela traduz o pensamento em imagens. A escrita é assim, segundo Flusser, meta- código da imagem.

Há sempre um movimento de tentar acessar realidades através do pensamento. Uma ode à linguagem em sua forma mais essencial: a comunicação. Através da linguagem é que nos aproximamos da realidade. No entanto, a realidade nunca nos é dada por completa. Segundo Flusser, uma das formas de acessá-la é através da arte. O filósofo não só manteve nas suas pesquisas uma brecha bastante larga para a arte e para os artistas nas suas investigações de como a comunicação acontece, como também se utilizou da poesia para se comunicar:

Flusser desenvolve sua filosofia aproximando-se de um modo de escrever poético e, também, pode-se acrescentar no seu caso, um estilo provocativo e irônico, mas sem perder de vista a conotação poética do pensamento. Foi um pensador que valorizou a poesia como um processo que cria sucessivamente a língua enriquecendo-a, com o objetivo de facilitar a compreensão do mundo e da realidade. Escreveu como poeta e fez da poesia seu método. (TAUCHEN, 2015, p. 27)

Portanto, para o filósofo, a poesia é como uma nova língua, capaz de acessar “magicamente” a realidade. Nessa realidade do mundo das coisas em que nós, os indivíduos estamos presos, existem as imagens técnicas, que são produto dos aparelhos e que servem para nos guiar pelo mundo. Havendo “poesia” ou “estranhamento” na imagem, conseguimos quebrar esse jogo de sermos manipulados pelos aparelhos e, assim, a imagem técnica pode atravessar para a outra margem do rio e gerar algum tipo de criação e reflexão.

A fotografia transcodifica conceitos em imagens, imprimindo na estética da sua superfície as memórias que antes habitavam as linhas dos textos e agora podem vagar no espaço da imagem técnica. O fenômeno da comunicação analisado por Flusser na sua epistemologia é essa transformação na maneira como a informação recebe sua sentença de vida ou morte e o faz a partir de aparelhos. O fotógrafo é dominado pelo aparelho igualmente ao receptor das imagens nas telas, pois ambos operam aparelhos programados Há uma manipulação constante durante todo esse processo, sendo esta a crítica e a urgência do pensamento de Flusser, presente em grande parte do século XX e ainda atual. Essa urgência resgata nesse “choque” uma “revolução” possível para a quebra do processo de manipulação dos indivíduos que foi instaurada pelo modelo capitalista da indústria cultural. Há, portanto, que prevalecer a crítica nos modos de produção de informação para que o sujeito não opere seu pensamento unicamente a partir de aparelhos.

Segundo a lógica flusseriana, uma boa fotografia necessita ir além daquilo que o aparelho fotográfico nos permite reproduzir a partir de seu sistema ou programa. É nessa perspectiva da produção da imagem como arte, ou seja, como superação da ideia da mera cópia dos objetos ou da realidade que identificamos uma convergência com o pensamento de Benjamin, conforme veremos a seguir.

UM RETRATO DE BENJAMIN: A IMAGEM DIALÉTICA

De acordo com esses retratos filosóficos sobre a fotografia que embasaram este estudo, nos aproximaremos agora do filósofo alemão Walter Benjamin[6], para pensarmos a respeito da imagem dialética e de outros conceitos pertinentes. Benjamin foi um filósofo alemão e judeu que viveu a passagem do século XIX ao XX. Ele não escreveu grandes teses e sim, fragmentos, aforismos e pequenos ensaios. Escreveu grande parte de sua obra utilizando-se da poesia, sempre deixando à margem lugares para as subjetividades de seus leitores poderem, de algum modo, descansar.

Na dialética entre o fascínio e a crítica, Benjamin foi, talvez, um apaixonado pela modernidade e tudo o que ela ensejou do momento em que a habitou até sua morte trágica, em 1940, na fronteira da França com a Espanha, com um gesto em que ele próprio apaga sua constelação, num momento de desespero, fugindo das perseguições nazistas. Há controvérsias de que ele tenha realmente tirado sua própria vida. Estudos recentes apontam para, talvez, um assassinato. De todo modo, a “aura” instaurada pela sua morte envolve o tema da melancolia em algo mais profundo e repleto de sensibilidades. Ademais, um flâneur da modernidade com olhar bem atento à linguagem, à memória, ao tempo e a toda forma de reencontro potente e criativo que o passado pode configurar no presente.

