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RELAÇÕES DIALÓGICAS E VALORAÇÃO NOS DISCURSOS CONTRA A
IDEOLOGIA DE GÊNERO: ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A
RELIGIÃO
Dialogic relations and appraisal in the discourse against queer theory: between
freedom expression and religion
LUCIANA FERNANDES NERY
1
RESUMO: O presente trabalho tem como
objetivos: observar os discursos que se
apresentam contra a ideologia de gênero,
analisando como tais discursos refratam
e valoram a temática em questão e ainda
analisar como os discursos religiosos são
retomados, observando as relações
dialógicas presentes. Para a análise dos
dados, nos ancoramos nos estudos de
Bakhtin (2011, 2016) e seu Círculo,
sobretudo nas concepções de dialogismo
e valoração. Diante dos dados
analisados, percebemos que os discursos
apresentados contra a ideologia e a favor
da família se apóiam no discurso religioso
para enfatizar determinados
posicionamentos e valorar o que é dito.
PALAVRAS-CHAVE: Relações
dialógicas. Valoração. Ideologia de
gênero.
ABSTRACT: This work aims to observe
the discourses against queer theory,
analyzing how these speeches refracts
and how they value the thematic. In this
way, this work equally aims to analyze
how the religious discourse reflects this
position against queer theory, considering
the dialogic relation between discourses.
Furthermore, Bakhtin’s (2011; 2016)
works and his circle supported this study,
above all, this work used mainly the
author’s concept of dialogism and
appraisal. Considering the data analyzed,
we could note that the discourses
presented against queer theory and the
discourses in favor of the family are
supported by the religious discourse to
emphasize determined positions and
value the speeches.
KEYWORDS: Dialogic relations.
Appraisal. Queer theory.
NERY, L. F. Relações dialógicas e valoração nos discursos contra a ideologia de
gênero: entre a liberdade de expressão e a religião. In. Revista Diálogos, v. 7, n.
3, out.-dez., 2019.
1
Doutoranda em Linguística no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba
- UFPB. Participa do grupo de pesquisa CIDADI- Círculo de Discussões em Análise do Discurso.
Professora efetiva da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte UERN.
lucianafernandesnery@yahoo.com.br
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O termo ideologia de gênero surgiu em Pequim, no final dos anos 90, numa
conferência da ONU (Organização das Nações Unidas) para demarcar a
diferença entre a sexualidade e a identidade de gênero. A partir desta distinção,
expandiram-se as discussões em torno da sexualidade e o que nos define como
homem ou mulher, o que, segundo os defensores da causa, não é definido logo
após o nascimento. No Brasil, os debates em torno da ideologia de gênero
intensificaram-se nos últimos tempos, sobretudo, ao ser retirada da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) a abordagem em torno de temas relacionados ao
gênero e orientação sexual. O Conselho Nacional de Educação (CNE), ao acatar
a decisão do MEC (Ministério da Educação e Cultura), justificou que o tema tinha
sido alvo de grandes embates durante a elaboração da BNCC. Com isso, deixa
de ser incumbência da escola abordar as questões relacionadas à diversidade
sexual, bem como o respeito, a igualdade, a tolerância e o preconceito contra
aqueles que não se inserem no grupo da heteronormatividade.
É comum vermos posições conservadoras que defendem que as questões
de gênero não deve ser um tema a ser discutido na escola. Diante disso, surgiram
em diversos estados, municípios e países, leis que proibem qualquer atividade
pedagógica que visem discutir o assunto. Os defensores de tais projetos de lei,
apoiados em discursos advindos de algumas religiões, alegam que tratar da
ideologia de gênero é estar em desfavor da família e estimular as crianças a
assumir a homossexualidade, o que, segundo a Bíblia, constitui um pecado.
A identidade de gênero é uma construção social associada à preferência
ou variação sexual e inclui as denominações homossexual, heterossexual,
transsexual, pansexual, bissexual, dentre outros. É importante destacar a luta do
grupo LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais e intersexuais) para que haja um maior
respeito e aceitação desse público, sendo inclusive necessária a criação de leis,
como é o caso do Estado da Paraíba, que através da Lei 7.3009/2003, proíbe e
pune qualquer forma de discriminação por orientação sexual. Como se vê, as
discussões em torno das questões relacionadas à ideologia de gênero têm sido
bem amplas. No entanto, frequentemente, nos deparamos com diferentes
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posições que defendem, opõem-se e até condenam tal questão considerando
como uma afronta ao modelo de estrutura familiar tradicional.
Considerando, conforme Bakhtin (2016), que há em todo discurso algo que
o antecede e o sucede, muitas campanhas contra a ideologia de gênero
estabelecem relações dialógicas com o discurso religioso. Diante disso,
defensores de concepções cristianistas, sobretudo católicos e evangélicos,
apoiados neste discurso, lançam campanhas contra a ideologia de gênero e a
favor da família. Nesse contexto, elencamos, para este trabalho, os seguintes
questionamentos: a) Como se apresentam os discursos que se posicionam contra
ideologia de gênero? b) Quais as relações dialógicas apresentadas nos discursos
contra a ideologia de gênero? c) Como o discurso do outro é trazido para valorar
o que é dito? Perante tais questões, objetivamos observar os discursos que se
apresentam contra a ideologia de gênero, analisando como tais discursos
refratam e valoram a temática em questão e ainda analisar como os discursos
religiosos o retomados para uma defesa contra a ideologia de gênero,
observando as relações dialógicas presentes.
