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AS ENGRENAGENS DA NARRATIVA:
SEMELHANÇAS NA CONSTRUÇÃO DA CANÇÃO
DOMINGO NO PARQUE, DE GILBERTO GIL, E DO CONTO
A CARTOMANTE, DE MACHADO DE ASSIS
Ezequias Silva Santos
zekyjohnson@hotmail.com
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RESUMO: Observando os apontamentos de autores vinculados à área das interartes, como
Claus Clüver, e autores relacionados à teoria musical, como Bohumil Med, nosso propósito
é aproximar os textos A cartomante, de Machado de Assis, e a canção Domingo no Parque,
de Gilberto Gil, sobre o prisma comparativo. Preliminarmente, iremos observar os focos
narrativos do conto e da canção numa tentativa de constatar as semelhanças no modo de
construção dos textos; a título de conclusão, abordaremos os assassinatos das personagens
pondo em voga a trama amorosa e as engrenagens da narrativa que estruturam o crime num
contexto social e psicológico.
Palavras-chave: Interartes. Machado de Assis. Gilberto Gil.
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O autor:
Mestrando do curso de Letras na área de Literatura Portuguesa na Universidade
Tecnológica do Paraná campus Pato Branco.
Como citar este artigo:
SANTOS, E. S. As engrenagens da narrativa: semelhanças na construção da canção
Domingo no parque, de Gilberto Gil, e do conto A cartomante, de Machado de Assis.
Revista Diálogos, v. 7, n. 1, 2019.
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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Partindo das premissas que ancoram os estudos das interartes, nossa proposta é
analisar, por meio comparativo, as engrenagens narrativas que subsidiam e alimentam a
história do crime passional na música Domingo no parque, de Gilberto Gil, e o conto A
cartomante, de Machado de Assis. Guardadas as proporções que diferem música e
literatura, nosso propósito é observar como se desenrola a trama nas duas narrativas
considerando o suporte de cada texto (livro e música) no processo da análise.
A ideia de aproximar a música e o conto pelo método comparativo tem como
respaldo o conceito de interarte cunhado por Claus Clüver (2006, p. 15). Segundo o teórico
“[...] uma obra de arte é entendida como uma estrutura sígnica geralmente complexa , o
que faz com que tais objetos sejam denominados “textos”, independente do sistema sígnico
a que pertençam [...]”.
Ainda por essa linha de raciocínio, Adorno Theodor, na obra Fragmento sobre
música e linguagem, observa que
A música é análoga ao discurso não apenas como conexão organizada de
sons, mas também porque há uma semelhança com a linguagem no modo
de sua estrutura concreta. A doutrina musical tradicional da forma
[Gestalt] instrui sobre oração, frase, período, pontuação; interrogação,
exclamação, parênteses; orações subordinadas são encontradas por toda
parte, vozes ascendem e descendem, e em todas elas o gestus da música é
emprestado da voz que fala. Quando Beethoven indica que uma das
bagatelas do op. 332 seja executada "com consciente expressão falante",
ele tão-somente explicita um momento onipresente da música ao refleti-lo
(THEODOR, 2008, s/p).
Nesse sentido, a aproximação entre os textos de Machado de Assis e Gilberto Gil é
afiançada por uma concepção dialética que ampara o modo de construção da língua e dos
sons. Se optarmos por um olhar de cunho filosófico, Herbert Spencer (1820-1903)
favoreceu a origem comum de música e linguagem, propondo uma teoria fisiológica para
explicar sua função primária comum: expressar emoções” (BARBOSA, 2014, p. 387).
Diante disso, a correlação entre música e linguagem se através de arquétipos
(modelos) que transmitem informações. Segundo Chandrasekaran (2009), a altura
1
e o
código de intervalos
2
são indispensáveis para a criação da melodia, o produto final da
1
Código de contorno envolvendo mudanças de direção de altura entre sons sucessivos.
2
Relação entre tons sucessivos numa escala musical.
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música. No que se refere à linguagem, ainda segundo o autor, (2009, et al., 2009, p. 1) a
variação melódica pode ser um sinal de contrastes prosódicos em diferentes níveis de
representação linguística, ou seja, sílaba, palavra e frase.
