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HOMENS QUE GOSTAM DE SER HOMENS
A construção do sujeito viril no universo publicitário sob o prisma da
intertextualidade
"Hombres a que les gusta ser hombres": la construcción del sujeto viril en el
universo publicitario a la luz de la intertextualidad
Rafael de Souza Bento FERNANDES
1
Francisco Vieira da SILVA
2
RESUMO: No presente trabalho, analisa-se o fenômeno da intertextualidade em uma
peça publicitária fílmica/comercial, que divulga o desodorante masculino Old Spice, da
P&G. A análise demonstra como se a relação do comercial com textos de mídia de
massa tanto na tessitura composicional, com a retomada das personagens Tarzan e
James Bond quanto no estilo da narrativa fílmica, com a movimentação de câmera e
cena de explosão, picas dos filmes de ação. Esses recursos contribuem para a
construção de representações exacerbadas e insólitas (TODOROV, 1970) de virilidade,
com as quais o leitor se identifica. Pretende-se compreender os processos de produção
de sentido por sujeitos ativos, que mobilizam estratégias linguísticas (e imagéticas), em
face de uma dada intencionalidade: nesse caso, a introdução (e venda) de um produto no
mercado brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: intertextualidade. Publicidade. Virilidade.
RESUMEN: En el presente trabajo, se analiza el fenómeno de la intertextualidad en una
pieza publicitaria fílmica/comercial, que divulga el desodorante masculino Old Spice, de
P&G. El análisis demuestra cómo se da la relación del comercial con textos de mass
media tanto en el tejido composicional, con la retomada de los personajes Tarzan y
James Bond, como en el estilo de la narrativa fílmica, con el manejo de cámara y
escenas de explosión, típicas de las películas de acción. Estos recursos contribuyen a la
construcción de representaciones exacerbadas e insólitas (TODOV, 1970) de virilidad,
con las que el lector se identifica. Se pretende comprender los procesos de producción de
sentido por sujetos activos, que movilizan estrategias lingüísticas (y visuales), frente a
una determinada intencionalidad: en ese caso, la introducción (y venta) de un producto en
el mercado brasileño.
PALAVRAS CLAVE: Intertextualidad. publicidad, virilidad.
1
Doutorando em Linguística pela Universidade Estadual de Marin PLE/UEM, com período
“sanduíche” (CAPES-PSDE/Edital 2016) pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
Portugal FLUC. Membro do Grupo de Pesquisa em Análise do Discurso da UEM -
GEDUEM/CNPq. rafaelsbfernandes@hotmail.com.
2
Doutor em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professor adjunto da
Universidade da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), Campus Caraúbas, Rio
Grande do Norte. Docente do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Campus Avançado Maria Eliza de Albuquerque Maia
(CAMEAM), Pau do Ferros, Rio Grande do Norte. francisco.vieiras@ufersa.edu.br
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1. INTRODUÇÃO
Poder, força, maturidade, segurança e beleza (física e moral) são algumas
das características com as quais nossa cultura caracteriza a virilidade
(VIGARELLO, 2013). Esse pressuposto não se baseia numa concepção
metafísica de mundo, mas em processos de atribuição de sentidos materializados
em textos, que circulam socialmente. É o caso do super-herói estadunidense
“Superman” que, conforme a análise de Eco (1987), tem dupla função simbólica:
atua como “suporte físico de projeção” (o leitor, submetido a uma rotina medíocre,
coloca-se no lugar da personagem e vive suas aventuras) e, ao mesmo tempo,
reafirma os valores de manutenção do status quo ( que o “Homem de Aço”
defende, prioritariamente, a propriedade privada nos quadrinhos). É também o
caso de filmes, de novelas, de músicas, de jogos eletrônicos, etc., que povoam
um universo textual, cujo “horizonte social” assegura uma relação firme e estável
entre a masculinidade, a virilidade e a dominação.
Com efeito, na produção de campanhas para divulgação e venda de
(novos) produtos, os publicitários recorrem frequentemente a textos que os
leitores reconheçam e que estejam em sintonia com os valores do público-alvo.
