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O DESENVOLVIMENTO DA IDENTIDADE DA COMUNIDADE
SURDA EM TELÊMACO BORBA (PR)
RESUMO: O artigo que segue apresenta
aspectos sobre a formação de uma
comunidade surda na cidade de Telêmaco
Borba/Paraná, a partir da década de 1990.
Discorre sobre o convívio entre as pessoas
sinalizantes que compartilham, através da
Língua Brasileira de Sinais, suas
dificuldades e superações tornando a
comunidade surda um ambiente de lutas e
conquistas. O texto destaca a construção e
o fortalecimento da identidade da
comunidade surda no meio social em que
os indivíduos com surdez do município
estão inseridos. Em termos metodológicos
optou-se pela coleta e análise de
depoimentos de dois entrevistados, líderes
da comunidade surda naquela cidade.
PALAVRAS-CHAVE: Comunidade Surda.
Telêmaco Borba (PR). Língua Brasileira de
Sinais.
ABSTRACT: The article that follows
presents aspects about the formation of a
deaf community in the city of Telêmaco
Borba/Paraná, from the 1990s. It talks
about the conviviality among the signaling
people who share, through the Brazilian
Sign Language, their difficulties and
overcoming them, making the deaf
community an environment of struggles and
conquests. The text highlights the
construction and strengthening of the
identity of the deaf community in the social
environment in which individuals with
deafness of the municipality are inserted.
Methodologically, it was decided to collect
and analyze the testimonies of two
interviewees, leaders of the deaf
community in that city.
KEY-WORDS: Deaf Community. Telêmaco
Borba (PR). Brazilian Sign Language.
The development of the identity of the deaf community in Telêmaco Borba (PR)
FRANCIELI LUNELLI SANTOS
Doutora em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa
(UEPG), no Paraná; Mestre em Ciências Sociais Aplicadas também pela UEPG.
Licenciada em História (UEPG) e Sociologia (UNINTER). Professora formadora do Curso
de Licenciatura em História (UEPG), modalidade a distância. Professora do Colégio e
Faculdade Sant'Ana (CFSA), em Ponta Grossa (PR). francieli.lunelli@gmail.com
MARCELO RODRIGUES
Especialista em História, Arte e Cultura pela Universidade Estadual de Ponta Grossa
(UEPG), no Paraná. Licenciado em História (2017) pela UEPG e graduando em
Letras/Libras - Bacharelado pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste).
Professor da Secretaria de Estado da Educação do Paraná (SEED/PR). Tradutor e
Intérprete de Libras. marcelo_tb2011@hotmail.com
Recebido em 07/01/2019. Aprovado em 31/01/2019.
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1. INTRODUÇÃO
A Língua Brasileira de Sinais (Libras) obteve seu reconhecimento legal
por meio da Lei Federal 10.436/2002, porém antes da oficialização da mesma,
e sob os reflexos dos movimentos surdos pelo país, em 1994, a Língua de Sinais
passou a fazer parte da educação dos surdos da cidade de Telêmaco Borba,
Paraná, tornando-se fundamental para esses indivíduos. Tal acontecimento
promoveu a socialização entre os surdos e ouvintes usuários
1
da Libras através
de pastorais e eventos organizados por esses sujeitos.
A intensificação desses eventos impulsionou Érico Aparecido Ferreira e
Marily Aparecida Ferreira a lutarem pela representatividade dos surdos
telemacoborbenses, que seria possível, somente a partir da formação de uma
comunidade surda na cidade, tendo como pressuposto o fortalecimento do povo
surdo em torno da Língua Brasileira de Sinais.
O desenvolvimento desse processo foi o tema deste artigo. O intuito foi
identificar os motivos que levaram os surdos a formarem uma comunidade surda
na cidade de Telêmaco Borba, em 1995. Além disso, analisar como a experiência
dessa comunidade permite afirmar a existência de uma cultura surda na cidade.
