O RETORNO DO INCONSCIENTE NOS ESTUDOS DA LINGUAGEM

Deslocamentos e especificidades de uma teoria não subjetiva do sujeito e suas relações com a Psicanálise

The return of the unconscious in language studies: Displacements and specifics of a not subjective theory of the subject and their relations with psychoanalysis

Éderson Luís SILVEIRA1

RESUMO: O presente artigo visa apresentar reflexões acerca das relações entre a Análise do Discurso de linha pecheutiana e a Psicanálise. Através de uma pesquisa qualitativa, descritiva e de natureza bibliográfica buscamos acentuar para a necessidade de reflexões frente aos casos em que os estudos da linguagem desenvolvem seus discursos ignorando as relações entre linguagem e inconsciente. Concluímos que a existência de deslocamentos e problematizações é legítima para romper o risco de aplicacionismo na universidade a partir de formações teóricas com suas elaborações e consequências, tanto para a teoria como para a prática, nas quais o político está e permanece presente.

PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso; Psicanálise; Estudos Discursivos; Estudos da Linguagem.

ABSTRACT: This article aims to present reflections on the relations between discourse analysis of Michel Pêcheux and psychoanalysis. Through a qualitative research, descriptive and bibliographical nature seek to accentuate the need for reflection in relation to the cases in which the studies of language develop their speeches by ignoring relations between language and unconscious. We conclude that the existence of displacements and problematizações is legitimate to break the risk of aplicacionismo at the University from theoretical formations with their elaborations and consequences for both the theory and the practice, in which the politician's and remains present.

KEYWORDS: Discourse analysis; Psychoanalysis; Discourse Studies; Language Studies.





Ocupa-se um lugar onde um ato o empurra assim, da direita ou da esquerda, aleatoriamente. Houve circunstâncias em que, a bem da verdade, precisei tomar as rédeas daquilo a que não me julgava absolutamente destinado (LACAN, 2006, p. 13).


É preciso admitir esse jogo de força simbólico que se exerce no reconhecimento do mesmo e de sua repetição. Por outro lado, uma vez reconhecida essa repetição, é preciso supor que existem procedimentos para estabelecer deslocamento, comparação, relações contextuais (ACHARD, 2007, p. 16).


O que se pode depreender do percurso de Michel Foucault na elaboração da Análise de Discurso é que ele propôs uma forma de reflexão sobre a linguagem que aceita o desconforto de não se ajeitar nas evidências e no lugar já-feito. Ele exerceu com sofisticação e esmero a arte de refletir nos entremeios (ORLANDI, 1990, p. 07).

1. INTRODUZINDO O PERCURSO

A presente pesquisa, qualitativa, descritiva e de natureza bibliográfica visa trazer contribuições, sem beirar à exaustão, acerca das reflexões que dizem respeito às articulações entre Análise do Discurso de linha francesa e Psicanálise. Desse modo, trata-se de uma pesquisa de natureza bibliográfica devido ao fato de utilizarmos categorias teóricas já exploradas por outros pesquisadores e porque é imprescindível que se faça um levantamento da bibliografia referente à temática estudada (MEDEIROS, 2008), como a coleta de informações e conhecimentos prévios acerca do problema para o qual se procura resposta (CERVO & BERVIAN, 2002) que, no caso dessa pesquisa, faz menções a autores que enfocam as articulações entre Análise do Discurso francesa2 e psicanálise bem como o estudo de textos seminais de ambos os referenciais (principalmente de autoria de Pêcheux e Lacan).

A necessidade de reflexões deste calibre se manifestou porque os linguistas continuam a falar de linguagem em diversas teorias desenvolvendo seus discursos a partir da ignorância das relações entre linguagem e inconsciente (ARRIVÉ, 1994). Refazer reaproximações e permitir deslocamentos é o que se propõe algumas reflexões norteadas em problematizações entre a Linguística e a Psicanálise, mas especificamente, entre AD e a Psicanálise, objeto do presente artigo.

