SOBRE A RADICALIDADE DA TÉCNICA
Benjy Compson e o fluxo de consciência
About the radicality of technique: Benjy Compson and the flow of
consciousness
Lucas da Silva LOPES
1
Fabio Akcelrud DURÃO
2
RESUMO: O presente texto discute a problemática da utilização específica do fluxo de
consciência ou monólogo interior por William Faulkner na primeira seção a seção de
Benjy do romance O som e a fúria, apontando as diferentes tensões e impasses que
surgem no aspecto formal da técnica quando submetida a leituras de cunho modernista
ou pós-modernista. Parte-se de uma descrição da narrativa e da apresentação das duas
abordagens em discussão, rumo a considerações sobre a técnica literária e a relação
entre literatura e crítica. O argumento é que o acúmulo de leituras críticas permite o
surgimento de tensões imprevistas, as quais por sua vez terminam por oferecer um
vislumbre inesperado de uma possível resposta à disputa crítica corrente entre técnica e
autenticidade.
PALAVRAS-CHAVE: Benjy Compson. Fluxo de consciência. Procedimento formal.
Crítica modernista. Crítica pós-modernista.
ABSTRACT: The present text aims to discuss the way Faulkner used the stream-of-
consciousness also known as interior monologue in the first section Benjy’s – of The
Sound and the Fury. The analysis relies on the different tensions and contradictions that
appear on the narrative technique surface when submitted to modernist or post-modernist
approaches. We depart from a short description of the section and the presentation of two
main critical approaches towards considerations on the literary technique itself and the
relation between literature and criticism. The main argument states that the accumulation
of criticism gives rise to unexpected formal tensions, which entail a surprising glance of a
potential answer to the current critical controversy between narrative technique and
authenticity.
KEYWORDS: Benjy Compson; stream-of-consciousness; narrative technique; modernist
criticism; post-modernist criticism.
1
Mestrando em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas com bolsa do
CNPq. Licenciado em Letras - Português pela Universidade Estadual de Campinas (2011-2015).
Atuou como secretário da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e
Linguística, ANPOLL, de janeiro/2016 a janeiro/2018. E-mail: slopes.lucas@gmail.com
2
Professor Livre-Docente do Departamento de Teoria Literária da Unicamp. Formou-se magna
cum laude em Português/Inglês pela UFRJ, e obteve o mestrado em Teoria Literária pela
UNICAMP. Doutorado foi feito na Duke University, onde estudou com Frank Lentricchia e Fredric
Jameson. De 2014 a 2016 foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Letras e Linguística (ANPOLL). Atualmente é membro do Comitê de Assessoramento (CA) da
área de Letras do CNPq. E-mail: fabioadurao@gmail.com
1. DAS REGRAS DO JOGO
O leitor que se volta para a primeira seção de O som e a fúria, romance de
William Faulkner publicado em 1929, depara-se com a narrativa de Benjy: caçula
dos irmãos Compson, portador de uma deficiência intelectual severa. A narrativa
desenvolve-se conforme Benjy percorre os espaços da propriedade na qual
nasceu e sempre viveu, sendo acompanhado ou acompanhando o seu cuidador,
Luster, o adolescente negro neto da criada responsável pela cozinha da família
Compson, Dilsey. Conforme entra em contato com determinados objetos,
situações, sons e estímulos visuais a memória de Benjy salta para momentos
temporais diversos, fazendo-o reencenar eventos de seu passado no presente de
sua narrativa. O relato do personagem é apresentado de modo integral através do
fluxo de consciência e, devido à sua condição, os fragmentos de memória
aparecem embaralhados, inseridos em uma total desordem cronológica advinda
de sua incapacidade em processar a distinção temporal , sem rubricas típicas da
narração onisciente ou comentários analíticos do narrador.
Essa primeira seção do romance é aquela que comumente faz os leitores
torcerem o nariz, optando em muitos casos por abandonar a leitura. Não seria
demasiado exagero afirmar que a fama do romance provém, em larga escala,
dessa sua primeira seção, a qual se tornou emblemática não apenas do romance
como também da obra de Faulkner como um todo. De partida, a cena inicial
coloca uma série de dificuldades diante do leitor.
APRIL SEVENTH, 1928.
Through the fence, between the curling flower spaces, I could see
them hitting. They were coming toward where the flag was and I
went along the fence. Luster was hunting in the grass by the flower
tree. They took the flag out, and they were hitting. Then they put
the flag back and they went to the table, and he and the other hit.
