CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES PARA A ELABORAÇÃO DE UM
PROGRAMA DE ENSINO/SYLLABUS DE PORTUGUÊS-POR-ESCRITO (PPE)
A SURDOS
Considerations for the designing a syllabus to the teaching of ‘português-por-
escrito’ to deaf people
Daniele Marcelle GRANNIER
1
Renata ANTUNES
2
RESUMO: O ensino da língua portuguesa para surdos tem sido assunto recorrente no
âmbito das políticas linguísticas e educacionais do Brasil. Assim, julga-se necessária a
elaboração de um programa de ensino linguisticamente pensado para auxiliar a
construção de materiais didáticos para o ensino de português-por-escrito a surdos,
respeitando a realidade educacional desses alunos. Dessa forma, este trabalho discorre
sobre a educação de surdos no Brasil e sobre o que alguns teóricos preconizam para um
programa de ensino. Trata do ainda o ensino de português como segunda língua,
entendido como português-por-escrito (PPE), postulado por Grannier (2002).
PALAVRAS-CHAVE: Surdez. Programa de Ensino. Ensino de LP como L2.
ABSTRACT: Teaching Portuguese language for deaf people has been a recurrent subject
in the scope of the linguistic and educational policies of Brazil. Therefore, it is required to
elaborate a linguistically thought-out syllabus to assist the construction of didactic
materials for teaching Portuguese to deaf students, respecting the educational reality of
these students. Thus, this paper discusses the education of the deaf in Brazil and what
some theorists advocate for a syllabus. It also deals with teaching of Portuguese as a
second language, understood as ‘português-por-escrito’ (PPE), postulated by Grannier
(2002).
KEYWORDS: Deafness. Syllabus. Teaching PL as L2.
1
UnB - Instituto de Letras. Programa de Pós-Graduação em Linguística.
danielemarcellegrannier@gmail.com
2
UnB - Instituto de Letras. Programa de Pós-Graduação em Linguística.
renataasrezende@gmail.com
1. A EDUCAÇÃO DE SURDOS NO BRASIL
De forma geral, até pouco tempo as escolas públicas regulares não
matriculavam a maior parte das pessoas com deficiências. A ideia era que todas
elas deveriam estudar nos Centros de Ensino Especial ou em instituições
especiais que possuíssem convênio com a rede pública, premissa que prevaleceu
até a chegada da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB, Lei nº.
9.394/1996.
A LDB foi, oficialmente, o marco inicial para o início do processo de
inclusão da pessoa com deficiência nas escolas públicas regulares, ou seja, a
inclusão educacional teve seu real início em 1996 com a promulgação dessa lei.
A partir da leitura da LDB depreende-se que a educação especial precisa
ser ofertada de preferência na rede regular de ensino. Em nenhum momento fica
explícito que ela deve acontecer única e exclusivamente nas escolas regulares. É
importante destacar esse fato, pois no texto da Lei nº 9.394 é dito que é dever do
Estado ofertar a educação especial. Com isso, entende-se que é dever do Estado
oferecer tanto escolas inclusivas, quanto escolas especiais (bilíngue) para surdo,
dando a ele o direito de escolha.
A partir de 1997 as escolas regulares passaram a ser inclusivas e
começaram a receber alguns alunos surdos, que muitas vezes não tinham
atendimento educacional especializado adequado. Alguns professores, vezes por
não saberem como lidar com a situação, deixavam os alunos surdos passarem
por um processo denominado por Souza (2012) de vitimização, em que o surdo
é tratado somente como vítima de sua deficiência, um pobre coitado sem
capacidades, esquecendo o todo que é todo ser humano. Assim, colocavam os
surdos de lado, sem explicações, ofertando-lhes exercícios com respostas, provas
aquém de sua capacidade, suprimindo conteúdos e atividades importantes para
seu crescimento intelectual, ou seja, dificultando o desenvolvimento do potencial
do aluno e evidenciando uma ação caritativa do profissional de educação.
