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CONSIDERAÇÕES SOBRE O LEGADO DE FREIRE PARA O ENSINO DE
LÍNGUA INGLESA: POR UMA ABORDAGEM INTERCULTURAL
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Silvana Fernandes de Andrade
Grupo de Pesquisa Linguagem e Educação
silvanandrades@gmail.com
Ester Maria Figueiredo de Souza
Grupo de Pesquisa Linguagem e Educação
efigueiredo@uesb.edu.br
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RESUMO: Neste texto abordamos aspectos da contribuição de uma pedagogia freireana para
realçar a possibilidade de uma abordagem intercultural para o ensino de língua inglesa,
identificando por meio de referenciais pedagógicos a necessidade de uma práxis pedagógica
libertadora que pode ser considerada intercultural, ao se propor a relacionar conhecimento,
cultura e poder. Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira Moderna para o
Ensino Médio apresentam o componente da cultura como orientador para o ensino. A condição
opressor/oprimido e a noção de cultura presentes na obra de Paulo Freire são assumidas como
orientadoras para perspectivar a necessidade de uma agenda curricular para o ensino de língua
estrangeira. Nosso estudo utilizou-se de fontes bibliográficas para evidenciar a natureza
intercultural da pedagogia freireana e, assim, expõe contribuições para se refletir os cenários
discursivos da aula como propícios para ensino de língua inglesa.
Palavras-chave: Currículo. Ensino e aprendizagem de língua inglesa. Interculturalidade.
Linguística Aplicada. Paulo Freire.
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As autoras:
Professora auxiliar da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Mestre em Letras.
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa linguagem e Educação. GPLED/CNPq.
Professora Plena da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Líder do Grupo de
Pesquisa linguagem e Educação. GPLED/CNPq. Doutora em Educação. Pós-doutora em
Linguística.
Como citar este artigo:
ANDRADE, S. F. de; SOUZA, E. M. F. de. Considerações sobre o legado de freire para o ensino
de língua inglesa: por uma abordagem intercultural. Revista Diálogos, v. 7, n. 1, 2019.
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Registramos agradecimentos á FAPESB , pela concessão de bolsa de Iniciação Cientifica (2014/2015),
para realização da pesquisa, integrante do Programa de Pós-Graduação em Letras: cultura, educação e
linguagens (PPGCEL, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia ( UESB).
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1. INTRODUÇÃO
O ensino é tomado como objeto de investigação no campo da Linguística
Aplicada (LA) desde a introdução de seus estudos no Brasil, particularmente, os estudos
voltados para a aprendizagem de nguas, tratando não apenas desse processo, mas de
recursos didáticos, formação docente, abordagens metodológicas. No seu percurso
histórico, a LA incorporou dimensões culturais, identitárias, politicas e sociais para
conformar outros objetos de investigação complexos, delimitando interesses que não se
restringem ao enquadre didático da relação de aprendizagem em contextos escolares ou
de línguas adcionais.
A não ser um bocado de inglês, não sabe nada... Não tem prenda nenhuma!”,
dizia D. Ana Silveira quando da educação bilíngue do menino Carlos da Maia em Os
Maias, clássico da literatura portuguesa de 1888. De fato é necessária uma prenda para
além do mero conhecimento do código de um determinado idioma quando da
aprendizagem de línguas na contemporaneidade. Contudo, quais são as habilidades
previstas para o ensino de ngua inglesa (LI) e quais delas são privilegiadas no fazer
docente? Como aponta Moura (2012), a arregimentação dos currículos escolares, stricto
sensu, está assentada em dois pilares: que saberes privilegiar e como tais saberes poderão
ser colocados a serviço dos processos de ensino e aprendizagem. Grosso modo, os
currículos para o ensino de LI têm optado pela centralidade do ensino do código em lugar
do ensino de língua-cultura (SCHMITZ, 2007; OLIVEIRA, 2012), negando ao aluno a
condição de atuar criticamente sobre o mundo, tornar-se cidadão pleno, engajar-se nos
difíceis diálogos da diversidade na contemporaneidade (ROJO, 2013), reconhecer-se
como homem-sujeito (MOURA, 2012), munir-se de modo a descolonizar o saber,
habilidades previstas não apenas pelos documentos governamentais para o ensino e
aprendizagem de línguas nas circunstâncias atuais, mas também muito idealizadas e
desenvolvidas por Freire. Tomando como base o legado do Método Paulo Freire no
tocante à promoção de sujeitos críticos e culturalmente engajados, propomos uma análise
sobre o ensino de LI na atualidade com vistas à promoção de uma educação intercultural,
como destacam Freire e Macedo (1990, p. 85): (...) compreender a realidade do
oprimido, refletida nas diversas formas de produção cultural linguagem, arte, música -,
leva a uma compreensão melhor da expressão cultural mediante a qual as pessoas
exprimem sua rebeldia contra os dominantes”.
