“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
143
OS BASTIDORES DA ESCRITA: ANÁLISE COGNITIVO-FUNCIONAL DE
PROCESSOS COGNITIVOS OPERANTES NA AQUISIÇÃO DE PBL2 POR
SURDOS BILÍNGUES
RESUMO: Este artigo apresenta um estudo
descritivo da produção escrita em
Português Brasileiro como segunda ngua
de surdos universitários e seus aspectos
cognitivos subjacentes, em uma etapa
específica de aquisição. Para isso,
utilizaram-se textos selecionados do
Corpus NEIS-UFRJ, a fim de mapear as
motivações cognitivas que afetaram a
proficiência escrita desses indivíduos em
dois gêneros textuais distintos. Os
pressupostos teóricos partiram da
Linguística Funcional Centrada no Uso e de
estudos sobre Interlíngua. Os resultados
evidenciam comportamentos dos
processos cognitivos analógicos, atrelados
à aquisição de conhecimento linguístico-
textual, que se manifestam em categorias
prototípicas de desvios, demonstrando seu
impacto no texto escrito do aprendiz surdo.
PALAVRAS-CHAVE: Aquisição de PBL2.
Aprendizes surdos. Processos Cognitivos
Analógicos.
ABSTRACT: This article presents a
descriptive study of written production in
Brazilian Portuguese as the second
language of university students and their
underlying cognitive aspects, in a specific
stage of acquisition. For this, selected texts
of the NEIS-UFRJ Corpus were used in
order to map the cognitive motivations that
affected the written proficiency of these
individuals in two different textual genres.
The theoretical assumptions were based on
Functional Use-Centered Linguistics and
Interlingua studies. The results show the
behavior of analogical cognitive processes,
linked to the acquisition of linguistic-textual
knowledge, which are manifested in
prototypical categories of deviations,
demonstrating their impact on the written
text of the deaf learner.
KEY-WORDS: Acquisition of PBL2. Deaf
learners. Analogical Cognitive Processes.
The backstage of writing: cognitive-functional analysis of cognitives processes operating
on the acquisition of PBL2 by bilingual deafs
JOÃO PAULO DA SILVA NASCIMENTO
Professor habilitado ao magistério na Educação Infantil e no Ensino Fundamental pelo
CE Prof. José Accioli (2016) e graduando em Licenciatura em Letras: Português-
Literaturas pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FL-
UFRJ).
LIA ABRANTES ANTUNES SOARES
Doutora em Letras (Língua Portuguesa) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ 2018), tendo desenvolvido sua tese sobre aquisição de PBL2 por surdos. Atua
desde 2002 com ensino e pesquisa em Português como Segunda Língua.
ROBERTO DE FREITAS JUNIOR
Possui graduação em Letras: Português-Inglês pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ 1999), especialização em Língua Inglesa pela PUC-Rio (2001),
mestrado em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006) e doutorado
em Linguística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011). É Diretor Adjunto de
Cultura e Extensão da FL/UFRJ e Professor Adjunto de Estudos Linguísticos do
Departamento de Letras-Libras/UFRJ.
Recebido em 28/12/2018. Aprovado em 04/02/2019.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
144
1. INTRODUÇÃO
O tratamento do português brasileiro (PB) em sua modalidade escrita
como L2 para surdos ainda se mostra um paradigma pouco elucidado, tanto em
termos de pesquisas na área de aquisição de linguagem, quanto em termos de
metodologias de ensino voltadas especificamente para essa comunidade
linguística. Tal fator faz com que, diariamente, professores de surdos dos mais
variados níveis de escolaridade, em instituições de ensino inclusivas ou especiais,
enfrentem dificuldades em suas práticas pedagógicas, que muitas vezes são
ineficientes e equivocadas.
Fato é que essa condição a que estão sujeitos aprendizes surdos e seus
professores encontra-se fortemente atrelada à falta de políticas linguísticas que
instituam consistentemente o estatuto de L2 ao PB escrito para surdos brasileiros,
definindo uma orientação curricular embasada em investigações acadêmicas (i)
amparadas pela descrição linguística do PBL2 usado por surdos e (ii) desprovidas
de crenças a respeito das capacidades desse público-alvo e da maneira como ele
aprende.
Em vista dessa problemática, este artigo almeja contribuir para a difusão
da investigação do texto escrito de surdos de escolaridade universitária em uma
perspectiva teórica consolidada sobre o processo de aquisição de segunda língua
(ASL), na medida em que partiu de uma pesquisa cujo foco se manteve no
controle dos pontos de maior dificuldade na produção textual em PBL2 e nos
processos cognitivos atuantes na representação mental de conhecimentos da L2.
