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ESTUDO PRELIMINAR DA TROCA DE DOMINÂNCIA EM LIBRAS
RESUMO: Apesar da simetria anatômica, a
ABSTRACT: Despite the anatomical
lateralidade cerebral resulta em uso
symmetry, the cerebral laterality results in
assimétrico das mãos também na
asymmetrical use of the hands also in
sinalização. Sinalizantes com dominância
signing. Signers with right-most lateral
lateral à direita, em geral, preferem sua mão
dominance generally prefer their right hand
direita para a realização de sinais
to produce one-handed signs, to initiate
canonicamente monomanuais, para o início
movement in balanced two-handed signs,
do movimento em sinais bimanuais
and to perform the active role in unbalanced
equilibrados e para o desempenho do papel
two-handed signs, that is, those performed
ativo em sinais bimanuais não-equilibrados,
with one of the hands serving as point of
ou seja, realizados com uma das mãos
articulation. In some situations, however,
servindo ponto de articulação. Em algumas
dominance shifting occurs. Precisely,
situações, no entanto, observa-se a troca de
signers are observed to use their non-
dominância. Precisamente, vê-se que os
dominant hand to perform typical functions
sinalizantes usam sua mão não-dominante
of the dominant hand in signing. The aim of
para desempenhar as funções típicas da
this paper is to investigate cases in which
mão dominante na sinalização. O objetivo
this phenomenon happens. For that, two
deste trabalho é investigar casos em que
retellings of the "Pear story" were analyzed
esse fenômeno ocorre. Para isso, foram
by two female deaf signers from the state of
analisadas duas contações da “História da
Sao Paulo. The results indicate that, for
pera” por duas sinalizantes surdas do
them, the motivations for the dominance
estado de São Paulo. Os resultados indicam
shifting were: spatial referentiality, co-
que para elas, as motivações para a troca
production of two signals or a combination
de dominância foram: a referencialidade
thereof.
espacial, a co-produção de dois sinais ou
uma combinação de ambas.
PALAVRAS-CHAVES:
Troca
de
KEYWORDS: dominance shifting. Spatial
dominância. Referencialidade espacial.
referentiality. Simultaneity.
Simultaneidade.
A preliminary study of dominance shifting in Libras
LORIANNY DE ANDRADE GABARDO
loory.love@gmail.com
ANDRÉ NOGUEIRA XAVIER
andre.xavier.unicamp@gmail.com
Recebido em 23/12/2019. Aprovado em 05/01/2019.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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1. INTRODUÇÃO
De acordo com Xavier (2014), as línguas de sinais diferem marcadamente
das línguas orais na sua modalidade de produção e percepção. Enquanto as
línguas orais são articuladas pelos órgãos do trato vocal e majoritariamente
percebidas pela audição, as línguas de sinais são produzidas por movimentos da
cabeça, dos músculos da face, dos membros superiores e do torso e percebidas
pela visão.
Apesar dessa diferença, muitas semelhanças entre esses dois conjuntos de
línguas são observadas, mesmo no nível da articulação. Como exemplo disso,
pode-se citar que tanto nas línguas orais quanto nas línguas de sinais a realização
concreta do significante linguístico envolve um articulador ativo e outro passivo, ou
seja, uma parte do corpo que se move em direção a outra, respectivamente. No
caso das línguas orais, o principal articulador ativo é a língua e os passivos são os
alvéolos, o palato, entre outros (SOUZA; SANTOS, 2003, p. 19). Já no caso das
línguas de sinais, os principais articuladores ativos são a(s) mão(s) e os passivos
compreendem regiões no corpo (cabeça, face, tronco, braços), na mão não-
dominante e no espaço em frente ao corpo (XAVIER, 2006).
