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IMPLICAÇÕES SOBRE A AQUISIÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA
POR SURDOS: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O ENSINO E
APRENDIZAGEM DA ESCRITA
RESUMO: O objetivo desta pesquisa foi
ABSTRACT: The objective of this research
analisar algumas implicações identificadas
was to analyze some of the implications
durante a aquisição da língua portuguesa
identified during the acquisition of the
escrita por surdos a partir da perspectiva
written Portuguese language by deaf
do bilinguismo preconizado pelas Políticas
people from the perspective of bilingualism
Públicas brasileiras. Para atingir esse
- advocated by Brazilian Public Policies. In
objetivo
empregamos a pesquisa
order to achieve this, we used
bibliográfica realizando uma busca em
bibliographical research by searching
publicações em bases eletrônicas de
publications in electronic databases such
dados como: portal de periódicos Capes e
as: Capes journal portal and Scielo, as well
Scielo, além de livros e outras publicações.
as books and other publications. We know
Sabemos que esse tema continua sendo
that this theme continues to be a concern
uma preocupação dos pesquisadores da
of researchers in the area, since a slow
área, uma vez que foi identificado um lento
progress has been identified in the referral
avanço no encaminhamento de novas
of new alternatives to overcome difficulties
alternativas para superar dificuldades
of this process, although we can see
desse processo, embora divisemos
possibilities for advancement within the
possibilidades de avanço no âmbito do
Brazilian context.
contexto brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE: aquisição; escrita;
KEYWORDS: acquisition; writing; deaf.
surdos.
Implications on the acquisition of the Portuguese language by the deaf: some reflections
on the teaching and learning of writing
SANDRA MARIA DE LIMA ALVES
Professora licenciada em Português e francês pela Universidade Católica de Pernambuco(1992),
com Especialização em Avaliação da Língua Portuguesa pela universidade Federal de
Pernambuco(1999). Mestra em Ciências da Linguagem, pela Universidade Católica de
Pernambuco(2012). Doutoranda em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de
Pernambuco(defesa pública prevista para fevereiro
2019). Atua como professora de Análise
Textual, Língua Portuguesa e Produção Textual I e II na Faculdade Estácio de Sá do Recife, nos
seguintes cursos: Ciências Contábeis, Direito, Sistema e desenvolvimento e Serviço Social e em
escolas do Ensino Médio na Cidade do Recife: Colégio Damas, Colégio Marista São Luís, Colégio
Eximius, como professora de Produção Textual. Membro do comitê Científico do Curso de
Ciências da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco. sandralima1944@hotmail.com
WANILDA MARIA ALVES CAVALCANTI
Graduação em Letras Neolatinas pela Faculdade Frassineti do Recife
( FAFIRE)
(1979)
;
Formação e Licenciatura Em Psicologia pela Faculdade Frassinetti do Recife (1983), graduação
em Pedagogia - Hab. Supervisão Escolar pela Faculdade Frassinetti do Recife (1981).Especialista
em Fonoaudiologia ( Unicap), Especialista em Educação Especial ( UFPE). Doutorado em Salud y
Familia - Universidad de Deusto/Espanha (2003). Pós Doutorado pela Universidade Federal da
Paraíba. Professor assistente III da Universidade Católica de Pernambuco. Tem experiência na
área de Educação, com ênfase em Educação Especial, atuando principalmente nos seguintes
temas: inclusão, surdez, surdocegueira, cegueira, Libras, aquisição da linguagem e comunicação.
Recebido em 03/03/2019. Aprovado em 04/03/2019.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O ensino de língua portuguesa engloba a questão crucial da formação
profissional do professor como importância estratégica. O reconhecimento dessa
complexidade diz respeito à necessidade de interdisciplinaridade, ou seja, de
visão generalista relacionada à educação e aos seus efeitos no mundo onde
interagirmos. A respeito de tal reflexão, Carline e Scarpato
(2008, p.
