IMIGRANTES BOLIVIANOS EMO PAULO E A (DES)CONSTRUÇÃO DE
SUA IDENTIDADE (BI)NACIONAL
Análise sob a ótica do sistema de avaliatividade
Bolivian immigrants in são paulo and the (de)construction of their binational
identity: An analysis based upon the appraisal system
Rubens Lacerda de
1
RESUMO: Almejo, neste texto, estreitar o diálogo entre os construtos (des)construção
identitária, os paradigmas de inclusão/exclusão e (in)visibilizados socialmente e os
estudos que balizam o Sistema de Avaliatividade como parte do quadro teórico da
Linguística Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994). Qual teoria social da língua(gem),
esta permite a identificação e descrição de eventos sociais além de prover ferramentas
de análise que possibilitam um exame mais acurado de suas implicações nos atores
envolvidos no processo (MARTIN; WHITE, 2005). Convirjo com Halliday e Mathiessen
(2014) ao apresentar a metafunção interpessoal como ferramenta para entender as
relações sociais, as atitudes, os comportamentos e o movimento das identidades dos
indivíduos que compõem o tecido social moderno. Outras pesquisas ressaltam que o
movimento identitário de imigrantes envolvidos em uma diáspora internacional não deve
ser pautado por paradigmas de exclusão (SÁ, 2014; 2015). Nesta pesquisa qualitativa
(FLICK, 1998), procuro analisar um videoclipe no qual a cantora narra a situação de
imigrantes em diferentes países do mundo e como isso os afeta em nível individual e
familiar, usando, para tanto, como referência as impressões de alguns bolivianos que
assistiram ao videoclipe. A partir dos pressupostos da metafunção interpessoal e com
ênfase especial no sistema de avaliatividade, procuro realçar o que é apresentado no
videoclipe e também nos comentários ao deo feito pelos bolivianos. Por fim, busco
identificar como os imigrantes são invisibilizados e como sua identidade é etiquetada na
sociedade que os recebe e que se arroga como pluricultural e inclusiva.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Imigrantes Bolivianos; Sistema de Avaliatividade.
ABSTRACT: My main scope in this paper is to foster a dialogue between the themes of
the identity-building, inclusion/exclusion paradigms and social invisibility with the studies
based on the System of Appraisal as part of the theoretical framework of Systemic-
Functional Linguistics (HALLIDAY, 1994). As a Social Theory of Languages, it allows the
identification and description of social events as well as provides an array of analysis tools
that permits a more accurate examination of its implications for the actors involved in the
process (MARTIN, WHITE, 2005). I agree with Halliday and Mathiessen (2014) when they
present the interpersonal metafunction as a tool to understand social relations, attitudes,
behaviors and the movement of the identities of individuals that make up the modern
social scenario. Other researches highlight that the identity movement of immigrants
1
Doutorando em Linguística Aplicada (UNICAMP), Mestre em Linguística (UnB), Especialista no
Ensino de Línguas para Fins Específicos (UFMT) e Bacharel em Letras (UCCB). Docente no
Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (CEETEPS). Pesquisador Associado do
Centro Latino-Americano de Estudos em Cultura (CLAEC). E-mail: rubens.ladesa@gmail.com
involved in an international diaspora should not be guided by paradigms of exclusion (SÁ,
2014; 2015). In this qualitative research (FLICK, 1998), I try to analyze a video clip in
which the singer narrates the situation of immigrants in different countries of the world and
how it affects them both in an individual and familiar level using the impressions of some
Bolivians who watched the music video as a reference. Based on the assumptions of the
interpersonal metafunction and with special emphasis on the Appraisal framework, I try to
highlight what is presented in the video clip and also in the comments to the video made
by Bolivians. Finally, I try to identify how immigrants are invisibilised and how their identity
is labeled in the society that receives them and which claims to be pluricultural and
inclusive.
KEYWORDS: Identity; Bolivian immigrants; Appraisal System.
1. A INTRODUÇÃO
Por décadas, São Paulo tem sido navegada por imigrantes de diversas
nacionalidades. Cada grupo que passa, ou se estabelece na cidade, deixa suas
impressões e marcas na sociedade. Evidentemente não se trata de um processo
que rapidamente se consolida e se acomoda sem conflitos; talvez sejam
necessários anos para que essas impressões e marcas sejam visíveis e até
incorporadas na cultura da metrópole, e.g. os imigrantes portugueses, italianos e
japoneses, etc.
Ademais, diante do espectral formato econômico delineado nas últimas
décadas, a cidade passou a conviver com eventos migratórios internacionais que
impactam nas diversas esferas da sociedade local. Assim, neste artigo
2
, investigo
epistemologicamente como é (des)construída a identidade (bi)nacional dos
imigrantes bolivianos que, com relativa frequência e quantidade, desembarcam na
cidade. Segundo dados recentes da Polícia Federal, apenas em 2015, o Brasil
recebeu uma média diária de 23,4 bolivianos. Isso totaliza uns 700 imigrantes
mensais e pouco mais de 8.400 no ano (VELASCO; MANTOVANI, 2016).
Aproximar-se dos atores envolvidos e analisar as características e
implicações desse processo migratório contribuirá para a compreensão de como
as identidades (des)construídas e (in)visibilizadas e que processos de
2
Este artigo é um recorte oriundo da dissertação de mestrado Imigração Boliviana em Mares
Paulistanos Dantes Navegados: Inclusão dos (In)visíveis e (Des)construção Identitária, defendida
no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de Brasília, 2015.
(trans)formação e impacto social são (des)velados. Portanto, almejo apontar
sucintamente que imagens representativas de seu país de origem são mantidas e
que outras se manifestam e se transmutam à construção da [nova] identidade
coletiva e (bi)nacional. Igualmente à pinceladas, aspiro indicar como se esculpe a
(in)visibilidade nas percepções desses imigrantes no subsistema atitudes uma vez
que é nessa seara que os atores sociais em tela expressam seus afetos,
julgamentos e apreciações.