Não é difícil encontrar ainda hoje profissionais que trabalham com surdos e
acham que ensinar a eles é somente uma questão de adaptação, de utilizar os
conteúdos que são trabalhados com os ouvintes, retirando o que se julga ser
difícil para o surdo aprender e ofertando o restante a ele na Língua Brasileira de
Sinais (doravante Libras), renegando ou desconhecendo a diversidade linguística
existente entre ouvintes e surdos, entre a língua portuguesa (doravante LP) e a
Libras, entre o ensino de segunda língua (doravante L2) e o de primeira língua
(doravante L1).
A diversidade linguística demandada pela surdez é ponto crucial para a
educação formal de surdos. Em um sistema que se predispõe a realizar uma
educação bilíngue de qualidade, essa diversidade necessita ser pesquisada,
compreendida, respeitada e, acima de tudo, levada em consideração em todos os
momentos da elaboração do processo ensino-aprendizagem.
Após o impacto da mudança resultante da LDB, a permanência desses
alunos nas escolas tornou-se propiciadora de reflexão sobre o trabalho
pedagógico. Iniciou-se uma procura por maneiras de atender esses alunos,
gestores iniciaram um processo de busca de formação e informação para as
escolas e governantes, e demais responsáveis, tiveram que realizar
transformações estruturais nas unidades de ensino e mudanças teórico-
metodológicas nas políticas públicas de educação.
Dito isso, são inúmeras as concepções de como deve ser a educação
bilíngue de surdos. Contudo, o que é importante para este artigo, é como o
trabalho com a LP tem acontecido nos espaços que acreditam trabalhar a LP em
uma perspectiva de ensino de L2 (doravante LP2).
Existem leis que asseguram que as instituições federais devem ofertar,
obrigatoriamente, desde a educação infantil, o ensino da Libras e também da LP2
para alunos surdos, estando as escolas munidas com professor especializados no
ensino LP2 para alunos surdos, além de professor regente de classe com
conhecimento acerca da singularidade linguística inerentes aos alunos surdos.
Porém, a construção destas garantias ainda encontra-se em etapa primitiva,
sendo raros as especializações e cursos de educação continuada para
professores de LP2 para surdos.
Ser professor de LP2 demanda formação específica e também de políticas
públicas de educação que contemplem tal formação. Grannier (2007b, pág. 39)
afirma que “o que faz sentido […] é investir na formação de um novo profissional,
com uma competência diferenciada do professor de LP como L1”.
A formação inicial dos professores de LP, em geral, não oferece todos os
subsídios para o trabalho com alunos surdos, tarefa que demanda metodologias e
estratégias diferentes. O que se percebe é que sem professores formados para
exercer a função específica, não existe a possibilidade de o ensino de LP2 estar
acontecendo de fato nas escolas brasileiras.
Pesquisas como as de Souza (2012), Karnopp (2010) e Botelho (2005)
revelam que o ensino de LP para surdos acontece dentro de uma perspectiva de
ensino de L1 e não de L2. Fato simples de compreender, haja vista, os
professores terem sido formados em L1 e e terem formação para ensinar L1, não
conhecendo, assim, como é o processo de ensino de uma L2.
2. ENSINO DE LP COMO L2
O ensino de LP2 pode acontecer em vários casos em que a L1 do aprendiz
é outra, mas a língua de seu país é a língua portuguesa, como no caso de:
indígenas brasileiros, brasileiros de comunidades que possuem línguas
minoritárias, europeias ou asiáticas, e surdos brasileiros que tenham, ou deveriam
ter, a Libras como L1, entre outros. Sendo assim, aqui será adotado o termo
ensino de LP2 para surdos, por assumir que a Libras é a sua L1 e
consequentemente, diante desse contexto, a LP deve ser sua L2
3
. E, apesar de
muitas das estratégias utilizadas pelo ensino de português como língua
estrangeira (doravante LE) serem valiosas para o trabalho com os surdos, seria
equivocada a adoção do termo LE, pois os surdos não são estrangeiros.
(GRANNIER, 2002, 2007).