Esse reencontro entre passado e presente, que é tão necessário para o conceito de história em Benjamin, também dá nascimento para o conceito da imagem dialética. Antes de nos atermos à imagem dialética, vamos retomar características da imagem técnica que aparece na obra de Benjamin, mais especificamente nas obras Pequena história da fotografia e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.

Para Benjamin a obra de arte era única e continha na sua história cenas e fatos tão abstratos quanto a própria passagem do tempo e, só nele poderia incorrer sua unicidade. A reprodução técnica retira da obra esse caráter único, de mônada[7] que a obra sugere. A técnica surge com a fotografia e retira o trabalho da mão do homem na construção da obra. O trabalho que era da mão do artista, num processo bem longo, passa a ser exclusivo dos olhos, num processo que, com o tempo, transformou-se em instantâneo de fotografia. Um único clique em um aparelho fotográfico e você faz um recorte perfeito da realidade e torna aquela cena uma coisa congelada no espaço-tempo eterno.

Benjamin faz nos textos referidos anteriormente uma reflexão crítica sobre o modo como a reprodução das obras, e em especial da fotografia, alteram a forma do pensamento e de um estar no mundo da sociedade moderna; a criação das obras e a sua recepção se modificam.

Na experiência tradicional de comunhão com a obra de arte, é revelado ao espectador um momento único de contemplação e diálogo com o objeto artístico. Um diálogo que pode ser bastante silencioso, ao mesmo tempo necessário para a sua compreensão. Cada objeto de contemplação é exclusivo e existe naquele lugar como único, portanto, uma experiência particular que só seria acessível posteriormente, através da memória.

A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico. Como este depende da materialidade da obra, quando este se esquiva do homem através da reprodução, também o testemunho se perde. Sem dúvida, só esse testemunho desaparece, mas o que desaparece com ele é a autoridade da coisa, seu peso tradicional. (BENJAMIN,1985, p.168).

Há, portanto um deslocamento do cenário da obra. Se antes só era possível dentro de museus, igrejas, palácios, teatros e cavernas, com a reprodutibilidade, a obra rompe tais muros que as enclausuravam e torna-se acessível à grande maioria de espectadores. Essa ruptura instaurada dentro da tradição, a partir da reprodução técnica, faz com que a obra perca o seu valor de culto, objeto de contemplação, e instaure nela um valor de exposição. Nesse caminho, há o desaparecimento da aura, enfatizada por Benjamin, que é um caráter original que a obra exprime que só tem existência no seu aqui-agora.

Em contrapartida, o surgimento da técnica e da reprodução aproximou o espectador do objeto. Isso também influenciou a forma como determinada coisa/obra poderia ser exposta. A técnica fotográfica possibilitou outros pontos de vista da realidade com a tecnologia das lentes. Os produtos midiáticos tais como: vídeos, música, fotografia e cinema trouxeram uma potencialidade criativa extraordinária tanto para o pensamento reflexivo como para o puro entretenimento, a princípio vazio. Houve, portanto uma ampliação dos modos de se acessar as realidades dentro da criação artística configurando-se em uma nova maneira de exposição e recepção. Como aponta Benjamin, “a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na história intermitentemente, através de saltos separados por longos intervalos, mas com intensidade crescente.” (Benjamin, 1985, p.166).

Este processo mobiliza diversos pontos ligados à criação fotográfica, que se estendem para outros campos da criação:

O fundamental para quem extrai imagens da câmara não é, necessariamente, produzir imagens que corres- pondam àquilo que se deseja reproduzir. Isso, aliás, só faria reforçar as nossas visões habituais do mundo. Benjamin percebe que a fotografia, ao invés de falsifi- car a realidade, como postula Sontag, poderia permitir um contato mais complexo com essa mesma realidade (ALONSO, 2016, p.186).

