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ENTRE O DISCURSO RELIGIOSO E O DISCURSO JORNALÍSTICO
Por uma análise da mídia impressa religiosa
Entre le discours religieux et le discours journalistique: par une analyse de la
presse écrite religieuse
Wellton da Silva de FATIMA
1
RESUMO: Este artigo objetiva analisar a relação entre religiosidade e jornalismo, em uma
perspectiva discursiva, no jornal Folha Universal da Igreja Universal do Reino de Deus. A
partir dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso francesa, mais especificamente
aquela inaugurada a partir dos estudos de Pêcheux (1969 [2014]), buscamos empreender
uma leitura crítica sobre alguns processos discursivos do folheto, considerando o
funcionamento do discurso religioso (ORLANDI, 1987; 2007) e a inserção do discurso
jornalístico (MARIANI, 1996) na produção dos sentidos formulados no interior do jornal e
que circulam a partir de sua distribuição.
PALAVRAS-CHAVE: discurso religioso; discurso jornalístico; Igreja Universal.
RÉSUMÉ: Cet article vise à analyser la relation entre la religiosité et le journalisme, dans
une perspective discursive, dans le journal Folha Universal de l'Igreja Universal do Reino
de Deus. À partir des hypothèses de l'Analyse du discours française, de Pêcheux (1969
[2014]), nous cherchons à faire une lecture critique de certains discours du livret, attendu
le fonctionnement du discours religieux (ORLANDI, 1987, 2007) et l'insertion de discours
journalistique (MARIANI, 1996), dans la production de significations formulées dans le
journal et qui circulent de sa distribution.
MOTS-CLÉS: discours religieux; discours journalistique; Igreja Universal.
1
Mestre em Estudos da Linguagem/UFF – Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS) – Professor de
Língua Portuguesa/Tanguá-RJ. Contato: malcon.welton1@gmail.com
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1. INTRODUÇÃO
O presente artigo surge como desdobramento de nossa dissertação de
mestrado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem,
da Universidade Federal Fluminense, por meio do Laboratório Arquivos do Sujeito
(LAS). A inquietação que aqui nos traz, deriva da pungente relação entre o
discurso religioso e o discurso jornalístico – e da imbricação que aí se produz – no
jornal Folha Universal da Igreja Universal do Reino de Deus.
Temos compreendido (cf FATIMA, 2018) que a relação discursiva entre o
aspecto jornalístico e o aspecto religioso produz efeitos de sentidos específicos
na relação entre sujeitos, em suas posições, no que se refere ao nosso objeto.
Para verificar tal impressão, elencamos uma edição inteira do jornal para análise.
Trata-se da edição 1355, que circulou em março de 2018, a partir da qual
observamos também a disposição gráfica, incluindo-se o aspecto não-verbal
2
e,
mais especificamente, as sequências discursivas recortadas da coluna Projeto
Intellimen, sobre a qual falaremos adiante.
Ancoramo-nos, para tanto análise, nos pressupostos teóricos da Análise do
Discurso inaugurada a partir dos estudos de Pêcheux (1969 [2014]; 1975 [1995]),
e desenvolvida, sobretudo, por Orlandi (2007; 2013) e Mariani (1996). Por meio
da citada teoria, procedemos a uma análise dos processos discursivos
materializados nas páginas do jornal que, por sua vez, permitem observar a
sobreposição do discurso jornalístico e do discurso religioso, bem como os efeitos
de sentido que dessa sobreposição decorrem.
Uma de nossas perguntas, exclusivamente para este trabalho, é: o efeito
de verdade que se constitui pelas páginas do jornal na leitura hegemônica feita
pelo sujeito/fiel/leitor encontra sua legitimação pelo jornalístico ou pelo religioso?
Isto é, fala, nas páginas do jornal, a voz do especialista (MARIANI, 1996) ou
2
Referimo-nos aqui à disposição gráfico-imagética que funciona no jornalismo impresso: fontes
maiores ou menos a depender do destaque que quer se dar a determinada coisa, o
funcionamento do olho, o uso de cores para destacar determinados trechos, entre outras
coisas.
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funciona a onipotência do silêncio divino (ORLANDI, 2007), presentificando-se a
voz de Deus? (ORLANDI, 1987).