O ensino de LP2 tem acontecido de forma consolidada algum tempo
quando o aprendiz em questão é um estrangeiro, estando ele no Brasil ou no
exterior. Contudo, esse ensino é muito baseado na experiência empírica de
pessoas que trabalharam ao longo do tempo ensinando português para
estrangeiro, haja vista que até pouco tempo atrás não existiam cursos de
formação de professores de LP como L2 ou LE e bastava o indivíduo ser falante
3
É sabido que nem sempre o surdo tem a oportunidade de aprender a Libras antes de ingressar
na escola. Contudo, isso não invalida que essa sempre será sua L1.
de português para receber o status de professor de L2. Porém, o caso do ensino
de LP2 para brasileiros não usuários da língua portuguesa se encontra em
situação ainda mais complexa por existir a crença de que o Brasil é um país
monolíngue e que, se a pessoa nasceu aqui ela deve saber português, fato que
impede que a maioria dos programas faça a diferenciação entre ensino de LP
como L1 e ensino de LP como L2 para brasileiros.
Dito isso, entende-se que o professor de LP como L1 diferencia-se do
professor de LP como L2. Para Grannier (2014, p. 24), existem características
que um professor de L2 deve apresentar, além da necessidade de ser um usuário
competente da língua alvo: a) identificar as diferentes situações de ensino e tipos
de aprendizagem - é necessário que o professor possua conhecimento acerca
das variadas formas de ensino e de aprendizagem e mais importante ainda é
saber reconhecê-los no ambiente de trabalho, pois essa identificação é
fundamental para adequar materiais e abordagens, proporcionando tranquilidade
ao se deparar com questões inusitadas; b) elaborar material didático - habilidade
que se julga, no mínimo, muito útil ao se trabalhar com o ensino de L2, que
todo material didático publicado tem a tendência de se tornar estanque,
precisando o professor fazer ajustes conforme a necessidade de seus alunos, c)
superar diferenças - é necessário que o docente consiga compreender o aluno de
forma ampla e para além das diferenças que pense existirem ou que realmente
existam, dando a oportunidade das diferenças culturais serem compreendidas
como forma de enriquecimento e não uma barreira para o aprendizado.
(GRANNIER, 2014)
As habilidades advindas das características descritas anteriormente e
propostas pela autora são interessantes na medida em que se compara com o
ensino de L1. Nesse contexto, ensino de português a ouvintes, não se fala em
abordagem de ensino, em elaboração de material didático, em processos de
aquisição de segunda língua, em superação de diferenças e nem em identificação
de tipos de aprendizagem nos cursos de Letras da esmagadora maioria das
faculdades do país, sejam elas públicas ou particulares. Com isso, é possível
compreender como o professor de LP como L2 para surdos tem trabalhado ao
longo dos anos: com as abordagens, métodos, conhecimentos teóricos e
materiais didáticos do ensino de LP como L1, com algumas adaptações.
Adaptações que em grande parte das vezes significam a subtração de conteúdos
difíceis.
4. PORTUGUÊS-POR-ESCRITO PPE
Como a situação do surdo é diferente, acredita-se que expressão
‘modalidade escrita’ tem sido usada, irrefletidamente, quando o objetivo é o
ensino da LP a esses aprendizes. Sendo um empréstimo do processo de ensino-
aprendizagem de L1 para ouvintes, o que teoricamente não acarretaria qualquer
problema. Todavia, o emprego desse termo perpetua a prática de se oferecer à
criança surda apenas uma adaptação do que é elaborado para a criança ouvinte.
Dito isso, entende-se que adotar a expressão ‘modalidade escrita’ e,
consequentemente, os mesmos currículos, materiais e livros didáticos de ensino
de L1 como sendo iguais para todas as pessoas, é um dos principais equívocos
na educação bilíngue de surdos vigente, que pode ser uma das respostas para o
insucesso de suas produções escritas. Seria, fazendo-se um paralelo simples e
metafórico, o mesmo que ensinar uma criança a andar antes de ela engatinhar, o
que é possível, mas provavelmente prejudicial. Diante do entendimento de que
ensinar a modalidade escrita é uma etapa posterior, traz-se a proposta do
português-por-escrito (doravante PPE), postulado por Grannier (2002).