Perlin estabelece uma diferença entre povo surdo e comunidade surda:
Povo surdo é tido como o grupo de surdos constituído com língua,
lugar e cultura específica. Comunidade surda trata de um aspecto
mais híbrido [...]. Tanto podem ser os surdos, os ouvintes filhos de
pais surdos, os intérpretes e os que simpatizam com os surdos
(PERLIN, 2003, p. 17).
A comunidade surda favorece as trocas de experiências visuais e
linguísticas entre os indivíduos sinalizantes
2
, de acordo com a pesquisadora surda
Karin Strobel, a comunidade surda é composta por sujeitos singulares que
compartilham sonhos, memórias e relatos, vivenciando plenamente a cultura.
Com relação à cultura surda, Strobel explica:
1
O termo usuários, aplicado em estudos sobre a Língua Brasileira de Sinais, refere-se aos
integrantes (surdos e ouvintes) da comunidade surda, e todos usam a Libras na comunicação
diária.
2
O termo “sinalizante” faz referência aos indivíduos que se comunicam por Língua de Sinais.
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Cultura surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de
modificá-lo a fim de se tor-lo acessível e habitável ajustando-os
com as suas percepções visuais, que contribuem para a definição
das identidades surdas [...] abrange a língua, as idéias, as
crenças, os costumes e os hábitos de povo surdo (2008, p. 22).
As investigações para elaborar tal pesquisa foram realizadas a partir de
relatos de Marily e Érico, precursores da comunidade surda em Telêmaco Borba,
levando em consideração que, para reconstruir os acontecimentos foi necessário
que os entrevistados passassem por um processo de rememoração, que de
acordo com Michael Pollak (1989), os levou a uma construção dialética entre a
lembrança e o esquecimento.
A entrevista é uma ferramenta metodológica e tem por finalidade
complementar uma pesquisa possibilitando perspectivas à produção do
conhecimento, com isso, faz-se necessário estabelecer um rigor teórico e um
tratamento metodológico. Assim, utilizou-se do cruzamento das informações
citadas pelos depoentes e da pesquisa documental para narrar o processo de
desenvolvimento da comunidade surda na cidade de Telêmaco Borba.
2. IMPLANTAÇÃO DA LÍNGUA DE SINAIS NA EDUCAÇÃO DOS SURDOS
TELEMACOBORBENSES
A1994, não havia uma comunidade surda definida em Telêmaco Borba,
pois de acordo com Rodrigues et al.:
Em Telêmaco Borba, a educação de surdos começou a ser
refletida a partir de 1987, com as irmãs da Escola Paroquial,
porém com a metodologia oralista. Somente em 1994 começou a
ser inserida a Língua de Sinais na metodologia de ensino da
instituição (2017, p. 65).
Anterior à Língua de Sinais, os surdos adultos do município em sua
maioria comunicavam-se por mímicas e gestos criados e reproduzidos em âmbito
familiar, pois em idade escolar foram alfabetizados por modelos oralistas que
priorizavam o ensino da fala.
As pesquisadoras surdas Gladis Perlin e Karin Strobel, afirmam que os
modelos oralistas na educação de surdos, tinham como pressupostos implantar
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“estratégias de ensino que poderiam transformar em realidade o desejo de ver os
sujeitos surdos falando e ouvindo” (PERLIN; STROBEL, 2008, p. 12).
Os modelos oralistas manifestavam claramente à superioridade da língua
oral sobre a Língua de Sinais, expressando a hegemonia dos ouvintes com
relação aos surdos, obrigando-os a educação voltada ao universo da fala, os
surdos tiveram que “abandonar sua cultura, a sua identidade surda e se
submeteram a uma ‘etnocêntrica ouvintista’, tendo de imitá-los” (PERLIN;
STROBEL, 2008, p. 6-7).