Para tentar responder a essas e outras questões que a partir da análise do
corpus foram se colocando-nos, além desta introdução, procedemos à seguinte
divisão para este artigo: comentamos, em linhas gerais, os pressupostos teóricos
da disciplina de entremeio (ORLANDI, 2013) que nos ancora; logo após,
explicitamos os nossos procedimentos de análise, ou seja, a construção do
dispositivo teórico necessário para o que aqui se pretende; em seguida, tecemos
algumas reflexões importantes acerca do nosso objeto; procedemos às análises
conforme a teoria e o dispositivo construído; e, por fim, fazemos algumas
considerações finais.
2. SOBRE A TEORIA QUE NOS ANCORA
A Análise do Discurso surge na década de 1960, na França, propondo
diversas rupturas com as abordagens de tratamento textual que vigoravam até
então. A Análise do Discurso diferencia-se de outras disciplinas de interpretação
ao deslocar a pergunta básica de interrogação do sentido do texto de ‘o que esse
texto quer dizer?para ‘como funciona este fragmento de linguagem?’. De acordo
com Mariani (1996)
A AD se propõe a discutir e a definir a linguagem e a natureza da
relação que se estabelece com a exterioridade, tendo em vista
seu objetivo principal de compreender os modos de determinação
histórica dos processos de produção dos sentidos na perspectiva
de uma semântica de cunho materialista. (MARIANI, 1996, p. 21)
Isso porque a supracitada disciplina trabalha as relações e as tensões
entre a língua, a história e um sujeito de natureza psicanalítica. Ainda de acordo
com a autora:
[…] o fundador da AD, Michel Pêcheux, propôs articular três
regiões do saber: o materialismo histórico, enquanto teoria das
formações sociais e suas transformações; a linguística, enquanto
teoria dos processos não subjetivos de enunciação e a teoria do
150
discurso, como teoria histórica dos processos semânticos. Essas
três regiões, ainda de acordo com Pêcheux, são atravessadas e
articuladas por uma teoria da subjetividade de natureza
psicanalítica. (MARIANI, 1996, p. 22-23)
É a partir dessa proposta teórica que se busca romper com tradições, por
exemplo, como a da Análise de Conteúdo, que pressupõe haver um sentido
inequívoco a partir do conteúdo do texto. Acreditava-se, portanto, na
transparência da linguagem, isto é: pelos pressupostos dessa teoria que vigorava
dentre as ciências humanas e sociais era possível crer no atravessamento de um
texto para se chegar ao seu sentido, desconsiderando-se em grande parte o
funcionamento da ideologia e a inserção de um sujeito em suas relações com a
língua, com a própria ideologia e com o inconsciente.
A respeito dessa e de outras tradições contra as quais a Análise do
Discurso se posiciona, Pêcheux (2014 [1969]), em tom de crítica, afirma que
[…] estudar uma ngua era, na maior parte das vezes, estudar
textos, e colocar a seu respeito questões de natureza variada
provenientes, ao mesmo tempo, da prática escolar que ainda é
chamada de compreensão de texto, e da atividade do gramático
sob modalidades normativas ou descritivas. (PÊCHEUX, 2014
[1969], p. 59)
Observando, dessa forma, a língua em sua relação com a exterioridade, a
Análise do Discurso trabalha (n)as tensões que se estabelecem entre e nas
intersecções (d)as disciplinas sobre cujos aparatos se assenta. Desse modo,
podemo-nos remeter às formulações de Orlandi (2013), afirmando o seguinte:
Em uma proposta em que o político e o simbólico se confrontam,
essa nova forma de conhecimento coloca questões para a
Linguística, interpelando-a pela historicidade que ela apaga, do
mesmo modo que coloca questões para as Ciências Sociais,
interrogando a transparência da linguagem sobre a qual elas se
assentam. Dessa maneira, os estudos discursivos visam pensar o
sentido dimensionado no tempo e no espaço das praticas do
homem, descentrando a noção de sujeito e relativizando a
autonomia do objeto da Linguística. (ORLANDI, 2013, p. 16)
Assim, nos é cara a observação das formas como a ideologia se insere
materialmente enquanto discurso. Este último sendo definido como efeitos de
sentidos (e não transmissão de informação) entre os interlocutores(PÊCHEUX,
151
2014 [1969], p. 82), coloca uma especificidade para os adeptos da análise de
discurso pecheutiana: é nas relações entre os sujeitos mais especificamente
nos sentidos que se constituem entre eles que se encontra o espaço
privilegiado para se observar o funcionamento da ideologia.
A ideologia para nós não se configura, tal como se poderia supor a partir do
senso comum, como uma ocultação ou mascaramento da realidade. De acordo
com Orlandi (2013, p. 47) “[...] a ideologia não é ocultação mas função da relação
necessária entre linguagem e mundo”. Desse modo, temos considerado que, no
que tange à relação com a língua – e mais especificamente a inscrição do sentido
em sua ordem –, “as palavras recebem seus sentidos de formações discursivas
em suas relações(ORLANDI, 2013, p. 47).