Then they went on, and I went along the fence. Luster came away
from the flower tree and we went along the fence and they stopped
and we stopped and I looked through the fence while Luster was
hunting in the grass. (FAULKNER, 2012, p. 3)
3
3
Tradução: 7 DE ABRIL DE 1928. / Do outro lado da cerca, pelos espaços entre as flores curvas,
eles estavam tacando. Eles foram para o lugar onde estava a bandeira e eu fui seguindo junto à
cerca. Luster estava procurando na grama perto da árvore florida. Eles tiraram a bandeira e
tacaram outra vez. Então puseram a bandeira de novo e foram até a mesa, e ele tacou e o outro
tacou. Então eles andaram, e eu fui seguindo junto à cerca. Luster veio da árvore florida e nós
Certamente, o impacto e estranhamento causados pela abertura do
romance de Faulkner são enormes. Em primeiro lugar, trata-se da descrição de
uma cena bastante inusitada: o narrador, através da cerca, observa “pessoas”
(them) a paráfrase de “them” como pessoas” é problemática nesse ponto da
narrativa que o pronome não demanda essa associação em específico
batendo (hitting); ele as acompanha de seu lado da cerca conforme se aproximam
de uma bandeira (flag). Nesse momento, expandindo a confusão perpetrada pelo
uso pronominal sem antecedentes e emprego verbal sem objeto direto, surge o
primeiro nome próprio do romance, Luster. Note-se que o narrador afirma de
forma abrupta sem apresentação prévia que Luster estava procurando na
grama próximo à árvore florida: não é esclarecido o que é o alvo de sua procura.
Desenrola-se, então, um estranho ritual: “eles” (they) tiram a bandeira e batem
novamente, colocam a bandeira de volta, se direcionam à mesa, um bate e o
outro bate, andam e são seguidos pelo narrador, enquanto Luster continua a
vasculhar a grama.
O leitor mais hábil talvez compreenda o que se passa na cena através da
referência à bandeira retirada e recolocada, porém, os indícios ainda não
permitem uma afirmação categórica. Uma forte pista daquilo que está
acontecendo, acompanhada logo na sequência por um índice que a torna
problemática, aparece no segundo parágrafo do romance, o qual também contém
a primeira fala da narrativa. “Here, caddie.” He hit. They went away across the
pasture. I held to the fence and watched them going away. (FAULKNER, 2012, p.
3)
4
O termo “caddie”
5
finalmente descortina a cena: trata-se de um jogo de
golfe. Pode-se, agora, lançar um olhar retroativo para o parágrafo anterior: -se
nitidamente que o pronome “themse refere às pessoas envolvidas na partida de
golfe, enquanto o verbo “hit” se refere às tacadas típicas desse jogo. Outros
seguimos junto à cerca e eles pararam e nós paramos e eu fiquei olhando através da cerca
enquanto Luster procurava na grama. (FAULKNER, 2009, p. 5)
4
Tradução: “Aqui, caddie.” Ele tacou. Eles atravessaram o pasto. Agarrei a cerca e fiquei olhando
enquanto eles iam embora. (FAULKNER, 2009, p. 5)
5
Definição do dicionário Michaelis: caddie (cad.die) n caddie: rapaz que leva os tacos e outros
objetos no jogo de golfe. vi servir de caddie.
elementos tornam-se transparentes: a bandeira e a mesa. Entretanto, o narrador
menciona que “eles atravessaram o pasto” em vez de dizer que atravessaram o
campo. Portanto, embora a cenografia geral tenha sido esclarecida, ainda restam
muitas perguntas sem respostas. O próximo parágrafo apresenta a primeira fala
de Luster, bastante elucidativa quanto a algumas das questões que haviam ficado
em suspenso, porém, ainda muito reticente em um aspecto essencial:
“Listen at you, now.” Luster said. “Aint you something, thirty three
years old, going on that way. After I done went all the way to town
to buy you that cake. Hush up that moaning, Aint you going to help
me find that quarter so I can go to the show tonight.” (FAULKNER,
2012, p. 3)
6
Enfim o leitor fica ciente de que o narrador possui 33 anos e que Luster
procura por uma moeda que lhe permitirá assistir a um show na mesma noite. No
entanto, a fala de Luster também informa que o narrador está choramingando.
Surge, então, o questionamento sobre o motivo do lamento do narrador e o que o
teria provocado; adicionalmente estranha-se o uso desse termo, “moaning”, para
descrever a ação repentina realizada por alguém de 33 anos de idade no contexto
da cenografia estabelecida. Somente alguns parágrafos à frente quando Benjy
se prende em um prego ao atravessar uma fenda na cerca e é remetido a um
momento similar no passado o nome Caddy aparece pela primeira vez (p. 4) e,
então, é possível perceber a relação homófona entre o “caddie” do jogo de golfe e
a “Caddy” personagem. Entretanto, se por um lado tem-se a elucidação do que
motiva a aflição do narrador, ou seja, o termo “caddie” provocou a remissão à
personagem “Caddy”, desembocando no lamento; supõe-se, então, que exista
alguma relação de tensão, algum índice de sofrimento entre o narrador e esta
personagem. Por outro lado, será possível associar que “Caddy” é o nome da
irmã do narrador na página 7 do romance, quando a própria Caddy, em uma das
lembranças evocadas, se refere àquela a quem ele havia anteriormente
denominado mãe utilizando-se do mesmo termo. Até mesmo o acesso à
deficiência de Benjy é possível através, principalmente, das falas de Luster e
de ações e falas de outras personagens direcionadas a Benjy.