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Norbert Elias (1998), em Sobre o Tempo, relata a história de um grupo de pessoas
que subia cada vez mais alto no interior de uma torre elevada e desconhecida. Os que
faziam parte da primeira geração atingiram um patamar que, pela segunda geração foi
vencido. Pela terceira, também superado. No correr do tempo, seus descendentes
atingiram um andar ainda mais alto, fazendo a escada desmoronar. Desconheciam como
os seus antepassados habitaram os andares inferiores. Passaram a residir no centésimo
piso, “(...) ignorando como os seres humanos chegaram até ali. Chegavam até a acreditar
que as representações que forjavam para si a partir da perspectiva de seu andar eram
compartilhadas pela totalidade dos homens” (ELIAS, 1998, p.108).
Essa é, pois, a representação do indivíduo na atualidade, acrítico, produto das
constantes mudanças e fluxos culturais, sócio-políticos e econômicos e que, por meio da
velocidade no espaço cibernético, bem como as novas tecnologias de informação e de
comunicação (TICs), vem sendo atravessado em todos os âmbitos da vida pública e nas
esferas individuais. Conforme aponta Hall (2011, p.13):
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não
tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-
se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em
relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos
sistemas culturais que nos rodeiam. (Hall, 1987). É definida
historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades
diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas
ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós identidades
contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que as
nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.
O descentramento a que se refere Hall é, sobretudo, um imperativo da
globalização. Essa “série multidimensional de processos sociais que criam, multiplicam,
alargam e intensificam interdependências e trocas sociais no nível mundial (...)”
(STEGER 2003:13 apud KUMARAVADIVELU 2006:130) é também “tão antiga quanto
a própria humanidade”, se consideradas as investidas comerciais lideradas por Espanha e
Portugal, o pioneirismo industrial inglês e os desdobramentos de um mundo do pós-
guerra, sob a tutela dos Estados Unidos da América.
No âmbito do trabalho, ao revisitar as teorias de Kalantiz e Cope (2006), Rojo
(2013) aponta para o fato de que a modernidade tardia não mais se organiza como em
outrora, baseando-se na linha de produção e o consumo em massa, e requer, como
prerrogativa do pós fordismo, “(...) um trabalhador multicapacitado e autônomo, flexível
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para adaptação à mudança constante”, de modo que novas habilidades lhe são exigidas.
(KALANTIZIS E COPE, 2006ª, p.130 apud ROJO 2013, p. 14).
Fruto da Revolução Tecnológica, a que se refere Castells, a comunicação
eletrônica, notadamente via Internet, que norteia as relações econômicas por meio do uso
do inglês, (KUMARAVADIVELU, 2006) tem, entre outras coisas, salientado a
relevância do conhecimento do idioma em questão, mas não sem algumas implicações.
Conforme Rajagopalan (2004):
A demanda pelo aprendizado de inglês cresceu em proporções
geométricas, como fica evidenciado pelo estupendo número de escolas
de idioma que se proliferam por todo o país, quase tão rapidamente
como as filiais do MC Donald’s. O conhecimento da língua é
simplesmente pressuposto por corporações multinacionais, quando
anunciam vagas de trabalho. E o público em geral resignou-se
bastante tempo ao fato de que o inglês oferece um passaporte para o
sucesso profissional.(RAJAGOPALAN, 2004, p. 12).