2. DOMINGO NO PARQUE E A CARTOMANTE: A CONSTRUÇÃO DO TEXTO E
DAS PERSONAGENS
Feitos esses apontamentos de cunho introdutório, é pertinente constatar, num
primeiro momento, que a versão da música Domingo no parque que pretendemos analisar
está disponível na plataforma youtube e poderá ser encontrada através do link disposto nas
referências. O motivo da escolha se justamente pela importância do acompanhamento
musical feito pela orquestra sinfônica da Bahia, sendo que esta releitura da música de Gil
adorna nossa análise e nos permite aproximar a representação do suspense nas obras
através da palavra e da música. Para respaldar esse pensamento, Michael Pilhofer e Holly
Day anotam, em Teoria musical para leigos, que
Os conceitos e as regras que compõem a teoria musical são bem
parecidos com as regras gramaticais que governam a linguagem escrita,
que também surgiram após as pessoas terem aprendido com sucesso
como conversarem umas com as outras (2013, p. 26).
Isso posto, é pertinente observar que algo muito similar na temática da música
de Gil e do conto de Machado. As duas narrativas apresentam um caso amoroso entre três
personagens, dois homens e uma mulher, e ambas culminam para um fim trágico e um
tanto surpreendente. A primeira ideia que quero destacar é a ideia de tempo extra narrativo.
A música de Gil, lembrando sempre essa versão específica, tem uma duração de
aproximadamente quatro minutos e quinze segundos que não podem, logicamente, serem
alterados.
A leitura do conto de Machado, por sua vez, na voz de Leonardo Rossi, -se em
aproximadamente vinte e cinco minutos.
3
O que queremos expressar aqui é a ideia da
diferença de tamanho entre os textos, carecendo de uma técnica apurada na construção da
música que desenvolve uma tragédia de forma magistral em um curto espaço de tempo.
Toda construção de personagens, espaço e tempo assim como o clímax da música e a
conclusão são concebidos em aproximadamente três minutos, posto que o minuto e pouco
restante é preenchido pela introdução instrumental.
3
A versão do conto A cartomante utilizada para apoio encontra-se no site www.poeteiro.com, com sua
versão no YouTube no canal Iba Mendes.
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O conto A cartomante, com dez páginas na edição da editora Nova Fronteira
(2016), evidencia certa despreocupação com um número limite de páginas (afinal a
literariedade do texto não poder medida pelo número de ginas ou vocábulos) resultando
num conto adequadamente longo e satisfatoriamente conciso. Nesse sentido, o primeiro
traço comparativo sobrevém da ordinariedade dos gêneros que apresentas em seus suportes
alguns limiares de caráter diretriz. Por essa linha de raciocínio, não seria pertinente que a
música de Gil excedesse um tempo de cinco ou seis minutos, pois dessa forma o texto
estaria, sob um prisma conservador, em desacordo com o suporte.
Em virtude dessa restrição de tempo, Gil lança mão de uma abertura musical que
funciona como apresentação/introdução do texto verbal. O que é admirável notar é a
primazia com que se constrói esta abertura: um berimbau que toca em ritmo de capoeira as
notas E (mi maior) e D (ré maior). A engenhosidade dessa construção (o berimbau tocando
as notas mi e durante um compasso inteiro de tempo), apresenta uma carga significativa
muito intensa.
4
Num primeiro momento, cabe atentar que o berimbau é um instrumento tipicamente
africano que foi adotado pela cultura brasileira juntamente com a capoeira. O compasso
inicial preenchido pelas notas isoladas do berimbau sugere um tom de artimanha que beira
à cilada. Para afiançar esse pensamento, observamos que “O componente básico desse
estilo (de luta) é a malícia. Essa ‘malandragem’ consiste em simular movimentos que
sirvam de engodo ao oponente em combate” (DIANA, 2017).
Nesse sentido, as notas introdutórias do berimbau insinuam certa malandragem e
salientam o tom ardil da música, propagando uma ideia antagônica que será confirmada,
através da letra, pela rivalidade entre João e José. No segundo compasso juntam-se ao
berimbau as cordas e os sopros que soam as notas D (ré) A (lá) B (si), repetindo quatro
vezes os acordes até o fim do segundo compasso e essa união das cordas e sopros com o
berimbau parece nutrir e consolidar o teor “malandro” da música.