Na interlocução que caracteriza a linguagem, representações são (re)criadas,
como, por exemplo, de virilidade. Assim, a pergunta norteadora do estudo é:
como se o processo de retomada intertextual de textos de mídia de massa em
um filme publicitário (o comercial “O chamado”, da Old Spice) que toma o “homem
viril” como a base sobre a qual os produtores do texto apoiam o produto que
comercializam? Pretende-se compreender os processos de produção de sentido
por sujeitos ativos, que mobilizam estratégias linguísticas (e imagéticas), em face
de uma dada intencionalidade.
Para tanto, em um primeiro momento, haverá uma discussão teórica sobre
o estatuto do texto como objeto de estudo nas ciências da linguagem, bem como
sobre os modos pelos quais as materialidades o verbais produzem sentido. Em
um segundo momento, tem-se a análise do corpus em relação à sua constituição
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heterogênea intertextual para o estabelecimento do sujeito viril, do “homem
Homem”.
2. HETEROGENEIDADE DO TEXTO
O conceito de texto não é, de modo algum, consensual entre os
pesquisadores envolvidos com a análise dos processos de significação e de
sentido. Mesmo no campo da Linguística do Texto (doravante, LT), uma série
de deslocamentos, rupturas e empréstimos de áreas limítrofes do conhecimento
que revelam a heterogeneidade da disciplina, como o estruturalismo saussuriano
e o princípio dialógico bakhtiniano de linguagem.
A “teoria de texto” abrange uma longa elaboração teórica que pode ser
definida em três princípios basilares, quais sejam: 1) a produção textual é uma
atividade verbal, 2) a produção textual é uma atividade verbal consciente e 3) a
produção verbal é uma atividade interacional. Nesse sentido, segundo Bentes
(2003), uma dada “manifestação verbal” - um texto - é formada por elementos
linguísticos selecionados e alternados pelos falantes durante a atividade verbal,
de modo que os interlocutores mobilizam “conhecimentos” (de ordem cognitiva)
para elaboração de “estratégias” (modalizada por mecanismos de antecipação),
regidas por práticas socioculturais.
Quando se trata da alteridadecomo processo constitutivo do jogo da
linguagem, podem-se perceber ecos bakhtinianos na construção da LT.
Considerar o texto o lugar da interação é um gesto analítico que tem como
pressuposto o fato de que a “realidade” não é exterior à linguagem. Segundo o
círculo de Bakhtin, ao contrário: é na dinâmica do Eu com o Outro que os “objetos
do discurso” (as coisas) se instauram, ganham voz e se assentam em algum
material semiológico, produto da criação ideológica, esta, por sua vez, imersa
num dado entorno comunicativo e social. Comunicativo, porque a palavra sempre
se dirige a um interlocutor, que nunca é abstrato (somente, talvez, na
artificialidade do dicionário ou das interações idealizadas das gramáticas
normativas). E social, porque as interações de linguagem não ocorrem no vazio,
50
mas estão submetidas ao confronto histórico das múltiplas vozes que constituem
as tomadas de posição no discurso.
De acordo com Faraco (2005), dessa característica decorre a metáfora do
diálogo: da interação que ocorre incessantemente e que configura as verdades
sociais como expressão e regulamentação de grupos no horizonte ideológico de
uma época. Parafraseando o autor, as palavras não tocam as coisas (numa
relação saussuriana de significado e significante), mas penetram na camada dos
discursos que as recobre. Isso quer dizer que os sentidos o dados à
plurivocidade e uma mesma palavra pode significar, inclusive, o seu oposto se
submetida à análise da situação. Portanto, o interlocutor não recebe
pacificamente o discurso do outro como se estivesse despido de axiologias
culturalmente construídas, direcionadas por suas inúmeras contradições e
interesses. Ele as recebe, mas não as devolve da mesma maneira; é um “espelho
quebrado” que não reflete, mas refrata a luz para outras direções, distorcendo” a
imagem original.