Ainda segundo o autor, “compreensivelmente, cada vez mais pessoas ficam
preocupadas quando se dão conta da expansão do inglês e do modo arrogante e agressivo
como essa língua é comercializada”, o que, em outras palavras, revela que a língua
inglesa não é em si um objeto de rejeição sumária em muitos dos casos, mas a sua
imposição colonizadora o é.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira Moderna para o
Ensino Médio (BRASIL, 2000, p. 4) salientam, por seu turno, a importância de fazer do
entrelaçamento entre ngua estrangeira e respeito à diversidade uma constante, na
perspectiva de “(...) criar uma escola média com identidade, que atenda às expectativas de
formação escolar dos alunos para o mundo contemporâneo”, pois, na realidade a que se
apresenta, “(...) marcada pelo apelo informativo imediato, a reflexão sobre a linguagem e
seus sistemas, que se mostram articulados por múltiplos códigos, e sobre os processos e
procedimentos comunicativos, é mais do que uma necessidade, é uma garantia de
participação ativa na vida social, a cidadania desejada”.
Contudo, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) não apresentam uma
metodologia específica para o ensino de língua estrangeira, mas , revelam opção por uma
abordagem textual que privilegia a organização do ensino a partir da leitura e
interpretação textual. Infelizmente, muitas pesquisas apontam que esse caminho não foi
adotado, acentuando-se as dificuldades para a apropriação de uma língua estrangeira
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pelos estudantes e, por parte dos docentes, a ausência de uma metodologia de ensino
pautada na dimensão cultural.
Educar para a língua inglesa e para o novo panorama que se manifesta, demanda,
segundo Rojo (2013), uma epistemologia intercultural e uma pedagogia do pluralismo:
“Uma maneira particular de aprender e conhecer o mundo em que a diversidade local e a
proximidade global tenham importância crítica” (Kalantiz e Cope, 2006ª, p.130 apud
Rojo, 2013, p.14)
Em contrapartida, uma abordagem intercultural nas salas de aula ainda é deveras
cara às agendas de Linguística Aplicada modernista, agarradas ao estruturalismo e
modernismo e oriundas desse período.
Para Freire a inclusão do componente da cultura como orientador de práticas
pressupõe o reconhecimento de sua identidade cultural. Esse reconhecimento ocorre em
um contexto social e histórico e implica no “respeito pela linguagem do outro, pela cor
do outro, o gênero do outro, a classe do outro, a orientação sexual do outro, a capacidade
intelectual do outro” (FREIRE, 2001, p. 60).
Kumaravadivelu (2006) salienta que, muito embora a Linguística Aplicada em
voga explore o planejamento linguístico, evita ainda as questões atinentes à ideologia, se
esforçando “(...) para preservar as macroestruturas da dominação linguística e cultural”
expressas também através da linguagem:
Apesar de argumentos persuasivos para apresentar um modo de LA que
“procura conectá-la a questões de gênero, classe social, sexualidade,
raça, etnia, cultura, identidade, política, ideologia e discurso”
(Pennycook, 2001: 10), o campo continua a ignorar a proposição
fundamental de que a investigação em LA deve ser intercultural,
interlinguística e interdisciplinar”. (KUMARAVADIVELU, 2006, p.
139).
Os seres humanos criam cultura nas interações sociais e na medida que
interpretam as condições de seu contexto de vida, agindo com e sobre essas condições. A
pedagogia freireana considera uma educação que valorize e respeite as diferenças
culturais e os saberes e as experiências de vida dos sujeitos. Corroboramos, então, que
Paulo Freire impacta os estudos interculturais, no campo da LA, pois seu legado
reverbera o binômio opressor/oprimido como representação social da sociedade, binômio
esse que envolve e problematiza uma práxis educacional emancipatória.
2. INTERCULTURALIDADE E ENSINO DE LÍNGUA INGLESA
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Entendido como um campo interdisciplinar de estudos que se ocupa da maneira
pela qual as pessoas entendem umas as outras através de grupos de fronteiras de variados
tipos (KRAMSCH, 2001), a abordagem intercultural prevê a veiculação de cultura por
meio da linguagem, muito embora existam correntes de pensamento que apontam para a
possibilidade de ensino de língua sem ensino de cultura.