O PPE, independentemente de ser para surdo ou como L2 para falantes de
outras línguas diferentes da LP, condiz com o português que os ouvintes usam
habitualmente. É a representação escrita do português falado, um recorte da LP
oral com as características peculiares a essa modalidade da língua: emprego dos
pronomes mais usuais, do vocabulário do dia a dia, das expressões informais, as
orações mais simples, a ordem canônica dos constituintes e de outros aspectos
gramaticais que compõem o discurso oral. O PPE é diferente da modalidade
escrita que os ouvintes vão para escola aprender, de caráter mais formal, com
ordens não canônicas dos constituintes, com algumas estruturas sintáticas
particulares, vocabulário erudito, períodos longos e complexos.
Segundo Grannier (2002, 2007), o PPE corresponde ao português
coloquial usado nas mais diversas situações habituais, à língua que é usada no
dia a dia para conversar com o colega na escola ou o que mora ao lado de casa,
nos aplicativos de mensagens instantâneas para celulares ou computadores, para
compreender fatos simples e que são importantes para a construção da
identidade social. Ou seja, o PPE é, guardada as devidas propriedades, a
transposição da modalidade oral da LP para a escrita.
PPE modalidade oral da língua portuguesa por escrito
Em termos gerais, o PPE não revela uma novidade linguística como se
pode imaginar. Ele reflete o que o conhecimento advindo dos mais de cem anos
de estudos da Linguística Aplicada ao ensino de L2 indica que deve ser ensinado
para os falantes de línguas diferentes da LP, e que, no caso dos surdos, deve ser
feito de forma escrita e utilizando estratégias visuais
4
, que não pode ser
transmitido oralmente. Dessa forma, pode-se pensar erroneamente que não
existe inovação alguma, que seria somente utilizar o mesmo conteúdo, no entanto
é preciso conhecer as especificidades linguísticas dos surdos e é, respeitando
esse contexto, que o PPE se dá.
Para melhor compreensão da proposta de Grannier (2002, 2005, 2007)
sobre o português-por-escrito PPE, é preciso considerar a existência de quatro
fatores, são eles:
1) processos de aquisição compreender as diferenças existentes entre
aquisição de modalidade escrita e modalidade oral da língua, saber diferenciar
modalidade escrita da modalidade oral por escrito;
2) metodologia de ensino conhecer as metodologias de ensino de segunda
língua. É necessário compreender que, no caso do ensino de LP, não se trata de
educação de surdos e, sim, dos procedimentos que foram testados e
consolidados pela Linguística Aplicada ao ensino de línguas, aplicando para o
ensino de LP a surdos;
3) Recursos metodológicos específicos entender estratégias visuais como
sendo a junção das estratégias metodológicas utilizadas no ensino aos surdos
4
Estratégia visual é o uso de todos os meios visuais possíveis para ensinar algo ao surdo.
com os conhecimentos relativos às metodologias de ensino de L2 advindas da
Linguística Aplicada e
4) Uso de um PE/syllabus próprio conhecer quais pontos devem ser
enfocados para o ensino de uma língua.
Ainda se faz importante dizer que o PPE compõe uma fase do processo de
ensino-aprendizagem da LP como L2 para surdos, etapa que deve ser precedida
pelo o que Grannier (2002, 2005, 2007) intitula como ensino do pré-português
5
e
sucedida pelo ensino da modalidade escrita da língua.
Apesar de o ‘pré-português’ e a ‘modalidade escrita da língua’ não serem o
foco do presente artigo, julga-se dizer que eles compõem, juntamente com o PPE,
as etapas do percurso do processo de ensino-aprendizagem da LP como L2 a
surdos adotado neste trabalho.
Semelhante ao que acontece com o ouvinte, o ideal com o surdo seria,
primeiramente, iniciá-lo na representação escrita da sua L1, no caso a Libras,
para, depois, passar para o processo de aprendizagem da escrita da LP.
Entretanto, sabe-se que ainda não se tem um sistema de escrita utilizado pela
comunidade surda em sua totalidade, o que dificulta o início do referido processo.
Porém, é extremamente recomendável que a criança surda tenha contato com
usuários da LS, de preferência surdos adultos, desde muito cedo para adquirir
Libras. A não existência de uma escrita consensual da LS não anula o
aprendizado da escrita da LP.