2. ENTRELAÇAMENTOS TEÓRICOS (IM)POSSÍVEIS

Se pensarmos em articulações com a AD e outros campos além daqueles que a constituem, discussões sobre gênero e sexualidade, por exemplo, podem ser produtivas visto que se torna proeminente a crítica da (re) produção de modelos padronizado(re)s de comportamento. Dessa forma, em uma entrevista com sujeitos cujos comportamentos e dizeres fogem dessa padronização normalizadora (o dizer também engendra comportamentos, veja-se o caso da corpolatria, que Courtine (1995) descreveu em que corpos são engendrados como espaços de preenchimentos daquilo que lhes falta), podemos notar, por exemplo, munidos de arcabouço teórico sobre a psicanálise freudo-lacaniana (ELIA, 1995; FREUD, 1984; KAUFMANN, 1996, KEHL, 1996; 2008; LACAN, 1985a; 1985b; 1986; 1998; 2006; 2013; ROUDINESCO, 1994; 1995; 2009; 2011), que as contradições e lugares que determinam o sujeito enquanto sujeito de determinada sexualidade e que apontam para algo que lhe é exterior. Se considerarmos a questão do sujeito dividido, do inconsciente, de um sujeito tomado como efeito de linguagem, não se pode deixar de lado que temos “[...] a subjetividade constituída na linguagem, de sermos constituídos por essa entrada na cadeia significante já marcada pela falta” (MARIANI & MAGALHÃES, 2013, p.120).

Neste caso, a AD pode então se articular à Psicanálise visto que para Michel Pêcheux (1988; 1990; 2011), sujeitos e sentidos não são constituídos a priori. Essa consideração passa pela constatação da existência de um real, conforme postulado por Jacques Lacan (1998) na chamada Clínica do Real, situada na segunda fase dos estudos do psicanalista francês. Apesar de possível, vale acentuar que nem Freud nem Lacan figuram na Analyse automatique du discours. A partir da leitura de outros textos esta ausência também não cessa de surtir efeitos na obra pecheutiana:


A leitura dos dois artigos que Michel Pêcheux publica em 1966 e em 1968 em Cahiers pour l’ Analyse, sob o pseudônimo de Thomas Herbert, leva a apresentar algumas hipóteses que põem em jogo razões outras, não apenas táticas, quanto aos fatores que resultaram nessa convivência, no mínimo elíptica, com as teorias freudiana e lacaniana.

Se a teoria psicanalítica, a ‘psicanálise como ciência do inconsciente’ estão aí realmente convocadas, se os nomes de Freud e de Lacan são mencionados – somente no segundo artigo, no qual, aliás, Freud só é citado uma única vez e de uma maneira sobre a qual vamos voltar, sendo Lacan, por sua vez, apenas evocado, utilizado de modo relativamente geral, sem que, precisamente, seja feita referência a tal ou tal passagem de seus Escritos – tudo isso se efetua segundo uma perspectiva e segundo modalidades suscetíveis de nos fornecer informações sobre o lugar que Michel Pêcheux atribui, na época, à teoria psicanalítica no dispositivo conceptual que está elaborando e sobre o estado de sua informação quanto aos desenvolvimentos da trajetória lacaniana (GADET et al., 1997, p. 50).


Conforme mencionado, o que se tem são marcações silenciosas de considerar referências lacanianas e freudianas apenas furtivamente mencionadas. Para Gadet et al. (1997) tal escolha estava relacionada a uma estratégia pecheutiana: o diretor da coleção, François Bresson, que iria abarcar a publicação, tinha inclinações piagietianas e Pêcheux estava vinculado a uma seção de psicofisiologia e psicologia do Centre National de la Recherche Scientifique, seção articulada a concepções positivistas que viriam a se articular a pesquisas neurocientíficas cujos membros e simpatizantes alimentavam visível hostilidade à psicanálise. O lugar central atribuído ao materialismo histórico está articulado ao lugar da psicanálise na teoria pecheutiana. Também a psicanálise intervirá, no “esquema destinado a dar conta do processo da prática científica no nível em que dá conta da transformação dos elementos ideológicos do sistema conceptual” (GADET et al, 1997, p. 51).