No entanto, conforme sinaliza Oliveira (2009, p.01), ngua e cultura são
indissociáveis: “ao adquirir uma segunda língua, o aluno irá experimentar diversos
momentos nos quais a cultura dessa ngua irá interferir no processo de aprendizagem,
pois cultura e língua são duas faces da mesma moeda”. Ademais, de acordo Hall (1973)
apud Lima (2008), a cultura é uma forma de autoconhecimento, de modo que se um
indivíduo necessita conhecer-se a si mesmo, não pode se furtar de conhecer outras
culturas, as levando em conta na construção identitária.
Haja vista o “ranço colonial” que ainda persiste nos estudos de nguas na
atualidade, (CRUZ, 2000, p. 54), tem se revelado urgente o “(...) reequilíbrio entre a
cultura-alvo e a cultura do aluno, uma vez que uma relação assimétrica entre as duas,
originada da dominação econômica e política da cultura-alvo” (OLIVEIRA, 2009, p.01).
Nessa esteira, o professor não pode se isentar da função de cultural broker”. (LIMA,
2004).
Portanto, ainda de acordo Oliveira (2009, p.01), é necessário “desenvolver a
conscientização sobre a importância de viver em um mundo pluricultural, adotando assim
uma atitude mais positiva em relação à sua cultura e a cultura do outro”, fator ainda
pouco abordado nas salas de aula de LI. Esse, aliás, configura-se como o objetivo mais
importante do ensino e aprendizagem de uma ngua estrangeira, segundo ela- opinião
igualmente compartilhada por KRAMSCH (1993) apud ECKE (2012, p.110), haja vista o
entendimento do conhecimento cultural “não apenas como um aspecto necessário à
comunicação, mas também como um objetivo educacional, uma premissa do ensino de
línguas”.
3. CONTRIBUIÇÕES DO MÉTODO PAULO FREIRE PARA O
DESENVOLVIMENTO DA INTERCULTURALIDADE NO ENSINO E
APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA
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Segundo Moura (2012, p. 101), o termo Pedagogia, em sentido estrito, remete a
“arregimentação” e à organização dos aspectos a serem considerados no processo de
construção do conhecimento, tanto para os responsáveis pelo processo de ensino, como
para os que confiam a estes o processo de aprendizagem”. Ainda segundo a autora, esta
organização está assentada em dois pilares: “que saberes privilegiar e como tais saberes
poderão ser colocados a serviço dos processos de ensino e aprendizagem” (MOURA,
2012, p. 101).
Conforme aponta Celani (2001), tudo que o que acontece em sala de aula está
intimamente relacionado a forças sociais e políticas. Nessa seara estão inclusos a escolha
do currículo, a condução da matéria, bem como o modo de tratamento da língua pelo
professor, entre outros aspectos. Essas questões, portanto, perfazem o cotidiano dos
professores de línguas, sejam elas materna ou estrangeira, e impactam diretamente sobre
os discentes, que confiam aos seus professores o processo de aprendizagem.
De acordo Souza (2001), Freire acreditava que todo planejamento educacional
deveria, por excelência, estar imbricado aos problemas de sua época, de modo a
impulsionar mudanças no horizonte da educação ou funcionar como estabilizador de uma
dada situação.
Entendida como um grupo de padrões comuns de comportamento e de interações,
construções cognitivas e compreensão afetiva que são adquiridos por meio de um
processo de socialização (LIMA, 2008), a cultura é um componente altamente
recomendado como parte de qualquer currículo de inglês como língua estrangeira mundo
afora e seu ensino está previsto em documentos governamentais (OLIVEIRA, 2012)
como a melhor maneira de preparar os estudantes para o enfrentamento crítico da
contemporaneidade.
Em contrapartida, estudos apontam para a real abordagem de LI sob duas
perspectivas centrais: na ênfase exclusivamente na forma, bem como na expressão ou no
uso, sendo a gramática completamente banida neste último caso (SCHMITZ, 2007).