2. O CENÁRIO
De forma bastante sucinta, gostaria de apresentar ao leitor o cenário em
que este artigo está circunscrito. Trata-se de um bairro localizado na região
centro-sul da cidade São Paulo, chamado Bom Retiro. Por ser um polo de moda e
de confecções, atrai muito a atenção dos imigrantes bolivianos que, ao chegar de
seu país, não veem outra alternativa de trabalho senão se embrenhar neste setor
laboral, que é um dos poucos a que têm acesso.
Desembarcam em sua maioria nesse bairro sob o convite, as instâncias e,
na grande maioria das vezes, o patrocínio financeiro de parentes, amigos ou
simplesmente de compatriotas que desfrutam de certa estabilidade no setor de
trabalho mencionado anteriormente. Os recém-chegados têm, diante de si, uns
bons anos de trabalho até que possam adquirir certa independência financeira,
pois precisam saldar suas dívidas com seus patrocinadores, aportar recursos aos
familiares deixados em sua localidade de origem, bem como custear gastos com
suas estadias. Precisam trabalhar em média cinco anos para conseguir pagar os
custos de toda essa operação com o fito de que sua vinda e sacrifícios valham, de
fato, a pena.
Sendo assim, diante de tais circunstâncias, não lhes resta outra alternativa
senão se submeterem a jornadas laborais exaustivas. Trabalham normalmente
em oficinas de costuras na região central de São Paulo. Cumprem em média doze
horas diárias de trabalho, podendo chegar a quatorze ou até dezesseis horas em
vários períodos do ano. Não preocupação com o devido descanso,
alimentação apropriada, postura, iluminação, ventilação e salubridade. Como
exemplo, posso citar o estudo de Vanessa Martinez (2010) em que a autora
denuncia um aumento de 250% nos casos de tuberculose entre os bolivianos em
um período de dez anos em contraste com uma redução de 45% dessa doença
entre os brasileiros nesse mesmo período. Essa epidemia assola os bolivianos
porque esses são condicionados a trabalhar em locais com infraestrutura
precária, ambientes pouco higiênicos e fontes de contaminação e transmissão de
doenças.
Ademais, vivem em condições precárias. o alojados em ambientes
escuros, normalmente em porões ou sótãos, sem ventilação e iluminação natural,
sem saneamento adequado no imóvel e com o mínimo de conforto e condições
de higiene. Nessas acomodações também não privacidade, pois são
literalmente amontoados em grupos de dez, quinze, vinte ou até mais por imóvel e
na maioria dos casos não são parentes entre si. Isso gera muito constrangimento
e problemas de convivência, pois precisam compartilhar áreas comuns como a
cozinha e o banheiro. também a questão da alimentação que é inadequada e
que gera, em muitos casos, a deterioração da saúde dos bolivianos inclusive
entre os mais jovens.
Acrescido a todos os percalços de ordem interna, há, ainda, as dificuldades
de adaptação na comunidade local, composta de brasileiros e coreanos. Os
últimos, embora igualmente imigrados, desfrutam de melhores condições de vida,
dada sua saúde financeira. Posso exemplificar com a questão do domínio da
língua portuguesa. Embora essa seja tipologicamente distante da coreana, isso
não representa um problema para os imigrantes coreanos. Primeiro, porque eles
são inseridos em uma comunidade que possui um sistema de acomodação
próprio no mesmo bairro em que se encontram os bolivianos. Os coreanos têm
seu próprio sistema (em adição/paralelo ao Estado) de saúde, educação e
segurança bem como entretenimento, alimentação e outros serviços. Logo, o uso
da ngua portuguesa passa a ser secundário à sua estada no Brasil em um
primeiro momento. Ou seja, eles aprendem a língua mas esta não representa
uma condição sine qua non à sua permanência e/ou quiçá sobrevivência no país.
no caso dos imigrantes bolivianos a língua constitui-se um problema.
Inicialmente porque precisam saber a língua portuguesa bem o suficiente para ter
acesso a serviços públicos básicos e ao trabalho. Ademais, apresentam certo
grau de dificuldade para entender o Português. Isso se da especialmente por
conta das armadilhas em torno das similaridades entre as línguas portuguesa e
espanhola e/ou do distanciamento com sua língua materna, pois os bolivianos dos
interiores da país falam outras línguas. Na Bolívia fala-se o espanhol, quechua,
aimara, guarani e várias línguas indígenas.
Acrescido a isso, sofrem discriminação por virem de um país
economicamente mais pobre e, em decorrência disso, são estereotipados como
sendo pessoas sujas, incultas, aculturadas e não sociáveis. Todo o cenário, a que
faço menção, gera problemas bastante sérios com a construção da identidade
deste povo, que agora passa a ser binacional, Brasil-Bolívia, e que, muitas vezes,
força-os a rejeitar sua identidade primeira ou de suas origens. São igualmente
excluídos da sociedade, ou pelo menos invisibilizados e neutralizados, devido aos
muitos estereótipos a eles atribuídos. Essa assertiva, de rejeição e não de
comunhão na sociedade local, será demonstrada com a apresentação da
argumentação ao longo deste texto.
É neste cenário mais amplo que a pesquisa será consubstanciada visando
a compreender mais profundamente todas essas questões com vistas a propor
um melhor entendimento que possa, senão resolver, pelo menos contribuir para
atenuar ou minimizar o sofrimento desses imigrantes.
3. A TEORIA
3.1. O Sistema de Avaliatividade e o desvelar de identidades
(des)construídas
Em linhas gerais, a teoria linguística que fundamenta a pesquisa aqui
apresentada é a Linguística Sistêmico-Funcional (LSF) tal qual proposta por
Halliday (1985, 1994), Halliday e Matthiessen (2014), e explicada em Eggins
(2004). Mais especificamente, apoia-se, no âmbito da LSF, no Sistema de
Avaliatividade em conformidade com Martin e White (2005).
A Linguística Sistêmico-Funcional direciona atenção para o uso efetivo da
linguagem verbal via texto em relação à atividade social em jogo, levando em
conta, para tanto, a ação dos interlocutores envolvidos no processo de interação.
Nessa perspectiva, a língua não se constitui de regras como defendem as teorias
formalistas, constitui-se de recursos à disposição do enunciador para construir
significados realizados léxico-gramaticalmente e expresso fônica ou graficamente.