24)
argumentam:
As decisões tomadas no processo de formação e autoformação
do educador, para todos os níveis de ensino
- escolhas,
significações, atribuições, comportamentos, atitudes -, implicam
procedimentos valorativos nem sempre claros e explícitos, tanto
para quem busca aprender, quanto para aqueles que ensinam.
Infelizmente, essa constatação indica a necessidade de
reconhecer as inegáveis bases axiológicas da educação e,
também, da formação do educador.
(CARLINE; SCARPATO,
2008, p. 24).
Essa afirmação faz menção ao problema da escolha dos valores que os
educadores devem ter com clareza, em suas posturas em sala de aula. Em outras
palavras, quando se ensina, os objetivos filosóficos e políticos que se quer
alcançar têm que ser bem definidos. Na formação do professor de língua
portuguesa, convém esclarecer-lhe que agirá na sociedade, sobre as
consequências éticas e morais das suas escolhas metodológicas, as quais
poderão servir para transformar a sociedade ou para perpetuar as injustiças e
discriminações existentes.
Vale salientar também, na formação do professor, que se deve considerar
a afetividade como elemento mediador fundamental da prática docente. A
psicologia desenvolvimentista, por meio, sobretudo, dos estudos de Henri Wallon,
tem demonstrado a relevância do papel da afetividade no ensino-aprendizagem
de modo geral. Segundo Carlini e Scarpato (2008, p.33) “[...] a emoção e a
inteligência são inseparáveis no desenvolvimento humano; apesar de
apresentarem caráter antagônicos, complementam-se”.
A inteligência, não funcionando separada da emoção, requer afetividade no
processo de socialização para veicular as pessoas. Segundo essas autoras, uma
pode se sobressair sobre a outra, mas estão sempre presentes, entrecruzando-
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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se. No espaço de sala de aula, esse fenômeno ganha relevância definitiva,
porque professor e aluno se tornam parceiros de longo prazo e de trocas
simbólicas.
Quando o professor de língua portuguesa se depara, na sua prática, com
alunos em situação de pressão - como aqueles com deficiência -, torna-se
indispensável a ele conhecer meios de tentar superar os possíveis problemas.
Isso não implica tomar postura paternalista, mas, sim, compromisso com valores
libertários. A busca de tal superação nem é simples nem pode ocorrer
isoladamente de um projeto pedagógico.
Nesse contexto, pode-se buscar fundamentos na pedagogia freiriana, com
seus conceitos críticos de educação bancária como instrumento de opressão. Na
verdade, a educação tradicional precisa ser revista também quanto à formação
dos professores naqueles aspectos automatizantes e aprisionantes dos oprimidos
da nossa sociedade. Um educador que escolhe ser transformador adota atitude
não de autoridade distante e inquestionável, mas de alguém mais próximo do
aluno. Freire (2008, p. 67), defendendo o ensino dialógico, afirma:
Na visão “bancária” da educação, o saber é uma doação dos que
julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda
numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão -
a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de
alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre
no outro. (FREIRE, 2008, p. 67).
Nessa perspectiva, tanto o professor, quanto o aluno se descobrem, na
construção conjunta do conhecimento, educadores e educandos uns dos outros.
Isso acontece, porque o aluno, ao chegar à escola, traz muitos saberes
produzidos na sua socialização em outras instâncias, como a família, a igreja, os
amigos e a mídia.
O professor de língua portuguesa numa sala de aula que inclui surdos -
foco deste artigo
- deve estar apto a problematizar seus pressupostos e
perguntar-se: o que é ensinar essa língua para um grupo heterogêneo? As
respostas para busca de estratégias certamente serão direcionadas para os
conhecimentos sociolinguísticos, filosóficos, didáticos e técnicos. Daí surge outra
questão: qual é a língua materna para o grupo de surdos de um país como o
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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Brasil? A resposta fundamentada na linguística e na pedagogia parece evidenciar
que a Libras
(Língua Brasileira de Sinais) é a língua materna dos surdos
brasileiros, filhos de pais surdos. No caso de surdos filhos de pais ouvintes não
podemos afirmar a mesma coisa.