Para Cohen (2009) a relação entre a psicanálise e a AD se torna palpável teoricamente a partir dos estudos de Pêcheux sobre o sujeito visto que implicam contrapor-se ao modo de estudar a linguagem que ignora a existência do inconsciente, típico da linguística histórico-comparativa que excluía o sujeito e a linguagem de seu escopo de investigações entre os séculos XIX e XX. Especificando a complexidade das relações entre AD e Psicanálise, podemos considerar as palavras de Ercília Ana Cazarin:


[...] a instabilidade das fronteiras de uma FD, a ausência de fronteiras estáveis entre a história, a língua e o inconsciente, entre o interior e o exterior de um discurso, entre o possível e o impossível da língua nos conduzem a compreender o espaço fortemente heterogêneo concebido para a análise de discurso; por outro lado, entender o real da língua como distinto do real da psicanálise e, o real da história como contradição constitutiva do dizer, nos coloca diante do espaço singular, reivindicado por Pêcheux, para cada um desses campos de estudo. Por último, em relação ao discurso, quero entender que o mesmo se apresenta como uma trama de fios que tem a língua como materialidade que o torna possível, mas que é afetado pela história e pelo inconsciente (CAZARIN, 2005, p. 273).

Vale acentuar, nesse contexto, que, em Semântica e Discurso, Pêcheux (1988) invoca Lacan em algumas passagens e ratifica a primazia do significante sobre o significado à maneira lacaniana. A partir disso, o real em Pêcheux constitui o sujeito no simbólico e através da determinação do real exterior constituinte que se produz o efeito-sujeito como uma interioridade. Sendo assim, entre a Linguística, a Psicanálise e a História haveria uma “heterogeneidade irredutível” (PÊCHEUX, 1981, p. 15) que, ao invés de impedir a articulação dos três campos referidos permite apreender esta apreensibilidade de sujeitos3 e sentidos como não sendo aprioristicamente tomado.

Podemos, em outros termos, pensar esta conjuntura a partir do que afirma M. Pêcheux acerca do campo metafórico, uma constelação de processos discursivos, com a qual a Análise do Discurso debate e se debate: o da Linguística (a língua), o da Teoria das Ideologias (materialismo histórico, ideologia) e o da Psicanálise (sujeito, inconsciente). Deslocamento em relação, de um lado, ao estudo da língua (gramática comparada) do século XIX, em que se define a língua como produto da história. Deslocamento que produz Saussure, pleiteando um campo autônomo da Linguística, definindo a língua como tendo sua própria ordem, sendo um sistema em que tudo se mantém. Temos, por outro lado, a contribuição de Marx, ao pensar o materialismo pela afirmação de que o sujeito faz história, mas a história não lhe é transparente. Podemos, então, trazer para nossa reflexão a consideração da ideologia (K. Marx, O 18 Brumário, 1851-1852) como sendo o imaginário que relaciona o sujeito com suas condições materiais de existência. E, finalmente, na psicanálise, com Freud, temos a passagem da consideração do indivíduo como é tratado na psicologia do século XIX, como visível, calculável, para um sujeito não transparente, afetado pelo inconsciente. A Análise do Discurso trabalha, assim, na relação contraditória entre a Linguística (fundamentalmente a teoria da sintaxe e da enunciação), a Teoria das Ideologias e a Teoria do Discurso (determinação histórica dos processos de significação), atravessadas por uma teoria não subjetiva do sujeito de natureza psicanalítica (ORLANDI, 2013, p. 29-30).


Para Baldini e Mariani (2013) é necessário perceber que no interior das articulações teóricas nas quais a AD francesa se constitui enquanto dispositivo de descrição/interpretação a psicanálise atravessa de certo modo as regiões teóricas do Materialismo Histórico (formações sociais e transformações numa Teoria das Ideologias), da Linguística (mecanismos sintáticos e da enunciação) e da Teoria do Discurso (determinação histórica dos processos semânticos). Orlandi (2013) adverte que tal constituição teórica também afeta a Psicanálise considerando o interdiscurso, a memória constitutiva, estruturada pelo esquecimento do ponto de vista da ideologia que fala antes, em outro lugar, diferentemente (PÊCHEUX, 1975).