As pessoas com surdez apresentam um histórico de marginalização por
parte dos ouvintes, mas, graças às lutas dos movimentos surdos, a Língua de
Sinais tornou-se um meio de empoderamento da comunidade surda. Para Perlin e
Strobel:
A proibição da língua de sinais [...] sempre esteve viva nas mentes
dos povos surdos até hoje, no entanto, agora o desafio para o
povo surdo é construir uma nova história cultural, com o
reconhecimento e o respeito das diferenças, valorização de sua
língua, a emancipação dos sujeitos surdos de todas as formas de
opressão ouvintistas e seu livre desenvolvimento espontâneo de
identidade cultural! (2008, p. 8).
O fortalecimento da Língua de Sinais a nível nacional refletiu na educação
de surdos de Telêmaco Borba, pois com a implantação da Libras na Escola
Paroquial Perpétuo Socorro, os surdos adultos retornaram aos bancos escolares
para aprenderem esse meio de comunicação.
Os surdos mais velhos que receberam a educação por meio do
método verbo-tonal, e haviam concluído seus estudos foram
convidados pela Irmã Catarina a retornarem a Escola para
aprenderem a Língua de Sinais. A instituição preparou algumas
oficinas no período da noite para os ex-alunos, pois durante o dia,
a maioria trabalhava em alguma área do comércio ou indústria.
Muitos surdos aceitaram o convite para aprender a Libras
(RODRIGUES et al., 2017, p. 65).
O contato com a Libras foi fundamental para construir uma sociabilidade
entre o povo surdo telemacoborbense, pois o aprendizado da Língua de Sinais,
possibilitou-lhes conquistar a visibilidade perante a cultura ouvinte e formar uma
comunidade surda.
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Com a visibilidade da Língua de Sinais em Telêmaco Borba, Marily e
Érico, dois jovens surdos, iniciaram em meados da década de 1990, uma
aproximação com outros surdos do município. Ambos eram estimados, pois se
tornaram exemplos de sucesso, que foram os primeiros surdos a possuir na
época uma formação profissional, enquanto a maioria das pessoas surdas nem
chegava a concluir o Ensino Médio.
A proposta de Marily e Érico era estabelecer uma comunidade surda em
que os sujeitos surdos dispersos pelos bairros pudessem se reunir para trocarem
experiências, praticar esportes, promover discussões voltadas à educação, saúde
e principalmente ao mercado de trabalho, pois grande parte dos surdos, após a
conclusão do Ensino Médio, não conseguia inserção profissional devido à falta de
valorização da capacidade do surdo.
Strobel argumenta que os surdos sempre estiveram à margem da
sociedade, carregando consigo marcas do preconceito e invisibilidade. Segundo
essa pesquisadora, a Língua de Sinais, possibilitou aos sujeitos a construção de
uma representatividade a partir da comunidade surda que proporcionou uma
articulação cultural, linguística e política, aos seus integrantes, fossem eles
ouvintes ou surdos. Para Strobel:
[...] a comunidade surda de fato o é de sujeitos surdos,
também sujeitos ouvintes - membros de família, intérpretes,
professores, amigos e outros - que participam e compartilham os
mesmos interesses em comuns em uma determinada localização
(2008, p. 31).
Tais elementos de representatividade compõem a identidade do sujeito.
De acordo com Denys Cuche (2012, p. 182), a construção da identidade se faz
no interior de contextos sociais [...] não é uma ilusão, pois é dotada de eficácia
social, produzindo efeitos sociais reais”. Conforme o pensamento de Cuche
compreende-se que a identidade estabelece um sentimento de pertencimento, é
considerada uma condição inerente ao sujeito, concebida através do vínculo, da
socialização entre as pessoas.
Perlin (1998) afirma que a partir das experiências visuais, os surdos
encontram a possibilidade de construir seu espaço, apoiando-se em sua
historicidade, compartilhada socialmente no interior da cultura surda. As
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considerações da autora vêm ao encontro com as vivências narradas por Érico e
Marily, no sentido de que, as pessoas com surdez de Telêmaco Borba não eram
inseridas na cultura dos ouvintes, eram segregadas, expostas às situações de
exclusão.