A compreensão e avaliação de um enunciado (concordância ou
discordância), de acordo com Volochínov/Bakhtin (1926), sempre engloba a
situação pragmática com o aspecto verbal. A vida o afeta o enunciado de fora;
ela penetra e exerce influência de dentro, enquanto unidade e comunhão da
existência entre falantes e julgamentos de valores sociais. Sob esse enfoque, os
sujeitos são participativos, pois, ao mesmo tempo em que constroem a interação
a partir da alteridade, transformam as situações ao trazer para comunicação suas
experiências particulares. Como essa palavra não se dispersa em um vazio sem
história, é necessário supor que haja um “horizonte social”, que determina a
criação ideológica de um grupo (um horizonte da literatura, da ciência, da moral,
do direito, etc.), que orienta os valores construídos na interação. (BAKHTIN;
VOLOCHÍNOV, 2009).
Em confluência com a tese de que a linguagem não se no vazio (de
sujeitos e de contexto), para Cavalcante e Filho (2010), assumir o paradigma
sociocognitivista implica na necessidade de uma investigação atenta aos sistemas
de conhecimento acionados/ construídos no momento da produção e
interpretação, bem como do contexto (imediato e o sócio-histórico) em cada
situação. Dessa maneira,
51
O mesmo caráter dinâmico fortalecido [...] pelo olhar
sociocognitivo sobre o texto acaba por determinar o
direcionamento das investigações dos fenômenos. Os gêneros
textuais e as estratégias textual-discursivas [...] são estudados
com base no pressuposto de que a interação é a instância de
concretização das relações sociocognitivas, e por isso mesmo
deve ser a unidade analítica por excelência. Os usos linguísticos,
portanto, são a chave para se desvelarem os fenômenos.
(CAVALCANTE; FILHO, 2010, p. 61).
Cavalcante e Filho (2010) problematizam, na sequência do estudo, o
estatuto de texto como eminentemente verbal e advogam sobre a necessidade de
se levarem em consideração outros recursos semióticos, tendo em vista a
natureza multimodal (mais de um tipo de código, segundo Kress e Leeuwen) dos
textos que circulam socialmente. Assim sendo, cores, traços, objetos em cena e
até mesmo o movimento da câmera (no caso de textos cinematográficos)
constituem recursos/estratégias que, ao serem mobilizados em textos
publicitários, por exemplo, produzem sentido, regulados por uma forte
intencionalidade: nesse caso, a venda do produto. Corrobora a esse ponto de
vista Romualdo (2014), para quem a análise de elementos não verbais em análise
linguística é fruto do desenvolvimento natural de um campo teórico cujo objeto é
aquilo que os homens usam para interagir (o texto) em confluência com o
desenvolvimento tecnológico, que multiplicou suas formas e o seu modo de
circulação.
O texto é, portanto, um objeto dinâmico, multifacetado, resultante de uma
atividade sociocognitiva de linguagem, atravessada por valores histórico-sociais e
determinados pelo Outro. É também um objeto profundamente heterogêneo,
que, longe de ser um bloco homogêneo, fechado em si, é atravessado por
múltiplas vozes e por múltiplos outros textos com os quais mantém uma relação
de referência, deslocamento, ruptura, etc..
A base para essa compreensão da “heterogeneidade” deriva do termo
“polifonia” (incialmente, do campo da música), adotado por Bakhtin para
caracterizar um aspecto fundamental da obra literária de Dostoievski: a
pluralidade de vozes numa relação de equidade (BEZERRA, 2005). O conceito foi
incorporado pela semântica de Ducrot (1987) que, opondo-se à tese da unidade
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do sujeito, caracteriza as instâncias linguísticas envolvidas na cena enunciativa:
os locutores (aquele que se atribui o dizer) e os enunciadores (como uma
posição, assimilada ou não pelo locutor).