6
Tradução: “Que barulheira.” disse Luster. Onde que se viu, trinta e três ano, chorando desse
jeito. Depois que eu fui até a cidade só pra comprar aquele bolo pra você. Para com essa
choradeira. Por que é que você não me ajuda a procurar aquela moeda pra eu poder ir no circo
hoje.” (FAULKNER, 2009, p. 5)
Ou seja, para colocar no papel o fluxo de consciência de Benjy, o narrador
de 33 anos, portador de uma severa deficiência intelectual, Faulkner precisou
depurar uma série de mecanismos da linguagem a fim de atingir um nível de
estranhamento condizente com o seu narrador. Benjy não possui noções
temporais precisas de presente, passado e futuro seu tempo funciona como um
presente contínuo; da mesma forma, não possui linguagem verbal articulada; não
é capaz de efetuar relações de causalidade ou de lógica de modo refinado.
Incapaz de um senso apurado de perspectiva, sequer de momentos de
reflexividade, Benjy vivencia a realidade com uma mente infantil fundada em
categorias básicas de apreensão, sobretudo sensoriais.
A cena de abertura, portanto, opera uma desfamiliarização desconcertante
daquilo que, de outra forma, seria uma situação bastante corriqueira. Essa
construção textual alerta o leitor para a excentricidade do relato, sendo que a
estranheza da escrita é motivada pela falta do frame “golfe” aliado a uma
descrição marcada pela exatidão. Trata-se de uma narração altamente “realista”
que aliena o leitor por operar segundo regras bastante específicas: o material
textual é desenvolvido com base em um modo descritivo, depurado de
interpretações e julgamentos latentes naquilo que é explicitado no próprio texto
(cf. ROBINSON, 2007, p. 115-116).
Há, nessa primeira seção, como demonstram Noel Polk (1996, p. 99-109),
Owen Robinson (2006, p. 13-30; 2007, p. 115-132) e Taylor Hagood (2012, p. 92-
106), uma cisão entre significante e significado, entre causa e efeito: os jogadores
de golfe não desenvolvem um jogo, apenas fazem coisas; não efetuam tacadas,
simplesmente batem; não atingem objetivos do jogo e controlam pontuações,
apenas tiram e recolocam a bandeira e se dirigem à mesa. O campo de golfe é
chamado de pasto mais tarde, nas seções de Quentin e Jason, -se que o
local do campo é o antigo pasto dos Compson, vendido para financiar os estudos
de Quentin. O termo “caddie” está longe de identificar uma função do jogo; Luster
apenas procura; o narrador não descreve suas próprias reações. Benjy, assim,
não possuiria e também não necessitaria de explicações para o que ocorre diante
de seus olhos. Robinson (2006, p. 17) defende que o mais importante nessa
narrativa é a apreensão do porque e como as coisas ocorrem, mais do que o q
acontece. Essa quebra entre significante e significado, bem como a ausência de
relações de causa e efeito refletida, sintaticamente, na recorrente omissão de
antecedências pronominais , será uma marca característica no decorrer da
seção. Da mesma forma, Polk, citando o estudo de Irena Kałuża, aponta que os
mecanismos linguísticos mais fundamentais funcionam de uma maneira bastante
específica na narração de Benjy: substantivos não admitem sinônimos nem
modificações e dificilmente são substituídos por pronomes (Caddy é
majoritariamente referida como Caddy termo raramente substituído por formas
pronominais ou outros modos de referência: ela, menina, irmã, etc). Os outros
personagens também o sempre referidos por um mesmo nome, sendo que
personagens desconhecidos para Benjy o são sequer individualizados (cf.
FAULKNER, 2012, p. 13-17; 50-51); o mesmo acontece com os objetos e coisas
com os quais Benjy entra em contato, tudo o que é desconhecido não pode ser
nomeado diretamente (cf. KAŁUŻA, 1967, p. 49-50 apud POLK, 1996, p. 104). A
estalactite é nomeada como “pedaço de água”, porque esta é a forma de Benjy
encaixar o novo objeto na variedade de objetos conhecidos: She broke the top of
the water and held a piece of it against my face. Ice. That means how cold it is.’
(FAULKNER, 2012:13, grifos nossos)
7
.
O que se desenrola na primeira seção de O som e a fúria é a
desestabilização semântica do universo de referência em prol de um exercício
radical de verossimilhança com a consciência do narrador ainda que, vale
ressaltar, essa consciência não seja exposta diretamente, pois, sempre uma
instância acima de Benjy que filtra a consciência do personagem, a qual, se
exposta literalmente, seria ininteligível. A cena inicial poderia ser transcrita, em
termos de uma conjunção acertada entre significado e significante, como na
paráfrase que segue: “Enquanto eu espiava pela cerca, via os jogadores de golfe
dando suas tacadas. Acompanhava-os pela cerca enquanto percorriam o campo.
Luster procurava a sua moeda perdida pela grama próximo à árvore florida.
Quando um dos jogadores disse ‘Aqui, caddie’, lembrei-me de minha irmã e
comecei a chorar. Luster reclamou de meu choro pedindo para que eu me
acalmasse”. Mas neste caso, além de uma narrativa ridícula, não seria Benjy o
narrador.