Pessoas com deficiência [...], têm sido historicamente excluídas
ou segregadas em espaços especiais em várias esferas da vida
social. Em relação à cultura e ao lazer, com grande frequência são
apresentadas ou expostas em situações de [...] inabilidade social
(MAZZOTTA; D’ANTINO, 2011, p. 386).
Como indicam Mazzotta e D’Antino, as pessoas com deficiências não
possuíam espaços no meio social, esse tratamento também era oferecido aos
sujeitos surdos de Telêmaco Borba, esse contexto começou a ser modificado a
partir do momento que esses indivíduos constituíram a comunidade surda,
iniciando, dessa forma, a construção de sua identidade e conseguindo, assim,
despertar notoriedade e visibilidade perante os ouvintes.
A participação dos ouvintes na comunidade surda de Telêmaco Borba
favoreceu a eliminação das características segregativas, pois possibilitaram aos
surdos à integração na sociedade, viabilizando suas conquistas.
A valorização das potencialidades dos surdos do município possibilitou
que os mesmos fossem incluídos em esferas como a educação e o mercado de
trabalho, além de tratamento igualitário, possuidores de direitos e deveres, como
qualquer pessoa em relação aos diversos espaços sociais, no que tange à
inclusão social, Mazzotta e D’Antino (2011, p. 378) a compreendem como “a
participação ativa nos vários grupos de convivência social”.
De acordo com os entrevistados, a execução do projeto da comunidade
surda em Telêmaco Borba, em sua fase inicial enfrentou vários obstáculos.
Segundo Marily a barreira comunicacional com os ouvintes não sinalizantes foi o
maior empecilho. A árdua implantação do projeto levou os surdos a
experimentarem a frustração por serem “diferentes” e incompatíveis em relação
aos demais sujeitos. A efetivação da comunidade surda resultou a esses
indivíduos notoriedade e valorização.
Pollak estabelece uma relação entre identidade e memória, para ele, a
construção da identidade depende da reconstituição do passado que passa pelo
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processo da memória, dessa forma, as “histórias de vida [...] devem ser
consideradas como instrumentos de reconstrução da identidade, e não apenas
como relatos factuais” (POLLAK, 1989, p. 13).
Ainda para Pollak, a memória coletiva possibilita a interação entre as
memórias dos sujeitos, compondo as características culturais de uma
determinada comunidade, assim, a memória atua como agente formador da
identidade social e cultural de um povo.
Em seus estudos, Perlin (1998), ressalta que sujeito surdo possui
características únicas, a partir dessas singularidades é que o mesmo insere-se na
comunidade surda, de maneira a buscar pela representação como indivíduo
pertencente a essa comunidade, tendo a Língua de Sinais como língua natural, o
que dá origem à formação da identidade surda.
Perlin destaca que dentro da comunidade surda não identidades
iguais, ou seja, “identidades plurais, múltiplas; que se transformam, que não
são fixas, imóveis estáticas ou permanentes, que podem até mesmo ser
contraditórias” (PERLIN, 1998, p. 52).
Com base em experiências sociais, Perlin afirma que a identidade surda
possui múltiplas categorias, compondo uma comunidade surda heterogênica e
diversificada. Para Macêdo e Borges, as categorias da identidade surda citadas
por Perlin, são definidas como:
1) identidade surda: aquela que cria um espaço cultural visual
dentro de um espaço cultural diverso, ou seja, recria a cultura
visual, de maneira a reivindicar à história a alteridade surda; 2)
identidades surdas híbridas: aquela que os surdos que
nasceram ouvintes, com o tempo, tornaram-se surdos; 3)
identidades surdas de transição: aquela formada por surdos
que viveram sob o domínio da cultura ouvinte e, posteriormente,
passaram para a comunidade surda; 4) identidade surda
incompleta: aquela que os surdos negam a identidade surda pelo
fato de viver sob o domínio da cultura ouvinte; 5) identidades
surdas flutuantes: formadas por surdos que reconhecem ou não
a sua subjetividade, porém desprezam a cultura surda e não têm o
compromisso com a comunidade (MACÊDO; BORGES, 2011, p.