Um resultado dessa atitude é que os surdos, que se encontram nas
escolas inclusivas ( escolas que possuem na mesma sala de aula alunos ouvintes
e alunos surdos ) já se colocam em desvantagem frente aos alunos ouvintes, pois
são desafiados a aprender os conteúdos programáticos numa língua que não tem
acesso naturalmente, o que aumenta suas dificuldades (LODI, 2013). Disso
resultam o fracasso, o medo, a inibição e a baixa autoestima. O mesmo ocorre
com outros grupos minoritários, como os indígenas brasileiros, por exemplo.
De fato, mudanças periféricas ou superficiais não são suficientes para
arranjar soluções estruturais na ideia de inclusão dos surdos, segundo Streiechen
et al. (2017), especialmente na busca da superação de dificuldades na escrita em
língua portuguesa como segunda língua (L2), uma vez que o Brasil fez a opção
pelo modelo educacional bilíngue que adota a Libras como primeira língua (L1) e
a língua portuguesa como segunda (L2), preferencialmente escrita (LODI, 2013).
As mudanças pertinentes englobariam toda a realidade educacional do Brasil, a
qual é marcada por injustiças e contradições. Um ponto essencial em tais
mudanças seria considerar o português como a segunda língua para os surdos,
pois, como já mencionamos a Libras é sua primeira língua e o emprego da L2 se
dá em situações concretas da vida diária dos indivíduos em processo de
interlocução.
Uma visão sociointeracionista da linguagem evidencia a característica do
conhecimento como construção coletiva na situação de trocas. Em tal visão,
alunos e professores são parceiros e a escola não é o único lugar de
aprendizagem dos conteúdos culturais construídos historicamente.
Percebe-se que os discursos carregam fortes traços da identidade e
ideologia dos autores, isso é reflexo de sua constituição linguística coletiva e
histórica. Dessa forma, o discurso habita diferentes níveis de tensões sócio-
históricas. Na visão de Bakhtin/Volochinov (2009, p 95), “a palavra está carregada
de um conteúdo ou um sentido ideológico ou vivencial”. Sua proposta infere que
os conflitos sociais historicamente constituídos são refletidos através dos conflitos
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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simbólicos da língua. O autor complementa, “é através da palavra que o sujeito se
define
em relação ao outro e em relação à coletividade”
(BAKTHIN/VOLOCHINOV, 2009 p. 113).
O processo interativo em sala de aula, tem suas complexidades, tensões e
conflitos, sobretudo, levando em conta a heterogeneidade existente na nossa
sociedade. As rivalidades, a competição e variedade de visões de mundo, muitas
vezes, criam problemas que exigem bastante preparo didático e político do
professor-educador. A produção textual passa a ser organizada de forma
heterogênea, haja vista o grau e o tipo de conhecimento de cada componente do
grupo. Os alunos relacionam aquilo que estão aprendendo com conhecimentos
trazidos de sua realidade coletiva. Desse modo, pode-se conceber a linguagem e
seu processo de significação como produto social e expressão de valores sociais
coletivos e não individualizados, conforme postulado por Bakhtin/Volochinov
(2009).
“O autor complementa sua tese afirmando que “a palavra está carregada
de um conteúdo ou um sentido ideológico ou vivencial” (BAKHTIN/VOLOCHINOV,
2009, p.95) e continua “é através da palavra que o sujeito se define em relação ao
outro e em relação à coletividade” (p. 113). É, portanto, por meio dela que o
sujeito se define como alguém capaz de expor e defender seus pontos de vista,
de argumentar. A proposta de Bakhtin infere que os conflitos sociais
historicamente constituídos são refletidos através dos conflitos simbólicos da
língua.