7
Tradução: Ela quebrou um pedaço da água e encostou no meu rosto. ‘Gelo. Quer dizer que
está muito frio.’” (FAULKNER, 2009, p. 15, grifos nossos)
É importante ressaltar que as dificuldades se intensificam ao longo do
avanço narrativo, sendo que a sobreposição de cenas provindas de diferentes
momentos cronológicos desponta como a questão mais melindrosa da seção. O
acúmulo de fragmentos oriundos de temporalidades diversas produz uma espécie
de caleidoscópio multifacetado. Entretanto, o exemplo propiciado pela cena de
abertura e alguns outros momentos específicos da narrativa nos serão
suficientes para prosseguirmos com a discussão, ficando assim a dissecação
detalhada da questão temporal reservada para um momento mais oportuno.
Como visto, ao lidar com regras bastante restritivas, a narrativa de Benjy
lança mão de mecanismos fora do convencional para atingir um alto grau de
sofisticação narrativa. Entre eles estão o recurso à sinestesia, às mais diversas
associações advindas da exploração das características sensoriais de Benjy, ao
embaralhamento cronológico, à repetição, recorrência e justaposição de
diferentes episódios temporais. O destaque de apenas algumas destas
passagens é elucidativo a respeito do modo como a narrativa é construída: “[…]
Caddy smelled like trees and like when she says we were asleep. (FAULKNER,
2012, p. 6)
8
Benjy associa Caddy às sensações naturais que lhe inspiram alguma
espécie de conforto. De acordo com os críticos Noel Polk e Stephen Ross (1996,
p. 12) a última parte dessa afirmação (“smelled… like when she says we were
asleep”) não é clara, embora certamente seja uma imagem natural, apropriada à
consciência de Benjy em seu hábito de cheirar outras coisas. Ao longo de sua
seção Benjy é capaz de cheirar o frio, a morte, e doenças, por exemplo. Algumas
das associações sensoriais feitas por Benjy são passíveis de serem circunscritas,
como é o caso da referência recorrente a Caddy “smells like trees” que,
pressupõe-se, esteja ligada às vivências infantis de Benjy e Caddy pela
propriedade dos Compson, situações de alegria e conforto que Benjy
simbolicamente associa à sua irmã. Entretanto, circunscrever essa referência
mesmo que a circunscrição ensaiada seja problemática, pois, não nada no
romance que a valide em definitivo ainda não dá conta de lhe assegurar
inteligibilidade. Afinal, o que seria esse “smell like trees” associado por Benjy a
8
Tradução: […] Caddy tinha cheiro de árvore e de quando ela diz que a gente estava dormindo.
(FAULKNER, 2009, p. 8)
Caddy? É improvável que se trate do aroma das árvores atribuído à Caddy, mais
provável que seja o inverso: o cheiro de Caddy é tomado como sendo das árvores
que, então, retorna como associação à Caddy. Não é possível depreender do
romance um ponto final para essa questão. Porém, ainda mais difusa é a segunda
parte da imagem apresentada por Benjy, menos presente na narrativa: “She
smells like when she says we were asleep”. O efeito poético dessas associações,
na linha do que diria Cleanth Brooks (cf. 1963, p. 325-348), é imenso, mas a
inteligibilidade é mínima. Trata-se de uma forma de comunicabilidade que não se
detém no sentido, que mais evoca do que diz.
Robinson (2006, p. 17) comenta que, de modo paradoxal, estas linhas
poderiam ser tomadas como quase um ideal poético: uma linguagem plana, o
mais próximo da efetiva experiência de seu narrador. Outras passagens, além de
ratificar a recorrência, apontam para diferentes contextos de utilização desse ideal
de linguagem, que variam da pura descrição à evocação de sentimentos e
impressões. No que tange à descrição do ambiente, é lapidar a descrição dos
efeitos da luz do sol nos buracos da parede do celeiro como The slanting holes
were full of spinning yellow” (FAULKNER, 2012, p. 12)
9
. No que se refere a
evocações mais complexas de sentimentos ou impressões, o impacto da
progressão é denotado sensorialmente: We ran up the steps and out of the bright
cold, into the dark cold” (FAULKNER, 2012, p. 7)
10
as sensações se tornam
tangíveis em sua identificação inextricável com o lugar. Todas estas passagens,
que poderiam ser entendidas como equívocos de “leitura” por parte do narrador,
são na verdade acertos da sua “escrita”: uma escrita empenhada em um registro
radicalmente imediato e sensorial.
2. DUAS ABORDAGENS CRÍTICAS
Em geral, as frases de Benjy permanecem suspensas em incompletude,
sempre "trying to say", como menciona Noel Polk (1996, p. 109). Trata-se de uma
9
Tradução: Os buracos tortos estavam cheios de um amarelo que rodava. (FAULKNER, 2009, p.