Nota-se, contudo, que, em ambas as proposições, a abordagem intercultural de LI ou não
faz parte das práxis dos educadores, ou não obtém êxito, sendo reduzida, na maioria das
vezes, a mera transmissão de informações sobre países diversos ou até mesmo a notas de
rodapé em livros didáticos, devido ao desconhecimento de seus pressupostos e a
descrença na possibilidade de desenvolvê-la.
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Se toda Pedagogia assenta suas bases em uma filosofia, “uma maneira de
compreender, conceber algo” (MOURA, 2012, p. 101), é possível crer que os conceitos
fundantes da proposta de Paulo Freire para a alfabetização, aprendizagem inicial da
leitura, configuram-se como esteio de uma filosofia ímpar no cenário da educação
mundial, que em muito comungam com os pressupostos da interculturalidade.
Consideramos a dialogicidade propositiva em todo o pensamento de Freire,
destacando duas de suas obras como ilustração: Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1983)
e Educação como prática da liberdade (FREIRE, 1980), como condição para que se
mobilize cenários de trabalho com a interculturalidade na sala de aula , pois a
compreensão de que diferenças entre as culturas e tensões entre elas situa o diálogo
intercultural assentado na valorização das especificidades das culturais e no que pode
ocorrer de aproximações entre espaços de diferenças, pois as relações interculturais
pressupõem a dialogicidade e a eticidade.
Embora muitos associem a pedagogia de Freire à alfabetização, é bem possível
afirmar que seu legado vai muito além disso. Conforme Moura (2012), Freire não
empreendeu seus primeiros esforços nesse campo, propriamente, mas na tentativa de se
opor a uma educação domesticadora, normativa e que fosse capaz de transformar o
homem-objeto, ingênuo, em homem-sujeito, dotado de voz e de um agir sobre o mundo.
Em meados de 1960, tendo construído os Círculos de Cultura, palcos de debates
acerca de problemas reais de sujeitos voluntários, alfabetizados ou não, Freire o que
desejava era a democracia em exercício, no cotidiano de pessoas comuns, nas escolas e
para além dos muros de quaisquer congressos ou repartições. Ele apontava para a
importância de dar fim ao silenciamento que poderia ser interpretado como submissão,
adesão ao discurso dominante.
Ao abordar a interculturalidade, Freire (2004) destaca as relações entre as
culturas entre a minha cultura e a cultura de lá. Para ele, nas relações interculturais o
fundamental:
não é compreender a cultura de lá, nem a cultura de que eu faço
parte, mas é sobretudo compreender a relação entre essas duas culturas.
O problema é de relação: a verdade não está nem na cultura de lá e nem
na minha, a verdade do ponto de vista da minha compreensão dela, está
na relação entre as duas ( FREIRE, 2004, p. 75).
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As práticas no sentido de promover de relações interculturais dessa natureza são
descritas por Moura (2012):
as atividades nesses espaços eram organizadas em grupos de trabalhos,
tendo na linguagem o interesse central. A essa estrutura estava
subjacente a concepção da linguagem como constituinte da interação
entre os sujeitos, entre estes e a sua circunstância. (MOURA, 2012, p.
102).
Tendo obtido resultados surpreendentes nessa empreitada, foi então por Freire
pensada a possibilidade de proporcionar aos sujeitos das classes populares o acesso à
leitura e à escrita como bens culturais, alfabetizando-os nos mesmos padrões, com o
intuito de transformar ingenuidade em criticidade.
Conforme Moura (2012) era imprescindível ao Método Paulo Freire a superação
da situação-limite que era o analfabetismo sem, contudo, considerar os analfabetos como
não munidos de um saber. Para tanto,
(...) os sujeitos precisavam compreender o mundo, o que seria
possível compreendendo-se nele e com ele: era o conhecimento de si
mesmo, uma exigência de sua contemporaneidade, conforme afirmou
Freire (1983, p. 29). (MOURA, 2012, p. 108).
Utilizando-se, de certo modo, de uma práxis intercultural, Freire desenvolveu
codificações que aludiam ao conceito de cultura junto aos Círculos, não descartando
qualquer aspecto que surgisse no interior das discussões (MOURA, 2012, p. 108). Nessa
instância, estava inserido o debate sobre as relações humanas que não podem e não
devem ser de dominação.