Essa construção musical, propositalmente antagônica, afiança a ideia de confronto e
rivalidade quando observamos que o segundo compasso, marcado pela melodia das cordas
que contrapõe o berimbau, se enquadra na teoria dos “compassos equivalentes
antagônicos”, apresentando frases musicais de resposta à base fundamentada pelo
4
O compasso é a divisão de um trecho musical em séries regulares de tempo.
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berimbau.
5
Dessa forma, esse compasso antagônico “produz o efeito de deslocamento das
acentuações naturais e provoca uma sensação de diálogo entre o berimbau e as cordas.
(Bohumil, 1996 p. 143).
No terceiro compasso, ao fim da introdução, têm-se os seguintes versos:
O rei da brincadeira
Ê, José!
O rei da confusão
Ê, João!
Um trabalhava na feira
Ê, José!
Outro na construção
Ê, João! (GIL, 2014).
Uma vez que a atmosfera da música já foi criada pelo berimbau, o eu-lírico fornece
uma descrição profunda da psique das duas personagens. Novamente cabe observar que
um traço genial no método de composição. A vogal ê”, que marca o contratempo do
compasso, assemelha-se a ideia de roda de capoeira e funciona, de modo uniforme, como
substituição do artigo definido “onos versos. Para que fique mais claro esse raciocínio,
podemos propor os mesmos versos da seguinte forma:
O rei da brincadeira (o José)!
O rei da confusão (o João)!
Um trabalhava na feira (o José)!
Outro na construção (o João)!
Nesse sentido, a alteração do artigo “o” pela vogal “ê” propicia uma combinação
sonora que evoca as rodas de capoeira ao mesmo tempo que aponta para os sujeitos
marcando-os como rei da brincadeira e rei da confusão. Em quatro versos é possível
distinguir as peculiaridades das duas personagens através do temperamento forte de João
(rei da confusão) e do bom humor do José (rei da brincadeira).
Não obstantes tais características distintas, uma descrição psicológica evidente
transmitida pela ideia do ofício das duas personagens. Diante disso, a ideia de rei da
brincadeira em José se configura pelo modo de proceder no trabalho. Como feirante, José
5
Compassos equivalentes antagônicos quando as unidades de tempo não coincidem.
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depende do diálogo com o consumidor, do bom humor, da pechincha e de outros
fundamentos que formam o rótulo popular do bom feirante.
João, por sua vez, percorre o caminho contrário. Inversamente ao bom humor de
José, a personagem é grande causadora de intriga. Sob essa perspectiva, o rei da confusão é
concebido através da associação com o trabalho desgastante na construção: o
temperamento de João vincula-se à repetição do ato bruto e pesado de construir.
Metaforicamente, a dureza do concreto e da construção se reflete no temperamento da
personagem. A forma objetiva no processo de construir, o trabalho com materiais duros e a
transformação da massa em concreto espelham a rudez de João que se exprime através da
discussão, discórdia e confusão.
Em A cartomante, o processo de construção das personagens se de uma maneira
minuciosa, mas não menos objetiva. Observa-se que o narrador sente necessidade de
esclarecer o passado nubloso das personagens de para concebê-las num âmbito
idiossincrático:
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação
das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância.
Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo,
contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e
Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego
público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara
com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir
banca de advogado. (ASSIS, 2016, p. 378).
Ainda que haja uma diferença no tamanho dos textos, o método de construção das
personagens em A cartomante segue um processo muito parecido com o de Domingo no
parque. Verifica-se que o envolvimento de Vilela com a carreira de magistrado lhe atribui
uma ideia de empoderamento afirmada pela cosmovisão da própria personagem que rotula
sua mulher como “formosa e tonta”. Nesse sentido, fortes marcas de hostilidade
inerente no caráter da personagem que invoca os moldes do patriarcalismo vigente no
século XIX.