Pautando-se no dialogismo bakhtiniano e na psicanálise, Althier-Revuz
(2004) atenta para o fato de que formas “constitutivas” e formas “mostradas”
de heterogeneidade. Enquanto as formas mostradas apresentam marcações
linguísticas (como aspas, itálico e travessão) que recuperam o discurso do outro,
as formas constitutivas são da esfera do inconsciente. Por sua vez, a crítica
literária Kristeva, para explicar o dialogismo bakhtiniano, utilizou-se do termo
“intertextualidade”, cuja noção aponta para o fato de que um texto não subexiste
sem o outro, quer como forma de atração, quer como forma de rejeição. (ZANI,
2003).
As análises promovidas por Koch e Elias (2008) compreendem, ainda,
componentes não verbais de diferentes gêneros textuais, como unidades que
promovem o processo de retomada na produção de sentidos. Esse processo
pode ocorrer de duas formas: explicitamente, quando citação da fonte (como
acontece nos discursos relatados, nas traduções, nos resumos, etc.) ou
implicitamente, quando, sem a citação direta da fonte, cabe ao leitor recuperá-la
na memória para construir o sentido do texto (como acontece nas alusões, na
paródia, nas ironias, etc.). Esses conhecimentos de textos, na atividade de leitura,
segundo Koch e Elias (2008) referem-se à língua (usos e acepções de palavras),
às “coisas do mundo” (da caracterização de um modo de ser, viver e pensar em
uma cultura) e ao modo de organização, estilo e propósito comunicacional de uma
dada materialidade (como, por exemplo, o conhecimento da organização das
histórias em quadrinhos ou de filmes de ação).
Na concepção de intertextualidade implícita, considera-se a manipulação
que o produtor de um texto opera sobre o texto alheio (ou mesmo próprio), com o
fim de produzir determinados efeitos de sentido. Em decorrência desse caráter,
para Cavalcante e Filho (2010), a intertextualidade (assim como a referenciação,
a articulação tópica e a metadiscursividade) configura-se como uma estratégia
textual-discursiva.
53
3. A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO VIRIL SOB O PRISMA DA
INTERTEXTUALIDADE
De forma breve, discutiram-se alguns aspectos da interação verbal, que se
“via texto”, em termos de horizonte social e intencionalidade, assim como se
assumiu a premissa de que a intertextualidade é uma estratégia textual-
discursiva. O objetivo é fazer ranger esses conceitos, aplicando-os à análise do
corpus, uma narrativa fílmica da marca Old Spice, de 2014. Antes de empreender
o movimento analítico, contudo, é necessário tratar da circulação do corpus.
A Old Spice, campeã de vendas no segmento de desodorantes, é um ícone
estadunidense de cuidados com a aparência masculina. Segundo a fabricante, o
produto mescla eficiência e proteção com fragrâncias que “despertam o lado mais
masculino de cada homem”. A grande reviravolta da marca começou em janeiro
de 2010 quando, perdendo espaço para outras empresas como a Dove e a Nívea,
a P&G inovou no lançamento da campanha com uma nova proposta e um novo
slogan, “The man your man should smell like” (“O homem que seu homem pode
cheirar como”), protagonizada pelo ator e ex-jogador de futebol americano Isaiha
Mustafa, que interpretava o Old Spice Guy, um conquistador de mulheres e
garoto-propaganda para “Homens que gostam de ser homens”.
3
Em um dos comerciais que compõe a série, o ex-jogador (musculoso, sem
camisa e com voz grave), dirigindo-se às mulheres (“Hello ladies?”), pergunta: “O
seu homem se parece comigo?”. Ele responde a própria pergunta: “Não”. No
entanto, uma esperança: os homens das mulheres a quem a personagem se
dirige podem cheirar como ele, desde que utilizem os produtos Old Spice.
“Mas eles devem usar Old Spice?”. As respostas são: “Eu não sei, você
gosta do cheiro de aventura?” e “Você quer um homem que cheire como se ele
pudesse fazer um bolo gourmet numa cozinha dos sonhos que ele construiu para
3
Para maiores informações, ver:
1) <http://www.adnews.com.br/publicidade/old-spice-estreia-no-brasil-acendendo-vela-com-lanca-
chamas > . Acesso: em 10 jan. 2016.