As formações discursivas, portanto, relacionam-se, no espaço amplo da
formação social, possibilitando que sentidos se tensionem e posições-sujeito se
(re)formatem. Tal conceito pode ser compreendido como “[…] aquilo que, numa
formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura
dada, determinada pelo espaço da luta de classes, determina o que pode e deve
ser dito [...]” (PÊCHEUX, 1995 [1975], p. 160).
A partir disso, possibilita-se a compreensão da existência de determinados
domínios do saber, como o discurso religioso, por exemplo, e o potencial de
atravessamento desses domínios por funcionamentos outros, como o discurso
jornalístico.
As formações discursivas, por serem compreendidas como regiões de um
determinado saber, guardam fortes relações com o funcionamento da ideologia.
Mais especificamente, com os funcionamentos locais da ideologia, isto é, levando-
se em conta as mais diversas instâncias das ideologias e das práticas
discursivas, inclusive – inerentes a elas.
Pêcheux (1995 [1975]), referindo-se à concretude pela qual se apresentam
as ideologias, compreende que
[...] a instância ideológica existe sob a forma de formações
ideológicas [..] que, ao mesmo tempo, possuem um caráter
'regional' e comportam posições de classe: os 'objetos' ideológicos
são sempre fornecidos ao mesmo tempo que a 'maneira de se
servir deles' – seu sentido [...] (PÊCHEUX, 1995 [1975], p. 145)
152
Os objetos ideológicos, inscritos em uma determinada formação ideológica
e materializados em uma formação discursiva, surgem, desse modo, como
objetos divididos, que a investidura de sentido que neles possa ocorrer, será
sempre uma investidura dada nas/pelas condições de produção.
Deste modo, torna-se possível observar fatos de linguagem que
possibilitem a demonstração de como, em uma determinada formação ideológica
e a partir de uma determinada formação discursiva, delimitando-se pelas
condições de produção, algo pode ser dito e lido de uma maneira e não de
outra. E, mais do que isso, como formas de linguagem se imbricam e possibilitam
que a significação se dê em uma determinada direção e não em outra.
De acordo com Orlandi (2013), nossa formação social está impregnada
pelas relações de força, que derivam das relações de classe (aqui anteriormente
citadas) e, em virtude disso, faz comparecer a possibilidade de projeção às
vezes fixação – sobre posições na formação social.
Tais posições que são ocupadas por sujeitos, mas também por instituições
reguladas por e para sujeitos , por estarem revestidas de um aspecto
simbólico, configuram-se pela possibilidade de projeção de uma imagem e,
consequentemente, da constituição de um imaginário.
Esse fato se pelo mecanismo das antecipações, pelas quais se podem
depreender as formações imaginárias que funcionam, pelos efeitos de sentido
que se constituem entre os sujeitos em suas posições, discursivamente,
produzindo e permitindo a circulação de dizeres de maneira mais ou menos
estabilizada.
De acordo com Mariani (1996), “O imaginário é, então, esse dizer
colocado interdiscursivamente, uma espécie de 'reservatório' de sentidos para o
sujeito. Mas nessa relação do sujeito com o dizível, o imaginário atua na ilusão
subjetiva que o faz ser a origem e a fonte do dizer.(MARIANI, 1996, p. 33).
É a partir deste formulado teórico, então, que problematizamos não
somente a produção do sentido na imbricação entre jornalismo e religiosidade no
jornal Folha Universal, mas também teorizamos acerca da leitura que se faz dos
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dizeres que ali se formulam, a partir de uma determinada posição-sujeito afetada
pela ideologia e mediada pelas condições de produção do discurso.
3. DOS PROCEDIMENTOS
Para os propósitos a que se destina o presente artigo, selecionamos uma
edição completa do jornal Folha Universal para analisar. A edição 1355 é uma
edição recente e nela consta a coluna Projeto Intellimen, um de nossos interesses
temáticos.
Tal coluna é direcionada para pessoas do gênero masculino que, em uma
história recente, tem sido a minoria entre os fiéis das igrejas evangélicas, embora
sejam ainda a maioria dos cargos de direção e comando dessas mesmas igrejas.
A coluna, em sua nomenclatura, opera discursivamente em direção não
somente a homens quaisquer, mas para aqueles cuja ambição necessite de um
projeto e que, ainda, envolva-se inteligência.