Assim, ao direcionar seu foco para a para a funcionalidade da linguagem
verbal, o que possibilita a explicação e a interpretação de textos em seus
contextos de uso, a teoria sistêmico-funcional coloca à disposição do analista um
poderoso instrumental analítico para a descrição da língua (EGGINS, 2004;
HALLIDAY, 1994; THOMPSON, 1995), que é poderoso porque a teoria que o
informa aborda a língua a partir de um ponto de vista sociossemiótico, pelo qual
ela é compreendida como um entre os diversos sistemas de criação de
significados presentes na cultura ou sociedade. Nesse sentido, entende-se que
os membros de uma comunidade, como partes de uma cultura/sociedade, trocam
significados uns com os outros para agir nas atividades reconhecidas como
próprias dessa cultura/sociedade (HALLIDAY; HASAN, 1989). Nesse
pressuposto, a língua(gem) se movimenta de forma dinâmica e fluida, na tessitura
social dentro de um espectro conotativo e denotativo, centrado nas personagens,
nas relações (a)simétricas e nas (inter)ações sociais em múltiplos contextos de
situação e de cultura.
Ao chamar a atenção para um dos problemas que podem advir da
língua(gem) em uso na sociedade, nesta relação entre indivíduos e a coletividade,
o principal mentor da LSF alerta:
(…) o aumento do lixo, a contaminação do ar e água, incluindo os
processos mais letais da contaminação física parecem ser mais
fáceis de tratar do que a contaminação do meio social causada
pelos preconceitos e animosidade de raça, cultura e classe
(HALLIDAY, 1982, p. 18).
Concordo com a declaração de Halliday, ainda que bastante impactante,
pois assumo a dor dos imigrantes bolivianos em São Paulo vitimados pelo que se
denuncia acima. E, antecipando-me, trato aqui não apenas da dor dos bolivianos,
mas de todos os imigrantes que saem de sua terra natal, deixando atrás suas
raízes familiares, sociais, culturais e históricas. Vão em busca de um eldorado
onde não haja injustiças sociais. Entretanto, acabam sendo obrigados a enfrentar
outro(s) tipo(s) de injustiça(s): as ações xenofóbicas da terra acolhedora.
O Sistema de Avaliatividade, foco desta pesquisa, foi desenvolvido dentro
do arcabouço teórico da LSF, em específico, no domínio dos significados
interpessoais, os quais se den finem como sendo recursos semânticos usados
para negociarmos ou interagirmos através de trocas, com os outros, de
experiências subjetivamente representadas como informação ou bens-e- serviços
e para construirmos, na e pela interação com os outros, nossas identidades a
partir de nossos posicionamentos e juízos de valor (avaliação). Os significados
produzidos decorrentes das negociações e avaliações na interação realizam ou
constroem a variável contextual Relações e constituem a metafunção interpessoal
da linguagem verbal. É dentro dos pressupostos do Sistema de Avaliatividade que
podemos abordar/analisar a questão da (des)construção identitária dos imigrantes
bolivianos.
O Sistema de Avaliatividade abrange três diferentes domínios de
significados avaliativos interligados entre si: ‘atitude’, ‘engajamento’ e ‘gradação’.
Esses domínios juntos formam a rede de sistemas de escolhas avaliativas
abrangendo até seis níveis de delicadeza. Assim, de acordo Martin e White
(2005), a rede de sistemas de avaliatividade se inicia a partir do sistema TIPOS
DE AVALIATIVIDADE, com os termos/escolhas ‘atitude’, ‘engajamento’ e/ou
‘gradação’.
Para os objetivos deste artigo, no que tange às análises, foi lançado mão
apenas o primeiro domínio de significado do Sistema de Avaliatividade
denominado de ‘atitude’. Martin e White (2005) idealizam a ‘atitude’ como sendo a
dimensão do significado interpessoal que envolve três regiões semânticas, as
quais estão relacionadas aos sentimentos de afeto, ao julgamento do
comportamento humano e à apreciação dos valores estéticos de objetos e
entidades, por conseguinte, diz respeito, segundo Martin e Rose (2003), à
“avaliação da coisas, do caráter das pessoas e seus sentimentos” (p. 22). Os três
sistemas, portanto, estão interligados respectivamente aos conceitos clássicos de
emoção, ética e estética.
Conforme Martin (1992), é nessa dimensão do significado interpessoal que
os sentimentos são avaliados, visto que “uma perspectiva interpessoal nos
posiciona a sentir e através de sentimentos partilhados nos posiciona a pertencer”
(p. 326). É, por conseguinte, nessa concepção que a avaliatividade negocia, nos
textos, a relação entre os participantes. A ‘atitude’ se manifesta por meio de
enunciados que, ao serem interpretados de forma contígua, mostram que na
enunciação, alguém, alguma coisa, situação, ação, evento ou estado de coisas
posiciona-se de forma positiva ou negativa. Sua concretização -se por meio de
um vasto e diversificado grupo de categorias gramaticais, entre elas se destacam:
adjetivo (atributivo); adjetivo (epíteto); verbo (processo); advérbio (adjunto de
comentário).
A ‘atitude’ considerada a partir da conjuntura da rede de sistemas da
avaliatividade é um dos termos/escolhas de significado interpessoal avaliativo
ligado, ressalta Martin e White (2005), a sentimentos emotivos, éticos e estéticos
do falante - e posiciona-se no sistema de primeiro nível de delicadeza TIPOS DE
AVALIATIVIDADE. Ao ser escolhido, o termo ‘atitude’ passa a ser condição de
entrada a um sistema mais refinado à direita, ou melhor, possibilita o acesso ao
um sistema de segundo nível de delicadeza, o qual se configura dentro da rede
como TIPOS DE ATITUDE e que, por sua vez, desdobra-se nos termos/escolhas
‘afeto’, e/ou ‘julgamento’ e/ou ‘apreciação’. Portanto, o ‘afeto’ é um tipo de atitude
que evoca a “área emotiva dos sentimentos; diz respeito a avaliações sobre as
emoções das pessoas [...]”. Por sua vez, o ‘julgamento’ é um tipo de atitude que
reproduz a área ética dos sentimentos; tem a ver com as avaliações sobre o
comportamento das pessoas [“...]”. Já a ‘apreciação’ se refere à “área estética dos
sentimentos; contempla avaliações sobre o aspecto estético das coisas e dos
fenômenos, tanto os semióticos quanto os naturais[...]” (PRAXEDES FILHO;
MAGALHÃES, 2013a, p. 77).