Assim, cabe acentuar que a articulação entre a AD e a Psicanálise lacaniana está longe de ocorrer sem deslocamentos ou especificidades de cada campo (PAVEAU, 2008). Vale destacar que a segunda esteve presente quando a AD pressupõe o atravessamento do discursivo por uma teoria do sujeito cindido, de base lacaniana. Neste âmbito, os significantes em movência, a noção de efeito de sentidos que será tomada para assinalamento da noção de discurso como efeito de sentido entre interlocutores e a de uma língua sujeita a falhas são conceitos que demonstram a importância do arcabouço psicanalítico para a AD.

O lugar de problematizações acerca da articulação possível tem sido objeto de estudos no Brasil, a partir de autores como Belmira Guimaraes, Vanise Medeiros, Bethânia Mariani, Lucília Maria de Sousa Romão, Lauro José Baldini, Christian Dunker, entre outros. Além dos autores e obras mencionados a seguir há outros - e não menos importantes -; o que se buscou aqui foi apresentar uma parcela das contribuições em que as relações entre Discurso e Psicanálise se fazem presentes para corroborar a afirmação de que se trata de um campo profícuo para reflexões. A própria relação entre Saussure e a AD pode ser problematizada junto com a acusação de que ele teria promovido um silenciamento sobre o sujeito produtor de linguagem e recalcado a história de produção de sentidos. Para Tfouni (2008), a partir de Courtine (1999) os mal entendidos, os fatos discursivos, os residuais não cessaram de retornar:


[...] se o discurso foi colocado como resíduo, pela leitura científica e racionalista feita da obra desses dois autores, ele, no entanto, como objeto recalcado, constantemente retorna, nessa própria obra, abrindo espaço para que se estabeleça ali uma teoria do discurso que se antepõe à concepção de um sujeito-falante que seria a fonte e a origem do dizer, colocando um inconsciente (ideologia e desejo) como pré-condição para que esse dizer se concretize (TFOUNI, 2008, p. 71).


Algumas obras publicadas no Brasil podem ser destacadas e, entre elas, duas coletâneas em que uma parte da articulação entre AD e psicanálise intitulada Discurso e... organizada pelas professoras Bethânia Mariani e Vanise Medeiros, publicada em 2012 pela editora 7 Letras com apoio da FAPERJ e a outra obra em que, partindo da articulação dos estudos discursivos com autores fundamentais, figura Lacan em um dos capítulos assinado por Mariani & Magalhães publicada em 2013. Recentemente, em 2016, Cristian Dunker, Clarice Paulon e J. Guilhermo Milán-Ramos lançaram o livro Análise Psicanalítica dos discursos: perspectivas lacanianas, no qual defendem que a prática psicanalítica e as contribuições teórico-metodológicas de Lacan permitem reflexões acerca da constituição de uma Análise Psicanalítica dos Discursos. Tal obra faz o caminho oposto: parte da psicanálise lacaniana para apresentar de que modo as reverberações teórico-metodológicas lacanianas podem ser vistas como uma forma de AD.

Também em 2016 a editora da Unicamp publicou a obra Materialidades discursivas que apresenta a versão traduzida dos textos resultantes do Colóquio Materialidades Discursivas, que se realizou em Nanterre, na França, de 24 a 26 de abril de 1980. A obra conta com contribuições de autoria de linguistas, psicanalistas, historiadores que, na época, se debruçaram sobre questões epistemológicas, metodológicas, teóricas da AD. A quinta parte da obra, por exemplo, se intitula Discurso e Psicanálise e traz três textos relacionados a esta articulação. Neste ano, 2018, se tem a publicação pela editora Pontes do primeiro volume da obra Análise de Discurso e Materialismos: historicidade e conceito organizada por Fábio Ramos Barbosa Filho e Lauro Baldini. Trata-se do primeiro de dois volumes que se desenvolvem a partir de contribuições acerca das relações entre AD e materialismos. Neste primeiro volume a psicanálise entra em cena como também a filosofia e a linguística a partir de um viés não conciliador da interdisciplinaridade ao reconhecer a incompletude e a fragmentação inerente aos objetos estudados considerando a radicalidade do Outro, o que traz implicações teóricas e políticas4.