A justificativa da escolha dessa coluna se por um interesse nosso mais
amplo: os modos de significar o gênero e a sexualidade na mídia impressa
neopentecostal (FATIMA, 2017; 2018) e, mais recentemente, os modos como se
diz especificamente para cada gênero. Nossa ênfase, aqui, no entanto, é mais
especificamente nos processos discursivos que decorrem da relação entre o
discurso jornalístico e o discurso religioso e, também, os mecanismos que se
engendram nessa relação.
Desse modo, recortamos (ORLANDI, 1984) tal coluna pela temática e,
posteriormente, recortamos as sequências discursivas (COURTINE, 2014) desta
matéria e, finalmente, produzimos um corpus.
Sobre esse corpus, operacionalizamos conceitos e noções anteriormente
descritas, de acordo com o terreno no qual se assenta a Análise do Discurso,
tentando responder a algumas questões que foram surgindo no momento mesmo
da construção e delimitação do corpus analítico.
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4. REFLEXÕES ACERCA DO OBJETO
A Igreja Universal do Reino de Deus chegou ao Brasil na década de 1970,
pelo seu até hoje maior nome o Bispo Edir Macedo. Embalada por movimentos
religiosos em alta na América Protestante, a Universal é comumente relacionada
ao que tem se convencionado chamar neopentecostalismo.
Esse movimento religioso se configura como mais um das ondas do
protestantismo e guarda algumas relações e, sobretudo, diferenças em relação à
Igreja Católica, às igrejas protestantes tradicionais e também às igrejas
pentecostais. Marcam-se as neopentecostais, por sua proximidade com a
Teologia da Prosperidade.
Mais do que as igrejas neopentecostais apenas, o próprio segmento
religioso cristão protestante, desde seu surgimento, guarda fortes relações com
as mídias. Uma de suas principais prerrogativas é “levar a toda criaturaa palavra
do evangelho
3
. Como característica específica, as igrejas protestantes, e mais
fortemente as neopentecostais, compreendem que a palavra do evangelho pode
ser potencializada pelas mídias televisivas, radiofônicas, impressas, etc.
A igreja Universal, por exemplo, é detentora dos direitos sobre a Rede
Aleluia, um empreendimento midiático que gerencia canais de televisão, de rádio
e, o mais importante para nós, o jornal Folha Universal.
O supracitado jornal, que é semanal, está em circulação, ininterruptamente,
desde 1992 e atualmente possui uma tiragem de mais de 2 milhões de
exemplares, servindo como material evangelístico nas ruas, nos presídios, etc.
Além do conteúdo religioso, o jornal aborda também atualidades e, sob seu ponto
de vista, enuncia questões dos mais diversos domínios: esporte, comportamento,
conflitos internacionais, etc.
Daí a necessidade de se investigar teoricamente, para os objetivos que
aqui elencamos, o jornal Folha Universal. Nos termos tratados por Mariani (1996),
o jornal, ao colocar o mundo como objeto, caracteriza o discurso jornalístico,
3
É por essa relação com o evangelho que surge e comumente se convenciona chamar aos
adeptos deste segmento religioso de “evangélicos”.
155
sendo um discurso autoritário que, por meio dele, fala a voz do especialista,
aquele que detém a informação e informa àqueles que não sabem. Sendo, sua
voz, portanto, uma voz de autoridade.
Por outro lado, nos termos tratados por Orlandi (1987), no jornal também
fala a voz de Deus, que em diversos momentos o caráter religioso se
presentifica: pelas citações bíblicas; pelos enunciados assinados pelos bispos da
igreja; por analogias de narrativas bíblicas e religiosas conhecidas; etc. Ainda
sobre o que diz Orlandi (2007), o que “funciona na religião é a onipotência do
silêncio divino(ORLANDI, 2007, p. 28), e no jornal isso fica fortemente marcado,
à medida que se percebe uma direção semântica própria do jornal na
interpretação, por exemplo, da “vontade de Deus”.
Especificamente tratando sobre a edição 1355, sobre a qual, em minúcias,
está detida nossa análise, na capa a chamada de uma matéria chama
“Pornografia na mira que traz uma série de denúncias sobre a temática. No
decorrer das páginas, diversos assuntos vão sendo tratados. Diretrizes para o
comportamento feminino, análises históricas de personagens bíblicas, direito,
saúde, famílias, diversas outras coisas e, uma matéria intitulada “O sucesso em
uma única lição”, na coluna Projeto Intellimen: formando homens melhores.