15)
10
Tradução: Subimos os degraus, saímos do frio claro e entramos no frio escuro. (FAULKNER,
2009, p. 9)
sintaxe marcada pela ausência de predicados, falta de objetos, sem os
complementos gramaticais para finalizar as sentenças. E essa é a metáfora de
como as coisas são para Benjy: sempre tentando dizer algo, tentando se
expressar para o mundo, mas sem os recursos da linguagem. No entanto, a
análise dessa sintaxe enseja um importante questionamento levantado por Polk
(1996, p. 104-106): o relato de Benjy pode ser efetivamente considerado como
narrado por Benjy? A linguagem fixada no papel seria a expressão exata daquilo
que se passa na mente do personagem?
Destoando da crítica mais tradicional, o crítico responderá negativamente
às duas questões. Os termos empregados até este ponto (relato de Benjy,
narração de Benjy, lembranças de Benjy) são colocados em xeque por Polk. A
linguagem da seção destinada a Benjy é a linguagem de Faulkner, advoga o
crítico. Benjy, não possuindo linguagem verbal, não pode ser tomado como
narrador, na verdade o personagem é a pura negação da narração. O mundo de
Benjy é repleto de significantes, mas parco em significados; com isso o
personagem é mais tomado como filtro narrativo do que como agente da
narração. Benjy não relata, ele experimenta o mundo ao redor e essas
impressões visuais, sensoriais, emotivas são transcritas em uma linguagem
verbal que emula aquilo que Benjy no momento mesmo em que ele o vê.
Faulkner, por sua vez, condescendendo ao seu personagem, outorga-lhe voz,
diminuindo sua própria voz de autor, tornando essa triangulação passível de
credibilidade. Dessa forma, compreende-se que a linguagem escrita que forma o
relato funciona como um objeto correlativo direto às sensações físicas e visuais
do personagem; trata-se da linguagem de Faulkner, melhor ainda: é uma
linguagem de Faulkner específica para Benjy a fórmula aqui pode ser
sintetizada da seguinte maneira: a primeira seção do romance apresenta aquilo
que Benjy diria, se pudesse dizer aquilo que não pode. Amesmo aquilo que
poderia ser chamado de lembrança perde esse sentido quando aplicado à Benjy:
o personagem revive os fatos de seu passado como presente não há a distância
e a abstração necessárias para tomá-los como memória.
Evidentemente é possível lançar a objeção de que todo autor, em maior ou
menor grau, sempre concede voz ou constrói linguagens específicas para as suas
personagens. Em se tratando do fluxo de consciência essa concessão é ainda
mais sensível. Desse ponto de vista o questionamento a respeito da fidelidade
mimética da técnica, no caso de Benjy, para com uma suposta estrutura da
consciência se revelaria um falso problema: é inerente ao fluxo de consciência o
seu caráter de aproximação. Entretanto, vale notar que a condição imposta pelas
características de Benjy, em conjunto com o fato de que sua seção é construída
por inteiro através dessa técnica, impõem um desafio considerável na construção
formal da narrativa. Em outras palavras, é possível afirmar que a possibilidade de
analogia psicológica com a performance da técnica produz uma certa
transparência, tornando a aproximação algo com caráter de espelhamento. É
essa automatização que a performance narrativa de Benjy rompe, ensejando que
se pense a estrutura profunda da técnica ao invés de somente o seu efeito.
A abordagem de Polk retoma a consideração lapidar de Michael Millgate,
ainda do início dos anos 1960:
Benjy’s section is a technical tour de force, one of the most famous
in modern literature. Here the tale of sound and fury” is literally
“told by an idiot”, and to Benjy himself it signifies little. Clearly
Faulkner cannot render accurately in words the thought-
processes of someone for whom words have no symbolic
meaning, and what he really gives us in this section is a
series of physical impressions recorded directly, without the
intervention of an ordering and interpreting intelligence. It is a
convention of pure objectivity […]. For Benjy, “time past” and “time
present” are as one, and what happened thirty years ago is as
vivid and alive as what is happening in the novel’s “now”.
(MILLGATE, 1961, p. 27, grifos nossos)
11
Essa retomada, porém, é importante salientar, incorpora avanços
consideráveis em termos de procedimentos de análise e implicações críticas. As
explicações de Polk (1996, p. 99-109) são bastante convincentes, principalmente
por coadunarem com uma análise textual refinada. As conclusões propiciadas por
suas afirmações conduzem à problematização da seção de Benjy como fluxo de
consciência, na medida em que, levando-se em consideração que seria
11
Tradução (nossa): A seção de Benjy é um tour de force da técnica, um dos mais famosos na
literatura moderna. Aqui o conto de "som e fúria" é literalmente "contado por um idiota", e pouco
significa para o próprio Benjy. É nítido que Faulkner não pode colocar em palavras de modo
acurado o processo de pensamento de alguém para o qual as palavras não possuem valor
simbólico, e que o que ele realmente nos proporciona nessa seção é uma série de
impressões físicas capturadas diretamente, sem a intervenção de uma inteligência
ordenadora e interpretativa. É uma convenção de pura objetividade […]. Para Benjy, o
"passado" e o "presente" são um, e o que aconteceu a trinta anos é tão vívido e real quanto o que
está acontecendo no "agora" do romance (MILLGATE, 1961, p. 27, grifos nossos).
impossível a Benjy narrar a sua própria seção, o procedimento é posto em
questão. Assim, a narrativa aparece mais como um exercício de emulação de um
possível fluxo de consciência do personagem do que um emprego da técnica tal
qual, o que equivale a dizer que de partida a narrativa coloca em evidência o
procedimento formal que a aproximação pressuposta pela técnica se por
meio do estranhamento e não da identificação psicológica.
