“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
120
A COARTICULAÇÃO NO NÚMERO DE MÃOS NA PRODUÇÃO DE
SINAIS DA LIBRAS
RESUMO: Este estudo objetivou testar se
a variação no número de mãos dos sinais
PRECISAR, QUERER e da libras
decorre da coarticulação com o número de
mãos do(s) sinal(is) adjacente(s) e se é
afetada pelo aumento na taxa de
sinalização e pela idade do sinalizante.
Para isso, foram analisados dados de três
sujeitos surdos com idade entre 16 e 17
anos, coletados por Xavier (2014)
juntamente os dados de quatro outros,
entre 27 e 28 anos, que efetivamente
analisou. De maneira geral, os resultados
se assemelharam aos obtidos pelo referido
autor, indicando sensibilidade ao contexto
e à taxa apenas para o sinal JÁ.
PALAVRAS-CHAVE: Variação. Número
de mãos. Coarticulação.
ABSTRACT: The aim of this study was to
test whether the variation in the number of
hands of the Libras signs NEED, WANT
and EVER results from the coarticulation
with the number of hands of the adjacent
sign(s) and is affected by the increase in
the signing rate and by the age of the
signer. For this, we analyzed data from
three deaf individuals, between 16 and 17
years old, collected by Xavier (2014)
together with the data from four others,
between 27 and 28 years old, which he
analyzed. In general, the results were
similar to those obtained by the author,
indicating sensitivity to the context and the
signing rate only for ALREADY.
KEYWORDS: Variation. Number of hands.
Coarticulation.
Coarticulation in the number of hands in the production of Libras signs
THIAGO ALEXANDRE HUBIE
Licenciado em Letras Libras pela Universidade Federal do Paraná. E-mail:
fet.hubie@gmail.com.
ANDRÉ NOGUEIRA XAVIER
Professor doutor do curso de licenciatura em letras libras da Universidade Federal do
Paraná. E-mail: andrexavier@ufpr.br.
Recebido em 23/12/2108. Aprovado em 31/01/2019.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
121
1. INTRODUÇÃO
No âmbito da linguística, Stokoe (1960) foi o primeiro estudioso a defender
que as línguas de sinais são línguas naturais, ao demonstrar que estas
compartilham com as línguas orais princípios estruturais. Segundo o autor, os
sinais, assim como as palavras, são formados de elementos menores, os
chamados parâmetros. Os parâmetros, tal como as unidades sonoras, são finitos,
recombinativos e distintivos (XAVIER; BARBOSA, 2017). Além disso, Stokoe
também reconheceu a ocorrência de variação na realização concreta dessas
unidades. Conforme apontam Xavier e Barbosa, esse fato reforça ainda mais o
estatuto de língua natural das línguas sinalizadas, uma vez que, como se sabe,
todas as línguas variam.
A variação na forma das palavras ou sinais pode ser livre ou motivada pelo
ambiente fonético-fonológico em que são produzidos. Xavier (2014) investigou
esses dois tipos de variação na libras, focando no parâmetro número de mãos.
Embora esse parâmetro distintivamente determine se um dado sinal é mono ou
bimanual, ou seja, canonicamente produzido com uma ou duas mãos,
respectivamente, ele pode variar em alguns sinais. Nos casos de variação livre,
por meio de um experimento, o autor observou que alguns sinais foram mais
frequentemente empregados em sua variante monomanual, enquanto outros em
sua variante bimanual. Embora ele tenha hipotetizado que tal fato se explique,
para alguns desses sinais, por razões exclusivamente articulatórias e perceptuais,
outros aspectos ainda precisam ser explorados como a variação idioletal,
situacional, socioletal, dialetal, etc (XAVIER; BARBOSA, 2017).
em relação aos casos de variação motivada pelo contexto, Xavier
observou, por meio de outro experimento, que a realização com uma ou duas
mãos de três sinais da libras, a saber, PRECISAR, QUERER e JÁ, é influenciada
em diferentes graus e de forma distinta entre os quatro sujeitos analisados pelo
contexto, ou seja, pelo número de mão de sinais adjacentes e, somado a isso,
pelo aumento na taxa de sinalização (número de sinais por segundo).
Consequentemente, o autor identificou comportamentos quase que exclusivos
para cada um dos quatro participantes, que tinham entre 28 e 29 anos à época de
sua participação no estudo.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
122
O presente trabalho objetiva dar continuidade ao trabalho de Xavier (2014,
2016), analisando um conjunto de dados, até então não explorados, mas
coletados no mesmo período em que o experimento acima mencionado foi
realizado. A principal diferença entre esse conjunto de dados e o analisado por
Xavier está na idade dos três participantes surdos, que tinham entre 16 e 17
anos. Sendo assim, com este trabalho, será possível também verificar se a faixa
etária é um fator relevante na ocorrência ou não do processo em estudo.