A coluna Projeto Intellimen é, como dissemos, voltada para homens e tem
forte apelo empreendedor entrelaçado ao religioso. Em termos discursivos, e
remetendo a esse entrelace, o didatismo (MARIANI, 1996) fica marcado de
saída, ao tratar do sucesso por meio de uma “única lição”. Nesta, edição,
portanto, a coluna objetiva fazer com que se público aprenda a ter sucesso em
apenas uma lição proferida por um palestrante em um encontro presencial do
projeto em uma unidade da Igreja Universal do Reino de Deus.
Tendo feito algumas considerações importantes, passemos às nossas
análises.
5. As análises
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Sejam, então, as seguintes SD
4
recortadas da coluna do jornal:
SD1 - Ao avaliar os mapas que mostravam os territórios de domínio babilônico, o
imperador Dario percebeu que a tarefa de administrar todo aquele espaço não seria
fácil. Então, decidiu nomear três presidentes – que seriam auxiliados por 120
príncipes espalhados por todo o reino – para aju-lo nesse desafio.
SD2 - Daniel, que era hebreu, fazia parte do grupo de presidentes. Por ser mais
inteligente e ter um espírito excelente, Daniel se destacou de tal modo que Dario
resolveu colocá-lo como presidente geral. Isso despertou a inveja nos demais
administradores e eles tramaram uma maneira de derrubá-lo.
Nas SD supratranscritas, mais estritamente em SD1, o que na
superfície linguística é a introdução de uma narrativa que se pode remeter ao
domínio das narrativas tipicamente histórico-religiosas. Tal fato se confirma pela
seleção vocabular, que grafa elementos como a “Babilônia”, um “imperador”,
“príncipes”, etc.
Notadamente em se tratando do funcionamento de tal narrativa, percebe-
se que o jornal, através de seu colunista, projeta a imagem de um leitor que
(re)conhece tal narrativa e, por isso, estrutura-se o fato ali relatado a partir de uma
analogia entre a história mesma (re)conhecida e aquela outra, ainda a ser
apresentada, cujo conteúdo quer-se que se conheça.
O fato da imagem de ciência no sentido de estar ciente do leitor a
respeito da história narrada se confirma, por exemplo, pela não utilização de
apostos ou orações subordinadas adjetivas que, de algum modo, expliquem quem
é Dario. E, de outro modo, essa confirmação, ao utilizar-se um artigo definido
para determinar “mapasos quais se referem ao território babilônico. Tais usos de
linguagem demonstram que o jornal acredita ao passo que se referenda esta
posição-sujeito que o leitor da coluna em questão sabe sobre o que se está
falando.
A ausência de mecanismos explicativos de linguagem e, por contraste, a
presença de determinantes definidos atua na direção de sentidos que se projeta
para o sujeito/fiel/leitor. Este último, identificado com uma formação discursiva
4
Abreviação de sequências discursivas
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religiosa está, portanto, predisposto ideologicamente a ler o que ali se formula
como um bom sujeito.
Essa projeção de um leitor que “sabe a respeito do que se fala não é
ideologicamente neutra, já que a coluna do Projeto Intellimen se constitui de
matérias cujo público-alvo são os homens. Por contrate, e pensando em trabalhos
anteriores (FATIMA, 2015), ao analisarmos o funcionamento discursivo da coluna
Folha Mulher, desse mesmo jornal, compreendemos que esse é um efeito
produzido neste recorte, isto é, neste fragmento correlacionado de linguagem-e-
situação (ORLANDI, 1984, p.14).
Em SD2, no entanto, as explicativas começam a aparecer sob a forma
de uma oração adjetiva, o funcionamento discursivo dela, entretanto, atua de
outro modo. dentro da ilusão referencial de que seu leitor conhece o assunto
de que se está tratando, o jornal explica quem é esse personagem novo Daniel
– de modo a familiarizar o leitor sobre esse elemento sobre o que se dissertará.
Cabe, então, confrontar esses dois funcionamentos. Em um dos
momentos, as explicativas não comparecem, pois, caso comparecessem, a
imagem do leitor que se projetaria seria de alguém não identificado com os
dizeres ali formulados, que necessita de explicações prévias para isso do que
se está tratando. Em outro momento, o segundo, a explicação pode comparecer,
que, estando imerso no processo de identificação que mantém a ilusão de um
fio narrativo, o jornal pode oferecer ao leitor isso a que Mariani (1996), analisando
o discurso jornalístico, chamou didatismo.