Para Freire (1993) uma interpelação entre as culturas que as tensionam não
como antagônicas, mas como espaço de dialogicidade, pois o espaço de inacabamento
convida ao diálogo:
é a tensão a que se expõem por serem diferentes, nas relações
democráticas em que se promovem. É a tensão de que não podem fugir
por se acharem construindo, criando, produzindo a cada passo a
multiculturalidade que jamais estará pronta e acabada. A tensão, neste
caso, portanto, é a do inacabamento que se assume como razão de ser da
própria procura e de conflitos não antagônicos e não a criada pelo
medo, pela prepotência, pelo “cansaço existencial”, pela “anestesia
histórica” ou pela vingança que explode, pela desesperação ante a
injustiça que parece perpetuar-se (FREIRE, 1993, p. 156).
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Para tanto, Freire se opôs a uma alfabetização “como ato de depositar informações
sobre o sistema alfabético, sem que se ultrapassasse a dimensão estrutural, emprestando à
palavra um sentido gico, distorcido (p. 92), fruto de um planejamento educacional
desconectado da realidade da época. Incomodava-lhe, portanto, a tradição de um
currículo colonizador, uma vez que domina, subjulga docentes e discentes por meio da
escravatura da norma. O educador atribuía a responsabilidade desses entraves a um
momento histórico muito particular da nação brasileira:
Herança de uma educação jesuítica fundada no anti-diálogo do
educando com a sua realidade; anti-participação no processo de sua
educação, anti-responsabilidade de sua própria vida, seu próprio
destino. Herança esta que teria tirado do povo brasileiro a possibilidade
de um espírito de análise e crítica, a paixão pela pesquisa, o debate, o
diálogo (p.8) (SOUZA, 2001, p. 46).
De acordo Souza (2001), Freire comungava com os pensadores da época que
buscavam a elaboração de um projeto nacional de desenvolvimento e era com base neste
projeto que ele previa a organicidade da educação brasileira.
Incapaz de abolir do ensino a estrutura silábica no tocante à alfabetização, porque
não ingênuo, mas muito afinado com uma educação que devesse fazer Ivo ver além da
uva (FREI BETO, ?), o educador ressignificou a concepção de palavra. Segundo ele, as
palavras não deveriam limitar os analfabetos, exercendo funções como “palavra-som”,
“palavra-depósito”, “com o objetivo de fazer uma “transfusão”, dando ao “enfermo” o
“sangue salvador [operando como] textos presenteados, clichês, que em nada se
relacionam com a realidade dos alunos”. (MOURA, 2012, p. 93).
Por essa razão, os aspectos da realidade do alunado tinham atenção principal para
Freire, de modo que, no conhecido caso do vocábulo TIJOLO, não deixou de haver a
apresentação das perspectivas silábicas para os interactantes, lidas vertical e
horizontalmente, mas não se resumiu apenas a isso. É importante lembrar que o vocábulo,
ou a palavra geradora da qual se serviu Freire foi pesquisada e pensada cuidadosamente
para a época e grupo de sujeitos, construtores de Brasília da década de 1960.
TA TE TI TO TU
JE JI JO JU
LA LE LI LO LU
(MOURA, 2012, p. 120)
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De igual modo, o ensino de línguas estrangeiras, com atenção especial à língua
inglesa devido ao seu “ranço colonial” e “imposição colonizadora” (vide considerações
supramencionadas de Cruz e Rajagopalan), não pode reduzir-se ao ensino repetitivo do
léxico ou gramática tão somente, nem deixá-los de lado, contudo, posto que, conforme
salienta Schmitz (2007) ensinar gramática isoladamente é tão irresponsável quanto evitar
ensiná-la.