Precisamente, a presente pesquisa pretende testar, para esse novo conjunto de
dados, as seguintes hipóteses:
1. A variação no número de mãos dos sinais PRECISAR, QUERER
e decorrem da coarticulação com o número de mãos do sinal
anterior e/ou posterior;
2. A influência (coarticulação) do número de mãos do sinal anterior
e/ou posterior é afetada pelo aumento na taxa de sinalização;
3. Sinalizantes mais jovens apresentam comportamentos diferentes
em relação aos mais velhos em relação à coarticulação no número
de mãos.
Para isso, o presente artigo foi organizado da seguinte forma. A seção 3,
onde serão descritos os procedimentos metodológicos, trará mais detalhes sobre
os sujeitos surdos cujas produções serão analisadas neste artigo. Antes disso, na
seção 2, será sumarizado o trabalho de Xavier (2014, 2016) sobre a variação no
número de mãos na produção de sinais da libras por influência do contexto
fonético-fonológico. Por fim, na seção 4, serão apresentados os resultados e, na
seção 5, as considerações finais.
2. REVISÃO DE LITERATURA
Com base na observação de variação no número de mãos de alguns
sinais da libras em sinalização espontânea, Xavier (2014, 2016) hipotetizou que
essa variação poderia ser, em alguma medida, explicada pela influência do
contexto fonético-fonológico em que um dado sinal é produzido, especificamente,
pela influência do número de mãos do sinal anterior e/ou posterior. Essa
influência é referida pelo autor como coarticulação, um fenômeno amplamente
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
123
atestado nas línguas orais e que consiste, justamente, na antecipação
(coarticulação antecipatória) ou perseveração (coarticulação perseveratória) de
características de um dado segmento da fala/sinalização durante a realização de
outro (KÜHNERT; NOLAN, 1999). Guiado por estudos sobre o mesmo processo
nas línguas orais, o referido autor também hipotetizou que o aumento na taxa de
sinalização, ou seja, o número de sinais por segundo, poderia desencadear ou
potencializar a influência do contexto fonético-fonológico sobre um dado sinal.
Para testas essas duas hipóteses, Xavier desenvolveu um experimento,
no qual três sinais da libras, a saber, PRECISAR, QUERER e JÁ, foram incluídos
em enunciados, nos quais controlou sistematicamente o número de mãos dos
sinais anterior e posterior (Quadro 1). Esses enunciados foram criados por duas
colaboradoras surdas e uma ouvinte nativa de libras e apresentados por meio de
glosas em português aos participantes do experimento em duas sessões, com
intervalo de 15 minutos entre elas. Na primeira sessão, não foi dada qualquer
instrução sobre a taxa de sinalização e, na segunda, foi solicitado aos
participantes que sinalizassem mais rapidamente.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
124
Quadro 1 Enunciados da libras em glosas em português empregados por Xavier (2014, 2016)
para testar a influência do contexto na variação do número de mãos dos sinais PRECISAR,
QUERER e JÁ da libras. Os parênteses em JÁ indicam a opcionalidade de sua realização em
posição pré e/ou pós-verbal.
Quadro 1 Enunciados da libras em glosas em português empregados por Xavier (2014, 2016) para testar a
influência do contexto na variação do número de mãos dos sinais PRECISAR, QUERER e JÁ da libras. Os
parênteses em JÁ indicam a opcionalidade de sua realização em posição pré e/ou pós-verbal.
A) PRECISAR
EU PRECISAR VIAJAR EUROPA
UMA MÃO UMA MÃO
Eu preciso viajar para a Europa.
EU PRECISAR MUDAR EUROPA
UMA MÃO DUAS MÃOS
Eu preciso me mudar para a Europa.
FAMÍLIA PRECISAR MUDAR EUROPA
DUAS MÃOS DUAS MÃOS
Minha família precisa se mudar para a Europa.
FAMÍLIA PRECISAR VIAJAR EUROPA
DUAS MÃOS DUAS MÃOS
Minha família precisa viajar para a Europa.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
125
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
126
C) JÁ
(a) REGRA FAMÍLIA (JÁ) EXPLICAR (JÁ)
UMA MÃO DUAS MÃOS
Eu já explique as regras.
(b) REGRA FAMÍLIA (JÁ) EXPLICAR (JÁ)
DUAS MÃOS DUAS MÃOS
A família já explicou as regras.
(c) CAMINHO EU (JÁ) ENSINAR (JÁ)
UMA MÃO DUAS MÃOS
Eu já ensinei o caminho.
(d) CAMINHO FAMÍLIA (JÁ) ENSINAR (JÁ)
DUAS MÃOS DUAS MÃOS
A família já ensinou o caminho.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
127
(e) FESTA EU (JÁ) DIVULGAR (JÁ)
UMA MÃO DUAS MÃOS
Eu já divulguei a festa.
(f) FESTA FAMÍLIA (JÁ) DIVULGAR (JÁ)
DUAS MÃOS DUAS MÃOS
A família já divulgou a festa.