Em relação a isso, observemos mais duas sequências discursivas:
SD3 - Eles tentaram encontrar algo para incriminá-lo, mas não tiveram sucesso. A
saída foi inventar alguma lei que atacasse a de Daniel, que era fiel a Deus. Eles
conseguiram fazer que Dario aprovasse um decreto que, de maneira indireta,
proibisse Daniel de orar ao Altíssimo por um prazo de 30 dias. Mesmo sabendo da
nova lei, o hebreu continuou com as orações. Então, a punição logo veio: apesar de
o rei ter procurado maneiras de livrar Daniel, ele teve de ser jogado na cova dos
leões.
158
SD4 - Talvez você esteja se perguntando: ‘o que essa história tem a ver com minha
vida?Se buscar a Bíblia e continuar a leitura descrita no livro de Daniel, capítulo 6,
verá que o profeta foi livrado dos leões e sobreviveu. Além disso, o imperador Dario
reconheceu o poder do Deus de Israel. Daniel era um “homem de oraçãoe esse
hábito era seu segredo para ser uma pessoa tão bem-sucedida na vida.
Nas SD acima, materializa-se o prosseguimento de uma analogia pela qual
está estruturada toda a matéria, desvelando o propósito para o qual se destina a
coluna: o convencimento do leitor sobre um determinado tema. Isso coloca, para
nós, um questionamento sobre os limites entre o aspecto narrativo e o
argumentativo, em termos discursivos. Deixemos, pois, esse questionamento para
as considerações finais, e retornemos à ordem da língua que se constrói em SD3.
O que se projeta, a partir dessa SD, é a imagem de Daniel, por quem se
metonimiza a figura de outros fiéis o que se justifica pela inserção de uma
oração adjetiva “que era fiel a Deus , como alguém que é perseguido,
constantemente atacado, que apresenta resistência em prol da sua e que, por
fim, é severamente punido por conta disso. O efeito de verdade, nesta SD, deriva
predominantemente do discurso religioso, apelando para uma história de
perseguições sofridas, que ocorreram em determinado momento da história e em
determinados contextos geográficos, pelos cristãos. Tal fato é fortemente
presente, como analogia, em relação aos sofrimentos e perseguições
contemporâneas que alguém possa sofrer.
No entanto, funciona, também, em SD3, uma propriedade do discurso
jornalístico à qual Mariani (1996) chamou didatismo. Tratam-se de certos atributos
do funcionamento de fatos de linguagem comuns ao domínio da imprensa que, ao
colocar o mundo como objeto
5
, fazem-no a partir de esquemas, definições,
explicações.
Tal didatismo comparece, por exemplo, em determinados procedimentos
de coesão referencial que, além de produzir retomadas, produzem, também,
explicações, trazendo informações novas, para o leitor. Como em “ao Altíssimo”, o
‘hebreu”, etc. Além disso, a utilização de informações precisas de tempo, como
5
Tal definição é de Mariani (1996) ao analisar o modo como o comunismo era significado
na/pela mídia impressa política carioca em parte do século XX.
159
“prazo de 30 dias também atuam na constituição do didatismo o que, por sua
vez, corrobora o sentido de verdade que vai se construindo nas páginas do jornal.
Isso nos leva à compreensão de que apesar da dominância do discurso religioso
na constituição do efeito de verdade ali produzido, forte atravessamento do
discurso jornalístico em sua constituição.
em SD4, chamamos a atenção para dois processos discursivos que,
conjuntamente, constituem-se: o primeiro deles é a continuidade do supracitado
didatismo contido no enunciado “o que esta história tem a ver com a minha vida?’.
Seguindo-se tal enunciado de uma explicação, o jornal direciona, a partir da
didatização, para o sujeito/fiel/leitor a compreensão que se deve ter daquilo que
se lê. Tal procedimento faz com que a polissemia – sempre possível de se
inscrever se estanque, dando uma direção mais precisa para o sentido. Em
termos de tipologia, nesse tipo de funcionamento, Orlandi (1987) afirma haver um
discurso autoritário.
O segundo procedimento discursivo que se constitui, é a projeção de um
processo de identificação da história narrada para com o sujeito/fiel/leitor. Tal
processo de identificação perpassa todas as SD por meio do funcionamento
discursivo da analogia. Todavia, em SD4, aliada ao didatismo, a analogia se
materializa em um efeito específico: fazer com que o sujeito/fiel/leitor se
reconheça na história mesma ali narrada. Desse modo, ainda que o leitor tenha
se sentido, tal como ocorre em SD3, atacado, perseguido, etc. em SD4, ele “se
livra e “sobrevive”. Insurge-se uma história de superação comum a todos para
quem ali se fala.