Dessa forma, assumimos a hipótese de que a aquisição de PBL2 por surdos
reflete a atuação de processos cognitivos, como a analogia e a categorização,
que são identificados em casos típicos de ASL, como a transferência L1-L2 e a
supergeneralização.
2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
O presente trabalho se desenvolve à luz dos pressupostos teóricos da
Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU), que pressupõe uma relação
simbiótica entre representação cognitiva do conhecimento linguístico e aspectos
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
145
relativos ao uso da língua, situando-a em um contexto mais amplo do
comportamento humano. Trata-se, pois, de uma corrente que visa apresentar
explicações sobre os aspectos cognitivos e interacionais da linguagem sem fazer
distinção entre aprendizagem e aquisição, uma vez que concebe a aprendizagem
como um fenômeno amplo, gerido pelos mesmos princípios cognitivos gerais e
inatos. Assim, não se desvincula a aprendizagem de língua de outras
aprendizagens de domínio geral.
Adotamos aqui o aporte teórico da Gramática de Construções Baseada no
Uso (Goldberg, 2006), que enxerga o conhecimento linguístico como uma
representação em rede de unidades simbólicas, cuja emergência pode ser
explicada tanto por habilidades cognitivas gerais quanto pelo uso linguístico real.
Tais unidades simbólicas são chamadas de construções e podem ser definidas
como pareamentos convencionais de forma (morfossintática e fonológica) e
sentido (semântica, pragmática e discursiva) que interagem em todos os níveis
linguísticos e moldam o que entendemos por língua sem, necessariamente,
pressupor uma divisão rígida entre léxico e gramática, posto que o modelo
construcional não necessita de um componente derivacional de regras sintáticas
como o da Linguística Gerativa. Temos, assim, um grande léxico expandido, o
constructicon, por meio do qual se explicam fenômenos sintáticos das línguas
naturais pela constante interação entre construções linguísticas.
Segundo Tomasello (2003), a aquisição de linguagem (L1 e L2) é
propiciada graças a duas habilidades cognitivas particulares à espécie humana: a
habilidade de “leitura de intenção”, ou Theory of Mind (ToM), e a habilidade de
busca e reconhecimento de padrões, que basicamente inclui as capacidades de
categorização e de estabelecimento de analogias. Assim, levando isso em
consideração, o autor estipula que a aquisição/aprendizagem de língua ocorre por
meio da estruturação de eventos comunicativos nos quais se manifestam,
implicitamente, a consciência da análise distributiva funcional, uma vez que o
aprendiz tem de determinar a contribuição da estrutura para a intenção
comunicativa do interlocutor em seu conjunto interacional (TOMASELLO, 2003, p.
205).
De acordo com esse modelo, uma vez adquirida determinada construção,
nossa capacidade analógica nos permite associar o esquema de tal construção a
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
146
outros existentes e regulares na língua, caracterizando um modelo botton-up de
aquisição, o que implica dizer que adquirir uma língua significa adquirir
construções e seus respectivos contextos de uso. Por isso, a analogia enquanto
processo cognitivo mostra-se imprescindível ao desenvolvimento da linguagem
humana, o qual se dá a partir dos usos de competências cognitivas prévias.
Bybee (2010) propõe que a linguagem é um fenômeno que exibe estrutura
aparente e regularidade de padrões. A autora entende que a língua é um sistema
adaptativo complexo e, ao fazê-lo, alega a possibilidade de os fenômenos
estruturais observados nas gramáticas das línguas serem decorrentes de
processos cognitivos de domínio geral que embasam não a aprendizagem de
língua. Em sua visão, o uso repetitivo desses processos assume impacto na
representação cognitiva do conhecimento linguístico.
No caso da ASL, Bybee (2008) discute a importância da frequência de uso
de construções e da atuação em série dos mesmos processos cognitivos
operantes na aquisição de L1 e de outros conhecimentos para a compreensão de
fenômenos emergentes durante o processo contínuo e gradiente de aquisição.
Dessa maneira, a autora demonstra que o desenvolvimento da L2 dispõe de
impactos cognitivos na consolidação de padrões construcionais produtivos na
memória do aprendiz de L2, além de a estrutura construcional da L1 interferir no
processo, o que explicaria os fenômenos da transferência e da
supergeneralização no processo de aquisição da nova língua.