(g) PIMENTA EU (JÁ) COMER (JÁ)
UMA MÃO UMA MÃO
Eu já comi pimenta.
Fonte: Adaptada de Xavier (2014, p. 106)
Por meio do software livre Eudico Language Annotator, Elan
3
, Xavier pôde
demarcar o início e o fim de cada enunciado e, com isso, obter sua duração em cada uma das
sessões. Os valores obtidos foram submetidos ao teste estatístico Mann-Whitney (α=0,5), o
qual indicou uma diferença significativa entre a duração média das produções com taxa
normal e das produções com taxa rápida.
Com base nisso, o referido autor observou se suas hipóteses se confirmaram ou não
para cada um dos quatro sujeitos que participaram de seu estudo: duas mulheres, AD e BL, e
dois homens, TC e MM, todos do estado de São Paulo e com idade entre 28 e 29 anos. No
caso de AD, por exemplo, a única nativa de libras dos quatro sujeitos analisados, o autor
3
Site para download: https://tla.mpi.nl/tools/tla-tools/elan/download/.
Fonte: Adaptada de Xavier (2014, p. 106)
Por meio do software livre Eudico Language Annotator, Elan
1
, Xavier
de demarcar o início e o fim de cada enunciado e, com isso, obter sua duração
em cada uma das sessões. Os valores obtidos foram submetidos ao teste
estatístico Mann-Whitney (α=0,5), o qual indicou uma diferença significativa entre
a duração média das produções com taxa normal e das produções com taxa
rápida.
1
Site para download: https://tla.mpi.nl/tools/tla-tools/elan/download/.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
128
Com base nisso, o referido autor observou se suas hipóteses se
confirmaram ou não para cada um dos quatro sujeitos que participaram de seu
estudo: duas mulheres, AD e BL, e dois homens, TC e MM, todos do estado de
São Paulo e com idade entre 28 e 29 anos. No caso de AD, por exemplo, a única
nativa de libras dos quatro sujeitos analisados, o autor reporta que, em suas
produções dos enunciados contendo os sinais PRECISAR e QUERER nas duas
taxas, ela não apresentou variação significativa. Em 97,5% das vezes, realizou os
referidos sinais com duas mãos, não exibindo, assim, sensibilidade a qualquer
dos contextos, tampouco ao aumento da taxa. Entretanto, em suas produções
dos enunciados contendo o sinal JÁ, AD apresentou sensibilidade ao contexto.
Conforme mostra o gráfico na figura 1, as produções do sinal em questão nos
contextos ‘d’, entre sinais bimanuais (2m_2m), e ‘g’, entre sinais monomanuais
(1m_1m), na taxa normal apresentou apenas, respectivamente, sua variante
bimanual e sua variante monomanual, como esperado.
Figura 1 – Frequência das variantes monomanual e bimanual de JÁ em diferentes contextos e nas
duas taxas de sinalização: normal (a) e rápida (b). Nos contextos, 1 e 2 indicam o número de
mãos e m é abreviação de mão.
(a) (b)
Fonte: Reproduzida de Xavier (2014, p. 114-115)
AD também apresentou sensibilidade ao aumento na taxa de sinalização
em dois casos. Como se pode observar ainda na figura 1, o sinal JÁ, quando
produzido no contexto ‘e’ na taxa normal, exibiu variação em seu número de
mãos, com uma pequena predominância da variante bimanual. Na taxa rápida,
essa variante passou a ser a única produzida. Assumindo-se que é um sinal
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
129
canonicamente monomanual, pode-se dizer que sua realização com duas mãos
em ambas as situações deve ter decorrido da coarticulação antecipatória, ou seja,
da antecipação do número de mãos do sinal seguinte, a qual foi potencializada
com o aumento da taxa. No contexto ‘c’, no entanto, vê-se o contrário
acontecendo: a influência do sinal seguinte, coarticulação antecipatória, diminuiu
com o aumento da taxa de sinalização, resultando em um aumento de produções
da variante monomanual, provavelmente por influência do número de mãos do
sinal anterior, ou seja, da coarticulação perseveratória.
Como dito anteriormente, a análise de cada um dos quatro sujeitos,
segundo Xavier, revelou comportamentos quase que únicos para eles. Como
mostra o quadro 2, os participantes de seu estudo variaram em função do sinal
para o qual demonstraram sensibilidade tanto para o contexto quanto para o
aumento na taxa de sinalização. Essa sensibilidade, por sua vez, também variou
em grau entre os sujeitos.
Quadro 2Comportamentos dos sujeitos analisados por Xavier (2014) na produção dos sinais
PRECISAR, QUERER e JÁ em diferentes contextos e em duas taxas de sinalização.
Fonte: Adaptado de Xavier (2014, p. 117)
O objetivo deste trabalho é (1) analisar um conjunto de dados, não
explorados por Xavier, mas coletados por ele no período em que realizou o
experimento acima descrito e (2) comparar os resultados com os reportados em