2) <http://www.meioemensagem.com.br/home/comunicacao/noticias/2014/03/07/Old-Spice-estreia-
no-Brasil-para-resgatar--masculinidade-.html> . Acesso em: 10 jan. 2016.
3) < http://tudoparahomens.com.br/old-spice-chega-ao-brasil/>. Acesso em 10 jan. 2016.
54
você com as próprias mãos?”. A constatação é algo como: claro que vocês
gostariam, então “se atirem para a melhor noite de suas vidas”.
4
Durante o monólogo (que simula um diálogo), o Old Spice Guy sai de uma
praia e aparece em um lago equilibrando-se sobre um tronco, rodeado por uma
floresta de coníferas, onde há, no horizonte, uma montanha com o cume
congelado. Em seguida, anda sobre as águas desse lago e entra na cozinha de
uma casa (segurando o bolo com uma mão e serrando um pedaço de madeira
com a outra), que acaba numa cachoeira. A personagem cai em uma banheira
externa que, ao final, se desfaz, revelando uma moto sobre a qual ele está
sentado.
vários elementos de (des)encontro entre os enunciados jocosos e o
plano imagético, onde ocorrem situações “absurdas”, “sem sentido”. O sucesso foi
imediato: 6.700.000 de visualizações em apenas um dia e mais de 23 milhões de
visualizações após 36 horas (atualmente o vídeo ultrapassou a barreira das 47
milhões de visualizações). Além disso, os seguidores no Twitter aumentaram em
2700%, a interação com os seguidores no Facebook cresceu 800%, o site da
marca aumentou seu tráfego de visitas em 300%, o canal no YouTube passou a
ser um dos mais assistidos da rede e as vendas aumentaram em 125% nos seis
meses seguintes.
5
Em 2014, a linha de produtos foi trazida ao Brasil e a publicidade
promovida pela P&G no país também foi intensa. Para citar algumas das
estratégias de divulgação, no site oficial
6
, o leitor navega no extraordinário mundo
do “homem Homem”, como se estivesse seguindo um mapa virtual do tesouro,
cujo percurso começa e termina na “Ilha do Cabra Macho”. No item
“Homenidade”, somos encaminhados pelo hiperlink à página oficial do Facebook,
onde se pode criar o “RG de Homem”. A brincadeira consiste num teste de
perguntas, a saber:
4
Segue a transcrição do áudio em inglês do vídeo: Hello ladies, how are you? Fantastic! Does
your man look like me? No! Can he smell like me? Yes! Should he use Old Spice Body Wash? I
don’t know! Do you like the smell of adventure? Do you want a man who can smell like he can
bake you a gourmet cake in the dream kitchen he built for you with his own hands? Of course you
do! Swan Dive into the best night of your life. So ladies should your man smell like an Old Spice
Man? You tell me!”, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=uLTIowBF0kE>. Acesso
10 jan. 2016.
5
Para maiores informações, ver: < http://mundodasmarcas.blogspot.com.br/2014
_02_23_archive.html>. Acesso em 11 jan. 2016.
6
Disponível em: <www.homenidade.com.br. Acesso em: 01. fev. 2016.
55
1) Você sabe o que é uma chave Phillips?
2) Você já fez o carro pegar no tranco?
3) Você conhece mais de cinco cores?
4) Você conhece a regra de impedimento?
5) Você teria um leão como animal de estimação?
Não é possível “errar” as questões de sim ou não, que se você “erra”,
recebe mensagens como “Tente puxar pela memória”, “Ops! O verdadeiro homem
deve saber a resposta!” e “Que foi, com medinho?”. A tessitura composicional
desse texto caracteriza o homem Homem como aquele que sabe usar
ferramentas (1), entende de mecânica de veículos (2), conhece/gosta de futebol
(4), não se atém a detalhes (femininos?) como cores (3) e, como item absurdo, é
capaz de dominar um leão (5) “o rei da floresta” que, metaforicamente
empresta as características de ferocidade e realeza ao dono. Ainda na página do
Facebook, dentre os conteúdos disponibilizados, alguns tópicos fixos, como é
o caso da série “O Lobo Responde”, uma espécie de correio masculino,
atravessado pelo intertexto dos contos de fadas, que ninguém ousaria levar a
sério, onde a regra é chamar a atenção para conseguir uma interlocução com o
Lobo.