De igual forma, as ações de Camilo justificam-se pela sua decisão de juntar-se ao
funcionalismo. Ele é a representação de uma tipologia de ser que parece estar fadado a
pertencer ao baixo escalão social. Não entrou na medicina, como era a vontade do pai, e
limitou-se a um cargo público arranjado pela mãe. É pertinente observar que certa
despreocupação nesse modo de viver da personagem. Levando em conta a sutilidade de
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Machado nas construções de seus textos, parece-me ser verdadeiro afirmar que a tibieza de
caráter de Camilo justifica a rendição da personagem aos encantos sedutores de Rita.
Quanto a esta última, o conceito de moça “tonta” subsidia uma ideia desconstrutiva
que resultará numa inversão do papel inteligente de Vilela e de “tontisse” da mulher. Rita é
a típica donzela do século XIX que se ocupa em namoros às escondidas para
contrabalancear o modo apático da vida matrimonial. A perspectiva do marido em ver a
mulher sob o prisma do patriarcalismo serve como lenha para que a mulher encontre no
amante as virtudes do amor que não encontrara no marido. No fim das contas, o
magistrado parece ser vítima das artimanhas da mulher tonta e de um amigo cuja existência
no meio social era insignificante.
Nesse cenário, as construções das personagens figuram através de um método
analítico profissional e do modo comportamental das personagens diante desses afazeres.
Com efeito, o quadro das personagens se restringe à relação de dependência entre ofício
(feirante, magistrado, construtor e funcionalista) e amizade. O discorrer das obras se apoia
na vinculação afetiva entre as personagens e desencadeia uma série de fatores decorrentes
desse vínculo entre trabalho e estado psíquico.
Diante disso, o primeiro ponto de contato entre os textos efetua-se pela
aproximação da técnica de composição usada pelos autores que sugere a tibieza do caráter
de Camilo, a truculência de João, o bom humor de José e a desconfiança de Vilela. Esse
modo similar no que diz respeito à construção das personagens, amparados por seus
respectivos suportes, denota certa equivalência na estratégia de composição que se
assemelha pelo procedimento criativo das personagens e pela descrição da psique retratada
e representada pelo trabalho.
3. A RODA GIGANTE E O BILHETE: AS ENGRENAGENS DA NARRATIVA
Não obstante a história de Domingo no parque se aproximar de forma muito
peculiar a de A cartomante, a técnica de composição dos dois textos se apoia num pilar
estrutural muito parecido. A música de Gil e o conto de Machado explicitam determinada
engrenagem narrativa metaforizada, respectivamente, por uma roda gigante e um bilhete. É
relevante constatar que há uma construção meticulosa desde a ação de José ao desmontar a
barraca até o momento em que a personagem vê o amigo com a mulher amada.
O José como sempre
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No fim da semana
Guardou a barraca e subiu
Foi fazer no domingo
Um passeio no parque
Lá perto da Boca do Rio [...] (GIL, 2014).
Observa-se que o eu-lírico descreve as ações da personagem apresentando uma
ideia de comodismo inconsciente: José, como sempre fazia no fim da semana, “guardou a
barraca e subiu”. O passeio no parque é consequência de uma ação que pode ou não ser
pré-determinada, afinal a única afirmação que podemos fazer é a subida contínua da
personagem aos fins de semana após desmontar a barraca.
Isso posto, a ida de José ao parque resulta num desabrochar de sentimentos causado
pela visão do amigo João e Juliana. É apropriado observar a disposição dos dois últimos
versos da estrofe que se repetem, porém timbram e ecoam de forma diferente, causando
mudança tanto no significado, logo na interpretação, e na música.
Foi no parque
Que ele avistou
Juliana
Foi que ele viu
Foi que ele viu (GIL, 2014, grifo meu).
Por essa linha de raciocínio, a relevância da repetição do último verso é
corroborada pela modulação definitiva do tom na música. O tom de sol maior (G) que o
tom ao campo harmônico da canção cede espaço ao maior (A), indicando uma alteração
tanto harmônica quanto melódica. À vista disso, podemos dizer que dois momentos
representados pelo mesmo verso. A diferença se evidencia justamente pelo modo como
José concebe a ideia de ver a menina que ama com o amigo. Para afiançar essa ideia,
podemos associar os dois últimos versos da estrofe com a teoria de Pierce no que diz
respeito ao processamento de informações.