Ao mesmo tempo que a reprodutibilidade encerra na imagem algumas questões, ficam visíveis outras brechas em que o olhar de Benjamin se ateve mais atentamente e onde pôde verificar sua dialética que está, em essência, em toda a sua obra. O embate entre forças representadas pelo passado e o presente (constantemente construindo o agora) é a ideia de imagem dialética em Benjamin. O “aqui-agora” a que o filósofo se refere inexiste na reprodução técnica. A técnica é sinônimo de repetição. A repetição retira da obra seu caráter único e corta, em determinado momento, um tempo de exposição que antigamente na tradição era de valor de culto, tornando-se na modernidade um valor de exposição.

Mesmo assim, Benjamin verá que ela, a imagem técnica, é dialética, porque mesmo com a reprodução pode-se gerar choque, nostalgia e reflexão. Perde-se autenticidade, mas por outro lado, ganha-se acessibilidade e poder criativo. A obra se torna acessível, rompe com os muros em que a sociedade burguesa as coloca e pode atingir um maior número de espectadores.

O olho humano não consegue apreender a realidade em sua totalidade. Nem mesmo ela é apreendida como um todo, de imediato. Nesse aspecto, segundo Benjamin, a fotografia conseguiria realizar essa função de aproximar-se de vários ângulos da realidade, o que outrora era um tempo relativamente longo. Benjamin chamou esse processo de “inconsciente ótico”, ou seja:

Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo olhando para trás. A natureza que fala a câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço que ele percorre trabalhando conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia mostra essa atitude, através dos seus recursos auxiliares: câmera lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. (BENJAMIN, 1985, p. 94).

Quando as imagens técnicas de Flusser apenas copiam o mundo e são exaustivamente distribuídas por jornais, revistas e folhetins, perde-se o que Walter Benjamin nomeia “aura” da obra de arte. Essa aura não deve ser entendida como uma espécie de memória sagrada, e sim, um estado de caracterização único da obra. A “aura” do filósofo alemão exprime um “aqui e agora” que só é possível diante da obra ou da sua unicidade. Por outro lado, aquela obra pode ser reproduzida e assim, acessar diversos espectadores, não somente os privilegiados, ou seja, aqueles que têm a possibilidade de acesso às grandes obras no lugar em que elas se encontram: museus, galerias e por que não, universidades. Quando retomamos uma imagem do passado, ela produz em nós um sentimento de nostalgia, e quando acontece esse evento, pensamos que a aura se instaura momentaneamente na obra novamente.

Esses fatos podem ser sublinhados na ideia de imagem dialética em Benjamin: apesar da reprodução técnica, as imagens tem o poder de nos sensibilizar, de produzir um pensamento crítico e de nos causar um choque que quebra o movimento linear da história. A fotografia, a despeito da sua reprodução e perda da aura, tem a capacidade de estabelecer no tempo do agora um retorno ao passado, tão urgente na obra do filósofo. A fotografia, como uma extensão física da memória, é capaz de resgatar um tempo perdido. É pela técnica, pela química, pela ótica e agora, pelo digital que podemos sempre voltar para o ontem e, em algum sentido, construir o presente.

DUPLO NEGATIVO

Além de produzirmos fotografias, também as consumimos. A reprodutibilidade aponta para esse consumo de forma avassaladora. A crítica e o desejo para o campo da educação seriam gestos para tentar, por meio das linguagens da arte, violar a alienação a que estamos submetidos e aos processos de barbárie que, aos poucos, vão sendo instalados na sociedade a partir do falso progresso que surge com a modernidade.

O mundo tecnológico se tornou, para Flusser, um universo codificado e o homem “moderno”, imerso em uma profusão de imagens, passou a enxergar mal e a pensar pouco ou quase nada. Os dois filósofos, cada um a seu modo e tempo específicos, ampliaram a reflexão crítica da modernidade diante desse espaço codificado que necessita ser revisto constantemente. As imagens técnicas trouxeram um avanço nos modos de produção e recepção das obras de arte e disseminação da informação. Por outro lado, a repetição e difusão das informações se tornou tão gigantesca que se perdeu um tempo tradicional de oralidade que envolvia o processo de recepção e propagação da memória e do conhecimento.