O pré-português é baseado nas unidades portadoras de significados: as
palavras. Grannier (2005) propõe um trabalho com cerca de 300 palavras
pertencentes ao universo dos alunos e que serão apresentadas baseadas na
correspondência entre significante (a palavra escrita em uma tira) e significado (a
figura), tendo como meta proporcionar ao aluno o reconhecimento da relação
simbólica trazida pela combinação de cada significante com o seu significado.
Comparações das habilidades/competências entre quaisquer pessoas
devem ser evitadas, que a diversidade humana precisa ser respeitada. Logo,
comparar o que os ouvintes fazem com o que os surdos fazem é ainda mais
reprovável, devido às especificidades físicas de cada um e às oportunidades
sociais desiguais ofertadas aos surdos. Também acredita-se que o trabalho com
5
Para mais informações sobre ‘pré-português’ indica-se a leitura de Grannier (2002, 2005, 2007)
uma L2 o deve se pautar no trabalho com uma L1, mas, diante do perfil da
educação bilíngue para surdos no Brasil, em que surdos estudam com ouvintes,
-se a necessidade de fazer uma analogia entre as etapas de educação para as
duas parcelas de alunos mencionadas, a fim de mostrar a qual etapa do ensino
de LP2 corresponde determinada etapa da educação regular.
Desde 2016 a matrícula obrigatória das crianças no Brasil é a partir dos
quatro anos de idade. Dessa forma, pressupõe-se neste artigo que a criança
surda tenha na Educação Infantil, aos quatro e cinco anos de idade, todo o
processo ensino-aprendizado focado na Libras. Somente no ano da Educação
Infantil, aos seis anos de idade, se introduzido o p-português,
preferencialmente ao final do semestre
6
.
Sendo assim, assume-se que no ano do Ensino Fundamental, aos sete
anos de idade, após dois anos de trabalho focado na Libras e alguns meses de
trabalho com o pré-português, a criança surda estará preparada e deverá ser
introduzida ao PPE. Nessa proposta o surdo precisa primeiro se familiarizar com o
que é a representação escrita, o pré-português, para depois poder voltar-se para
a aprendizagem da LP propriamente dita (estruturas e usos), ou seja, o PPE e,
assim, poder ser preparado para o trabalho com a modalidade escrita
propriamente dita.
O PPE é o português coloquial, a língua que deve ser usada no dia a dia
para conversar por escrito com o colega ouvinte que mora ao lado de casa ou
estuda na mesma escola, para falar através da escrita com a mãe ouvinte e os
demais parentes que não usam a Libras, para responder sobre fatos simples,
como a forma que os pais descobriram a surdez, para fazer parte da sociedade
como um todo e não somente da ‘comunidade surda’.
O PPE e a modalidade escrita, apesar de na superfície serem diferentes,
no fundo são partes de uma mesma língua e, assim sendo, em determinado
momento eles se fundem e se transformam em um único objeto, que é a LP. Com
isso, é possível afirmar que o surdo, depois de adquirir o pré-português, precisa
começar a aprender o PPE, e ao longo do tempo essa aprendizagem pode ir se
mesclando com a aprendizagem da modalidade escrita da LP até chegar um
6
Ao final do semestre, pois acredita-se que o surdo deve ter pelo menos dois ano e meio de
contato somente com a Libras, para que assim possa adquirir conhecimento de mundo em sua L1.
momento em que o procedimento se transforma por completo no processo de
ensino-aprendizagem da modalidade escrita. Porém, não se pode esquecer que o
trabalho com os alunos surdos deve estar regido por metodologias de ensino de
L2.
Por todos os motivos examinados acima, ensinar português a surdos
(assim como, para o surdo, aprender português) é uma tarefa sem paralelos.
Requer empenho excepcional, metodologia especial, condições gerais e um
tempo que nem sempre são encontrados. (GRANNIER, 2002, p. 05)
Dessa forma, surge a necessidade de se propor um programa de
ensino/syllabus para esse trabalho, que contemple as especificidades do PPE,
com enfoque nas estruturas e nos usos correntes da LP, que não precisam ser
ensinados ao ouvinte porque ele os domina desde muito cedo. Um programa
de ensino/syllabus para PPE a surdos é importante para auxiliar a elaboração de
uma educação realmente bilíngue para surdos.