No que se refere a esta estrutura, a primeiridade do pensamento de José é
dominantemente sensorial, ingênua, não elaborada. A personagem simplesmente vê Juliana
e João na roda gigante sem que isso altere seu estado de consciência. A personagem está
voltada puramente ao presente e ao eu (ser) sem que haja uma necessidade de que a
realidade a sua volta atinja sua consciência.
O segundo verso, corroborado pela mudança do tom da música, manifesta um
processo de existência no momento em que a personagem percebe sua relação com Juliana
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e João. Nesse instante, José passa da abstração para algo que toma dimensões físicas e
temporais. A secundidade é explícita pelo registro do sentimento da personagem que indica
uma alteração na consciência desta. A distinção é explícita quando observamos que há, no
segundo verso, uma passagem do ser para o existir. Ainda sob essa perspectiva, a
primeiridade é suplantada pela afirmação do outro (João) em conflito com o eu (José).
Desse modo, a terceiridade (retomando a primeiridade e a secundidade) afirma
certa conexão que prevê uma atitude consciente do ser. Diante disso, a previsão dos
assassinatos de João e Juliana pela mão de José apoia-se na potencialidade da “síntese
intelectual” da personagem, a qual constrói pensamentos que irão concretizar a morte do
construtor e de Juliana. (SANTAELLA, 2007).
Ainda nessa perspectiva, Júlio Plaza (2003p. 19) anota que
Quando pensamos, somos obrigados a manter o pensamento conosco
mesmos e, nessa operação, criamos um observador-leitor desse
pensamento que somos nós mesmos, visto que o pensamento se
desenvolve por etapas. "Ninguém está, pela segunda vez, precisamente no
mesmo estado de espirito. Nessa medida, mesmo o pensamento mais
"interior", porque existe na forma de signo, contém o germe social
que apresenta a possibilidade de transpor a fronteira do eu para o outro.
Como respaldo à teoria de Pierce, a passagem harmônica de um tom para outro
corrobora a mudança do comportamento da personagem refletido na música. Essa alteração
de comportamento desconstrói o gingado proposital da canção de roda e traz elementos
sonoros que explicitam, de igual forma, a alteração do comportamento da personagem.
Para afiançar essa ideia, Bohumil (1996, p. 162) observa:
Modulação ou tonulação, é a passagem de um para outro tom. A palavra
modulação vem do latim e significa “ajustar”. A modulação é como uma
mudança de cenário nas peças de teatro. Modulação passageira é aquela
que tem caráter transitório; modulação definitiva é aquela que tem caráter
estável.
Sob esse prisma, a modulação do tom sol (G) para o tom lá (A) atribui à música um
cunho inquieto que ajusta o sentimento da personagem com o texto escrito. Essa
modulação definitiva determina uma tendência catastrófica que vem a se confirmar no fim
da canção com os assassinatos de Juliana e João. A partir dessa mudança no clima musical,
começam a surgir elementos metafóricos que conferem um sentimento em duas vias: a
José e à Juliana.
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Juliana na roda com João
Uma rosa e um sorvete na mão
Juliana seu sonho, uma ilusão
Juliana e o amigo João...
O espinho da rosa feriu o Zé
E o sorvete gelou seu coração... (GIL, 2014).
Em Juliana a rosa invoca sentimentos de amor, paquera e cortejo, ao passo que em
José invoca dor, traição, desespero. Em mesma medida, o sorvete de morango conjura, de
forma sinestésica, o refresco de domingo e o sabor apetitoso do doce. Em contrapartida, o
mesmo objeto funciona como gatilho metafórico que desconstrói a concepção de feirante
amigável.
Ainda nesse sentido, a rosa e o sorvete configuram a afirmação de um trio amoroso
que se constrói através do processo de reificação:
O sorvete e a rosa o José
A rosa e o sorvete o José
Foi dançando no peito o Jo
Do José brincalhão o José (GIL, 2014).
Diante disso, o coração de José, inumano pela metáfora do sorvete, afirma a
tendência trágica pela qual se constrói o enredo. Doravante do conhecimento do possível
namoro entre João e Juliana, o pensamento atraiçoado de José é representado, de forma
muito bem articulada, pela metáfora da roda gigante.
Foi girando na mente
O, José!
Do José brincalhão.
Juliana girando
Foi girando!