Além disso, uma noção muito cara aos estudos em ASL é a de Interlíngua
(SELINKER, 1972; 1979; ODLIN, 1989), que pode ser entendida, de forma ampla,
como um sistema linguístico intermediário moldado por fenômenos como
hipercorreção, (super)generalizações e interferências (BROWN, 1994). No
entanto, seriam esses fenômenos estáticos, ou desprovidos de explicações
sociocognitivas corroboradas pela teorização aqui apresentada? Seria, ainda, a
Interlíngua um mero sistema paralelo subsidiado por interferências e competições
entre a L1 e a língua alvo (LA)?
Comungando dos pressupostos da LFCU, Freitas (2011) lança mão de
uma definição cognitivo-funcional de Interlíngua e a considera como um estágio
de aquisição no qual o aprendiz constrói, com base no uso, uma rede de
representação cognitiva formada tanto por construções de sua L1, quanto da LA,
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
147
ou mesmo de nenhum destes sistemas. A Interlíngua, assim, é um modelo
regular, constituído de fases desenvolvimentais específicas e que apresenta
fenômenos inibidores da proficiência do aprendiz em LA explicáveis não por
noções de interferência, mas também por aspectos cognitivos que evocam um
nível mais abstrato de interação entre redes construcionais.
3. METODOLOGIA
A fim de constituir um olhar consistente com os pressupostos teóricos que
embasam este trabalho e de seus respectivos objetivos, a metodologia dispôs de
análise quantitativa e qualitativa de dados observados em 10 textos em PBL2,
produzidos em sala de aula e armazenados no Corpus NEIS-UFRJ
1
. Esse
quantitativo é composto por textos de gêneros cotidianos, a saber: relato de
acontecimento (6) e postagem de Facebook (4).
O Corpus NEIS-UFRJ disponibiliza formulários com características dos
informantes, o que permitiu traçar o perfil dos 10 sujeitos que produziram os
textos selecionados. Todos são surdos de primeira geração
2
com surdez
congênita ou adquirida até 2 anos, estudantes do curso de Letras Libras, com
idade entre 22 e 36. Os formulários ainda informam que esses sujeitos foram
submetidos a acompanhamento fonoaudiológico.
Os procedimentos de análise envolveram identificação, descrição,
classificação e explicação dos tipos de divergências encontradas. Os critérios
definidos para análise das ocorrências divergentes são os seguintes:
agramaticalidades, desvios da norma culta e problemas de textualidade. Esses
critérios viabilizaram taxonomia proposta em Freitas et al (2018) e revista neste
estudo.
Nosso objetivo centrou-se na comparação de ambos os gêneros em busca
do monitoramento do comportamento dos processos cognitivos analógicos aqui
propostos em dois domínios sociais distintos de uso da L2, uma vez que a
1 O Corpus NEIS-UFRJ é um banco de dados organizado pelo Núcleo de Estudos sobre
Interlíngua e Surdez UFRJ que abarca diversos textos, de diferentes gêneros e tipologias
textuais, de indivíduos surdos de escolaridade universitária (alunos do curso de Letras-Libras da
Faculdade de Letras da UFRJ). Para maiores detalhes, sugerimos a leitura de Freitas et al (2018),
citado nas referências bibliográficas deste artigo.
2 Surdos de primeira geração são aqueles que têm pais ouvintes (SOARES, 2018).
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
148
situacionalidade discursiva pode influenciar a atuação desses processos
(FREITAS et al, 2018).
4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
A partir da análise dos textos selecionados em termos de
agramaticalidades, desvios da norma culta e problemas de textualidade, foi
possível lançar mão de uma categorização dos fenômenos detectados, isto é,
uma taxonomia de dados, de acordo com a sistematicidade e frequência por eles
apresentadas. Esse levantamento de divergências inibidoras de avanço do nível
de proficiência escrita dos informantes surdos desta pesquisa reúne 8 categorias
que foram pressentidas em ambos os grupos de textos analisados, como visto no
quadro abaixo:
Quadro 1 - Taxonomia de desvios e quantificação
CATEGORIAS
TEXTOS DO
GÊNERO RELATO
DE
ACONTECIMENTO
(6)
TEXTOS DO
GÊNERO
POSTAGEM DE
FACEBOOK (4)
TOTAL DE DESVIOS
POR CATEGORIA
Fusão de construções
02
02
04
Inserção indevida de
itens
lexicais/gramaticais
04
02
06
Apagamento de itens
lexicais/gramaticais
16
05
21
Troca de itens
lexicais/gramaticais
04
06
10
Incompatibilidade
morfofonológica
09
03
12
Transferência de
oralidade da LA
02
01
03
Estratégia de
textualização da L1
01
02
03
Problema de
manutenção de
continuidade tópica
05
00
05
TOTAL DE DESVIOS
POR GRUPO DE
TEXTOS
43
21
64
Fonte: elaborado pelo autor.