5. PROGRAMA DE ENSINO - PE
7
O termo ‘programa de ensino’ (doravante PE) foi usado primeiramente
pelos britânicos para definir qual declaração de assunto, tópicos ou áreas seriam
trabalhadas pelo curso que conduziria a uma determinada prova/avaliação, seja
ela qual fosse. Tanto os professores como os estudantes utilizavam esse PE para
nortearem o trabalho de preparação para a prova. Os cursos, na maioria das
vezes, estavam unicamente ligados a essa declaração de conteúdo. (BRUMFIT,
1984)
De acordo com Brumfit (1984), no início da propagação do termo PE,
alguns linguistas, como Reibel (1969), e Macnamara (1973), mantinham uma
postura tica quanto à possibilidade de escolha e organização de itens que
pudessem gerar bons resultados no processo ensino-aprendizagem de L2. Essa
visão era compartilhada pela Escola de Lancaster, representada por Cadlin e
Breen, que advogavam fortemente contra a ideia de um PE fixo, planejado, p-
7
‘Programa de Ensino’ é uma tradução livre do termo Syllabus.
ordenado e imposto pelos professores aos alunos, recomendando que o PE seja
aberto e negociável entre as partes envolvidas no processo ensino-aprendizagem.
Frente ao exposto, -se tanto a existência de grupos que seguiam o PE
de forma rigorosa, como a existência de grupos que nem mesmo acreditavam na
possibilidade de elaboração de um programa fixo, tornando, assim, o assunto
extenso e controverso. Para além do contraditório, também se tem a diversidade
de concepção, a respeito do termo, por aqueles que advogam a favor da
elaboração de um PE.
Segundo Nunan (1988), são várias as discordâncias a respeito da
substância do PE, mas é possível verificar, em todos os escritos sobre o tema,
referência a uma natureza ‘ampla’ e a outra ‘restrita’. O autor afirma que a
distinção encontra-se no fato de que alguns pesquisadores definem programa de
ensino como sendo a seleção e a ordem dos conteúdos a serem trabalhados
durante um curso de línguas, deixando a metodologia separada ‘natureza
restrita’. Outros estudiosos acreditam que a metodologia não pode estar
desvinculada da seleção e ordem dos conteúdos, ou seja, para além de conter o
que deve ser trabalhado, um PE também deve apresentar como trabalhar, sendo
o conteúdo e a metodologia de ensino desse conteúdo, igualmente importantes
‘natureza ampla’.
Contudo, Nunan (1988, p. 6, tradução nossa) diz que “um programa de
ensino é uma declaração de conteúdo, que é usada como base para
planejamento de cursos de vários tipos, e que a tarefa do elaborador é selecionar
e graduar esse conteúdo”
8
. Ou seja, o autor, a princípio, corrobora com a
natureza restrita, colocando a metodologia fora do escopo do PE e ainda traz para
a discussão o papel do elaborador de PE.
Para Krahnke (1987, p. 11, tradução nossa
9
) “Um programa de ensino para
o ensino de línguas, então, é a substância linguística e temática que compõe o
ensino”. Para o autor essa composição pode ser feita de acordo com o que se
pretende, indo do PE linguístico, em que o conteúdo é composto pelas formas
gramaticais e lexicais da língua, até o PE semântico/informacional, em que o
8
[…] syllabus is a statement of content which is used as the basis for planning courses of various
kinds, and that the task of the syllabus designer is to select and grade this content.
9
A language teaching syllabus, then, is the linguistic and subject matter that make up the teaching.
conteúdo é formado por certas habilidades ou informações e a forma da língua é
apresentada eventualmente.
É possível perceber que tanto Krahnke (1987) e Nunan (1988) comungam
da ideia da natureza restrita para a construção do PE. Contudo, existem autores
que definem a abordagem ampla como norteadora desse processo, é o caso de
Candlin (1984), que afirma que qualquer PE trará alguns pressupostos acerca da
língua e de outros temas, como processos pedagógicos e sociais que para ele
são inerentes à sala de aula. Ao afirmar que os processos pedagógicos fazem
parte de um PE, é possível depreender que o autor concebe o PE dentro de uma
visão ampla, onde o conteúdo e sua organização estão presentes, assim como a
forma como eles serão trabalhados, dando lugar às questões metodológicas.