O uso das mãos na sinalização apresenta semelhanças com seu emprego
na realização de outras atividades. Conforme explica Nascimento (2011), quando
escrevemos, usamos talheres, atendemos ao telefone, tendemos a usar mais uma
das mãos. O uso assimétrico das mãos resulta da lateralidade ou dominância,
descrita pela autora como segue:
De acordo com Pacher e Fisher
(2003) é de amplo
conhecimento que o hemisfério direito controla a metade
esquerda do corpo, ao passo que a outra metade é
controlada pelo hemisfério esquerdo. Segundo as autoras,
havendo dominância do hemisfério esquerdo, teremos um
indivíduo destrímano e quando ocorre a dominância do
hemisfério direito, teremos um indivíduo sinistrómano. De
acordo com Teixeira (2000), uma vez que o controle corporal
pelo córtex cerebral é predominantemente cruzado, o lado
corporal contrário ao hemisfério cerebral dominante tem
maior potencial de controle do que o lado corporal ipsilateral
(NASCIMENTO, 2011, p. 48-49).
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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Nascimento (2011, p. 49) reporta que, segundo a literatura, a lateralidade
pode se manifestar de quatro formas principais:
(1) Destralidade verdadeira: a dominância lateral à direita e preferência pelo uso
dos membros direitos;
(2) Sinistralidade verdadeira: dominância lateral à esquerda e preferência pelo uso
dos membros esquerdos;
(3) Falsa sinistralidade: adoção da sinistralidade por conta de uma paralisia ou
amputação;
(4) Falsa destralidade: inverso da falsa sinistralidade.
Além desses quatro tipos, a autora também menciona a existência de outras
possibilidades. Segundo ela, a lateralidade ou dominância pode se apresentar
“cruzada, na qual há discordância estabelecida entre o lado preferencial utilizado
pelo membro superior e inferior, ou entre olho e membros; ambidestra, em que as
tarefas são realizadas com habilidade similar por ambos os membros; e
lateralidade mal definida, quando não há estabelecimento da utilização preferencial
dos segmentos do corpo”. (NASCIMENTO, 2011; p. 50).
A respeito da preferência por uma ou outra mão, Nascimento reporta que:
Teixeira (2006) em sua fala acrescenta que, a definição da
preferência manual é predominantemente empregada através
da forma da escrita, que segundo o autor seria uma maneira
simplória de classificar a preferência manual em uma única
tarefa, visto que, a escolha de uma das mãos deve ser
observada em graus variados de acordo com a tarefa motora.
O autor também nos diz que o indivíduo pode apresentar
preferência para uma das mãos para executar tarefas como
escrever e em contrapartida usar a outra mão
preferencialmente em outras tarefas motoras de naturezas
distintas. Ratifica ainda que, se um indivíduo possui uma
clara preferência lateral em uma tarefa, isto não significa que
seu desempenho motor também seja melhor do lado
preferido (NASCIMENTO, 2011, p. 50).
Considerando-se que as línguas de sinais têm as mãos como seus
principais articuladores ativos e que os sinais, conforme aponta Xavier (2014),
podem ser articulados com uma ou as duas mãos, a lateralidade ou dominância
influenciará sua articulação. Segundo Battison (1978), os sinalizantes tendem a
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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preferir sua mão dominante, direita ou esquerda, para produção de sinais
canonicamente monomanuais, para iniciar o movimento em sinais bimanuais
equilibrados e para desempenhar o papel ativo em sinais bimanuais não-
equilibrados, isto é, em sinais realizados com uma mão em movimento, portanto
ativa, e com a outra parada, logo, passiva. Apesar disso, o autor menciona que, em
certas circunstâncias, sinalizantes invertem o uso das mãos. Esses casos são por
ele designados troca de dominância e, basicamente, consistem no uso da mão
não-dominante para desempenhar papéis típicos da mão dominante.
Este trabalho objetiva investigar a troca de dominância na Libras.
Precisamente, por meio da análise da contação de uma mesma história por duas
sinalizantes, pretende-se aqui identificar casos em que elas empregam sua mão
não-dominante no lugar de sua mão dominante, bem como levantar hipóteses
sobre as razões que subjazem a esse fato.