Além disso, reconhecendo a interface entre uso e cognição como um proponente
basilar à compreensão de fenômenos recorrentes no processo de aquisição de
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
149
L2, assume-se aqui que a Analogia, enquanto capacidade cognitiva intrínseca à
espécie humana que propicia a aquisição de linguagem (Tomasello, 2003; Bybee,
2010), esteja por trás dos desvios acima apresentados em um nível mais geral de
representação cognitiva do conhecimento linguístico gradualmente adquirido. No
entanto, à vista das especificidades apresentadas pelas categorias propostas,
estipula-se a existência de subprocessos cognitivos, todos de natureza analógica,
que melhor refletem as características particulares dos fenômenos elencados,
quais sejam:
(1) Mesclagem Construcional: consiste em uma operação mental de
natureza analógica, por meio da qual dois esquemas construcionais (sejam
ambos da L1, ou um de cada sistema linguístico em competição no curso
da aprendizagem) são mesclados, de modo a produzirem um padrão
construcional agramatical, com marcas morfossintáticas dos protótipos
mesclados;
(2) Hipercorreção/(Super)generalização: consiste na interpretação
tendenciosa ou parcial de determinada regra gramatical, a qual passa a ser
aplicada em contextos em que não se aplica por uma associação analógica
equivocada acerca do funcionamento do sistema linguístico;
(3) Interferência da L1: trata-se do estabelecimento de analogias entre o
conhecimento linguístico já adquirido durante a primeira infância e os inputs
da segunda língua, de modo que a interferência manifesta-se pela
sobreposição de padrões construcionais de diversos níveis linguísticos da
L1, os quais são preservados em contextos específicos de divergências
interlinguísticas;
(4) Interferência da Oralidade da LA: trata-se de uma tipologia de
interferência que se concebe no âmbito da língua alvo (LA), mais
especificamente entre construções prototípicas da modalidade oral e da
modalidade escrita, caracterizando-se pela transferência de esquemas de
oralidade à língua escrita;
(5) Interferência da Memória Gráfico-Visual: refere-se a uma operação
cognitiva em que se assume o uso de uma construção (geralmente no nível
do vocábulo) no lugar de outra devido à ampla correspondência gráfico-
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
150
visual estocada na memória a curto prazo do aprendiz de L2.
De modo plausível, tais processos analógicos refletem como a aquisição
de PBL2 por surdos se por estágios interlinguísticos específicos que permitem
a suposição de um contínuo gradiente de representação cognitiva de
conhecimentos linguístico-textuais da L2. Além disso, presumindo que o texto
escrito do surdo em PBL2 é moldado pela atuação em série desses processos
cognitivos típicos da aquisição de L2, a adesão a esta explicação científica induz
a visão de que os fenômenos categorizados não ocorrem ao acaso, mas
motivados por um componente subjacente que acompanha o desenvolvimento da
Interlíngua destes indivíduos. No quadro abaixo, vê-se alguns exemplos de
sequências textuais comprometidas explicáveis à luz desses processos.
Quadro 2 Amostras do mapeamento e categorização das divergências nos relatos de
acontecimento
GÊNEROS: RELATO DE ACONTECIMENTO E POSTAGEM DE FACEBOOK
PROCESSOS
COGNITIVOS
ANALÓGICOS
DADO
Mesclagem construcional
Se formou em professor de Educação
Física e montou um projeto social na
comunidade, para revelar talentos e para
treiná-los para os jogos estudantes.
Hipercorreção/
(super)generalização
O tio disse, não podia levar filhotes de
passarinho que vão morrer, melhor soltar
para voar de naturalmente no nosso sitio de
bom sucesso.
Interferência da L1
Como eu tive coragem de pedir o dinheiro
do meu pai, mesmo sabendo Φ ele tinha
combinado na minha casa que o podia
me emprestar por problemas financeiras.
Interferência da oralidade
da LA
Conheci Bruno em uma escola que
trabalhei alguns anos atrás. E o admiro
pelo seu esforço e talento.
interferência da memória
gráfico-visual
Eu estou admitindo que você gosta de
ajudar com pobres para comer e estudar.