17, grifos nossos).
A aquisição da Libras como meio de comunicação entre os surdos de
Telêmaco Borba, é considerado por Marily, como um marco importante, no
sentido de que, tornou-se possível aos mesmos, vivenciar plenamente a
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identidade surda, dentro de uma comunidade em que a Libras é uma forma de
resistência em relação às práticas ouvintistas
3
.
Para Érico, os surdos do município, viviam submersos na cultura ouvinte,
sem o contato com a cultura surda. Essa relação descrita por Érico é chamada
por Perlin (1998), como identidade surda flutuante, ou seja, os surdos não
possuem o contato com a comunidade surda, vivem sob a identidade dominante,
seguem valores dos ouvintes.
São muitos casos e muitas histórias de surdos profissionalizados
que vivem as identidades flutuantes, pois não conseguiram estar a
serviço da comunidade ouvinte por falta de comunicação e nem a
serviço da comunidade surda por falta da língua de sinais. É o
sujeito surdo construindo sua identidade com fragmentos das
múltiplas identidades de nosso tempo, não centradas,
fragmentadas (PERLIN, 1998, p. 22).
Essa realidade começou a ser modificada após diversas reuniões entre
ouvintes e surdos sinalizantes do município, que tinham como finalidade construir
uma comunidade que pudesse proporcionar a dignidade aos sujeitos surdos e
promover a igualdade social.
Nesse sentido, o sujeito surdo torna-se ser histórico político e social,
protagonista de movimentos indispensáveis no fortalecimento da comunidade
surda como um local de vivências culturais e identitárias.
3. O INÍCIO DE UMA COMUNIDADE SURDA EM TELÊMACO BORBA
Devido à carência de documentos oficiais que delimitem o surgimento da
comunidade surda na cidade, foram realizadas entrevistas com as duas pessoas
responsáveis pelo início desse projeto no município. Os entrevistados são surdos
e usuários da Libras. Por esse motivo, cederam seus depoimentos ao intérprete
de Libras, um dos autores da pesquisa, que é proficiente em Libras e interpretou a
entrevista.
3
Conjunto de representações físicas e subjetivas, em que o surdo é obrigado a agir como ouvinte.
As representações físicas ocorrem por meio da submissão dos surdos às práticas de oralização e
utilização de próteses auditivas. As representações subjetivas acontecem através da imposição
dos costumes dos ouvintes, ou seja, ao ouvintismo.
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Érico nasceu em Telêmaco Borba, no dia 17 de fevereiro de 1979, tem 39
anos de idade, estudou na Escola Estadual Bela Vista, é técnico em Mecânica
pelo Senai de Telêmaco e trabalha no setor da afiação na Braslumber Indústria de
Molduras há 13 anos.
Marily também nasceu em Telêmaco Borba, no dia 26 de junho de 1978,
tem 40 anos de idade, estudou na Escola Estadual Bela Vista, cursou o Normal
Superior em Curitiba. Em Telêmaco Borba trabalhou como professora de surdos
na Escola Paroquial Perpétuo Socorro. Lecionou na instituição por 11 anos, com
transferência da educação de surdos para a Rede Estadual de Ensino, ela
também migrou para o Estado, desde então, faz sete anos que Marily trabalha
como professora temporária na Sala de Recursos Multifuncional - Surdez no
Colégio Estadual Wolff Klabin. Em 2013, concluiu o curso de Pedagogia na
modalidade à distância pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), é
pós-graduada em Educação Especial, também possui especialização em Libras.