Entre os eventos realizados em torno das relações entre discurso e psicanálise podemos mencionar a X Jornada CorpoLinguagem/III Encontro Outrarte que ocorreu em novembro de 2010, na Unicamp e promoveu um encontro entre pesquisadores, psicanalistas, professores para trabalhar a articulação da dimensão sem palavras e o discurso como estrutura. Desse evento, originou-se o livro De um discurso sem palavras, organizado por Nina Virgínia de Araújo Leite Jr., J. Guilhermo Milán-Ramos e Maria Rita Salzano Moraes e publicado em 2012. O título do livro se deu face à motivação de uma instância particular: o Seminário 18, de Lacan, foi analisado à luz do discurso sem palavras. Outro exemplo que se dá a partir da psicanálise sob inspiração discursiva é quando Tfouni (2008; 2011) vai trabalhar a questão da deriva visando explicitar de que forma a deriva opera enquanto fato discursivo “postulando uma dinâmica de concorrência – a qual não exclui a contradição – entre os eixos paradigmático (metafórico) e sintagmático (metonímico)” (TFOUNI, 2011, p. 197).

Somada às duas referidas publicações, temos uma anterior que data de 2004, publicada pela editora Claraluz, também organizada pela professora Bethânia Mariani em uma coletânea de textos intitulada A escrita e os escritos: questões em análise do discurso e em Psicanálise e, anteriores a estas publicações podemos mencionar a contribuição de Maliska (2003), com Entre Linguística & Psicanálise: o real como causalidade da língua em Saussure e Teixeira (2000), com Análise de discurso e psicanálise: elementos para uma abordagem do sentido no discurso. A criação do Grupo de Teoria do Discurso que teve apoio da FAPERJ e do CNPq reunindo psicanalistas e analistas de discurso interessados em trabalhar a dispersão de discursividades na contemporaneidade também pode ser mencionada como exemplo da expansão e do comprometimento com tal temática. Neste contexto, vale ressaltar que “[...] Lacan trabalha o sujeito como efeito de linguagem, enquanto que Pêcheux, retomando Althusser, irá colocar, inicialmente, o efeito-sujeito como questão central de seu trabalho, que incorpora o histórico-ideológico como constitutivo da materialidade significante” (MARIANI, 2003, p. 59). No entanto, para a autora, estas particularidades não impedem que sejam propostas articulações no interior dos campos mencionados.

Pensar nas articulações entre AD e psicanálise implica noutra constatação: perceber que a inserção de conceitos teóricos da psicanálise não se deu de modo tranquilizador, daí a necessidade de reterritorializar o saber que se insere nas teorias que estudamos. Isso porque Pêcheux sofreu a influência de outro teórico: Louis Althusser. Neste contexto, as diferenças explicitadas entre ambos os autores a partir de textos fundadores de Pêcheux foram apresentadas e problematizadas por Mariani em um artigo de 2010 publicado na revista Alfa, da Universidade de São Paulo, por exemplo. Dessa forma, o presente trabalho não pretende explicitar as diferenças entre Althusser e Lacan quando utilizadas no arcabouço teórico da AD, mas inspirar a partir do conceito de leitura sintomática althusseriano e os conceitos de real lacaniano como a impossibilidade de tudo dizer, de efeitos de sentido e de língua sujeita a falhas.