Na próxima seção, será apresentada uma breve revisão dos processos
relacionados com o uso das mãos durante a sinalização, como forma de
contextualizar a troca de dominância entre eles. Na sequência, será descrita a
metodologia de coleta e análise de dados. Por fim, serão reportados os resultados,
seguidos das considerações finais.
2. REVISÃO DE LITERATURA
Os itens lexicais das línguas de sinais são majoritariamente articulados
pelas mãos1 (XAVIER, 2006). Estas, por sua vez, podem ser descritas como
dominante ou não-dominante e ativa ou passiva. A mão dominante é, em geral, a
preferida pelo sinalizante para realizar sinais canonicamente realizados com uma
mão, para iniciar o movimento em sinais tipicamente feitos com duas mãos em
movimento e para desempenhar o papel de mão ativa em sinais feitos com uma
mão de apoio. A mão não-dominante, por sua vez, em geral, é preterida para as
mesmas funções. Caracteriza-se como ativa a mão que apresenta movimento e
passiva a que fica parada, servindo de ponto de articulação para a ativa (XAVIER,
2014). Pode-se ainda referir-se às mãos como direita ou esquerda, oposição que,
segundo Battison (1978), não é fonologicamente distintiva nas línguas sinalizadas.
1 De acordo com Xavier (2006), há pouquíssimos itens lexicais produzidos unicamente por meio de
movimentos de partes da face.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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Sendo assim, isoladamente, os sinais, itens lexicais das línguas de sinais,
podem ser caracterizados como mono ou bimanuais. Seguindo Xavier (2014), entre
os segundos, há aqueles que são produzidos com duas mãos ativas, denominados
como sinais equilibrados, e aqueles executados com uma mão ativa e outra
passiva, designados como sinais não-equilibrados.
Em contexto, de acordo com o referido autor, observam-se alguns processos
relacionados ao uso das mãos que podem afetar essa caracterização. Entre esses
processos estão a antecipação e a perseveração, os quais consistem,
respectivamente, em antecipar e perseverar a realização de um sinal, ou parte
dele, com a mão não-dominante, durante a produção de outro(s) sinal(i)s com a
mão dominante. Como exemplo de antecipação, pode-se citar a produção com a
mão esquerda de parte do sinal ÁRVORE, durante a realização do sinal HOMEM
(Figura 1a). Conforme indicam as imagens na figura 1b, esse sinal compõe a
estrutura seguinte, na qual se descreve um homem subindo a árvore.
Figura 1 - Exemplo de antecipação extraído da contação da história da pera por SN
(a)
(b)
Fonte: Corpus desta pesquisa
Como exemplo de perseveração, pode-se citar a produção com a mão
esquerda de parte do sinal BICICLETA. Após a sua realização plena (Figura 2a),
conforme indicam as imagens, a sinalizante mantém parte do referido sinal, porque
ele integra a construção MONTAR-NA-BICICLETA (Figura 2b).
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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Figura 2 - Exemplo de perseveração extraído da contação da história da pera por RA
(a)
(b)
Fonte: Corpus desta pesquisa
Além desses processos, Xavier também cita o espelhamento, a
simultaneidade, a duplicação e a unificação. No espelhamento, observa-se a mão
em repouso ou parcialmente retraída copiando as características e os movimentos
da mão em movimento. Isso acontece no exemplo da figura
3, em que a
sinalizante, apesar de fazer referência a uma única pessoa caminhando, apresenta
a outra mão, parcialmente retraída, espelhando as características da mão que
articula o sinal PESSOA-ANDAR.