Foi, na roda gigante
Foi, girando!
Foi, na roda gigante
Foi, girando!
O amigo João... (GIL, 2014).
Num primeiro momento, a roda gigante é puramente o objeto de parque em que
Juliana e João namoram. No entanto, o movimento do giro, característico do brinquedo,
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serve como lenha para um sentido metafórico do pensamento de José. Ao mesmo instante
que Juliana e João giram na roda gigante as ideias fervilham na cabeça da personagem,
girando, construindo imagens, maquinando para que resultem no crime passional ao fim da
música.
Sob esse prisma, o primeiro verso “Juliana na roda com João” é o ponto inicial para
o desabrochar dos pensamentos da personagem. A partir dele, a visão do amigo e de
Juliana na roda gigante desperta nuanças corroboradas pelo andamento rítmico da música.
Esta, que outrora era marcado pelo gingado alegre do berimbau, agora apresenta uma
harmonia em cima de um acorde suspenso (E sus), causando um som alucinante que beira
ao desvairismo e ao suspense.
6
Não obstante tal efeito sonoro, os violinos enfatizam o suspense marcando cada
tempo do compasso com notas agudas características dos filmes de terror das últimas
décadas do século XX. O resultado dessa combinação sonora é um sentimento de
apreensão que antecipa a catástrofe final. O giro das engrenagens da roda gigante assim
como os pensamentos cogitantes de José se fundem para culminar nas mortes de Juliana e
João, dissipando o sonho ilusório da vida da personagem assim como sua própria vida que
acaba ou na prisão, ou, numa hipótese mais psicológica, no suicídio.
Por essa linha de raciocínio, um dos pontos de aproximação entre o texto de Gil e o
texto de Machado é o consciente das personagens José e Camilo. Em se tratando de A
cartomante, o modo ruminante com que Camilo reflete a respeito das ponderações de
Vilela desperta um sentimento de preocupação que faz valer as preocupações de Rita e a
presença da cartomante.
A diferença entre José e Camilo está no desvio do foco narrativo. Enquanto na
música de Gil a narração se fecha sobre o pensamento do assassino, José, o conto de
Machado interpela a consciência do assassinado, Camilo. Embora essa distinção tenha
resvalado, provavelmente, na escolha do autor, o cerne da nossa discussão permanece. Sob
esse prisma é conveniente destacar que a construção do pensamento de José, metaforizado
pela roda gigante, se assemelha muito ao pensamento de Camilo, causado pelo
recebimento de uma carta.
6
Um acorde suspenso é aquele que não possui a terça, ou seja, não pode ser classificado como acorde maior
nem menor.
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Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava
imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve
medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de
Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era
uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências
prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse
também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os
obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato (ASSIS,
2016 p. 379).
Assim como as alucinações de José compreende como ponto de partida a visão de
João na roda com Juliana, o abatimento de Camilo se inicia no momento em que recebe a
carta anônima. Na perspectiva cronológica do conto, as aflições de Camilo preservam-se
por um tempo indeterminado (semanas, meses?) até que a personagem recebe um bilhete
de Vilela com os seguintes dizeres: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem
demora.” (ASSIS, 2016, p. 380).
Essas poucas palavras escritas afirmam e confirmam a engenhosidade dos textos de
Machado. É pertinente observar que a leitura de A cartomante exige um alto grau de
sensibilidade do leitor e isso se faz necessário para a compreensão do turbilhão de
pensamentos que invadiram a mente de Camilo ao receber tal bilhete.
Diante disso, o narrador anota que
Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido
mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava
matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe
trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera
(ASSIS, 2015, p. 380).
Diante dessa narração, é conveniente constatar que as observações de Camilo, (o
motivo de Vilella chama-lo em casa, a letra trêmula) estão atreladas à ligação amorosa
entre a personagem e Rita. O próprio Camilo adota sentimentos temerários que convergem
com o horror da possível descoberta da traição de Rita pelo marido.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e
lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete,
certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu,
tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia
de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia
achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada,
nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe
cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da
própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse
agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente,
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apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto. (ASSIS, 2015, p.
381).