Convém ainda entender as transferências e projeções que os alunos fazem
nas inter-relações mediadoras do ensino-aprendizagem. Quando se pensa nos
alunos surdos, especificamente, pergunta-se sobre os conhecimentos de sua
primeira língua, a Libras e suas interferências na aquisição da língua portuguesa.
Diante dessa grande complexidade, ganha destaque a contribuição do
pensamento de SKLIAR (2009, p. 29):
Há aprendizes que são fluentes na língua de sinais, há aprendizes
que ainda têm dificuldades e outros que não conseguem se
comunicar em sua primeira língua. Este fato não inviabiliza o
trabalho com o aprendiz surdo. Ao contrário, entendemos que em
situações onde o aprendiz não pode fazer uso da estratégia de
correlacionar os conhecimentos novos da segunda língua e os
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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conhecimentos que já possui de sua primeira língua, passa a ser
essencial que ele receba mais informações sobre a organização
linguística da língua-alvo, seja nos níveis lexicais - semânticos,
morfológicos, sintáticos.
Assim, propõe-se que, quando se dialoga com os surdos no espaço de
trocas da sala de aula de português, o plano fonológico seja afastado.
Recomenda-se o uso de textos escritos com conteúdos pertinentes ao mundo
concreto das crianças surdas, porque assuntos desconhecidos funcionam como
obstáculos desestimulantes, além do esforço que fazem para dialogar com
ouvintes que não dominam a Libras.
A perspectiva do ensino de uma língua instrumental tem como referência
exatamente a primeira língua do aprendiz. As dificuldades inerentes aos surdos,
todavia, não devem ser vistas como deficiência natural; ao contrário, deve-se
buscar estratégias capazes de otimizar suas habilidades e possibilidades
cognitivas inerentes. De início, cabe aos educadores da área de línguas se
qualificarem nos conhecimentos sobre a Libras, a fim de oferecerem as condições
necessárias para os surdos interagirem com o grupo heterogêneo na escola.
Ademais, a instituição de ensino deve seguir os direitos humanos e dar aos
surdos tanto o acolhimento afetivo, quanto os meios adequados às suas
demandas, que são, antes de tudo, sociais.
Um projeto de ensino-aprendizagem voltado para a inclusão e para o
respeito às diferenças linguísticas dos surdos será facilitado se os educadores
estiverem preparados não apenas teoricamente. Operacionalizar um ensino de
caráter bilíngue, opção educacional adotada no Brasil, requer infraestrutura
pedagógica, vontade política e, acima de tudo, formação do professor, para que
esse consiga desenvolver novas competências (SILVA, 2014).
Trata-se, portanto, de o professor de língua portuguesa saber distinguir o
modismo daquilo que realmente precisa ser reestruturado nas práticas de ensino.
Isso evitará a ideologização da compreensão do conceito de originalidade
metodológica. Quando a inovação fica restrita ao tecnicismo, a qualidade de
ensino se desvincula da ética. A vigilância crítica do professor de língua
portuguesa deve ser contínua ao avaliar o que as novas políticas inclusivas
chamam de ensino inovador atualmente.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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Em se tratando de surdos temos de trazer algumas especificidades
próprias de um indivíduo cuja perda auditiva o impede de ouvir a palavra emitida
pelo grupo social de ouvintes. O seu processo de aquisição da linguagem reveste-
se de relevância no que se refere a como eles o constroem. Sabemos que se
trata da possibilidade de transitar por dois caminhos distintos (oralidade e /ou
sinais).