O diagnóstico feito sobre a sociedade tecnológica é de que o ritmo da comunicação e da informação se tornou instantes fotográficos superficiais e que a história vai se construindo numa avalanche de imagens que não traduzem textos e muito menos fazem conexões com o passado. Essa conexão com o passado, suscitada tanto no pensamento de Benjamin quanto no de Flusser, convergem para uma convicção de que este processo é fundamental na construção da história. O passado e a história são como flashs ou estrelas de uma constelação que a humanidade não tem como abraçar em toda a sua potência quanto aos fatos acontecidos, vivenciados ou experienciados. Nesse sentido, o eterno retorno ao passado deveria se entrelaçar ao presente constantemente como resgates que ajudam a construir os novos fatos. Isso tanto para não incorrer em novas barbáries, quanto para ajudar a manter viva a nossa memória, que se perde diante da racionalidade e automatização contemporâneas.

A imagem dialética pensada por Benjamin é um encontro frutífero e talvez “revolucionário” do passado com o presente. Revolucionário no sentido de que, pelas contradições, é possível haver mudanças. Como diria Flusser, jogar contra os aparelhos e o mundo tecnológico que nos manipula seria a única revolução possível para se quebrar a estética da automatização do pensamento e da vida moderna.

Através do conceito de imagem dialética em Benjamin, nos aproximamos de outro conceito de sua obra que instaura nessa reflexão algo essencial: a experiência. A experiência de Benjamin é de outra ordem: experiência na imobilidade – é tempo experimentado e introjetado. É tempo da duração da experiência, dotado de sentido e que afeta a vida do sujeito humano, contrariando o conceito de vivência que se aproximaria de uma ideia de conversação sem debate. A vivência é da ordem da superfície; a experiência, do mergulho. A modernidade e agora, a contemporaneidade retiram dos sujeitos essa experiência, pois elas necessitam de tempo para se configurarem. Essa capacidade de experienciar as coisas, em Walter Benjamin caracteriza-se por uma troca. Como trocar subjetividades e informações se estamos presos nas malhas dos aparelhos e seguindo um fluxo ininterrupto de informações e imagens a todo momento?

Em um ambiente educacional, esse ponto pode se tornar essencial para um discurso mais produtivo dentro do processo ensino-aprendizado. A utilização da arte, tomando, aqui, a fotografia como arte, como recortes de realidades que possam provocar o pensamento crítico e engajado, interagindo com diversas áreas do conhecimento, é sem dúvida, uma alternativa para um novo tipo de educação em que se confirme uma pedagogia da imagem.

Ter a dimensão do alcance que esse pensamento configura na contemporaneidade significa entender a urgência de se pensar práticas que manipulem a realidade para além do que ela nos oferece. Nesse ponto, as produções artísticas contemporâneas têm um papel fundamental e devem estar acessíveis à todas as camadas da sociedade. A produção que é direcionada à cultura de massa necessita ser constantemente repensada, oferecendo conteúdo que fuja à alienação e à estagnação imposta pela indústria cultural. O trabalho da arte se coloca nesse lugar em que a subjetividade tanto do criador quanto do espectador se desestabiliza e se direciona para outro espaço em que se encontra fora dos rituais cotidianos. A magia que a imagem configura possibilita uma fuga dos processos de automatização a que estamos impostos. O aparelhamento e a racionalização em todas as esferas de comunicação retiram certa humanidade e subjetividade dos indivíduos. Essa crítica de ambos os filósofos se revela como uma fotografia, totalmente atual e urgente no campo educacional, abordagem que pode ser um dos caminhos possíveis para uma revolução do pensamento e das práticas pedagógicas.