A partir dessa ideia da possível descoberta, o narrador resgata o rótulo tíbio da
personagem para ressaltar suas fraquezas. É oportuno notar que “Camilo estremeceu, tinha
medo” e logo depois “sorriu amarelo. (ASSIS, 2015, p. 381). Após vislumbrar “a ponta
da orelha de um drama”, a personagem passa a conjecturar a indignação de Vilela e a
amante subjugada numa tentativa frustrante de achar falhas lógicas no seu raciocínio.
Sob essa perspectiva, o bilhete de Vilela funciona como engrenagem narrativa de
forma análoga à roda gigante de Domingo no parque. Observa-se que os pensamentos de
Camilo se constroem em torno da mensagem ecoante de Vilela em seus ouvidos: “Não
relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, o
que era ainda pior, eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. ‘Vem
já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora. " (ASSIS, 2016, p. 381).
Nesse cenário, o prenúncio da catástrofe do conto resvala na descrição sutil do
narrador ao observar o local onde vive a cartomante. Anota o narrador que “A luz era
pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não, viu nem sentiu
nada. (ASSIS, 2016, p. 382). Essa dissipação da percepção de Camilo contrasta com a
forte tendência perceptiva de José: Enquanto Camilo recorre às forças cósmicas para
resolução de seu problema, José delimita seus planos ao espaço físico e tangível onde a
concretização destes dependa apenas de forças naturais e terrenas.
Nesse sentido, podemos observar que há certo espelhamento nas personagens José e
Vilela. Ambos são vítimas do insucesso amoroso independentemente da vida concreta que
lhes oferece o trabalho. A realização das personagens que lhes adorna a vida, o dinheiro de
Vilela e o bom humor de José, é suplantada pela falta do amor da mulher amada (Rita e
Juliana) e da infidelidade do amigo (Camilo e João).
Com efeito, as mortes de Rita, Camilo, João e Juliana tendem a uma explicação
atrelada à profissão, contexto histórico e classificação social de José e Vilela. E essa ideia
de morte vem impregnada pela sinestesia dos versos finais de Domingo no parque:
O sorvete é morango
É vermelho
Foi girando girando é
Vermelho
Olha a faca (GIL, 2014).
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A fusão de sensações relacionadas ao sorvete (sabor, temperatura e cor) imprime
uma ideia de conflito sentimental sobressaindo a cor vermelha como metáfora de ira e
morte, vindo a se confirmar, pelo sangue na mão de José. Nesse sentido, o último verso,
“olha a faca”, provoca um efeito que destoa da melodia da canção e apresenta uma ideia
extremamente significante no que diz respeito à interpretação do termo de expressão na
música. Para afiançar tal importância, Bohumil, (1996, p. 223) anota que
Expressão. importante pois indica um estado de espírito. A
interpretação de termos de expressão varia de um artista para outro. A
capacidade de transmitir os sentimentos e expressões depende do preparo
técnico, da sensibilidade e da cultura musical do intérprete.
Nesse prisma, a expressão “olha a faca” funciona como uma espécie de Blackout
sofrido pela personagem (FILHO, 2017). À medida que gira a roda gigante, as frustrações,
o ciúme e os demais sentimentos de José afloram até culminar no momento de loucura que
o leva a cometer o crime passional.
Olha o sangue na mão, José
Juliana no chão, José
Outro corpo caído, José
Seu amigo João e José. (GIL, 2014).
Ao fim da canção, o andamento da música diminui e o berimbau cessa por
completo. Já não há mais canção de roda e os sentimentos conturbados de José são
suplantados pela calmaria melancólica das notas maiores que contrastam com a letra
trágica. Depois do crime cometido, José parece tomar consciência do crime e pesar suas
consequências:
Amanhã não tem feira e José
Não tem mais construção e João
Não tem mais brincadeira e José
Não tem mais confusão e João. (GIL, 2014).
Não obstante a constatação da perda da amada e do amigo, os últimos quatro versos
arrematam a canção trazendo uma ideia de desistência que pode ser vista sob duas
perspectivas: a prisão de José pelos crimes cometidos, perdendo sua liberdade social; e o
possível suicídio quando a personagem toma consciência dos crimes e da morte da amada.