Dizemos isso com a finalidade de continuar as reflexões sobre a
triangulação, ensino, aprendizagem de segunda língua e surdez, considerando
que o objetivo desse artigo foi analisar algumas implicações identificadas durante
a aquisição da língua portuguesa escrita por surdos a partir da perspectiva do
bilinguismo. Elegemos como forma de abordagem a pesquisa qualitativa,
bibliográfica realizando o levantamento de livros clássicos e artigos que tratem do
tema, selecionando estudos que abordam a temática do ensino de Língua
Portuguesa (LP) para surdos, em bases eletrônicas de dados Portal de Periódicos
da Capes e Scielo - uma vez que acreditamos que as referidas bases indexam
periódicos que disponibilizam artigos de qualidade científica comprovada.
2.
REFLEXÕES SOBRE ENSINO E APRENDIZADO DA LÍNGUA
PORTUGUESA ESCRITA POR SURDOS
O aprendizado de Língua Portuguesa como segunda língua por surdos
ainda representa um desafio para os educadores. Esse desafio pode ser
considerado, entre outros aspectos, a partir da posição, geralmente, desmotivada
desse aluno, para essa aprendizagem.
Na atualidade, a questão da aprendizagem da escrita da língua
portuguesa, quando se trata de crianças com surdez, remete a problemas antigos.
Segundo Marcuschi (2008), no nosso processo sociocultural, focado nas línguas
orais auditivas, ainda é difícil admitir a ideia de que o som pode ser e é
dispensável no letramento.
Os pesquisadores Quadros (2012), Palomares (2012) e Marcuschi (2008)
vêm mostrando que a ausência de sons não constitui impedimento para a língua
se desenvolver. A associação feita comumente de letra com som faz pensar que
este seria o único caminho para o letramento. Essa é a razão por que a oralização
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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ou a consciência do som aparece como condição sine qua non da construção da
escrita no processo de alfabetização.
Dessa forma, os profissionais da língua portuguesa têm ensinado a língua
oral de forma mecanicista, desfavorecendo a contextualização para a
comunicação. Assim, as práticas didáticas repetitivas da linguagem escrita têm
sido centradas em cansativa e desestimulante memorização de um sistema
abstrato e estático de regras a que o aluno se submete para “supostamente”
saber falar e escrever bem. Diante dessa situação, as dificuldades dos surdos se
exacerbam.
No ensino tradicional, pensa-se apenas em adequar o aluno às
necessidades socioeconômicas impostas pela sociedade. No ensino crítico,
baseado no interacionismo, busca-se formar o aluno ativo, crítico e com pontos de
vista formados sobre a realidade que o cerca além de transformador do mundo ao
seu redor. De acordo com Lodi (2012), isso implica, necessariamente, na escolha
consciente por parte do professor do conceito de língua que está adotando no seu
cotidiano.
Considerando a visão de língua como um objeto heterogêneo,
multifacetado, plural e em constante movimento dialético, cabe ao professor
valorizar e explorar as variantes linguísticas nas suas aulas. Essa postura
implicará, certamente, no reconhecimento e respeito pelas diferenças que os
alunos surdos trazem para a escola, como também dos saberes aprendidos na
sua comunidade social.
Segundo Pereira
(2016), nesse contexto e considerando a educação
bilíngue para surdos, a proposta contida nas Políticas Linguísticas atuais também
prevê aulas ministradas em Libras para todos os estudantes surdos, buscando
inclusão no aprendizado do português como segunda língua, colocando
demandas para os professores e também para a própria linguística diante da
necessidade de adequar métodos que possam incluí-los na construção desse
saber essencial à cidadania.
Desse modo, a velha noção de ensino de língua precisa ser superada,
urgentemente, por novas noções embasadas cientificamente e comprometidas
com a transformação da sociedade, no sentido de formar educandos com pontos
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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de vista críticos sobre os acontecimentos que estão ao seu entorno e que saibam
sustentá-los com argumentos consistentes.
A propósito, já há muito tempo, Vygotsky (1991) postulou a ideia de que o
desenvolvimento de fala e escrita são desiguais. Além disso, os dois registros
diferem na estrutura e no funcionamento, e as estruturas acústicas não são
condição de desenvolvimento de uma língua.