4. A METODOLOGIA
Em uma música de 1967, chamada I am the Walrus, John Lennon destaca
em um dos versos, a relação cíclica de identificação social entre os diferentes
indivíduos que fazem parte de uma sociedade. Para ele, no final das contas,
todos deveriam ser parte do mesmo todo
3
. Em um reggae de 1998, chamado
Clandestino, Mano Chao aborda o tema da (in)visibilidade do imigrante
4
.
Essas questões alinham-se muito bem com as análises deste artigo. Nelas
compartilharei algumas impressões obtidas dos participantes da pesquisa após
assistirem a um videoclipe
5
, em que a cantora aborda a questão identitária do(s)
imigrante(s) resultando em sua invisibilidade. O foco central será uma análise de
trechos específicos da letra da música, a partir de um subsistema da Teoria da
Avaliatividade e que se relaciona com a questão da (des)construção de
identidade(s).
Reconheço, entretanto, como pesquisador que “as inconsistências e
contradições são parte do processo contínuo do projeto de pesquisa”; não
obstante, procuro garantir a excelência deste texto através da “boa
documentação, da transparência e da clareza nos procedimentos na busca e na
análise dos dados” (BAUER; GASKELL, 2013, p. 483).
Os participantes da pesquisa, cujos nomes foram mudados para preservar
sua identidade, são imigrantes bolivianos residentes no bairro Bom Retiro em São
Paulo. A primeira participante é uma boliviana solteira, que chamarei de Dona
Carolina, graduada em Letras na Bolívia e professora de Inglês, inclusive no
Brasil. Tem 48 anos de idade, é avó e cria a sua netinha, fruto do
relacionamento de sua filha, também boliviana, com um jovem paraguaio. Sua
filha tem 25 anos de idade e passou pelo menos metade de sua vida no Brasil.
Também é mãe de um jovem, igualmente boliviano, de 21 anos de idade, e que
vive no Brasil pelo menos três terços de sua vida.
Ao segundo participante, chamarei de Juan, também solteiro, 35 anos, sem
filhos, boa formação educacional na Bolívia, pois é graduado em Pedagogia e deu
início aos seus estudos de pós-graduação latu sensu, abandonados por falta de
recursos. Desembarcado no Brasil, no bairro Bom Retiro, cerca de 7 anos.
3
[…] I am he as you are he as you are me; and we are all together […]
4
Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=rSEUH4KRfN8. Acessado em 05/09/2017.
5
Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=23dHxb4F9w0. Acessado em 10/04/2017.
Fala muito pouco o Português, visto que tem tratos apenas com bolivianos e
outros hispanoamericanos. Seus traços físicos, sua postura, seu modo de falar,
seu comportamento, hábitos e costumes, sua vestimenta, etc. são bem marcantes
e indicam que Juan orgulha-se dessa herança cultural.
O terceiro convidado-participante será chamado de José, um jovem de 22
anos, nascido na Bolívia e que, orgulhosamente, ostenta seu documento como
estrangeiro no Brasil, RNE (Registro Nacional de Estrangeiro), mas que foi criado
e recebeu educação escolar no Brasil. Procura marcar sua identidade boliviana
mantendo os hábitos alimentares, hábitos e costumes e valorizando o que é de
sua terra natal, sobretudo a língua que permanece sem marcas do Português,
ainda que fale este último muito bem e sem sotaque. Curiosamente, esse jovem
rompeu a tradição de costura na família, qualificou-se profissionalmente e
trabalha numa multinacional americana no setor de informática e atendimento ao
público hispanoamericano, pelo que seu bom manejo tanto do Português como do
Espanhol lhe foram bastante úteis.
Mariana será a quarta participante. É filha de bolivianos, mas é nascida no
Brasil. Estudante do ensino médio, 16 anos, fala muito bem o espanhol, pois é
membro de uma comunidade religiosa que utiliza apenas esse idioma em suas
atividades. Embora marcada por essa dupla pertença Brasil-Bolívia, Mariana
parece transitar bastante bem entre as duas culturas. e da indícios de ser a mais
bem resolvida do grupo
6
.
Por fim, ao quinto e último participante, chamarei de Senhor Pedro.
Boliviano, sociólogo, 50 anos de idade, radicado no Brasil uns 25 anos. No
entanto, preserva todos os traços de seu país de origem, tais como os hábitos e
costumes, alimentação, postura, modo de falar, etc. Entretanto, é curioso o fato
de que o senhor Pedro, ainda que demonstre ser facilmente identificado como
boliviano típico pelo descrito acima e tenha parco domínio do Português,
consegue transitar com muito pouca dificuldade na comunidade local, tendo,
numa primeira análise, absorvido as marcas identitárias locais.
6
Trata-se aqui apenas de uma afirmação baseada em observação empírica, sem caráter ou
pretensão de comprovação científica visto que esse não é o escopo deste artigo. Estou apenas
descrevendo a participante segundo minhas impressões enquanto pesquisador.
Passo agora a consideração do videoclipe musical mencionado e que
servirá de fomentador de comentários sobre a identidade (bi)nacional dos
imigrantes bolivianos que participaram da pesquisa. Incialmente apresentarei a
letra da música, originalmente escrita em Espanhol, e uma tradução livre feita por
mim mesmo. Em seguida, destacarei alguns trechos da sica que usarei para
demonstrar, a partir dos pressupostos teóricos eleitos para esta consideração,
como a identidade do(s) imigrante(s) é afetada nesse processo de trânsito
internacional. Fiz algumas inserções entre parêntesis, na tradução, para facilitar a
compreensão das ideias originais.