Tanto Walter Benjamin quanto Vilém Flusser lançaram seu olhar filosófico para diversas áreas do conhecimento e se utilizaram da linguagem poética como matéria prima de aproximação e recepção de seus pensamentos, abrindo espaço e tempo para a reflexão e a ampliação das subjetividades. As obras lançam um convite para uma tentativa de ressignificar a modernidade, que apresentou diversas facetas, tanto de barbárie quanto de transformação. Abrem-se diversas portas das áreas de conhecimentos e deixa-se o vento atravessá-las, mas sem nomeá-los, a princípio. E é isso que constitui a riqueza imaterial do pensamento de ambos e suas possíveis convergências: uma obra sempre aberta. O pensamento se faz fotográfico no entrelaçamento de passado e presente, na dialética do jogo e da presença da memória, que configura o agora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após realizar uma breve viagem pela constelação de conceitos de Flusser e Benjamin, retomamos a questão central que motivou esta investigação: o que pode a fotografia para uma pedagogia da imagem? Após essa incursão teórica, nossa perspectiva é a da defesa da pedagogia da imagem, especialmente mediada pela fotografia, embora consideremos que outras produções de imagens técnicas possam figurar-se como mediações do processo pedagógico. Entendemos que a estética da superfície, inspirada no pensamento de Flusser, potencializa os processos de ensino-aprendizagem quando se adota uma pedagogia não diretiva capaz de, mediada pela imagem, provocar os sentidos, causar uma espécie de choque, conforme acreditava Benjamin, produzindo o pensamento e a crítica sobre os conteúdos apreendidos e sobre o conhecimento da realidade social em que esses conteúdos estão situados.

Recuperamos a afirmação de Flusser para o que ele chama de “scanning”, que seria um processo do nosso olhar, de vaguear pela imagem, na estética da sua superfície. Entretanto, é um vaguear atento e profundo capaz de perceber os rasgos e as contradições. Ao passear com o olhar pela superfície das imagens, num processo demorado e atento, semelhante ao flâneur de Walter Benjamin, será possível um mergulho na imagem e, então, poderá aflorar uma série de imaginações, sentimentos e reflexões acerca dos significados ocultos que ela pode nos revelar.

Nesse sentido, acreditamos que a pedagogia da imagem, aqui entendida como a arte de ler, manipular e produzir imagens para compreender seus conteúdos, se apresenta como potencializadora dos processos educativos na sociedade tecnológica em que predomina a cultura audiovisual. Mesmo diante da vastidão da reprodutibilidade técnica e da automação da vida mediada pelos aparelhos e programas, ela poderá representar uma salvaguarda para a restituição da condição humana, ou seja, para sua capacidade de imaginação e de criação.

O sentido principal que atribuímos à pedagogia da imagem é de que ela se constitui como arte no sentido amplo adotado por Flusser e que, numa espécie de embriaguez criadora, educadores e educandos poderão jogar contra os aparelhos, compartilhar as experiências de desvendar os conteúdos de aprendizagens subjetivas e, coletivamente, problematizar inclusive os processos e materiais didáticos programados e padronizados que empobrecem a experiência educativa. Além do mais, poderão alimentar as plataformas digitais, que já estão presentes nos sistemas educacionais, com informações novas, conteúdos científicos, filosóficos e artísticos que fazem sentido e são capazes de tirar os sujeitos de sua condição de alienados operadores de aparelhos.

Também é fundamental retomar aqui a expressão “imagem dialética” de Benjamin e incorporá-la à construção de uma pedagogia da imagem tendo em vista que, mesmo considerando a reprodutibilidade técnica, a automatização da vida e o empobrecimento da experiência na sociedade contemporânea, a imagem tem força de produzir ranhuras e contradições, desde que a pedagogia intencionalmente se organize nessa direção. Como ficou evidenciado anteriormente, a presença das imagens nos processos educativos instala uma nova epistemologia produtora de conhecimento, mediado por uma estética da superfície e do choque. E, quando pautada por um método dialético, poderá operar no limiar da subsunção, adaptação da vida aos processos de automatização e reprodução alienada e, por outro lado, por processos de imaginação e criação, capazes de romper com a ideia de progresso incessante mediado pela programação dos aparelhos e estetização alienadora. Portanto, reiteramos nossa perspectiva de que há espaço para a estimulação e restituição das capacidades humanas vinculadas à dimensão estética, desde que assentadas numa epistemologia imagética potente o suficiente para gerar pensamento crítico e experiências humanas significativas.