A leitura sintomal (ALTHUSSER, 1984), neste âmbito, é tomada como descentradora do indivíduo recusando o idealismo humanista e, ao invés de colocar o homem no centro ou na origem privilegia a noção de estrutura discursiva. Isso implica em pensar na aproximação de ambos os teóricos, Lacan e Althusser, em um objeto em questão: a linguagem. Se a leitura sintomal é percebida como distanciada de uma leitura literal também o analista do discurso não vai buscar sentidos “ocultos” ou “desvendar” verdades escondidas. Assim, a materialidade linguística vai possibilitar a ele perceber-se no gesto de interpretação como não situado na origem dos enunciados, nem ele, enquanto leitor ou ouvinte e nem o interlocutor ou aquele que escreve. Desse modo, ambos estão no bojo das condições de produção dos enunciados enquanto posições que permitem assinalar-lhes o lugar de autoria e leitura.

Para Orlandi (2010), não se pode deixar de mencionar que as diferenças precisam ser explicitadas: por exemplo, se para J-C Milner só há o real da língua, para Pêcheux há o real da história justamente porque Pêcheux define a discursividade como o efeito da língua sujeita a falha que se inscreve na história considerando o equívoco e a falha não como defeitos, mas como constitutivos do funcionamento do sujeito e do sentido. Assim como François Gadet5 no prefácio de La langue introuvable sugere a possibilidade de novas configurações em que a AD esteja presente, sua busca particular se deu a partir de uma interrogação sobre “o que fazem os seres humanos quando produzem discurso ou texto, quando pensam produzir sentido ou algo que pareça fazer sentido para outros interlocutores” (GADET, 2010, p. 14). Sobre o que ele chama de uma nova configuração foram mencionadas as palavras a seguir que podem nortear as pesquisas de quem dialoga com a AD e, para isso, não pode deixar de lado sua especificidade característica:


[...] nova configuração que não buscaria especialmente defender uma unicidade das ciências da linguagem, nem tenderia à autarquia com relação às outras ciências humanas ou à história e não retomaria a ilusão estruturalista de uma disciplina em posição de liderança intelectual.

Essa nova configuração se interessaria pelo sujeito falante, visto em um sentido amplo como utilizador da linguagem, como sujeito historicamente situado e como sujeito. E tal configuração trataria de transformar em objeto de investigação, compreensível e possível, não somente o que ele diz e o que parece dizer, mas também o que faz quando fala – e sobretudo quando fala do modo que fala e não de outra forma – tanto quando escuta ou se cala (GADET, 2010, p. 14).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tais considerações, devemos destacar que a interpretação é uma questão política, é uma questão de responsabilidade, de reconhecer que a neutralidade não existe. Desse modo, falar de articulações possíveis aumenta esta responsabilidade. Se desde 1969, Michel Pêcheux assinalava a necessidade de romper com o aplicacionismo vigente em estudos universitários que era utilizado e reproduzido para satisfazer as urgências pedagógicas do mercado, remontamos hoje para pensar no estranhamento necessário das práticas científicas para não corrermos o risco do lugar-comum de uma repetição sem memória.

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1 Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Florianópolis/SC. Grupos de Pesquisa: Michel Foucault e os estudos discursivos (UFAM/CNPq), Formação de Professores de Línguas e Literatura (FORPROLL/CNPq). E-mail: ediliteratus@gmail.com

2 Especificamente a vertente pecheutiana; AD daqui em diante.

3 Orlandi (2013; 2014) menciona o risco do reducionismo. Para ela, não se pode negligenciar o fato de que em AD falamos em materialismo histórico e não em marxismo. É aí que Pêcheux situa a psicanálise. Sem o cuidado com a especificidade, corre-se o risco do apagamento do que é próprio da AD: “o processo de produção de sentidos, o confronto do simbólico com o político, a ideologia, o assujeitamento como parte do processo de constituição do sujeito” (ORLANDI, 2014, p. 36). Então, Orlandi (2014, p. 36) conclui: “o sujeito discursivo não é o sujeito da psicanálise, embora leve em conta a relação da ideologia com o inconsciente”.

4 Disponível na apresentação do livro pela editora. O segundo volume não é mencionado no presente artigo porque estaria centrado nas relações entre AD e marxismo(s).

5 Vale destacar que Gadet está se referindo à possibilidade de novas configurações a partir de um exemplo específico: de suas interrogações discursivamente orientadas para o interior da Sociolinguística.