Érico e Marily se conheceram no início dos anos 1990, na escola onde
ambos estudaram, nesse período iniciaram um namoro que durou por cinco anos
e, em 1995, ficaram noivos. Para que o sonho do casamento se efetivasse de
fato, Érico migrou para os Estados Unidos para trabalhar como pizzaiolo. Após
quatro anos morando exterior, Érico retornou ao Brasil. Com o dinheiro que
poupou nesse período, comprou uma casa confortável e em 2003, o casal
realizou o sonho do matrimônio. A repercussão do casamento foi tão intensa, que
recebeu até uma nota no jornal municipal da época.
No período em que Érico permaneceu nos Estados Unidos, Marily
continuou trabalhando como professora e participando da comunidade surda, em
2000, Érico retornou para Telêmaco Borba, em 2002, e começou a trabalhar na
empresa Braslumber, onde se encontra até os dias atuais. Em 2003 nasceu o
único filho do casal, Gabriel Henrique, que mesmo tendo os pais surdos, nasceu
ouvinte. Marily relata que o casal ensinou Libras para o filho desde a tenra idade
e, atualmente, Gabriel auxilia seus pais na interpretação da Língua de Sinais, em
situações diversas.
De acordo com os entrevistados, no início do projeto da criação da
comunidade surda no município, os surdos começaram suas reuniões nas
residências dos participantes da comunidade. Segundo os relatos de Marily,
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essas reuniões ocorriam uma vez por semana, às sextas-feiras, no período da
noite. À medida que o tempo foi passando o número de surdos que adentraram a
comunidade surda aumentou significativamente.
A comunidade surda teve início com oito sujeitos sinalizantes, porém, os
surdos, de cidades vizinhas tomaram conhecimento sobre o grupo através de
amigos, então de maneira paulatina, foram adentrando a comunidade novos
sujeitos, chegando a totalizar 25 surdos. De acordo com Marily, a Praça Castelo
Branco tornou-se por quase um ano o ponto de encontro de surdos e intérpretes,
pois as residências dos participantes não comportavam tantas pessoas para as
reuniões, a saída foi realizar os encontros na praça, e, com a mudança de local,
as reuniões desses sujeitos foram transferidas para as tardes de sábado. O grupo
começou a participar das missas com frequência, despertando o interesse de
colaboradores e padres da paróquia em auxiliá-los na continuidade dos
encontros, e dessa forma, deu-se o início à Pastoral dos Surdos
4
em Telêmaco
Borba.
Os indivíduos com surdez que participavam da comunidade surda e
pertenciam a outras denominações religiosas, concebiam a Pastoral do Surdo
como um elemento de inclusão social, pois os trabalhos realizados pela Pastoral
não se restringiam ao cunho religioso, os ministrantes que realizavam as
palestras eram cientes que a comunidade era composta de pessoas pertencentes
a outras denominações, então se delimitavam as explicações das passagens
bíblicas sem fazer apologia à determinada religião.
A finalidade da Pastoral dos Surdos para a comunidade surda, segundo
os relatos de Érico, era promover a convivência de sujeitos sinalizantes num
espaço de socialização, tendo como elemento principal a liberdade de expressão
por meio da Língua de Sinais e principalmente enfrentar os desafios para
promover os surdos no contexto social.
4
Em termos nacionais, a Pastoral dos Surdos teve seu início em 1946, pelo padre (ouvinte) norte-
americano Eugênio Oates, que percorreu o Brasil evangelizando os surdos. Seu principal
colaborador, Vicente Penido Burnier, tornou-se o primeiro padre surdo brasileiro, e o segundo na
história da Igreja Católica (PASTORAL DOS SURDOS, 2006). Atualmente um dos principais
representantes da Pastoral dos Surdos é o padre Wilson Czaia (surdo), presbítero da Arquidiocese
de Curitiba/PR e pároco da Paróquia Nossa Senhora da Ternura, em Curitiba. Padre Wilson
percorre o Brasil visitando Pastorais de Surdos e celebrando missas em Libras.