Apesar do conhecimento psicolinguístico já sistematizado, na nossa cultura
ouvinte, supõe-se, desavisadamente, que o processo de introjeção de regras da
língua se opera por meio da oralidade. Podemos dizer que isso funciona para
ouvintes, e nem sempre para surdos. Entretanto, existem outros caminhos para
se trabalhar a língua em benefício do segundo grupo social. Fernandes (2003, p.
46), sobre tal situação, afirma:
Novos parâmetros de análise ou quaisquer propostas diferentes
da tradicionalmente estabelecidas para a descrição de um
fenômeno quase sempre provocam uma rejeição natural no meio
técnico-científico em que se apresentam. Mesmo que estudos e
experiências tenham demonstrado a eficácia de uma mudança no
tratamento de um fenômeno, tal atitude pode exigir um esforço
praticamente “insuportável” para muitos, advindo de um natural
apego à tradição.
Mudanças de perspectivas ou de pontos de vista, com certeza, levam
tempo e requerem muita divulgação para serem assinaladas culturalmente. O que
se torna necessário compreender é que o oralismo não constitui a única base
para se falar e escrever em sociedade onde a maioria é ouvinte. Quando se tem
contato com a visão científica, da língua e do fenômeno da surdez, revela-se que,
para os ouvintes, dominar o uso de uma língua, implica na apropriação de regras,
independe apenas de leitura e de escrita.
Na língua sinalizada, o processo ocorre de forma análoga. Os surdos, uma
vez expostos ao desempenho linguístico do seu grupo social, ativarão os
mecanismos cerebrais necessários para aquele sistema. Fernandes (2003) e
Quadros (2007) identificaram, em suas pesquisas, que os “erros” encontrados na
formação de novas palavras pelas crianças surdas são os mesmos ocorrentes
nas produções das ouvintes: troca de letras, espelhamento, formação de
palavras, dentre outros. Com a presença ou não de sons, eles ocorrem durante a
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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alfabetização. As autoras em discussão afirmam, com base em seus estudos, que
as crianças surdas tendem a levar vantagens sobre as ouvintes no momento da
aprendizagem da leitura, por aquelas não precisarem da lenta elaboração sonora
das palavras. Como a significação se vincula à contextualização, leitura e escrita
são sempre consequência e produto de tal processo.
Daí, inferimos que oferecer condições de ensino-aprendizagem que
foquem os fatores memória e pensamento visuais atende bem à demanda dos
surdos na sua lógica linguística natural. Isso aponta para o fato de que a
consciência dos sons não facilita as condições para a aquisição de uma língua.
Vygotsky (1998) teorizou a respeito da questão relativa à fala da criança
dizendo que essa não tem consciência nem dos sons, nem das regras usadas
para a articulação das palavras. Ela faz a introjeção linguística por meio da
representação simbólica dada pelas palavras ao mundo conceitual. Os inatistas -
convém salientar - defendem a ideia de que o plano fonológico não é imanente à
gramática natural.
A educação de surdos no Brasil ainda precisa promover muitos debates
com linguistas e pesquisadores da surdez, a fim de serem desenvolvidas
metodologias inclusivas nas quais a criança surda protagonize seu aprendizado
ativa e criativamente no espaço escolar. Uma melhor opção metodológica passa
necessariamente pelo deslocamento da concepção do português como língua
materna, ou primeira língua, para todos os brasileiros incondicionalmente. Para o
surdo deve ser considerada como segunda língua.
O Ministério da Educação (MEC), desde 1997, recomenda que a criança
surda tenha condições de aprender a língua portuguesa. Em época mais recente,
ou seja, em 2002 com a Lei 10.436/02 no seu Parágrafo único afirma “A Língua
Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua
portuguesa”. Desse modo, garante a presença dessa última, como parte da
formação acadêmica dos surdos brasileiros.