Figura 3 - Exemplo de espelhamento extraído da contação da história da pera por RA
Fonte: Corpus desta pesquisa
A simultaneidade, por sua vez, ocorre quando se articulam dois sinais ao
mesmo tempo, ou quando a mão não-dominante realiza uma parte de um sinal
anterior ou seguinte, enquanto a mão dominante produz outro sinal. No exemplo a
seguir, na figura 4, a sinalizante produz, simultaneamente, os sinais CONTINUAR,
com a mão direita, e TRABALHAR, com a mão esquerda.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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Figura 4 - Exemplo de simultaneidade extraído da contação da história da pera por SN
Fonte: Corpus desta pesquisa
Dado que o sinal TRABALHAR é canonicamente bimanual, para ser
simultaneamente produzido com outro, ele precisou sofrer unificação. Segundo
Xavier, por meio desse processo, sinais tipicamente realizados com duas mãos
passam a ser produzidos com uma. O processo contrário também pode ocorrer, ou
seja, sinais normalmente produzidos com uma mão podem ser articulados com
duas, sofrendo assim o que o autor designou como duplicação. Como exemplo de
duplicação, pode-se citar o sinal PEGAR, que, embora seja canonicamente
monomanual, provavelmente por referir-se a vários eventos de pegar, foi realizado
com duas mãos (Figura 5) (SANCHEZ-MENDES; XAVIER, 2016).
Figura 5 - Exemplo de duplicação extraído da contação da história da pera por SN.
Fonte: Corpus desta pesquisa
Por fim, Xavier cita a troca de dominância, foco de interesse deste trabalho.
Como explicado na seção anterior, esse processo consiste no uso da mão não-
dominante para desempenhar papéis típicos da mão dominante durante a
sinalização, a saber, realização de sinais monomanuais (Figura 6a), o início do
movimento em sinais bimanuais equilibrados (Figura 6b) e atuação como mão ativa
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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em sinais bimanuais não-equilibrados (Figura 6c). Os exemplos a seguir mostram
os mesmos sinais sendo produzidos por diferentes mãos em contextos diferentes,
ilustrando, assim, o processo em discussão.
Figura 6 - Exemplo de duplicação extraído da contação da história da pera por RA
(a) HOMEM
(b) BICICLETA
Fonte: (a) e (b): Corpus desta pesquisa. (c): Corpus de Xavier (2014)
No presente estudo, objetiva-se identificar casos de troca de dominância em
duas contações da “História da pera” por duas sinalizantes surdas do estado de
São Paulo, bem como levantar hipóteses para a sua ocorrência.
3. METODOLOGIA
Sujeitos
Os dados analisados neste trabalho resultam da contação em Libras da
“História da pera”, a ser descrita na subseção a seguir, por duas sinalizantes
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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surdas bilíngues (libras e português). Uma, daqui em diante referida como SL, tinha
44 anos quando foi filmada contando a referida história e a outra, RA, 42. Ambas
nasceram em famílias ouvintes e, consequentemente, aprenderam libras
tardiamente: a primeira aos seis e a segunda aos sete anos de idade. As duas
passaram a infância e a juventude na cidade de São Paulo. Atualmente, apenas
uma reside nessa cidade. A outra morava há aproximadamente 6 anos em
Indaiatuba, interior do estado de São Paulo, quando participou da filmagem. As
duas sinalizantes têm formação superior e atuam como professoras de libras para
ouvintes.
Dados
As contações da “História da pera” aqui analisadas fazem parte do acervo
pessoal de Xavier. Elas foram coletadas em
2012 no estúdio da Federação
Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS) de São Paulo. A coleta
consistiu, primeiramente, em sessões individuais, na apresentação através de um
notebook do vídeo “História da pera”2 para SN e RA. A isso seguiu a contação em
Libras por cada uma delas para o pesquisador, ouvinte, mas usuário de libras, que
a registrou em vídeo.
4. ANÁLISE
2 A “História da pera” consiste em uma história encenada e filmada sem linguagem verbal. Ela tem
duração de seis minutos e foi produzida na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 1975, pelo
professor Wallace Chafe. O referido professor a utilizou para eliciar narrativas em diferentes línguas.