FIG.1. O lobo responde. FONTE: Página oficial do Old Spice no Facebook,
Segundo Todorov (1970), o “fantástico” é uma vacilação experimentada em
que não se conhece mais as leis naturais frente a um acontecimento,
aparentemente, sobrenatural. Define-se, pois, uma relação outra do real com o
56
imaginário, na qual o leitor não rechaçará a interpretação alegórica. Dito de outra
forma, constitui sua própria manifestação como auto-designação, intervindo no
desenvolvimento da narrativa. O leitor percebe a “brincadeira” de retomar o lobo-
mau (e não o lenhador), compreende que se trata da personagem que come (na
dupla acepção da palavra) a Chapeuzinho e a Vovó e lhe pede dicas de
conquista.
Esse caráter jocoso e, em certa medida surreal, que separa os homens de
verdade” dos “homens o-Homens” foi o mote para o primeiro comercial do
produto no país (o corpus do estudo), com o “embaixador da marca”, o ator de
novelas Malvino Salvador. O pequeno filme, produzido pela agência Grey Brasil,
com 1’, 30”, 5”’ de duração, retrata alguns “homens Homens” (a espécie em
extinção) sendo reunidos por uma figura misteriosa para anunciar a chegada do
único desodorante “com partículas de cabra-macho”. Foram segmentadas três
cenas para análise da construção da intertextualidade.
O primeiro recorte é também o começo do filme, no qual, antes da narração
(apenas com a trilha sonora), aparece um homem sem camisa, sem pelos no
corpo, com barba e cabelos rudemente aparados derrubando um coco com um
único chute na árvore (o qual, em seguida, “abre” com as próprias mãos):
RECORTE 1. (0’0’’ - 0’5’’). FONTE: YouTube.
57
Este homem é interrompido por um som que lembra um assobio. Na
sequência, a câmera focaliza seu rosto (primeiríssimo plano)
7
e passa-se para a
próxima cena. O segundo homem que ouve o chamado do Old Spice é diferente
do primeiro. Em um ambiente urbano de alto luxo, leva duas mulheres sedutoras
a uma festa de gala, trajando um esmoquin. Um carro passa sobre uma poça de
água enlameada e, por consequência, suja a segunda personagem. Melhor:
sujaria, caso ele, mesmo sem olhar, não tivesse se protegido com o casaco (que,
incrivelmente, nem ao menos se molha). O rapaz ouve o assobio e, por causa
disso, deixa as acompanhantes e corre para responder ao chamado.
7
Planificação, segundo Nogueira (2010, p. 133), refere-se às formas de destrinchar uma produção
fílmica. “No fundo, trata-se de responder à questão fulcral desta fase: como visualizamos a ação?
Como a vamos mostrar?(...) o esforço deve ser sempre orientado no sentido de conseguir aquilo
que seria o guião técnico perfeito, ou seja, uma planificação que, de tão minuciosa e exactamente
possível, permita antever o que será a obra final”. A movimentação da câmera é um dos aspectos
prioritários de uma composição fílmica, seguem as classificações utilizadas no estudo. 1) Plano
Aberto: a câmera está distante do objeto, que ocupa uma pequena do cenário; 2) Plano Médio: a
câmera está a uma distância média do objeto, que ocupa parte considerável do ambiente, mas
ainda tem espaço à sua volta; 3) Plano Fechado: a câmera está bem próxima do objeto, que
ocupa quase todo o cenário; 4) Plano Detalhe: a câmera enquadra uma parte do rosto ou do
corpo, assim como detalhes de objetos; 5) Plano Americano: a figura humana é enquadrada do
joelho para cima; 6) Plano de Conjunto: com um ângulo visual aberto, a câmera revela uma parte
significativa do cenário a sua frente; 7) Meio Primeiro Plano: a figura humana é enquadrada da
cintura para cima; 8) Primeiríssimo Plano: a figura humana é enquadrada dos ombros para cima.