No caso da seção de Benjy, portanto, tem-se ou um falseamento da técnica
ou a emulação da aproximação mais típica pressuposta por esta. Trata-se da
técnica colocada em evidência desde a primeira linha. Alinhado à tônica
modernista, O som e a fúria, no cerne de seus mecanismos narrativos, permite
que o procedimento seja trazido ao primeiro plano. A questão reside em pensar
que o movimento habitual da técnica é sua ocultação por uma série de camadas
de sentido, muito mais imediatas, que cobrem a superfície narrativa; o fito da
técnica é o funcionamento automático e transparente de suas engrenagens.
Sendo assim, o interessante dessa seção é que colocar o procedimento em
evidência, levá-lo ao seu limite, não deixa de ser uma forma de direcioná-lo à
possibilidade de sua dissolução: atingir os limites do procedimento, ou seja, tornar
as suas engrenagens visíveis e a lógica de seu funcionamento apreensível,
equivale a atingir os limites de sua sustentação.
Não obstante, embora o desdobramento da hipótese de Polk tenha o trunfo
de ensejar o aspecto extremamente modernista do texto a ênfase radical na
forma e a ampliação do horizonte do representável , se for levada ao extremo,
ao reductio ad absurdum da experimentação formal, será preciso então admitir
um ventriloquismo maniqueísta de Faulkner em sua relação com Benjy. É o que
faz Hagood (2012, p. 97-104) ao oferecer um contraponto bastante substancial à
hipótese de Noel Polk, a qual no fim do dia coloca Faulkner na posição do
demiurgo e Benjy na posição de uma marionete. De acordo com Hagood, assumir
que o relato seja de Faulkner acarreta uma conclusão espinhosa: a primeira
seção de O som e a fúria não se destinaria a explorar os pensamentos e
sentimentos de Benjy enquanto alteridade autêntica, mas a u-lo para contar a
história de interesse daquele que o controla. Nesse sentido, manter o enredo em
movimento torna-se mais importante do que explorar o personagem Benjy. Essa
hipótese é reforçada pelo fato de que são apresentadas na primeira seção
somente as lembranças que, de alguma forma, servirão para propulsionar a
narrativa, sendo que as passagens mais indecifráveis somente o são por não
permitirem uma localização cronológica clara, ou por serem carregadas de
impressões sensoriais que fogem a uma compreensão nítida, e não por se
desvincularem dos padrões do avanço narrativo. O crítico (HAGOOD, 2012, p.
98), de modo bastante provocativo, afirma que se poderia imaginar, por exemplo,
James Joyce como autor dessa primeira seção: supõe-se que haveria,
minimamente, um acúmulo de passagens inteiramente desconexas com a linha
narrativa, cheias de ruídos, que se fariam presentes pelas demandas da
construção do personagem e de sua forma de linguagem. Tem-se uma
consideração valorativa polêmica: ou Faulkner distendeu o procedimento à sua
dissolução ao colocar uma subjetividade sui generis como Benjy como sujeito,
superando o procedimento ao expor seus limites formais; ou o autor foi incapaz
de levar a cabo as demandas da verossimilhança exigidas pela lógica
procedimental que assumiu.
Ademais, defende o crítico, tomar a narrativa como sendo de Faulkner
revela muito mais sobre o próprio Faulkner, sobre o que ele pensa de Benjy e
sobre o que ele pensa que Benjy pensa, do que sobre o personagem Benjy.
Hagood (2012, p. 99) observa que a abordagem representacional escolhida por
Faulkner não costuma ser questionada na crítica faulkneriana. De fato, levando-se
em conta que se trata de um personagem portador de uma debilidade severa, os
reflexos dessa sua característica deveriam se fazer presentes no texto através de
ruídos sintáticos e semânticos, hesitações, equívocos no registro, erros
ortográficos, falhas na articulação, disposições estranhas no texto, etc. No
entanto, o estilo de Benjy, dentro da dinâmica de suas regras, é impecável e
pode-se dizer que a língua de sua seção é a língua da família Compson com
algumas depurações linguísticas que caracterizariam as limitações do
personagem. Nesse ponto é importante ressaltar que Benjy convive a maior parte
do tempo com os negros, contudo, a linguagem escolhida para representar aquilo
que supostamente passa em sua mente é uma versão reduzida do dialeto
aristocrático dos Compson. A verossimilhança pressuposta pelo procedimento
formal assumido na narrativa não é desenvolvida com a radicalidade imposta pela
condição do personagem.