Independentemente da escolha para o fim de José, o eu-lírico ratifica a morte
(social ou carnal) da personagem ao retomar a letra (e) agora como conjunção aditiva. Isso
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posto, a última estrofe apresenta um caráter degenerativo que míngua a consciência de José
levando-o ao suicídio ou à morte moral/social. Como reflexo desse cenário, no dia seguinte
não haverá feira/brincadeira, nem José, não haverá construção/confusão, nem João.
No tocante aos assassinatos de Rita e Camilo, diz o narrador que
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro
do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de
pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e
foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um
grito de terror: ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e
ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver,
estirou-o morto no chão. (ASSIS, 2016, p. 385).
Podemos notar, a título de conclusão, que a maior diferença entre José e Vilela está
na técnica do plot twist utilizada em Domingo no parque. A construção das personagens
que timbra uma distância abismal entre o temperamento agressivo de João e o
comprazimento de José sofre um processo desconstrutivo. Nesse processo, o revés
narrativo se apresenta através da morte da personagem agastadiça e se reafirma no cunho
desenfado da personagem que pratica o assassinato.
O desfecho de A cartomante, por sua vez, resvala numa “normalidade machadiana”
que ignora o revertério narrativo e foca na sinuosidade das personagens. A morte de
Camilo por Vilela timbra uma ideia ordinária e subjugadora que se apresenta, assim como
em Domingo no parque, em duas medidas: a morte social e a morte do corpo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que analisamos até aqui podemos ensaiar uma conclusão que aproxima
os dois textos pelo viés da diferença. O estigma das personagens de Domingo no parque
ampara uma base ao longo da canção que apoia um raciocínio que prevê, ainda de que
maneira dissimulada, a morte de alguém pela mão de João. A contraposição dos fatos,
culminada pela morte de João e Juliana, expõe um conceito desestrutural que só poderia se
dar através da crise de José ante ao paradigma sonho/ilusão.
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Em A cartomante não contraposição. Se Vilela exterioriza comportamentos que
preocupam Rita e Camilo, as suspeitas se confirmam de forma a corroborar a astúcia da
personagem. Por essa linha de pensamento, a preocupação de Machado parece não estar no
motivo do crime como em Domingo no parque, mas nas interferências da cartomante e sua
relevância para os fatos recorrentes.
Sob esse prisma, os textos de Gil e Machado reverberam nas palavras de Leyla
Perrone-Moisés (1988) quando a autora observa que a alta literatura se constrói a partir da
universalidade temática em que o texto sofre um deslocamento de tempo e espaço à
medida que novas leituras se fazem. Para além disso, Domingo no parque e A cartomante
exibem um modo peculiar e inteligente no que diz respeito às engrenagens narrativas que
se constroem a partir do próprio texto, numa construção engenhosa que determina a
cadência musical e textual marcando os dois textos com impressões que se desdobram e
concebem significados a cada leitura, evidenciando a genialidade de dois grandes autores
da arte brasileira.
REFERÊNCIAS
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https://www.youtube.com/watch?v=_EzT_M3-J3M&t=565s. Narração de Leonardo Rossi.
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ASSIS, M. de. A cartomante. In: ASSIS, M. de. Todos os romances e contos
consagrados de Machado de Assis.Vol. 3. 1°. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
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THEODOR, A. Fragmento sobre música e linguagem. Trans/Form/Ação vol.31 no.2
Marília, 2008.
THE GEARS OF THE NARRATIVE: SIMILARITIES IN THE CONSTRUCTION
OF THE SONG DOMINGO NO PARQUE, BY GILBERTO GIL, AND THE SHORT
STORY A CARTOMANTE, BY MACHADO DE ASSIS.
ABSTRACT: Attending to the notes of authors related to the interartes area, such as Claus Clüver,
and authors related to the musical theory, such as Bohumil Med, our purpose is to approximate the
texts A cartomante, by Machado de Assis, and the song Domingo no Parque, by Gilberto Gil, on
the comparative prism. Preliminarily, we will observe the narrative focuses of the both texts to
verify the similarities in their mode of construction; as conclusion, we will address the deaths of the
characters by rebounding the love plot and the gears of narrative that frame the crime in a social
and psychological context.
Key-words: Interarts. Machado de Assis. Gilberto Gil.