É necessário salientar que, tendo se estabelecido um processo de
identificação do sujeito/fiel/leitor, por meio de sua história pessoal, com a história
que se narra na matéria, algumas simetrias vão sendo, discursivamente,
trabalhadas no jogo das formações imaginárias: em Daniel projeta-se,
imaginariamente, o sujeito/fiel/leitor como equivalente; logo, independentemente
dos ataques, das proibições, das perseguições, se o sujeito/fiel/leitor é, tal como
Daniel, um ‘homem de oração’, ele sobreviverá. Marca-se aí, novamente, uma
forte predominância do discurso religioso.
Observemos as próximas sequências discursivas:
160
SD5 - O palestrante Renato Cardoso falou da importância desse hábito de Daniel
durante o encontro mensal exclusivo para homens que ocorreu no Templo de
Salomão, na capital paulista, no dia 11 de março: ‘o ser humano criou rezas, rituais,
preces, mas a oração foi criada por Deus como um canal de comunicação entre nós
e Ele. Daniel tinha esse costume de dobrar os joelhos três vezes ao dia e orar em
direção a Jerusalém. Ali estava o segredo de Daniel, o segredo do seu espírito de
excelência. Seus adversários usaram a mentira, arrumaram um decreto, uma lei, só
para prejudicá-lo. Entretanto, graças à vida de oração de Daniel, aquilo que seus
inimigos fizeram se voltou contra eles mesmos. Tudo porque ele tinha uma vida de
justiça e de oração com Deus”.
SD6 - A melhor parte é que você também pode ser uma pessoa de sucesso, como
Daniel. Basta que também se torne umhomem de oração”.
A partir de SD5, em comparação com as SD anteriores, há um novo
movimento no que se refere ao processo discursivo: se antes a narrativa histórico-
religiosa prevalecia, agora os enunciados parecem assumir um caráter mais
direto, apesar da continuidade do desenvolvimento da analogia enunciada,
também, pela voz do palestrante.
Nessa sequência discursiva, o público-alvo da coluna, bem como de outras
ações da Igreja Universal do Reino de Deus, fica explicitado. Outro aspecto
importante, é o proselitismo religioso que se materializa pela necessidade de se
diferenciar de outras religiões e, até mesmo, de outras denominações religiosas
dentro das próprias igrejas evangélicas.
Rodrigues (2002), ao analisar a forma como se constitui a Igreja Universal,
aponta o projeto de poder, para além do religioso, cultivado pela igreja. Em
trabalhos anteriores (FATIMA, 2018) demonstramos os efeitos discursivos de tal
inserção. Os efeitos de sentido decorrentes de tal projeto de poder, comparecem
em SD5 ao, sub-repticiamente, sugerir-se que “rezase “precesnão funcionam.
Apenas orações.
Em SD6, ocorre, em termos discursivos, um deslizamento de sentido que
se constitui a partir da maneira como o efeito metafórico (PÊCHEUX, 2014 [1969])
se dá. Trata-se da aproximação entre ser um “homem de oração e obter
“sucesso”.
161
Religiosidade e negócios ganham uma dimensão de proximidade nessa
sequência discursiva. Isso é possível, pela subsunção da Igreja Universal à
teologia da prosperidade. Tal fenômeno se em virtude de “mutações
vivenciadas no espaço da sociedade capitalista contemporânea”, pelos quais “os
fenômenos da religião se renovam, reestruturam-se, reconfiguram-se a fim de
atenderem demandas sociais e se manterem no disputado locus do mercado
religioso.(RODRIGUES, 2002, p. 13).
Insere-se, portanto, na discursividade religiosa, um elemento ideológico
que modifica o funcionamento do misticismo (ORLANDI, 1987). A teologia da
prosperidade pressupõe que a fé é elemento necessário para que se tenha
abundância financeira, principalmente, na vida terrena. Posta a citada relação
entre a necessidade do sucesso em uma perspectiva empreendedora, de
negócios e o misticismo religioso, o aspecto jornalístico se insere na produção
de um efeito de verdade sobre como conseguir proceder a tal sucesso, que, da
fé, que caracteriza a religiosidade, o sujeito/fiel/leitor, identificado com essa
formação discursiva, já dispõe.