Entre nós, há pesquisadores empregando-a para eliciar narrativas em Libras (McCLEARY; VIOTTI,
2007; McCLEARY et al., 2010). Resumidamente, o filme se inicia com um homem subindo em uma
árvore para coletar peras. Passados uns minutos, aparece um garoto com sua bicicleta, o qual se
depara com as cestas. Disfarçadamente, pega uma cesta e a coloca em sua bicicleta, saindo de
fininho. Durante seu trajeto pela estrada, o menino se distrai e tropeça numa pedra e derruba a
cesta roubada. Com isso, aparecem três garotos que o ajudam a se levantar e a colocar todas as
peras em sua cesta novamente. Ele vai embora numa direção e os meninos em outra. Porém, estes
encontram o chapéu do menino da bicicleta que havia caído e dão um grito para chamá-lo. Eles o
entregam ao menino e, em forma de agradecimento, este lhes dá uma pera. Ao descer da árvore, o
homem que coletava peras olha para as cestas e repara que está faltando uma. Logo depois, os
três garotos passam por ele. O homem os olha fixamente e, pensativo, coça a cabeça. A história
pode ser acessada através do link: http://pearstories.org/pears_video.htm.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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A análise das contações da “História da pera” se deu por meio do software
livre Eudico Language Annotator, ELAN3, o qual permite, entre outras coisas, a
realização de anotações sincronizadas ao vídeo. Essa anotação foi realizada em
duas trilhas: uma para anotar os sinais produzidos pela mão dominante e outra
para anotar os realizados pela mão não-dominante, como ilustra a figura 7.
Figura 7 - Tela do ELAN contendo as duas trilhas de anotação
Fonte: Produzida pelos autores
Os sinais, por sua vez, foram transcritos por meio de glosas, seguindo as
convenções de Felipe e Salermo (2001, p.24). As convenções empregadas na
transcrição deste trabalho são listadas no quadro 1, a seguir:
Quadro 1 - Convenções para a glosa de sinais
CONVENÇÃO
EXEMPLO
Nome do sinal com apenas
Letras maiúsculas
ARRUMAR, SUMIR
uma palavra
Nome do sinal com mais de
Unidas por hífen
PEGAR-CESTA, COLOCAR-
uma palavra
CESTA
Marca de gênero
Substituída pelo @
BAIX@
Forma verbal
Uso do infinitivo
ARRUMAR, SUMIR
Fonte: Adaptada de Felipe e Salermo (2001)
3 Link: https://tla.mpi.nl/tools/tla-tools/elan/download/
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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5. RESULTADOS
Foi realizado um levantamento de todos os sinais monomanuais, bimanuais
equilibrados e bimanuais não-equilibrados produzidos por cada uma das
sinalizantes, objetivando determinar a mão preferida para a sinalização de ambas,
logo, a dominante, e, com base nisso, identificar os casos em que ocorre a troca de
dominância. Precisamente, contabilizou-se com qual mão o sinal monomanual foi
articulado, qual mão iniciou o movimento em sinais bimanuais equilibrados e qual
mão desempenhou o papel ativo em sinais não-equilibrados. Na contagem desses
dados, não se distinguiram as produções de sinais diferentes das recorrências de
um mesmo sinal.
Os resultados desse levantamento são apresentados nas figuras 8 e 9. Eles
sugerem que ambas as sinalizantes têm dominância à direita, uma vez que
preferem a mão direita para realizar sinais monomanuais, para iniciar o movimento
de sinais bimanuais e para desempenhar o papel ativo de sinais não-equilibrados4.
Figura 8 - Uso das mãos por SN por tipo de sinal
Fonte: Produzida pelos autores
4 Sinais bimanuais equilibrados em que ambas as mãos iniciam o movimento conjuntamente ou em
que a mão direita inicia o movimento foram reunidos no mesmo grupo e sua contagem contrastada
com a de sinais bimanuais equilibrados com movimento iniciado pela mão esquerda. Tanto entre
esses sinais, quanto entre os não-equilibrados, foram contabilizados casos de unificação, ou seja,
casos em que sua realização foi apenas com uma mão.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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Figura 9 - Uso das mãos por RA por tipo de sinal
Fonte: Produzida pelos autores
Diante desses resultados, entende-se que troca de dominância ocorreu
justamente quando as funções típicas da mão dominante foram desempenhadas
pela mão esquerda na produção dos sinais acima referidos. Do ponto de vista
quantitativo, as sinalizantes não diferem muito entre si em relação à ocorrência
desse fenômeno.