Esta canção faz parte da discografia de Norma Delia Espinosa Zamora,
Normiqueen, que nasceu em Bayamo, Cuba, em 4 de janeiro de 1987. Passou
sua juventude na terra cálida de Santiago de Cuba e aos quinze anos de idade
imigrou para a Finlândia, onde reside atualmente. Estudou Desenho e
Comunicação Social, mas sua paixão sempre foi música; como a que segue:
Quadro 1 Música: El emigrante, Normiqueen.
El emigrante
O imigrante
Aha, es Normiqueen, Yalorde Records, y
produce el Xirujano
Aha, aqui é Normiqueen, da Yalorde Records
e produzido por Xirujano
Hay buenas máquinas
Produção de primeira
Esto está dedicado a todos los emigrantes
Dedico esta a todos os imigrantes
especialmente a mis hermanos cubanos
em especial aos meus irmãos cubanos
Esto está difícil, hay que prosperar, avanzar
Está difícil, (mas) é preciso prosperar e progredir
La necesidad y el hambre, tus hijos no deben
experimentar
A necessidade e a fome, teus filhos não devem
provar
La perseverancia por triunfar, salir adelante, te
convirtieron en emigrante
A persistência para poder triunfar, ser bem-
sucedido, te transformaram em um imigrante
Tomar esa decisión tan triste, dejar la tierra
dónde naciste, creciste, viviste
Tomar essa decisão tão triste, deixar a terra
onde você nasceu, cresceu e viveu
Dejar todo atrás, a lo que estás acostumbrado
Deixar para trás tudo (a que) está acostumado
Y tratar de resolver tu vida en otro lado
E tentar melhorar sua vida em outro lugar
Y llega el choque de cultura que la gente fula
E vem o choque de cultura que te irrita
Que es el frío, que's la nieve, enfín, la
temperatura
O frio, a neve, enfim, a temperatura
(La) distancia que nos separa de nuestra gente
(A) distância que nos separa de nossa gente
querida
querida
Amigos, primos, hermanos, toda nuestra familia
Amigos, primos, irmãos, toda nossa família
Aprender un nuevo idioma, volver a empezar de
zero
Aprender uma nova língua, começar do zero
¿Y cómo hago ahora, pa’ conseguir dinero?
E como faço para ganhar dinheiro?
Tu única esperanza es algún dia regresar a esa
tierra que tanto amas y tanto has de extrañar
Sua única esperança é voltar algum dia para a
terra que você tanto ama e sente falta
¿Y qué serás, que no extrañas de tu país?
E do quê, no seu país, você não sente falta?
La gente pobre pasa hambre, sí, pero feliz
Os pobres passam fome, (mas) são felizes
Aquí, tengo de todo, cubro mis necesidades
Aqui tenho tudo (que preciso) para minhas
necessidades
Pero no tengo el beso de “buenas noches” de mi
abuela, ¿verdad?
Mas, não tenho o beijo de boa noite” da minha
avó, não é?
Como dice ese refrán: que Dios le dio barba a
quien no tiene quijada
Como diz um dito popular: Deus não asa a
cobra
¿Y que será? Que yo le extrañe de mi isla
E do quê não sinto falta de minha ilha?
Que tan solo recordarla me saca una sonriza
Que em lembrá-la me faz rir
La playa, carnaval, es matar el tiempo con la
amistades, la cerveza, el ron, formar un buen
rumbón, jugar cartas en el parque, trancar el
dominó y ese cerdito asado cuando el viejo año
dice adiós.
A praia, o carnaval, passar tempo com os
amigos, a cerveja, o rum, os grupos de dança,
os jogos de baralho no parque, as partidas de
dominó, o leitão assado nas festas de ano novo
Yo nací en una isla que se llama Cuba
Eu nasci em uma ilha que se chama Cuba
Dónde pa' emigrar casi siempre hay que buscar
su yuma
Onde quase é preciso achar um estrangeiro
cheio da grana para conseguir emigrar
Y no se puede criticar, ¿qué vamos a hacer?
E não se pode criticar nem fazer nada
Si ahí hasta por pensar te pueden desaparecer
(Pois), até por pensar dão um sumiço em você
Muchos se prostituyen, roban para comer
Muitos se prostituem (e) roubam para comer
Pues los mandados en la libreta no alcanzan
para el més
(Visto que) o salário no seu holerite não para
nada
¿Y qué cosa es la libreta? Ven que te lo hago
saber
O que é holerite? (Venha que) te explico
Es un papel que dice cuanto el cubano debe
comer al més
É um papel que diz quanto o cubano pode
comer por mês
Sí, así es la vida
Sim, assim é a vida
Del emigrante
Do imigrante
Que dejó todo atrás
Que deixou tudo para trás
Pa’ seguir adelante
Para ser bem-sucedido
Dios mediante la cosa algún dia cambie
(E que espera) em Deus que as coisas mudem
algum dia
Y regrese a sua tierra de dónde nunca debió
marcharse
E ele possa voltar a terra de onde nunca deveria
ter saído
Sí, así es la vida
Sim, assim é a vida
D’ estas personas
Dessas pessoas
Que cuentan años, meses, días, inclusive horas
Que contam os anos, meses, dias e inclusive
horas
Para unirse con su gente, que tanto añora
Para se juntar com seu povo (de quem) sente
tanta saudade
Pues eso es lo que su corazón ahorita s’ implora
(Visto que) isso é o que seu coração sempre
implora
Ahora estás del lado (d’)acá
Agora (que) está desse lado
Y con una mejor vida, mas a la hora de comer
E com uma vida melhor, mas (que) na hora de
comer
Piensas qué come tu família
Pensa no que está comendo sua família
Una mini llamada te llena por un momento
Uma breve ligação telefônica até satisfaz por
uns instantes
Mas la nostalgia te invade a medida que pasa el
tiempo
Mas a saudade volta a invadir a medida que o
tempo passa
Ahora desde aquí es que vemos y valoramos
Daqui que) podemos ver (e) dar valor
Todo aquello que tuvimos, y que nunca notamos
A tudo (que) tínhamos, e não nos dávamos
conta
Estamos a veces tan ocupados que olvidamos
darle amor a toda la gente que en realidad
amamos
Estamos tão ocupados às vezes que
esquecemos de demonstrar amor a todos
(aqueles) que amamos de verdade
Nos consuela el dinerito que mandamos
mensualmente, incuerentes
O dinheirinho que mandamos mensalmente nos
consola, mas isto é incoerente!