A relação que se estabelece entre fotografia, estética e pedagogia está associada a uma nova forma de organização das experiências educativas. Se de fato nos encontramos em um tempo histórico em que predomina a cultura audiovisual e no qual impera a presença dos aparelhos e das telas especialmente as novas gerações de estudantes estarão expostas a formas de aprendizagens orientadas por uma nova ordem epistemológica. Então o desafio que se coloca aos educadores é a produção de atividades educativas, que artística e tecnicamente resultem em nova forma de organização pedagógica conforme as concepções de arte e de técnica de Flusser e Benjamin.

Ao propormos uma nova forma estética de organização dos processos pedagógicos, necessariamente esse processo transitará pelos processos de criação, imaginação, transgressão, ranhuras de imagens e de conceitos para a instauração de atividades de ensino-aprendizagem que demandem ação dos estudantes e educadores. Entendemos que a pedagogia da imagem, mediada pela fotografia, abre janelas para a constituição de novas formas estéticas de produções das aulas e das experiências educativas que ultrapassam as pedagogias tradicionais e tecnicistas.

A fotografia, como uma linguagem artística potente que possibilita tanto oresgate constante do tempo quanto a criação de tempos futuros fixados na sua superfície independente do suporte em questão, amplia, no campo da educação, estratégias para novos conhecimentos e saberes, trazendo em sua essência uma dialética capaz de ressignificar os modos de aprendizados. Neste novo modelo imaterial em que estamos todos, inevitavelmente, inseridos, há que se pensar em novas formas de concepção e de trocas que não se moldem apenas pela automatização.

Quando falamos em campo ampliado, pensamos na urgência de manter bem visível na superfície dos processos educacionais, o que só alguns têm acesso na sua formação, que é o pensamento reflexivo, imagético e artístico. Na concepção de Benjamin, a arte possibilita esse processo de atravessar o que é real, palpável e ordinário, para o que não nos é dado prontamente: o indizível. É necessário pensar em outras formas de organização dos processos pedagógicos em que a imaginação e a criação reflexiva estejam em primeiro plano, como uma tomada de cena de um filme, em que nosso protagonista fale a partir de subjetividades que possam atingir outros modos de percepção.

A pedagogia da imagem pensada esteticamente possibilita experiências de outras ordens. A experiência de que Benjamin propõe, na imobilidade, é o resgate da memória e a apreciação do tempo. A criação de alegorias, metáforas, produção de objetos artísticos, de textos imagéticos, vídeos-animações e fotografias experimentais são produtos que a reprodutibilidade técnica não conseguiu barrar como campo de criação e que deveriam compor esteticamente os processos educacionais como um todo, abrangendo diversas áreas.

A alimentação de todo o aparato tecnológico a que Vilém Flusser se refere ganha potência no processo de ensino-aprendizagem quando os operadores das máquinas educacionais e dos programas de ensino se propuserem a jogar contra eles e a subverter a ordem, se utilizando de material que eles não possuem: percepção, sensibilidade, imaginação. O modo como as informações estão sendo criadas, processadas e divulgadas se modificou e se modifica a todo momento, num tempo efêmero que passa diante dos nossos olhos que agora são como telas artificiais. A dialética das imagens pensada por Benjamin possibilita que essa artificialidade a que estamos subjugados encontre outros caminhos para que os olhos possam, de fato, ver.

Portanto, os argumentos e proposições apresentados no âmbito deste ensaio apontam que a pedagogia da imagem poderá ser potencializada pela mediação da leitura crítica de imagens, mas será mais potente quando os educadores e estudantes estiverem focados na criação de novas informações para a alimentação de plataformas e programação dos aparelhos pelos próprios sujeitos responsáveis ativos pelos processos de criação de conteúdos educativos mediados por imagens técnicas tais como as fotográficas.

As imagens interpretadas dialeticamente podem tanto revelar a realidade, como ocultá-la. Essas imagens podem figurar como biombos que se interpõem entre os sujeitos aprendizes e a realidade, produzindo a alienação e a representação falsificada da vida social. Mas os aparelhos que produzem imagens técnicas também podem ser próteses do olhar e possibilitar a ampliação da capacidade de ver e interpretar todos os fenômenos e eventos que afetam nossas percepções e desafiam nosso entendimento.