Diante da dicotomia a respeito da composição do PE, surge a necessidade
de diferenciá-lo de currículo. Krahnke (1987, pág. 9, tradução nossa
10
) declara
que essa distinção não tem sido clara na literatura, mas que, para ele, o PE é
mais resumido, específico e concreto do que um currículo, sendo que o PE está
contido no currículo, mas o inverso é impossível. O autor afirma que “currículo
pode especificar apenas objetivos (o que os alunos serão capazes de fazer ao
final da instrução), enquanto o PE especifica o conteúdo das aulas utilizado para
levar os alunos às metas”.
Allen (1984) contribui para a discussão ao afirmar que as questões do
método, ou seja, como trabalhar os conteúdos, deve ficar a cargo do currículo.
Assim, o autor trata o PE de natureza ampla como sendo sinônimo de currículo.
Diferenciar PE de currículo é importante para este trabalho que se assume,
nesta proposta, um PE com características mais próximas de um de natureza
restrita, pois, como mencionado, não se tem o intuito de indicar como cada
unidade deve ser ensinada, apesar de relatar qual abordagem acredita ser a que
melhor se ajusta aos pressupostos deste trabalho. Essa postura se deve ao fato
de que a proposta não tem intenção de sugerir todos de ensino, pois não se
acredita que, diante de um trabalho bastante novo como o ensino de LP a surdos,
exista um único método capaz de nortear todo um curso de ensino dessa língua e
sim uma junção de vários métodos que podem ainda ser combinados com o perfil
10
[…] curriculum may specify only the goals (what the learners will be able to do at the end of the
instruction), while the syllabus epecifies the content of the lessons - used to move the learners
toward the goals.
do professor, que por muitas vezes desenvolve métodos e técnicas próprios que
geram resultados interessantes para o processo ensino-aprendizagem.
Entretanto todos os autores citados ressaltam que a elaboração de um PE
depende sobremaneira das crenças linguísticas e pedagógicas dos elaboradores,
de modo que mesmo um PE restrito não estará completamente desconectado de
questões metodológicas.
Dessa forma, embora as premissas de um PE propostas neste trabalho
tenham mais características de um PE de natureza restrita, tendo em vista que
será apresentada uma lista de itens gramaticais a serem trabalhados, ele não se
distancia da concepção de Candlin (1984), considerando que esta lista envolverá
pressupostos linguísticos e também pressupostos pedagógicos como pano de
fundo, pois acredita se que no caso do ensino de PPE a surdos a abordagem
Foco-na-forma (FonF) e as estratégias visuais são mais adequadas. Com isso, a
ideia proposta encaixa-se melhor em uma posição híbrida.
Com o que foi exposto, é possível perceber que questões da natureza do
PE podem ser ainda muito debatidas e a Linguistica Aplicada oferece uma base
consolidada que subsidiará a elaboração do nosso programa de ensino/syllabus
de português-por-escrito (PPE) a surdos.
6. PRIMEIRO ESBOÇO DO PE
Diante de todas as essas questões teóricas, que têm como objetivo maior
trazer considerações preliminares para a elaboração de um programa de
ensino/syllabus de português-por-escrito (PPE) a surdos, será trazido a seguir um
esboço de como se pode desenvolver a proposta de um PE completo. Importante
ressaltar que, por ser um esboço, os itens dos temas ‘verbos’ e ‘tópicos
gramaticais’ presente na tabela a seguir são, neste momento, ilustrativos e
necessitam de revisão.
Tabela 1
Níveis
Unidades
Verbos
Tópicos gramaticais
Nível 1
-A
5 meses (1
bimestre
letivo)
20 semanas
1
(4 sem)
30h
Ser (de) (posse e proveniência)
Estar(pres)
Estar com/de/em
Estar (tempo)
Afirmação
Pron. Pess. (eu, ele-s/ela-s, você-s, nós/ a
gente)
Pron. Poss. (meu/minha, dele/dela, seu/sua)
Pron. inter. (qual, quem, onde)
2
(4 sem)
30h
1ª conj.