Esos sentimentos encontrados es saber que
desde aquí y sin tanto que decir ayudas más que
estando allá obstinado, pero a su lado.
Esses sentimentos confusos (ao saber que)
mesmo de longe e sem poder falar muito você
ajuda (mais do que estando ao lado deles, mas
sem trabalho)
La soledad nos invade, la tristeza nos la
mano
A solidão nos invade (e) a tristeza anda de mãos
dadas
Todo eso que tienes ya no te importas ni un
carajo
Tudo o que você tem agora não te serve para
nada
¿Qué hago?
Que fazer?
Con casa, comida y carro
(Se) tenho casa, comida e carro
Si a mi familia un ciclón el techo se lo trajo abajo
(Mas), um ciclone derrubou a casa da minha
família
Esa preocupación, palpitó del corazón
Essa preocupação bate forte no coração
Cuando a medianoche de momento tu móvil
sonó
Quando à meia-noite seu celular toca
La razón de esa llamada tan doliente
(E) a razão dessa chamada tão doída
Para te dar notícia de que se te murió un
pariente
É para te avisar de que um parente morreu
La vida no es siempre hermosa
A vida não é sempre tão bonita (quanto parece)
No todo es color de rosa
Nem tudo é um mar de rosas
Recuerda que de una oruga, salió la mariposa
Lembre-se que (a) borboleta nasce de uma
lagarta
¡Ahora, goza!
Aproveite (a vida) agora!
De lo poco que tienes
(Aproveite) o pouco que tens
Que algún día estarás con la gente que
quieres
Pois algum dia você estará com quem te ama
¡Sacrifícios!
Sacrifícios!
De esto está llena la vida
A vida está cheia deles
¡Sufrimientos!
Sofrimentos!
Pues las cosas tristes no se olvidan
(Visto que) não para esquecer as coisas
tristes
Ahora caminas
Agora (você) anda
Tu, siempre (apuesto) y elegante
Sempre bem arrumado e elegante
Que’ stá la vida que nos tocó a los emigrantes
(Pois), esta é a vida dos imigrantes
Estribillo
Refrão
Sí, así es la vida
Sim, assim é a vida
Del emigrante
Do imigrante
Es triste caballero
É triste, meu senhor
Pero, ¡hay que seguir parante!
Mas, não para desistir!
(El emigrante, Joselito)
Cuando salí de mi tierra
(Quando) saí da minha terra
Volví la cara llorando
Saí com lágrimas nos olhos
Porque lo que más queria
Porque os a quem eu mais amava
Atrás me lo iba dejando
Estava deixando atrás
Fonte: elaborado pelo autor
5. AS ANÁLISES
Na metafunção interpessoal, o papel discursivo do interlocutor é centrado
no ato de dar/trocar informações e, o faz, através do uso excessivo de
declarações e interrogações cujo objetivo semântico é propor uma reflexão ao
ouvinte/leitor sobre alguma temática de ordem social que o preocupa/aflige. Ao ler
a letra da música noto que a cantora tem essa preocupação em cada um dos
versos e na maneira como os estruturou.
Exemplifico o acima, nos versos: “[…] A persistência para poder triunfar,
ser bem-sucedido, te transformaram em um imigrante”; “[…] Tomar essa decisão
tão triste, deixar a terra onde você nasceu, cresceu e viveu”; “[…] E como faço
para ganhar dinheiro?”; “[…] Muitos se prostituem (e) roubam para comer”; “[…]
Que fazer?”; etc. Com esses poucos versos que uso para exemplificar as
asserções do parágrafo anterior, ilustro como a cantora quer que reflitamos sobre
a situação do imigrante, seus conflitos e seus dissabores.
Por um viés bastante inesperado por nós, e diferente dos outros bolivianos
envolvidos na pesquisa, veja no excerto abaixo como um dos participantes,
chamado Pedro, extraiu do videoclipe musical, sentimentos positivos acerca de
sua relação como imigrante no Brasil.
Excerto 1 Comentário sobre o videoclipe: Pedro
7
Fonte: acervo do autor.
Aqui, Pedro envolvido em um processo de dupla identificação, enxerga no
vídeo que algo de bom e positivo ao imigrar. Quer que saibamos que esse
processo envolve escolhas e que, em seu caso particular, ter vindo para o Brasil
foi uma experiência que valeu à pena.
Outro conceito interessante que encontro na obra de Halliday e que vale
ressaltar na canção se relaciona com conceito de antilinguagem. Este implica a
investigação da reconstrução da vida na/pela língua(gem) realizada em condições
de tensão social e na (re)construção de significados em contextos de conflito
social o que, pressupõe, a existência de uma antissociedade (SÁ, 2014). Halliday
(1982, p. 213), diz que “uma anti-sociedade é uma sociedade que se estabelece
dentro de outra como alternativa consciente a esta, um modo de resistência, que
pode adotar a forma de simbiose passiva ou hostilidade ativa”. Veja na imagem a
seguir um exemplo de antissociedade dentro do conceito de antilinguagem a que
o autor em epígrafe faz referência:
7
“sinto-me como um viajante bem assessorado. Estando no meus país, senti apreço por ele; pela rica
diversidade de climas, tipos de vegetação, gente, música, tipos de comida. Quando cheguei ao Brasil senti o
mesmo respeito e apreço; essa é a atitude que me manteve aqui por estes 20 anos e imagino ainda que me
manterá.”
Figura 1 Anti-sociedade
Fonte: Imagem elaborada pelo autor
A figura acima ilustra o conceito de antilinguagem, nos termos propostos
por Halliday (op.cit.). Esse conceito se relaciona com a situação dos imigrantes
(bolivianos), conforme ilustra a letra da música em análise. Esta, apresenta em
vários momentos a existência dessa (anti)sociedade de resistência, simbiótica e,
às vezes, hostil. Exemplos são vistos nos versos: “[…] Aprender uma nova língua,
começar do zero”; “[…] Daqui que) podemos ver (e) dar valor”; “[…] Tudo o que
você tem agora não te serve para nada”; etc.