Debruçar as regras do jogo propostas pelo romance sobre o próprio
romance, ou seja, estender a verossimilhança ao ponto mais radical conduz a
uma situação que cria um problema de autenticidade. Haggod defende que a
linguagem da primeira seção deve ser encarada, então, como uma tensão entre a
linguagem de Benjy e a linguagem de Faulkner. Gene Fant Jr. (1994 apud
HAGOOD, 2012, p. 101) questiona, por exemplo, o trocadilho linguístico mais
famoso do romance: a confusão entre o significante “caddie” com o homófono
“Caddy”. Nos limites da verossimilhança o trocadilho não se sustenta, pois,
“caddie” não poderia ser “caddie” na mente de Benjy, deveria sempre ser “Caddy”,
sendo que o mais alto grau de verossimilhança pela perspectiva de Benjy seria o
emprego do termo “Caddy” quer seja em referência ao personagem do jogo de
golfe ou à sua irmã, pois, o fundamento último do texto se sustenta na afirmação
de que Benjy seria incapaz de distinguir os dois termos: haveria na mente de
Benjy, de forma bem resolvida, apenas um termo.
A saída para o impasse tem de estar na própria narrativa e seria a busca
da explicação da reação de Benjy ao ouvir o termo “caddie” não em sua
similaridade fonética com o nome “Caddy”, mas em algo mais específico ligado a
esse nome. Em termos quantitativos, o nome Candace aparece em dez
ocorrências na seção de Benjy: uma vez dito por seu tio Maury; uma vez dito por
seu pai o qual utiliza o nome Caddy nas demais ocorrências ; e oito vezes dito
por sua mãe sendo a forma exclusiva através da qual Mrs. Compson se refere à
sua filha. O apelido Caddy, por outro lado, aparece duzentas e oitenta e oito
vezes na seção
12
: essa é a forma exclusiva pela qual Benjy, seus irmãos e os
negros da casa a nomeiam. O apelido de Candace foi dado por seu pai e revela
um forte conflito, central para a narrativa, entre as concepções amorais e niilistas
de Mr. Compson que já aparecem na seção de Benjy, mas são mais enfatizadas
na seção de Quentin e a sede de distinção e adequação social de Mrs.
Compson. A passagem seguinte, como destacado por Gene Fant Jr., é reveladora
a esse respeito:
“Candace.” Mother said. “I told you not to call him [Benjamin] that
[Benjy]. It was bad enough when your father insisted on calling you
12
Os valores apresentados foram apurados através da edição digital do romance: The Sound and
the Fury: A Hypertext Edition (2003), disponível em: <http://www.usask.ca/english/faulkner>.
by that silly nickname, and I will not have him called by one.
Nicknames are vulgar. Only common people use them. Benjamin.”
She said. (FAULKNER, 2012, p. 62)
13
A questão não se resume a Benjy se confundir com fonemas que evocam o
nome de sua irmã, mas pela forma complexa com que essa forma de nomeá-la o
atormenta, por remetê-lo a uma igualdade cruel com ela: ambos foram
marginalizados pela mudança de seus nomes
14
. O conflito entre o desprezo
sarcástico pelas convenções sociais (Mr. Compson) e a ambição em se manter no
centro dessas mesmas convenções (Mrs. Compson) é o motor da decadência da
família Compson, da tragédia de Caddy, e da perda sofrida por Benjy. O termo
“Caddy” condensa um dilema e, portanto, contém toda a carga de “som e fúria”
lançada sobre a personagem por sua família. É possível depreender que Benjy
compreenda, ainda que do modo mais intuitivo, aquilo que sua mãe insinua e as
consequências disso. Assim, o termo “Caddy”, além de evocar a afeição de Benjy
pela personagem, aponta para a sua consciência acerca do banimento de sua
irmã e, por analogia, de sua própria situação marginalizada. A complexidade do
texto, assim, aparece não no fato de que as debilidades de Benjy são o vetor para
a representação, mas em uma complexidade latente na estrutura de pensamento
e grau de consciência de Benjy ainda pouco explorada pela crítica.
Por fim, torna-se impossível distinguir o quanto do texto pertence a
Faulkner e o quanto pertence a Benjy ou, melhor, o quanto o personagem Benjy
subverte a dinâmica do ventriloquismo e emerge no texto à revelia de seu autor,
em uma performance linguística própria. Por mais que esse efeito seja indireto,
ele permite a visualização de um texto poderoso, que não se a conhecer de
maneira fácil não devido ao controle autoral extremo, mas pela dinâmica e
demandas próprias do objeto.
3. DOIS PESOS NA BALANÇA
13
Tradução: “Candace.” disse a mãe. “Eu disse para você não chamá-lo [Benjamin] assim
[Benjy]. Já basta esse apelido bobo que o seu pai insistiu em pôr em você, e o quero que
ninguém faça isso com ele. Apelido é uma coisa vulgar. as pessoas reles usam apelidos.
Benjamin.” disse ela. (FAULKNER, 2009, p. 68-69)
14
O nome original de Benjy era Maury em homenagem ao seu tio materno, ao ser descoberta a
sua deficiência o seu nome foi mudado para Benjamin.