Continuando a tratar da aquisição da escrita em português por surdos,
chamamos a atenção para a demanda de mudanças de conceitos básicos
norteadores do letramento infantil e para a necessidade de novas propostas de
uma prática pedagógica que repense sobre alguns aspectos, como sejam: o que
é competência comunicativa? Qual a definição dos contextos de aprendizagem
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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das línguas, o que é respeito às diferenças? Qual o papel específico do professor
e do fonoaudiólogo na vida da criança surda? Cavalcanti (2011, p.14) afirma em
sua pesquisa:
[...] o acesso tardio e a demora para aceitação da língua de sinais
pelos familiares, determinam um uso e conhecimento bastante
variável, fato pouco discutido e considerado, inclusive, nas
experiências educacionais que buscam o conhecimento da Libras
pela inclusão do intérprete em sala de aula, trazendo
repercussões para a escrita.
Um fato relevante identificado por Cavalcanti et al.
(2010), em seus
estudos, é que a maioria dos professores ainda não identificam que o aprendiz
surdo da língua portuguesa, na escola, está transitando pelos estágios
denominados de interlíngua. Isso ocorre da mesma maneira com qualquer outro
aprendiz de uma segunda língua. Logo, convém refletir, teoricamente, sobre
estratégias que não desconsiderem, em nenhum momento, a existência de
influências da primeira língua sobre as que lhe são subsequentes para se
trabalhar eficazmente com os alunos surdos.
Portanto, é de grande relevância compreender em que consiste o
fenômeno de interlíngua quando se pensa a respeito da aquisição da linguagem
pelos surdos em um contexto escolar o que passamos a fazê-lo de forma breve.
Moraes (2012) comenta que a segunda língua apresentará vários estágios
de interlíngua, isto é, no processo de aquisição do português, as crianças surdas
apresentarão um sistema que não mais representa a primeira língua, mas ainda
não representa a língua alvo. “Apesar disso, estes estágios da interlíngua não são
caóticos e desorganizados, mas apresentam hipóteses e regras que começam a
dar forma a uma outra língua que já não é mais a primeira” (MORAES, 2012, p
45).
De acordo com Brochado (2003, p. 34 a 36) os estágios de interlíngua
estão assim constituídos:
- No estágio de interlíngua I (IL1) há o emprego dominante de estratégias
de transferência da Libras para a escrita do português L2.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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- No estágio de interlíngua II (IL2) é comum observar na escrita dos surdos
a mescla das duas línguas, isto é, da Libras com o português, trata-se de uma
tentativa de atingir a língua alvo.
- No último estágio de interlíngua III (IL3) o surdo deve mostrar um avanço
na conquista do português, como L2.
Vê-se o emprego da gramática desta língua em todos os seus níveis que
vão da sintaxe à apropriação da ordem lógica SVO (Sujeito, Verbo, Objeto).
As crianças surdas vão se conscientizando, gradativamente, da gramática
do português, porém, levam um tempo relativamente longo até o domínio do seu
uso com desenvoltura e propriedade. Segundo Dias Junior (2010, p. 56):
A interlíngua será, portanto, um processo constituído por fases,
cujo momento inicial se dá na L1 e o momento final, a língua-meta
ou alvo
(L2). Cada uma dessas etapas denominadas de
interlíngua, refere-se ao sistema linguístico empregado por um
falante não nativo num determinado momento do processo de
aquisição-aprendizagem de L2.
Sendo assim, a interlíngua se constitui como um sistema integrador de
duas línguas diferentes que, inicialmente, misturam-se. Cabe ao professor dessa
segunda língua mostrar-se receptivo às construções criativas dos aprendizes
valorizando as conquistas já alcançadas e motivando-os a evoluir nos seus
estudos. Os erros não deverão ser o foco das intervenções do professor para não
inibir a desenvoltura dos alunos. Diz-se isto porque o caminho percorrido até a
fluência na L2 será contaminado, necessariamente pela língua natural que a
antecede.