A análise dos 56 casos de troca de dominância sugere quatro motivações
principais para sua ocorrência: (1) a referencialidade espacial, (2) a simultaneidade,
(3) uma combinação de (1) e (2) e (4) o ambiente fonológico. A referencialidade
espacial diz respeito à disposição de eventos e referentes no espaço de sinalização
e a consequente partição do corpo, refletida no uso das mãos direita e esquerda
para referência a espaços contíguos (LIDDELL, 2003). No exemplo apresentado na
figura 10a, SN estabelece para a referência da menina da “História da pera” uma
localização à sua esquerda, por meio de um apontamento também realizado com a
mão esquerda. Após isso, ela reporta o que aconteceu com a personagem em
discussão, sinalizando com a mão esquerda. Algo muito parecido acontece no
exemplo apresentado na figura 10b. Como mostram as imagens, RA emprega sua
mão esquerda para referir-se tanto ao menino da bicicleta quanto à localização,
também à esquerda, e às ações, relacionadas a ele no espaço de sinalização.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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Figura 10 - Exemplos de troca de dominância motivada pela referencialidade espacial
apontamento
MULHER
IR-EMBORA
(a)
HOMEM
BICLETA
CHAPÉU
apontamento
BICICLETA
VIR
(b)
Fonte: Extraída do corpus desta pesquisa
A simultaneidade, por sua vez, se refere à produção de dois sinais ao
mesmo tempo, um em cada mão (VERMEERBERGEN, 2007). Interessam-nos aqui
casos em que a mão não-dominante desempenha o papel de mão ativa, enquanto
a mão dominante se mantém estacionária realizando outro sinal ou parte de outro
sinal. Como ilustração desse caso, pode-se citar a produção de RA (Figura 11), na
qual a sinalizante mantém a articulação do sinal SEGURAR-PERA na mão direita e
produz, com a mão esquerda, o sinal LIMPAR.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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Figura 11 - Exemplo de troca de dominância motivada pela simultaneidade
mão direita: DAR-PERA--------------------------------- SEGURAR-PERA----------------------------------------
mão esquerda: SEGURAR-PERA--------------------------------------------------
LIMPAR
Fonte: Extraída do corpus desta pesquisa
Já a combinação entre a referencialidade espacial e a simultaneidade diz
respeito a situações em que a mão dominante continua articulando um sinal
anterior e, com isso, “força” a realização de outros com a mão não-dominante.
Porém, diferentemente do caso anterior, isso ocorre porque a localização no
espaço de sinalização do sinal articulado com a mão dominante parece ser muito
relevante para a sua referenciação. Pode-se citar como exemplo de casos desse
tipo a produção de SN (Figura 12a), na qual a localização do sinal PERA à direita
do espaço de sinalização decorre da organização do cenário do evento descrito.