Fonte: elaborado pelo autor.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
151
No primeiro dado do quadro 2 [jogos estudantes], observa-se a atuação do
processo cognitivo analógico do tipo Mesclagem Construcional, o qual propicia
um desvio concebido no âmbito das construções da L2 ou entre construções da
L1 e da L2, que são fundidas e, portanto, produzem um padrão construcional que
não pertence a nenhum dos dois sistemas linguísticos. No exemplo aqui exposto,
assumimos que o sintagma em destaque, seja fruto de uma mescla entre dois
padrões construcionais da L2, isto é, [jogos estudantis]/ [SN SAdj] e [jogos de
estudantes]/ [SN SPrep SN mod]. A produção do padrão morfossintático
agramatical em PB [SN SN mod], cujas características podem ser recuperadas
dos dois padrões mesclados, representa a forma como este tipo de construção da
L2 não se encontra fortemente fixada na memória do aprendiz.
O segundo dado [voar de naturalmente] evidencia um caso de
Hipercorreção/(Super)generalização perceptível por meio da inserção indevida de
um item gramatical do tipo preposicional, no contexto construcional [SV SAdv] em
que a preposição não se aplica. Trata-se, assim, da interpretação tendenciosa ou
parcial de determinado padrão do sistema linguístico da LA que é aplicada
equivocadamente em detrimento de uma relação analógica com outros padrões
(e.g. [voar de + SN]), podendo refletir casos de supergeneralização.
Os três trechos seguintes apresentam ocorrências referentes a processos
cognitivos de interferência. A interferência da L1, como se sabe, não é nenhuma
novidade no campo dos estudos em ASL, visto ser natural que o aprendiz de L2,
surdo ou ouvinte, recorra à gramática da L1 para produzir enunciados na L2,
como se no exemplo do terceiro trecho do quadro, no qual apagamento da
conjunção integrante um item não expresso fonologicamente na Libras, entre as
construções [mesmo sabendo] e [ele tinha combinado]. Por outro lado, nos
últimos dois exemplos, casos de interferência de aspectos relativos à
conjuntura do sistema linguístico da LA, sendo o primeiro de interferência do PB
oral caracterizado pelo padrão [que V lá], sendo essa estrutura sintática mais
comum na fala, e o segundo de interferência da memória gráfico-visual vista pela
troca do item lexical “admirado” por “admitindo”, possivelmente pela alta
compatibilidade morfofonológica e semelhança visual destes dois itens.
Após a análise minuciosa destes materiais, observou-se que os processos
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
152
cognitivos apresentados acima ocorreram regularmente, o que nos permite
apontá-los como formadores de um sistema gramatical próprio à etapa de
aquisição de PBL2 por surdos, que evidencia ativação constante do mecanismo
analógico. Dessa forma, notamos que as categorias de desvios mapeadas
poderiam ser explicadas, previsivelmente, por esses processos em certa medida
prototípica, corroborando a hipótese de que cada um deles impacta o texto escrito
do aprendiz surdo de forma estruturada. Essa relação entre categorias e
motivações subjacentes pode ser observada no quadro a seguir.
Quadro 3 - Relação entre categorias de desvios e processos cognitivos subjacentes
PROCESSOS COGNITIVOS
ANALÓGICOS
CATEGORIAS
PROTOTÍPICAS
QUANTIFICAÇÃO
Mesclagem Construcional
Fusão de
construções
04
Hipercorreção/(super)generalização
Inserção Indevida
de Itens
06
Troca de Itens
08
Incompatibilidade
Morfofonológica
12
Problema de
Continuidade
Tópica
05
Interferência da L1
Apagamento de
Itens
21
Estratégia de
Textualização da
L1
03
Interferência da Oralidade da LA
Transferência da
Oralidade da LA
03
Interferência da Memória Gráfico-
Visual
Troca de Itens
02
Fonte: elaborado pelo autor.
No que se refere à atuação destes processos cognitivos em cada grupo de
textos analisados, percebeu-se um alto grau de convergência que demonstra, de
forma escalar, um ranking entre processos cognitivos mais e menos proeminentes
em termos de prejuízo da proficiência escrita dos informantes surdos. Assim,
chama-se atenção ao fato de o processo de Hipercorreção/(super)generalização
se destacar como o principal atuante, seguido, respectivamente, pelos processos
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
153
de Interferência da L1, Mesclagem Construcional, Interferência da Oralidade da
LA e Interferência da Memória Gráfico-Visual. Isso pode ser ilustrado pelos
gráficos abaixo, que expõem o percentual encontrado em cada grupo.