Dias Junior
(2010) propõe processos coexistentes na interlíngua que
podem ser geradores de erros quando se trata de estudantes surdos, tais como:
transferência de linguagem de um paradigma linguístico para o outro;
supergeneralização das regras da L2; transferência de treinamento; estratégias
de aprendizagem de L2, e estratégias de comunicação em L2.
Segundo Selinker (1994), quando não se vê evolução na passagem dos
estágios de interlíngua I até o estágio último que é o de interlíngua III, aparece o
fenômeno nomeado de “fossilização” ou “cristalização”. Por isso, quanto mais
contato e exposição do aprendiz com a língua alvo mais se poderá evitar essa
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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situação de entrave à competência linguística na medida em que possibilita a
ampliação do conhecimento tácito da língua.
A escrita requer dupla abstração por parte das crianças de modo geral: em
primeiro lugar, consideram-se os vínculos representativos entre a oralidade e a
escrita; em segundo lugar, também se considera o endereçamento da fala e da
escrita a um outro imaginário, que é parte constituinte dos atos de linguagem. A
construção da escrita de surdos não pode desvalorizar o ludismo e a interação da
língua de sinais com a língua portuguesa. Nesse caso, aquela é a fundadora da
aprendizagem do processo da escrita.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
São muitos os obstáculos que se apresentam ao longo do processo de
aquisição de linguagens pelo aluno surdo. Dentre eles, destacam-se a escassez
de metodologias próprias para o ensino da escrita em língua portuguesa, que
reforcem as potencialidades do surdo e se aproveitem delas para o ensino de
outras habilidades, como a escrita. Ademais, a falta de instituições que promovam
uma formação docente específica para o trabalho com o aluno surdo endossa o
rol de barreiras a serem transpostas por ele de modo a aprender a se comunicar
utilizando além da língua de sinais, a língua portuguesa em sua modalidade
escrita.
Prova dos empecilhos mencionados, é que muitos alunos surdos, por
vezes, frequentando o ensino superior, ainda escrevem com falhas estruturais
básicas da língua portuguesa, como ausência de artigos, conectivos, flexões
verbais etc. O intrigante é que muitos deles tiveram acesso à educação formal
nos ensinos médio e fundamental e acesso ao estudo da língua portuguesa por
anos. Entretanto houve uma falta de aprendizado/ensino de competências
básicas da linguagem escrita e isso prejudica o desempenho do aluno surdo na
produção de textos escritos.
Um fator determinante nesse processo que provavelmente ajudaria muito
na superação das principais dificuldades detectadas na escrita do surdo é o fato
de que a maioria deles não aprendeu a língua portuguesa como segunda língua.
Por sua vez o professor de línguas de um modo geral não foi preparado, na sua
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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graduação para atuar observando esta especificidade. Por isso, é necessário que
as práticas pedagógicas sejam selecionadas de modo a atingir não o global, mas
o particular.
Dessa forma, os educadores podem contar com as contribuições que cada
indivíduo traz de experiências e habilidades para a escola. Assim é possível tirar
vantagem de suas habilidades ao oferecer uma abordagem alternativa de ensino
das habilidades que o aluno precisa aprender. Para o desenvolvimento da escrita,
é preciso a criação de um processo sistêmico de elaboração de textos escritos.
Assim, desde a educação infantil é salutar que sejam adotadas estratégias
específicas para os alunos surdos, devido ao fato de que eles não partem do
mesmo ponto que os alunos ouvintes, que têm conhecimento sobre a língua
portuguesa falada.
Portanto, criar uma abordagem sistêmica e com periodicidade regular de
produção de textos, terá repercussão na efetividade do aprendizado da escrita do
surdo, promovendo mais contato com a produção já existente e incitando os
processos metalinguísticos necessários para o planejamento textual.
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