Precisamente, a pera que está fora da cesta está à direita desta. A contiguidade da
mão direita a essa localização certamente levou a sinalizante a utilizá-la na
realização do sinal PERA e, por indisponibilidade desta, a realizar simultaneamente
com a esquerda o sinal SOBRAR. Já no exemplo produzido por RA (Figura 12b), a
disposição da árvore à direita no espaço de sinalização no momento de
composição do cenário da história deve ter levado a sinalizante a manter parte do
sinal ÁRVORE à direita e a empregar a mão esquerda para se referir ao homem
subindo a árvore.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
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Figura 12 - Exemplos de troca de dominância motivada tanto pela referencialidade espacial quanto
pela simultaneidade
mão direita:
COLOCAR-PERA-CESTA
UM
PERA
mão esquerda:
CESTA------------------------------------------------
SOBRAR
mão direita:
ÁRVORE------------------------------------------
mão esquerda:
ÁRVORE
HOMEM-SUBIR-ÁRVORE
(b)
Fonte: Extraídas do corpus desta pesquisa
Por fim, o ambiente fonológico parece ser a motivação para a troca de
dominância em alguns casos. Como sugerem as imagens na figura 13a, SN inicia o
movimento do sinal bimanual equilibrado seguinte, CORRER, com a mão esquerda
provavelmente, porque ela já estava ativa, realizando o apontamento sobre a mão
direita, passiva, na construção anterior. O mesmo parece explicar a realização com
a mão esquerda de ABANAR (Figura 13b) por RA. Como indicam as imagens, esse
sinal é produzido logo após o sinal PEGAR-PERA, também articulado pela mão
esquerda, enquanto a mão direita realiza um outro sinal, a saber, SEGURAR-
BOLSO-DO-AVENTAL, durante todo esse fragmento.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
85
Figura 13 - Exemplos de troca de dominância motivada pelo ambiente fonológico
mão direita:
TRÊS
CORRER
mão esquerda:
apontamento
CORRER
(a)
mão direita:
PEGAR-PERA
ABANAR
mão esquerda:
SEGUARAR-BOLSO-DO-AVENTAL
(b)
Fonte: Extraídas do corpus desta pesquisa
Essas quatro motivações abrangem
98% dos dados analisados neste
trabalho. Para 2% deles, no entanto, não foi identificada motivação para troca de
dominância, conforme se pode ver na figura 14.
Figura 14 - Frequência das diferentes motivações para a troca de dominância por sinalizante
98%
2%
Fonte: Produzida pelos autores
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
86
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste estudo foi investigar casos de troca de dominância na
Libras e levantar possíveis motivações para sua ocorrência. Para isso, o estudo
analisou duas contações da “História da pera” por duas sinalizantes surdas do
estado de São Paulo. A partir da contagem da frequência de uso das mãos na
articulação de sinais monomanuais, no início do movimento de sinais bimanuais
equilibrados e no desempenho do papel ativo de sinais bimanuais não-equilibrados
foi possível determinar qual a mão preferida das sinalizantes e, assim, identificar os
casos de troca de dominância.
Esses casos foram examinados em seu contexto e, com base nisso,
levantaram-se quatro motivações para o uso da mão não-dominante no
desempenho de funções típicas da mão dominante. A primeira delas diz respeito à
referencialidade espacial, fator que pode resultar na partição do corpo e emprego
das mãos direta e esquerda para referirem a entidades e eventos espacialmente
contíguos. A segunda motivação, por sua vez, se refere à simultaneidade, ou seja,
à co-produção de dois sinais, um em cada mão. Já a terceira se vincula a uma
combinação da referencialidade espacial com a simultaneidade. Em outras
palavras, observou-se que em alguns casos o uso da mão não-dominante para
realizar outros sinais foi motivado pela indisponibilidade da mão dominante que
articulava um sinal ou uma parte de um sinal em uma localização referencialmente
relevante para ele. Por fim, a quarta, se relaciona com o ambiente fonológico, ou
seja, com o fato de o sinal anterior ter sido realizado com a mão não-dominante e,
por um processo de coarticulação perseveratória (XAVIER, 2014), o seguinte
também o ser.
Embora essas quatro motivações, segundo a análise aqui apresentada,
abranjam 98% dos dados, 2% não parecem ter razões muito claras para a troca de
dominância, requerendo, assim, estudos adicionais.
Estudos como o reportado neste trabalho são de grande importância para
um melhor entendimento da gramática da libras, o que, consequentemente,
embasará o desenvolvimento de métodos e materiais didáticos para o ensino
dessa língua tanto como L1 para surdos, quanto como L2 para ouvintes.
“Surdez e aquisição de línguas” v. 7, n. 2, maio-ago., 2019.
87
REFERÊNCIAS
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In: LIMA-SALLES, H. (Org.). Bilingüismo dos surdos: Questões lingüísticas e
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transcrição dos dados. Alfa, v. 54, p. 265-289, 2010.
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Distintas Tarefas Motoras: Estudo em Idosos Institucionalizados. Porto:
Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Desporto da Universidade
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