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Porém, antes da Pastoral, os representantes da comunidade surda
conseguiram, além da Praça Castelo Branco, outro espaço público para realizar
suas reuniões, o representante da Secretaria de Esportes e Lazer da cidade
emprestou o Ginásio de Esportes Heitor Furtado para alguns encontros e
festividades promovidas pela comunidade surda.
Érico rememora que no Ginásio foram realizados campeonatos de futsal
entre os usuários da Libras, para ele a participação dos surdos em campeonatos,
permitiram a comunicação e divulgação de informações que foram essenciais
para a formação da identidade desses sujeitos como surdos.
Os entrevistados relatam que os locais em que os sinalizantes realizaram
seus encontros foram fundamentais para promover a conversação, tornando
comunidade surda uma referência de articulação política, cultural e de lazer,
levando os surdos a conquistarem direitos de praticar a cidadania, além da
valorização da Língua de Sinais.
4. PASTORAL DOS SURDOS: NOVO ESPAÇO PARA COMUNIDADE
SURDA EM TELÊMACO BORBA
Com a chegada de novos surdos, residentes em cidades próximas como
Imbaú, Curiúva e Tibagi na comunidade surda de Telêmaco Borba, os espaços
públicos como a Praça Castelo Branco e o Ginásio de Esportes Heitor Furtado,
tornaram-se inapropriados para os encontros, devido à grande adesão de
pessoas nesses encontros.
Os primeiros integrantes da comunidade surda eram naturais do
município, em uma das reuniões ocorridas no Ginásio de Esportes, foi convidada
a Irmã Conceição Nogueira dos Santos (na época era colaboradora paroquial e
atualmente realiza trabalhos pastorais no Peru), o intuito desse convite era
solicitar seu auxílio para a aquisição de um local apropriado para os surdos
realizarem seus encontros. De acordo com os relatos de Marily, a Irmã
Conceição, começou a participar da comunidade surda, aprendeu a Língua de
Sinais, tornando-se intérprete de Libras e auxiliando os surdos em suas
conquistas.
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Com seu auxílio e do pároco da época, padre Donald Roth, criou-se a
Pastoral dos Surdos em Telêmaco Borba, considerado por Érico um marco
significativo da luta do movimento surdo na cidade, pois possibilitou aos surdos
um ambiente propício e seguro para realizar suas reuniões e fortalecer a cultura
representada pela Libras, tornando essa comunidade viva e atuante, pois a Libras
proporciona o sentimento de pertencimento a um grupo, segundo Perlin “um
surdo que vive dentro de sua comunidade possui outras narrativas para contar a
sua diferença e constituir sua identidade” (1998, p. 8).
O encontro inaugural da Pastoral dos Surdos na Paróquia Nossa Senhora
de Fátima aconteceu no dia 21 de abril de 2001. Desse momento em diante, a
Pastoral dos Surdos começou a participar de encontros diocesanos anuais da
Pastoral dos Surdos Regional Sul II, que ocorrem na Paróquia São José, em
Ponta Grossa, Paraná, além de algumas romarias para Aparecida do Norte, em
São Paulo.
Com o apoio de ouvintes sinalizantes, os surdos passaram a ter maior
notoriedade, conseguindo bons empregos em Curitiba, Paraná. Marily lembra que
muitos surdos foram para Curitiba em busca de trabalho em empresas
automobilísticas, em áreas de montagem e produção. Paulatinamente o número
de participantes na Pastoral do Surdo foi se reduzindo.
No processo de rememoração de Marily, que é transmitido em forma de
narrativa, constata-se que a Pastoral dos Surdos proporcionou aos sujeitos
surdos certa visibilidade no mercado de trabalho, possibilitando-os, postos em
diversas áreas, como no comércio, nas indústrias madeireiras da cidade e fora do
município.