Gostar de, Falar (de), Brincar (de, com), Dançar,
andar (de)
Afirmação e negação
Artigos definidos e indefinidos
Gênero dos nomes
De +art.; em + art.
3
(4 sem)
30h
2ª conj.
Ler, escrever, correr, aprender,
Dar (diferentes sentidos), ter, fazer, querer
Interrogação
Pron. poss. (meus-as, seus-as, deles-as,
nosso-a/nossos-as);
Pron. demonstrativo (esse-a, aquele-la,)
4
(4 sem)
30h
3ª conj
abrir, assistir, dividir
Ir, ouvir, vir
Exclamação e interrogação (que, mas que)
Conj. (e, mas)
Prep. De lugar
5
(4 sem)
30h
Imperativo
1ª, 2ª e 3ª conj
Conhecer, saber, dizer
Exclamação
Plural dos nomes (terminados em L)
Usos dos artigos definidos e indefinidos
Pron. Inter. (Por que, quando, que horas)
Advérbios de tempo
Fonte: criado por Antunes (manuscrito)
A ideia principal para a elaboração do PE é que ele possa ser utilizado por
profissionais que trabalham com o ensino de LP a surdos, respeitando a realidade
em que ele atua. Dessa forma, o esboço tem como público alvo professores de
crianças surdas
11
a partir dos sete anos de idade, que tenham, de preferência,
contato com a Libras há no mínimo um ano.
As aulas de PPE devem acontecer três vezes por semana, em dias
alternados, preferencialmente. A proposta é que cada aula aconteça da seguinte
forma: 1h15 de aula com intervalo de 15min e depois mais 1h15 de aula. Cada
unidade deve ser trabalhada em quatro semanas, perfazendo um total de trinta
horas/aula por unidade e, assim, cada nível tem 150 horas/aulas.
Pode parecer muito tempo para cada unidade. Porém, não se pode
esquecer que está se falando em alunos surdos de sete anos que estão tendo
contato com a LP pela primeira vez. Assim, será preciso uma considerável
quantidade de horas para trabalhar cada unidade, levando em consideração que
não é somente o ponto gramatical trazido no esboço anterior que deve ser
trabalhado. Têm-se ainda as várias questões semânticas, culturais e lexicais que
necessitam de várias horas de prática para que se dê a apropriação dos inúmeros
usos linguísticos que cada ponto envolve, de modo que o aluno possa
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Não há nada que impeça de usar o PE para adolescentes e adultos.
posteriormente criar frases bem formadas que incluam os pontos trabalhados em
aula.
É imperioso lembrar que a terminologia gramatical (presente do indicativo,
conjunção, preposição, artigo e outros) contida no PE é para uso único e
exclusivo do professor/elaborador de material didático, ela não precisa e não
deve ser nomeada para os alunos, principalmente com crianças. Cada um dos
tópicos gramaticais deve estar nos textos que o professor escolher para a
elaboração do material e deve ser empregados várias vezes em exercícios
diferentes, lembrando que o que será trabalhado na primeira unidade deve voltar
a aparecer nas unidades seguintes e assim sucessivamente. O reforço didático é
de suma importância para o surdo, pois ele não se encontra em um ambiente de
imersão, necessitando que o aprendizado formal da LP seja contínuo, porém,
representando os pontos de maneira variada, para não se tornar enfadonho.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acredita-se que seja necessário compreender as especificidades do ensino
de LP a surdos, da educação de surdos, o que é ensinar uma L2 e a diferença
entre LP e PPE. E, assim, de posse desse conhecimento e da compreensão das
especificidades linguísticas demandadas pelo ensino de L2 a surdos, assumir que
é necessário criar um PE voltado exclusivamente para o ensino de PPE a surdos.
Enfatiza-se a necessidade de uma abordagem específica para o ensino de
uma língua oral auditiva por escrito aos surdos, o que inclui a adoção, num
primeiro momento, do PPE, para posteriormente trabalhar a modalidade escrita, já
ensinada tradicionalmente na escola.
Dessa forma, cabe a observação da necessidade de gradação dos
conteúdos e das práticas, consolidados em materiais didáticos preparados
especialmente para esses fins, a partir de um PE próprio, e não resultante da
adaptação dos currículos dos ouvintes.
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