No excerto de Mariana, vejo um processo interessante nesse movimento
de anti-sociedade/antilinguagem, parte desse processo de (des)construção
identitária.
Excerto 2 comentário sobre o videoclipe: Mariana
Fonte: acervo do autor
Durante todas as atividades relacionadas ao vídeo, Mariana vive um
movimento duplo de identificação com a cultura boliviana, dos pais e da irmã,
fortemente arraigadas no seio familiar, comunitário e religioso em que transita.
Ora Mariana identifica-se como sendo boliviana ora nega sê-lo e arroga para si a
nacionalidade brasileira.
Após assistir o videoclipe, notei que Mariana passou por um momento de
silêncio e, ao ser convidada a escrever suas impressões sobre o que viu, ela opta
por reforçar que ela é brasileira; quer reforçar sua identidade como sendo
brasileira e que a única coisa que guarda relação com a Bolívia é sua aparência,
cabelo, rosto. Reforça que seu jeito e personalidade são do país em que
nasc(eu), o Brasil. Vejo aqui um movimento inverso no conceito de anti-
sociedade/antilinguagem conforme proposto neste texto. O videoclipe fez com
que Mariana adotasse uma atitude hostil e de resistência ao sofrimento dos
imigrantes narrado na música.
Reforço, que todo o acima abordado, está relacionado com a questão da
(des)construção identitária dos imigrantes. Entro neste esteio a partir dos
pressupostos do Sistema de Avaliatividade que introduzi nas análises com a
citação:
Halliday (1994) discute que qualquer análise de discurso é sempre
feita em dois níveis: o primeiro é a compreensão do texto: a
análise linguística que permite que se mostre como e por que o
texto significa o que significa; o outro nível é uma contribuição à
avaliação do texto: a análise permite que se diga o motivo pelo
qual o texto é ou não eficaz para os seus propósitos, e requer não
somente uma compreensão do texto, mas também de seu[s]
contexto[s] e do relacionamento sistemático entre o contexto e o
texto (MORAIS, 2012, p. 72).
No nível de avaliação da linguagem objetivo analisar , como foi dito, a
atitute em termos dos objetivos da cantora em relação à identidade do imigrante
que é (des)construída no processo de imigração. No subsistema de atitude do
Sistema de Avaliatividade, o participante expressa seus sentimentos em tom
discursivo específico, um tom que se relaciona com seu papel discursivo e as
relações que estão envolvidas neste processo. Isso coaduna com Halliday, pois:
O tom [discursivo] se relaciona com a natureza, os papéis e o
status dos participantes: o tipo de relações advindas, inclusive as
de natureza prementes e temporárias, de um ou outro modo;
[envolve] tanto os tipos de papéis discursivos em que estão
engajados e todo o cenário social em que estão envolvidos
(HALLIDAY, 1985b, p. 12)
8
.
Em termos de atitude, Martin (2000, p. 144) acrescenta
9
: “[Se refere a]
como os interlocutores se sentem, os julgamentos que fazem, e o valor que
atribuem aos vários fenômenos de sua experiência” .
Veja como no excerto a seguir, de outro participante, José, confirma-se a
citação acima.
Excerto 3 Comentário sobre o videoclipe: José
Fonte: acervo do autor
8
Tenor refers to who is taking part, to the nature of the participants, their statuses and roles: what
kinds of role relationship obtain, including permanent and temporary relationships of one kind or
another, both the types of speech roles they are taking on in the dialogue and the whole cluster of
socially significant relationships in which they are involved.
9
How the interlocutors are feeling, the judgements they make, and the value they place in the
various phenomena of their experience
Ao tratar da experiência de sair da terra natal, vivida na infância, José
mostra no excerto acima como se sente: me faz sentir que não tenho
nacionalidade e não me sinto parte de um país. Ou seja, para José, sua
identidade foi (des)construída a tal ponto de ele achar que não pertence a
nenhum país, não ter nacionalidade. Por outro lado, chama a nossa atenção
como ele julga o fenômeno da mudança a partir de sua experiência pessoal: ter
sido muito bem recebido e me sinto mais confortável aqui. Vejo esta ambiguidade
de declarações como marcas, cicatrizes dessa (des)construção de sua identidade
como boliviano.
Na perspectiva que estou abordando, os falantes exprimem sua(s)
postura(s), suas atitudes mentais e seus valores, conforme graficamente ilustrado
pelos excertos de Pedro, Mariana e José. Na letra da música em análise, a
cantora expressa o acima e marca sua identidade como imigrante, também ora
positiva ora negativamente. Veja isso nos versos: “[…] E vem o choque de
cultura que te irrita; “[…] O que é holerite? (Venha que) te explico”; “[…] Essa
preocupação bate forte no coração”; etc.
Dentro do subsistema de atitude, o interlocutor se posiciona a partir de
diferentes prismas, a saber, em relação à sua própria atitude, a do outro e em
relação ao (inter)texto. Veja alguns exemplos extraídos da letra da música em
tela: a) relativo à (própria) atitude: “[…] como faço para ganhar dinheiro?”; “[…]
aqui tenho tudo para minhas necessidades”; b) relativo ao outro: “[…] os pobres
passam fome em Cuba” ; “[…] muitos se prostituem”; e, c) relativo ao (inter)texto:
“[…] diz um dito popular: Deus não asa a cobra”; “[…] a borboleta nasce de
uma lagarta”. Percebo, nos exemplos citados, que a cantora se posiciona e
mostra sua atitude em relação ao que significa ser imigrante e estar longe de sua
terra natal. Evoca memórias, sentimentos múltiplos e conflituosos causados pela
situação em outro país. O excerto a seguir retrata muito bem o que assevero.