O caminho, muito apontado por Freire, alude a uma práxis democrática, na
qual a abordagem intercultural, através do diálogo, configura-se como pauta das agendas
e currículos do ensino de línguas, de maneira geral. Esses quesitos, muito presentes ao
longo de todo fazer e produção freireanos, comungam com a necessidade do homem de,
na condição de educando, conhecer-se e conhecer também o outro, prerrogativas muito
caras à modernidade, afinal,
Um dos aspectos mais importantes do nosso agir educativo na fase atual
de nossa história, será, sem dúvida, o de trabalhar no sentido de formar,
no homem brasileiro, um senso especial, que chamamos de senso de
perspectiva histórica. Quanto mais se desenvolva esse senso, tanto mais
crescerá no homem nacional o significado de sua inserção no processo
de que se sentirá então participante e não mero espectador. (FREIRE,
ano, p. 18, apud MOURA, 2012, p. 48)
Como faz lembrar Frei Betto, em carta intitulada Paulo Freire: a leitura do
mundo: Paulo Freire ensinou a Ivo que não existe ninguém mais culto do que o outro,
existem culturas paralelas, distintas, que se complementam na vida social”. Essa, sem
dúvida, é a postura crítica, democrática e político-ideológica da qual os professores de
línguas estrangeiras não pode deixar de se servir. Caso contrário, as práticas que vem
mantendo o status quo no horizonte do ensino e aprendizagem de LI hão de corroborar
para a sua eterna marginalização enquanto meros professores de línguas.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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O sujeito pós-moderno ou pós-verdade é, por vezes, é interpelado pela
acriticidade oriunda do regime de mudanças em fluxo contínuo em todos os âmbitos da
vida pública e nas esferas individuais. Porque não destacada da sociedade, mas
microcosmo dela, a escola é também afetada e afeta, retroalimentando o sistema
continuamente quando opta pela centralidade do ensino do código pelo código” em
lugar do ensino de língua-cultura, habilidades previstas não apenas por diretrizes,
orientações e parâmetros para o ensino e aprendizagem de línguas nas circunstâncias
atuais, mas também já há muito idealizadas e desenvolvidas por Freire.
A orientação hermenêutica tradicional, desenvolvida em muitas instituições
escolares no país, nega ao aluno a condição de atuar criticamente sobre o mundo, tornar-
se cidadão pleno, engajar-se nos difíceis diálogos da diversidade na contemporaneidade
(ROJO, 2013), reconhecer-se como homem-sujeito (MOURA, 2012), munir-se de modo
a descolonizar o saber. Para além disso, o professor, ao tangenciar o agenciamento
intercultural crítico, também marginaliza-se enquanto mero professor de línguas.
A dimensão intercultural e sua relações com o ensino de ngua inglesa alicerçada
em uma pedagogia freireana é crítica. O binômio opressor/oprimido problematiza tanto
estrutura social vigente, como a constituição de subjetividades na aula. As relações de
poder das trocas interacionais entre professor(a) e estudantes, bem como entre os próprios
estudantes na aula de língua inglesa evidencia a natureza polêmica do ensino, portanto
cultural . A ação pedagógica do docente sob o prisma de uma abordagem intercultural de
ensino assume que as os sujeitos da educação sofrem um processo histórico de
subalternidade, de negação de direitos e não reconhecimento de sua diversidade cultural.
Requer-se, então, que o agir docente seja clivado de práticas humanizadoras e
emancipatórias de reconhecimento de subjetividades e de equidade social.
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REFLECTIONS ON PAULO FREIRE’S LEGACY FOR THE TEACHING OF
ENGLISH: AN INTERCULTURAL-ORIENTED APPROACH
ABSTRACT: In this paper, we approach the contribution of Paulo Freire’s pedagogy to
enhance an intercultural approach for the teaching of English, recognizing some
pedagogical references as a means to attain a libertarian pedagogical praxis, that should
be intercultural, due to its connection with knowledge, culture, and power. The National
Curriculum Parameters (PCN in Portuguese) of Modern Foreign Languages designed for
high school introduce a cultural component as some guidance for teaching. Both the
oppressor/oppressed distinction and the notion of culture in Freire’s work are taken as
guiding elements to put a curricular agenda for the Foreign Language Teaching domain
into perspective. We based this study on some bibliographical sources to support the
intercultural nature of Freire’s pedagogy, and then, to exhibit contributions, so we can
reflect upon class discursive scenarios as favorable conditions for the teaching of English.
Keywords: Curriculum. English teaching and learning. Interculturality. Applied
Linguistics. Paulo Freire.