REFERÊNCIAS

ALONSO, R. Fotografia: câmara clara ou caixa preta?Outra travessia, v. 1, n. 21, p. 177-194, 2016.

BENJAMIN, W. A pequena história da fotografia. In: Magia, arte e técnica: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. Obras Escolhidas, v.1.

BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia, arte e técnica: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. Obras Escolhidas, v.1.

FLUSSER, V. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985.

LIMA, R. E. A arquitetura do texto Benjaminiano. Aletria: Revista de Estudos de Literatura, v. 2, p. 111-122, 1994.

TAUCHEN, J. I. O tema da “pós-história” no pensamento de Vilém Flusser. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em filosofia. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2015.

Notas

[3] Jair Inácio Tauchen, na sua dissertação de mestrado O tema da pós-história no pensamento de Vilém Flusser faz uma descrição bastante significativa sobre o filósofo: “Pessoa complexa, temperamental, fascinante, irônico, dotado de uma paixão singular no trato com o pensamento, com as letras, com as línguas e, sobretudo, com as pessoas que faziam parte do seu relacionamento interpessoal. Extremamente provocativo, uma atitude notada nos gestos, nos conceitos, nas ideias e nos diálogos grandiloquentes que impunha com seus interlocutores. Amparava-se no confronto de ideias, na oposição, a fim de provocar o verdadeiro diálogo, a troca, pois não suportava o monólogo” (2015, p.13).
[4] Susan Sontag escreveu o livro Sobre a Fotografia, um clássico em que a ensaísta e filósofa analisa a prática da fotografia e de como a produção de imagens transformou a sociedade desde o seu surgimento até meados da década de 1970. Nesse livro, a autora destaca a banalização que a repetição das imagens trouxe à vida cotidiana, fazendo com que se produza uma espécie de anestesiamento e frieza dos sentidos. Por isso a metáfora do mergulho no lago gelado, ou seja, a necessidade da filosofia romper com a superfície de naturalidade e revelar e compreender a relação que os sujeitos contemporâneos estabelecem com as imagens. Sontag (2001), disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1803200112.htm
[5] Flâneur, substantivo emprestado do francês, significa “errante”, “vadio”, “caminhante” ou “observador”. Rosana Biondillo, na sua dissertação de mestrado intitulada Walter Benjamin e os caminhos do flâneur, diz: “O fato a se considerar é que, para o flâneur, os caminhos são múltiplos e as possibilidades associativas, inúmeras – não apenas no sentido poético e figurativo, mas porque o texto filosófico, como o concebe Benjamin, é uma obra aberta. (...) O flâneur benjaminiano é, dessa forma, uma figura limiarística, pois tem acesso ao passado histórico – que se forma não só com as ações como também com os sonhos não realizados de nossos antepassados – e simultaneamente participa da construção do presente.” (BIONDILLO, 2014, p. 8).
[6] Raquel Esteves Lima, no seu artigo A arquitetura do texto Benjaminiano, nicia o texto com uma descrição bastante ampla do filósofo alemão, que nos dá a dimensão de seu pensamento em forma de “constelação”. Na tentativa de traçar um perfil de Walter Benjamin, a filósofa Hannah Arendt depara-se com a dificuldade de classificação para aquele que tinha como objetivo maior ser considerado o primeiro crítico literário alemão. Segundo ela, “o problema com tudo o que escreveu Benjamin é que sempre demonstrava ser sui generis. Realmente, torna-se difícil definir um escritor tão multifacetado: filósofo, crítico literário, memorialista, historiador, ensaísta - todos esses rótulos lhe cabem, mas o que sobressai em sua obra é o fato de que perseguindo o objetivo de recriar a crítica literária como gênero, acaba produzindo textos que se colocam entre a teoria e a arte, entre a crítica e a literatura. Isso porque, segundo a autora, acima de tudo, o que lhe determinava a direção era o seu modo de “pensar poeticamente”. (LIMA, 1994, p.112). Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit
[7] Conceito-chave na filosofia de Leibniz, significando, substância “simples”.

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