Se leituras como a de Noel Polk tendem a reforçar o caráter modernista do
texto de Faulkner através da atenção voltada ao procedimento formal, leituras
como a de Taylor Hagood tendem a atualizar o texto para uma dinâmica s-
colonialista, evidenciando a voz do excluído. A abordagem tipificada em Polk
evidencia a tendência modernista de tensionar o procedimento, o que
inevitavelmente o conduz rumo à sua dissolução, revelando o caráter de
construção do objeto; enquanto a abordagem representada por Hagood
desemboca na tendência s-colonial de assumir o objeto pelo viés da política da
negociação de sentido na dinâmica autor obra/personagem leitor, visando
perscrutar a autenticidade das identidades representadas.
Entretanto, é interessante notar que as duas interpretações (sobretudo a de
Hagood, mais contemporânea) movem-se cuidadosamente no terreno minado da
teoria literária, na presente disputa protagonizada por duas tendências bem
demarcadas, sem necessariamente estarem cientes de que mobilizam forças de
ambas. De um lado, o apreço pela técnica e, de outro, a atenção à integridade
identitária. Enquanto Polk privilegia o primeiro aspecto, o segundo desponta com
mais destaque na análise de Hagood; porém, ambas as interpretações dependem
da incorporação de aspectos dos dois polos do debate, de uma junção tão
cautelosa quanto inevitável.
O percurso que realizam o é fortuito: Polk, ao assumir o desafio de
compreender o fluxo de consciência praticado por Faulkner, depara-se com a
questão incontornável da constituição de Benjy. Hagood, para redirecionar a
questão colocada por Polk a fim de descortinar novas camadas de alteridade em
Benjy, não pode se eximir de uma discussão minuciosa da técnica que o
fundamenta; e é exatamente nos detalhes do arranjo da técnica que descobre o
que procura. Contudo, muito mais do que predileção dos críticos, a concatenação
desses aspectos a princípio antagônicos é uma demanda do próprio romance.
De fato, o mais surpreendente da performance da seção de Benjy é que o
seu exemplo indica uma possível saída para a bifurcação estéril entre técnica e
autenticidade. A crítica centrada exclusivamente na compreensão da técnica não
raro transforma a literatura em um jogo de referentes, que apesar de interessante
e complexo, redunda em pouco impacto para fora de seus limites; a crítica s-
colonialista, por outro lado, ao valorizar a voz do excluído ganha em reverberação
social, mas comumente através do sacrifício de critérios estéticos que, mais do
que capricho estilístico, constituem-se em possibilidade de efetivação e afirmação
contundente dessa mesma voz. A manutenção dessa dualidade estanque, ou
mesmo a opção por um polo em detrimento do outro, apenas partidariza a crítica.
O fluxo de consciência de Benjy, por outro lado, opera a conjunção de
técnica e autenticidade da identidade de modo vigoroso, unindo-as em uma
performance que deixa entrever fragmentos incisivos de uma alteridade
engendrada pelo estilo. Como anunciado, é o próprio romance que exige da
crítica, se esta se quer comprometida, a incorporação dos dois polos que lhe
servem como fundamento. Polk e Hagood, duas das melhores versões de uma
crítica atenta, não podem se eximir (como, de fato, não o fazem) de pensar a
técnica que engendra Benjy, sendo que abordar somente o resultado da operação
ou apenas a lógica procedimental desprovida de seu resultado não conta do
que é requerido (e, até certo ponto, prefigurado) pelo romance.
Em suma, a motivação da técnica é a apresentação complexa de uma
consciência singular alcançada através de flashes pungentes resultantes do
arranjo formal, sendo que seu caráter explicitamente artificial não impede, mas
enseja a apreensão de afetos extremamente convincentes e tangíveis. Essa
dinâmica, como não poderia deixar de ser, é pautada por uma contínua tensão no
contexto de sua realização textual, ela mesma importante para o equilíbrio das
partes. A concatenação entre técnica e expressão de alteridade resulta em uma
performance tão convincente quanto produtiva. O caso de Benjy, portanto,
demonstra que um retorno ao Modernismo, hoje, representa a promessa de uma
possível conciliação entre dois polos que passaram a insistir em se manter
antagônicos.
REFERÊNCIAS
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1963, p. 325-348.
FAULKNER, William. O som e a fúria. 2. Ed. Tradução de Paulo Henriques
Britto. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2009.
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Faulkner’s appendix. New York: Modern Library / Random House, Inc.,
2012.
HAGOOD, Taylor. The Secret Machinery of Textuality, Or, What Is Benjy
Compson Really Thinking? In: TREFZER, Annette; ABADIE, Ann (orgs.).
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MILLGATE, Michael. Faulkner. London: Oliver and Boyd, 1961.
POLK, Noel. Trying Not to Say: A Primer on the Language of The Sound
and the Fury. In: POLK, Noel. Children of the Dark House: Text and Context
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ROBINSON, Owen. (you never smelled a frightened horse, did you?): The
Sound and the Fury. In: ROBINSON, Owen. Creating Yoknapatawpha:
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2007. Vol. 47, p. 115-132.
ROSS, Stephen M.; POLK, Noel. Reading Faulkner: The Sound and the
Fury. Glossary and commentary. Jackson: The University Press of
Mississippi, 1996.