Excerto 4 Comentário sobre o videoclipe: Carolina
10
Fonte: acervo do autor
É forte a atitude e os sentimentos de Carolina em relação à imigração:
sinto [que] saí de casa com sapatos e voltei de chinelos; ou seja, para ela,
sentimento de arrependimento, de perda e de frustração. Como se se sentisse
culpada em seu pensamento de ter tomado a decisão errada ao deixar para trás o
que tinha em seu país. Tal sentimento múltiplo e conflituoso é reforçado quando
diz que [se] sente uma forasteira até mesmo em meu próprio país. Para Carolina,
assim como na música, o desejo constante e ardente de querer voltar às suas
origens: penso que temos a opção de voltar. Entretanto, como sua identidade
como boliviana está (des)construída, não [voltamos] por diferentes razões. Tudo
isto se relaciona com a atitude em relação si mesma e ao outro, conforme
preconiza a Avaliatividade.
A categoria do afeto é a que mais emerge em toda a música e
está intimamente relacionada com as atitudes associadas às emoções, às
reações e ligadas às subjetividades ou, nos termos desta análise, às identidades
dos imigrantes. Vale ressaltar que esta categoria é realizada por meio de recursos
gramaticais diversos. Veja, com grifos acrescentados, exemplos que encontro na
letra da música: a) circunstância: Agora você anda sempre bem arrumado e
elegante”; b) adjetivo: “Em Cuba os pobres são felizes”; c) processo: “[…] te
10
sinto-me com este pensamento: saí de casa com sapatos e voltei de chinelos. Porque me sinto
uma forasteira até mesmo em meu próprio país. Penso que temos a opção de voltar, mas não o
fazemos por diferentes razões.
transformaram em um imigrante”; d) comportamento: “E como faço para ganhar
dinheiro?”; e) adjunto: “a razão dessa chamada tão doída”; f) polaridade: “Tudo o
que você tem agora não te serve para nada”; g) gradação: “Nós mandamos o
dinheirinho mensalmente”; e, h) estado emocional: “a solidão nos invade”.
Apresento no excerto do último participante, Juan, como o afeto é
demonstrado através de diferentes recursos gramaticais e como estes se
relacionam com a questão de sua identidade, suas reações e emoções como
imigrante boliviano residente em São Paulo.
Excerto 5 Comentário sobre o videoclipe: Juan
11
Fonte: acervo do autor
Assim, como procuro demonstrar na letra da música, Juan usa em seu
excerto vários recursos gramaticais para chamar a atenção para suas emoções e
sua identidade como boliviano. Por exemplo, ele diz: a) processo: custa adaptar-
se”; b) modalidade: tantas coisas novas”; c) nominalização: “adaptar-se a
preconceitos”; d) polaridade negativa: ser chamado de ‘Bolívia’ ou ‘ô Bolívia’”;
11
No início, imigrar é difícil para adaptar-se a tantas coisas novas no novo país: costumes,
comida, idioma, televisão. Além disso, você precisa adaptar-se a preconceitos, como ser chamado
de Bolívia’ ou ‘ô Bolívia’. Mas, com o tempo, você vai se acostumando, embora sua identidade
você leva no sangue de boliviano.”
e) estado emocional de resistência: “sua identidade você leva no sangue de
boliviano”.
É interessante que Juan sugere as dificuldades enfrentadas como
imigrante boliviano no Brasil, mas faz questão de reforçar sua identidade boliviana
que leva no sangue. Vale ressaltar que Juan é o participante que faz mais
questão de preservar seus traços identitários bolivianos marcando-os de forma
bem acentuada em sua postura, fala, etc. Diferente dos outros participantes, Juan
usa o material do vídeo para destacar que ele é boliviano, no sangue e isso é algo
não mudará.
6. AS CONSIDERAÇÕES FINAIS
À guisa de conclusão, entendo que, no caso dos imigrantes, ocorre
fragmentação e instabilidade identitária, às vezes contraditórias, pois eles, ao
imigrarem, apenas anseiam a aceitação da comunidade local como são. No
entanto, são forçados, não num processo natural, como lemos na extensa obra de
Stuart Hall, Michel Foucault, Anthony Giddens, Kathryn Woodward e tantos
outros, a abrir mão de sua cultura, tradição, língua e, consequentemente,
identidade para receberem acesso a (este) espaço social simbólico. Nesse
processo, a letra da música eleita, para demonstrá-lo, indica que o imigrante
passa por momentos de sentimentos bastante conflituosos. Embora reconheça os
benefícios de tal mudança, sobretudo as de caráter financeiro, passa por um
processo constante de avaliação para verificar se realmente vale à pena a troca
que ele faz, a saber, a de desenraizar-se por melhores condições de vida.
O que quero dizer com processo natural é, em outras palavras, que aos
imigrantes não lhes é dada a oportunidade de participar do jogo de identidades,
líquido, movediço e imprevisível (BAUMAN, 2007), em que eles mesmos possam
atuar como agentes dessa inevitável (des)construção. Concluímos, então, com as
sábias palavras de um sociólogo Francês, quando ele diz que talvez não exista
pior privação, pior carncia, que a dos perdedores na luta simbólica por
reconhecimento, por acesso a uma existncia socialmente reconhecida, em
suma, por humanidade” (BOURDIEU, 2000, p. 242).
Arrematando este artigo, gostaria de salientar que as histórias de vida os
imigrantes bolivianos, que participaram nessa pesquisa, são, o que posso chamar
de ‘imagens em movimento’. Sendo tais, nunca haverá uma análise, feita por nós
ou outros, que capte uma verdade única do texto que tais histórias produzem. O
que tentei fazer foi ser o mais explícitos e objetivos possível a despeito dos
recursos que utilizamos na coleta dos dados. Como linguista, estudioso do
discurso, busquei, nas entrelinhas, das falas dos bolivianos entender como ocorre
o processo de invisibilidade, de exclusão e de (des)construção identitária dos
imigrantes no contexto social em que estão inseridos.
Meu desejo sincero é que, o leitor, tenha aumentado sua compreensão dos
processos de (in)visibilidade, exclusão e (des)construção identitária envolvendo
os imigrantes bolivianos em São Paulo. Como cientista social e pesquis-a-dor de
vidas e dores alheias (SÁ, 2017, p. 64), espero ter contribuído para sua satisfação
e sede de conhecimento e entendimento do objeto de pesquisa que me propus a
analisar.
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