Gráfico 1 Relativo aos textos do gênero Postagem de Facebook.
Gráfico 2 Relativo aos textos do gênero Relato de Acontecimento.
Fonte: elaborado pelo autor.
Embora os informantes desta pesquisa sejam todos de escolaridade
universitária, foi possível perceber que suas produções em PBL2 apresentam
fossilizações e impactos consideráveis de processos cognitivos típicos da ASL, o
que nos faz pensar a respeito do que se sabe hoje sobre o PBL2 de surdos e sua
aquisição. Isso, dentre outras questões, salienta a necessidade de investigações
mais aprofundadas acerca da produção escrita de surdos e de seus aspectos
linguísticos particulares que justificam o tratamento do PB como L2 para a
comunidade surda brasileira.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
154
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não esperamos que este trabalho esgote as possibilidades de investigação
do PBL2 de surdos, ou que proponha uma metodologia de análise infalível.
Esperamos, na verdade, que as discussões aqui apresentadas sirvam de base a
interpretações mais profundas acerca dos fenômenos presentes na escrita de
surdos, suas motivações cognitivas e a maneira como ocorre o processo de ASL
por esses indivíduos na perspectiva cognitivo-funcional.
Salientamos que essa metodologia empregada pode vir a contribuir ao
ensino de PBL2 a estudantes surdos, uma vez que estipula o texto escrito em
PBL2 como unidade de ensino e investigação, considerando-o em seus aspectos
formais e semânticos como ponto de partida. Assim, ainda que tenha sido
aplicado com estudantes de nível superior, o aparato metodológico desta
pesquisa mostra-se maleável e de fácil aplicabilidade a outras faixas etárias e
níveis de conhecimento de língua.
Além disso, percebemos que os processos cognitivos analógicos atuantes
no curso da aquisição de PBL2 por surdos impactaram ambos os grupos de
textos analisados de formas convergentes, o que confirmou a hipótese inicial, que
pressupunha uma atuação sistemática desses processos. Dessa maneira,
estipulamos a visão de que a Interlíngua dos indivíduos aqui investigados é um
sistema previsível, resultativo da relação entre redes construcionais distintas e
emergente a partir da atuação de processos que se manifestam prototipicamente
e auxiliam a interpretação da ASL como um processo gradiente.
REFERÊNCIAS
BYBEE, J. Usage-based grammar and second language acquisition. In: P.
Robinson and N. Ellis(eds.), Hand book of Cognitive Linguistics and Second
Language Acquisition. New York: Routledge. 216-236, 2008.
______. Language, usage and cognition. Cambridge: Cambridge University
Press, 2010.
BROWN, D. Principles of language learning and teaching. New Jersey:
Prentice Hall, 1994.
FREITAS. R. Reflexos pragmático-discursivos da L1 na aquisição de inglês
como L2: um estudo sobre o uso da cláusula VS. Dissertação de Mestrado.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
155
UFRJ: Rio de Janeiro. 2006.
______. A constituição discursivo-gramatical da construção (X)VS em inglês
como L2: indícios de formação da interlíngua. Tese de Doutorado. UFRJ: Rio de
Janeiro. 2011
FREITAS, R et al. Seum grande de aprendizado: uma análise descritiva dos
aspectos linguísticos da escrita de surdos em PBL2 - Interfaces entre
textualidade, uso e cognição no estado de interlíngua. Pensares em revista, v. 01,
p. 0729, 2018. Rio de Janeiro.
FREITAS, R; NASCIMENTO, J.P.S. Aquisição e ensino de PBL2 de surdos:
um estudo de caso sobre a hipótese do choque construcional na interlíngua. No
prelo.
GOLDBERG, A. Constructions at work: the nature of generalization in language.
Cambridge: University Press, 2006.
ODLIN, T. Cross-linguistics influence in language learning. Cambridge:
Cambridge University Press. 1989.
SELINKER, L. Interlanguage. International Review of Applied Linguistics,
v.10, p 209-231, 1972.
SOARES, L. A. A. A emergência de um sistema de competidores: um estudo
cognitivo-funcional dos processos mentais subjacentes ao desenvolvimento do
PBL2 em surdos universitários. Tese de Doutorado em Língua Portuguesa.
Instituto de Letras. Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2018.
TOMASELLO, M. Constructing a Language: A Usage-Based Theory of
Language Acquisition. Cambridge, MA: Harvard University Press. 2003.