Érico narra que no início dos anos 2000, havia na cidade uma
comunidade surda atuante, que lutava pelos direitos dos surdos, a Pastoral em
seu coletivo, tornou-se um meio de fortalecimento, possibilitando galgar novas
conquistas e igualdade social.
Marily relata que observou certo enfraquecimento da comunidade surda,
pois muitos participantes partiram em busca de uma vida melhor em Curitiba.
Segundo seu depoimento, em 2015, a comunidade surda estava composta de
apenas três participantes, um ouvinte e dois surdos. Mesmo com número
reduzido, Marily afirma que durante aquele ano as reuniões continuaram a ocorrer
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como de costume, porém os projetos elaborados para aquele ano não obtiveram
êxito devido ao pequeno número de participantes.
No fim de 2015, Marily e Érico realizaram um balanço das lutas, das
conquistas e dos desafios que passaram no decorrer daquele ano, chegando à
conclusão que os avanços foram poucos, as mudanças favorecendo os surdos
foram quase que imperceptíveis.
Com relação ao recrudescimento das ações da comunidade surda, as
recordações de Marily e Érico são denominadas por Candau de “memória
propriamente dita”, pois para o antropólogo, esses tipos de recordações buscam o
“reconhecimento; evocação deliberada ou inovação involuntária de lembranças
autobiográficas ou pertencentes a uma memória enciclopédica (saberes, crenças,
sensações, sentimentos, etc.)” (CANDAU, 2014, p. 23).
Portanto, as vivências coletivas proporcionadas pela comunidade surda,
de acordo com Candau, originam-se na memória do indivíduo, a partir dessas
lembranças, manifesta-se, também o sentimento de continuidade temporal, pois
segundo Marily, atualmente com a crise econômica no Brasil, alguns surdos que
eram participantes da comunidade surda, foram dispensados de seus empregos
em Curitiba e estão retornando para Telêmaco Borba.
O regresso desses surdos faz com que Marily e Érico, reavivam o sonho e
o desejo de retornar com os encontros da comunidade surda, que estão cessados
de 2016 a 2018, os entrevistados acreditam que o retorno da comunidade surda
trará novamente o fortalecendo da cultura e a identidade do povo surdo
telemacoborbense.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho propôs apresentar a constituição de uma comunidade surda
no município de Telêmaco Borba, a partir de relatos individuais e informações
cedidas pelos entrevistados. Para isso, foi necessário recorrer às lembranças, que
possibilitam organizar as recordações e experiências vivenciadas de modo
individual ou coletivamente.
Assimilando o conceito de memória foi possível, a partir da pesquisa
realizada, compreender o surdo em sua totalidade, ou seja, na construção de sua
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identidade, cultura e sociabilidade por meio da participação e vivencia na
comunidade surda. Observou-se, também, a comunidade surda como um espaço
de lutas e conquistas, em que os surdos através suas diferenças galgaram seus
espaços no meio social, ocupando vagas no mercado de trabalho, uma educação
de qualidade, além do respeito a sua identidade cultural.
Espalhados nos mais variados espaços: residências, praças, igrejas,
pastorais, entre outros, os surdos telemacoborbenses tornaram-se protagonistas
da própria história, participando da vida social, vivenciando sua cultura e
constituindo sua identidade na relação com seu semelhante, dessa forma,
construindo suas memórias, resultando no respeito dos ouvintes pela comunidade
surda.
REFERÊNCIAS
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DOCUMENTOS OFICIAIS
Ata da Paróquia Nossa Senhora de Fátima, com a data como oficial de
inauguração da Pastoral dos Surdos de Telêmaco Borba. 2002.
ENTREVISTAS
Érico Aparecido Ferreira, 39 anos, concedida ao pesquisador e intérprete de
Libras, Marcelo Rodrigues em 10/02/2018.
Marily Aparecida Ferreira, 40 anos, concedida ao pesquisador e intérprete de
Libras, Marcelo Rodrigues em 20/01/2018.