Para maiores informações, ver: < http://www.primeirofilme.com.br/site/o-livro/enquadramentos-
planos-e-angulos/>. Acesso em 15 fev. 2016.
58
RECORTE 2. (0’8’’ - 0’16’’). FONTE: YouTube.
dois intertextos que sustentam os modos de representação na
construção do “objeto do discurso”, em sentido bakhtiniano, que atravessam o
filme comercial até esse ponto. A dupla função do homem é estereotipada em
seus dois extremos: o protetor, que garante a sobrevivência da família e o
provedor rico (ou pegador”), que pode sustentar um lar. (VIGARELLO, 2013). Na
mídia massiva, o símbolo do domínio do homem sobre a natureza é a
personagem estadunidense de 1912, Tarzan, ressignificada no comercial.
Eliminam-se características pouco desejadas segundo padrões de beleza
iconográficos contemporâneos como a pilosidade corporal e a magreza, mas se
mantém a ferocidade, pelo gesto e pelo olhar, da personagem criada por
macacos. A mídia de massa televisiva também sustenta a segunda representação
virilidade. Um homem trajado de gala com belos carros esportivos, acompanhado
por mais uma mulher remete, implicitamente, ao espião James Bond, dos filmes
007 (em especial, a versão interpretada pelo ator Pierce Brosnan).
FIG.2 e 3. INTERTEXTOS. FONTES: Buscador de imagens Google.
Se levarmos em consideração a intencionalidade do produtor de tornar o
produto conhecido em um mercado onde ele não existia, fica claro o porquê da
escolha de elementos que o leitor (em especial, um homem de idade dia)
poderia reconhecer e, dessa maneira, “compactuar da piada” - a situação surreal,
hiperbólica, que caracteriza a abordagem recente da marca.
59
No que diz respeito ao aspecto verbal, enuncia-se ao longo da narrativa
fílmica:
Vocês são os sobreviventes de uma espécie em extinção: o
homem-homem. O homem que sabe como incendiar um encontro.
O homem que sempre chega lá, não importa como. A missão de
Old Spice é trazer de volta o orgulho de ser e cheirar como
homem. O futuro da “homenidade” está em suas mãos. Chegou
Old Spice: o desodorante do homem Homem. O único com
partículas de cabra-macho. Atenda ao chamado se for homem
(cabra-macho).
O “chamado” dirige-se aos homens, que, segundo as duas orações
adjetivas, alcançam qualquer objetivo (não importa como) e são hábeis no jogo da
conquista. Esta é uma proposta exclusiva (porque se destina somente aos
homens Homens, não aos homens não-Homens) e, paradoxalmente, inclusiva
(já que o enunciado se inicia com o pronome “Você”). O locutor diz “atenda o
chamado”, cujo verbo no imperativo foca o interlocutor que assiste a propaganda,
mas uma ressalta na forma de oração adverbial condicional (“se for homem”).
A situação absurda e engraçada, caraterística de toda campanha
publicitária da marca, sobre os tipos “tradicionais” de homem (como sugere o
nome do desodorante, “Old”, do inglês antigo) indica, portanto, um profundo
sentido de humor, motivo de sucesso: diz o que não se pode dizer, recupera
intertextos (como as personagens Tarzan e 007) quando não se pode recuperar e
defende posturas que não se devem defender (as vozes mais exaltadas poderiam
classificar a peça publicitária como “machista”).
O terceiro recorte, por fim, foi extraído das últimas cenas, nas quais os
homens que ouviram o chamado se agrupam em um porto. A personagem
interpretada por Malvino Salvador faz o caminho de moto; ao invés de estacioná-
la, pula do veículo em movimento que, logo em seguida, explode.
60
RECORTE 2. (0’38’’ - 0’42’’). FONTE: YouTube.