Vejamos como isso se desdobra na próxima SD:
SD7 - “Tudo o que temos de fazer está ao nosso alcance. Podemos fazer tudo o
que Daniel fez. Você também pode se tornar essa pessoa de oração. O que você
precisa é vencer as ideias de orgulho, a preguiça, as experiências passadas em
que a oração não deu certo, entre outros motivos que lhe impedem de orar. A
convivência com Deus vem quando você separa um tempo para Ele, como um
hábito do dia a dia. Mesmo que você seja muito atarefado, aliás, principalmente se
você for muito atarefado’, concluiu.
Sela-se a analogia pela investida do didatismo em SD7. Tal investida não
se de qualquer modo, mas por meio do que se convenciona chamar discurso
direto, no qual predomina, ainda, uma função apelativa da linguagem que se
marca pelo uso da primeira pessoa em direção à segunda pessoa do discurso.
Finalmente, o jornal, por meio de seu colunista, diz o passo a passo para o
sucesso.
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Entremeia-se elementos como “orar”, “convivência com Deusa elementos como
“vencer a preguiça”, “hábitos do dia a dia”, “tempode alguém “muito atarefado,
etc. Isto é, aliam-se, pelo efeito discursivo da analogia que, por sua vez,
funciona pelo didatismo esquemático – o religioso e o mercadológico. Este último,
carente de técnicas e procedimentos concretos para os quais, a despeito do
funcionamento do religioso metafísico e, por isso, às vezes, inexplicável o
jornal oferece solução.
Fecha-se, circularmente, um ciclo de colaboração mútua: o religioso está
aliado ao domínio do empreendedorismo para se tornar mais objetivo; o
empreendedorismo carece de técnicas e procedimentos para se inserir
discursivamente como possível; o jornal oferece, a partir do funcionamento do
discurso jornalístico, esquemas, explicações, etc. por meio do didatismo. A isso,
ao analisar o discurso pedagógico, Orlandi (1987) chamou circularidade.
6. BREVES CONSIDERAÇÕES
Buscando um efeito de fechamento para este artigo, procedemos a
algumas considerações pertinentes a partir das análises que fizemos.
Retomando a pergunta de pesquisa que conduziu nosso trabalho, é
possível afirmar que os efeitos de verdade que se constituem na relação entre o
jornal, através de sua coluna, e o sujeito/fiel/leitor, projetado imaginariamente
pelos enunciados do jornal, não decorrem nem do discurso religioso, nem do
discurso jornalístico, mas de um processo complexo e contraditório em que se
interpõem ambas as modalidades de discurso tensionadas às condições de
produção que colocam em circulação a forma atual do discurso religioso da Igreja
Universal e também de um certo modo de se fazer jornalismo.
Os limites entre o narrativo e o argumentativo se estilhaçam, demonstrando
que, sob o funcionamento da ideologia, contar uma história e tentar convencer o
leitor se entrelaçam, atuando conjuntamente no discurso, produzindo seus efeitos.
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Além de nos ajudar a compreender o modo como funciona a relação entre
o jornalístico e o religioso, este artigo também nos ajudou na compreensão a
abre possibilidade para pesquisas futuras da forma como os sentidos são
direcionados quando o público-alvo é masculino. O fato de o homem,
estritamente, ser inserido no discurso como aquele que sabe do que para ele se
fala, é algo que, sem dúvidas, colabora com nossas investigações em aspectos
mais amplos.
Vale ressaltar, também, que o didatismo não se resumiu, em nossas
análises, ao funcionamento puramente linguístico. O funcionamento do olho,
elemento gráfico da mídia impressa, atuou fortemente na projeção de dizeres
como “Daniel se destacou dos outros presidentes porque tinha um espírito
excelente”, demonstrando, de uma vez, a presença do empreendedorismo e
da religiosidade a partir dos elementos “destaque e “espírito”, respectivamente,
em sua inserção discursiva.
Por fim, entre o discurso religioso e o discurso jornalístico, os efeitos de
sentido são produzidos de maneira contraditoriamente tensa. No entremeio dessa
relação, desenrola-se de forma sofisticada, uma prática discursiva atravessada
por funcionamentos já engendrados por discursos e práticas estabelecidas e mais
ou menos estabilizadas.
Resta dizer que, buscando trabalhar os limites da nossa inserção enquanto
sujeitos-analistas e, por isso, também sujeitos à ideologia , ressaltamos que
esta é uma análise dentre outras possíveis que busca responder uma pergunta
dentre muitas possíveis. Acenamos, ainda, para o caráter sempre incompleto da
linguagem – também do sentido e do sujeito – e para a necessidade de se
revisitar constantemente o fazer científico, em busca, sempre, de respostas para
as inquietações contemporâneas de nossa formação social.
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