Se nos dois recortes anteriores, a intertextualidade implícita pautada no
conhecimento de mundo de elementos de mídia de massa - as personagens viris,
cada uma a sua maneira, Tarzan e James Bond -, nesse terceiro momento, o
leitor deve retomar o estilo dos filmes de ação. São características desses filmes,
a movimentação da câmera rápida e abrupta (conforme a transição de planos,
legendados, nesse trabalho, sobre as imagens congeladas) e as famosas cenas
de explosão, nas quais, aparentemente o “homem Homem” é seguro de si o
suficiente para não precisar olhar para trás:
FIG.4 e 5. INTERTEXTOS (2). FONTES: Buscador de imagens Google.
A propaganda da Old Spice - compreendida como um texto, isto é, como
uma manifestação da capacidade de linguagem do ser humano, realizada através
61
de um sistema de códigos (em que pesam, nesse caso, o aspecto verbal,
imagético, sonoro e a movimentação de câmera) - materializa representações
convencionais de masculinidade, já inscritas no horizonte social de nossa época.
A novidade, bem aceita nos Estados Unidos e no Brasil, foi o modo como
os publicitários mobilizaram tais valores na tessitura composicional do texto (com
retomada de personagens da mídia de massa como Tarzan e o agente secreto
007) e no estilo de construção da narrativa fílmica: rápido, recortado (como indica
a movimentação da mera na transição dos planos) e explosivo (nos dois
sentidos) dos filmes de ação. Pelo jogo irônico, insólito que reafirma noções
tradicionais de virilidade (como poder, força e dominação) com as quais o público-
alvo compactua, o produto Old Spice adentra o mercado brasileiro, tornando-se
conhecido e, principalmente, comprado.
Considerações Finais
No presente artigo, objetivamos analisar o processo intertextual que
resgata, num comercial da marca Old Spice, o “homem viril” como um valor a ser
assegurado na construção de sentidos do texto publicitário. Para tanto,
analisamos três recortes de um comercial televisivo da referida marca, veiculado
no ano de 2014. Nessa empreitada, consideramos de fundamental importância os
reodernamentos teóricos que nos permitem pensar o texto a partir de outras
semioses que ultrapassam o componente verbal.
Assim, constatamos que as referências intextextuais a outros textos de
cunho (áudio)visual, os quais o representativos para iterar um dado padrão de
virilidade, ocorrem de maneira coextensiva aos objetivos do texto propagandístico
que é vender um dado produto, no caso em estudo, comercializar itens de
perfumaria masculina. Para tal intento, o comercial aponta para outros dizeres,
outras materialidades, de modo a evidenciar que o texto se constrói sempre numa
relação de alteridade com textos ditos e vistos. Pensando nas
especificidades do universo publicitário, é possível aventar que vender um
produto de cunho exclusivista, destinado a “homens de verdade”, é lucrativo,
tendo em vista que “ser homemé imbuído de um rol de características positivas
na nossa cultura. Apesar de ser um bom negócio (no sentido de que
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interlocutores que aderem aos valores tradicionais do papel de cada gênero),
esse tipo de campanha poderia vir a sofrer represálias de diversas ordens
(inclusive legais), já que o horizonte social da nossa época pressupõe a igualdade
e a não discriminação.
uma saída: compor a narrativa fílmica de modo que ela possa ser
interpretada como uma piada, uma brincadeira insólita, hiperbólica com os
sentidos de virilidade em sua acepção primeira: poder, força, maturidade,
segurança e beleza (física e moral). E se se trata de uma brincadeira, é natural
que os elementos do conhecimento de mundo de um universo textual múltiplo (de
filmes de ação, de jogos eletrônicos, de revistas em quadrinhos, etc.) sejam
trazidos ao leitor, o mplice, que deve perceber determinadas estratégias
textuais, como a ironia.
Desse horizonte ideológico de processos contraditórios (do que se pode e
não se pode dizer), (re)constrói-se textualmente o sujeito viril, o “suporte de
projeções” (como na leitura do Superman, de Eco (1987): seja como o predador
(o intertexto com Tarzan), seja como o provedor/pegador (o intertexto do agente
James Bond), seja como herói (cabra-macho) de filmes estilo “Rambo”.
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