Para a constituição do corpus deste trabalho, utilizamos 2 (duas) postagens
(imagens) e comentários de páginas do Facebook que se opõem à ideologia de
gênero. Para a análise dos dados, nos ancoramos nos estudos de Bakhtin (2011,
2016) e seu Círculo, Fiorin (2006), Silva e Francelino (2017), dentre outros. Para
sistematização da discussão que faremos nesse artigo, primeiramente,
apresentamos algumas considerações teóricas com ênfase nas concepções de
dialogismo, discurso de outrem e valoração. Em seguida, a partir da teoria
dialógica do discurso, analisamos o corpus selecionado. Diante das imagens e
comentários analisados, podemos destacar que os discursos apresentados contra
a ideologia e a favor da família se apóiam no discurso religioso para valorar o que
é dito e defender um ponto de vista sobre um aspecto que vem sendo bastante
discutido na sociedade.
1. AS CONTRIBUIÇÕES DE BAKHTIN E SEU CÍRCULO PARA OS ESTUDOS
DO DISCURSO
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Bakhtin (2016) e seu Círculo concebe que as unidades da língua
constituem o objeto de estudo da Linguística. Para o autor, entretanto, a língua é
considerada viva e concreta, portanto, a unidade real da comunicação é o
enunciado, “porque o discurso pode existir de fato na forma de enunciados
concretos de determinados falantes, sujeitos do discurso” (BAKHTIN, 2016, p.
28). Falamos por meio de enunciados que apresentam um estilo, uma forma
composicional e um conteúdo temático relacionados a um esfera da atividade
humana, denominados de gêneros do discurso. Desse modo, uma única palavra
será plena de sentido desde que se considerem os elementos da enunciação.
Assim, não significação se o enunciado for considerado isoladamente. É
preciso observar não apenas os aspectos morfológicos, sintáticos, mas,
sobretudo o contexto extraverbal. Segundo Volochinov (2013) esse contexto
compreende o horizonte espacial compartilhado pelos falantes, o conhecimento e
a compreensão comum da situação e a valoração compartilhada pelos sujeitos da
situação. A enunciação se apóia no que é visto, no que faz parte do conhecimento
do sujeito e no que é avaliado conjuntamente.
Uma das principais contribuições da teoria bakhtiniana é a concepção do
dialogismo como um princípio constitutivo da linguagem. Com isso, percebemos
que toda palavra dialoga com outras existentes. Não existe um discurso novo,
no dito há sempre um já-dito. Conforme apresenta Bakhtin, não existe o Adão
mítico, ou seja, aquele que utilizou o discurso pela primeira vez. Portanto,
concordamos com a afirmação de que “cada encunciado é um elo na corrente
complexamete organizada de outros enunciados (BAKHTIN, 2016, p. 26). Desse
modo, um enunciado é sempre permeado pelas relações dialógicas.
A partir desta concepção, Fiorin (2006) apresenta três conceitos de
dialogismo. O primeiro é a constituvidade dialógica do enunciado, “nele ouvem-se
sempre, ao menos duas vozes” (FIORIN, 2006, p. 24). Deste primeiro conceito,
depreende-se a relação de um enunciado com outros enunciados, mas também
uma atitude responsiva dos sujeitos, uma vez que, ainda conforme o autor, nele
atuam forças centrípetas e centrífugas. As primeiras tendem para uma
centralização e unificação e, as segundas, criam uma desestabilização. São estas
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forças que nos levam a remeter a enunciados já existentes e perceber o que está
na ordem do repetível, mas também observar a partir do já-dito o que constitui um
dado novo, singular.
O segundo conceito de dialogismo “trata-se da incorporação pelo
enunciador da voz ou das vozes de outro(s) no enunciado.” (FIORIN, 2006, p. 32).
duas formas de incorporar o discurso do outro: uma em que tal incorporação
aparece explicitamente (discurso objetivado) e a outra que não aparece
nitidamente (discurso bivocal). Em Problemas da Poética de Dostoiévski, Bakhtin
(2005) tem como objetivo principal estudar o discurso bivocal. Para o autor, toda
palavra ou discurso bivocal contém mais de uma voz: a minha e a do outro. A
bivocalidade é justamente a possibilidade de uma voz abrigar outras vozes.
O terceiro conceito de diaolgismo está relacionado à construção da
consciência do sujeito que se dá a partir das relações sociais com outros sujeitos.
Desse modo, “o sujeito vai se constituindo discursivamente, apreendendo as
vozes sociais que constituem a realidade em que está imerso e, ao mesmo
tempo, suas relações inter-dialógicas” (FIORIN, 2006, p. 55). A consciência não é
um produto isolado, mas, -se a partir da interação entre muitas consciências.
Eu tomo consciência de quem eu sou me revelando para o outro, não posso
construir para mim uma relação sem o outro (BAKHTIN, 2005).
O conceito de dialogismo permeia todas as obras de Bakhtin, pois a
concepção do discurso apresentada pelo autor é entendida como uma réplica,
que se forma na interação com o discurso do outro. Diante disso, é importante
destacar que
[...] Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive
as obras criadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau
vário de alteridade e de assimilabilidade, de uma de um grau vário
de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros
trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que
assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos. (BAKHTIN, 2016, p.
54)
Diante das afirmações do autor, concordamos com o fato de que os
discursos não são originais, pois apresentam ecos e ressonâncias de outros
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discursos. No entanto, ao trazer a palavra do outro para a minha palavra, uma
reformulação desse dizer, uma vez que tal palavra é valorada de acordo com o
contexto, com as nossas posições sociais e ideológicas. Todos estes aspectos
influenciam na formulação do dizer e imprimem ao discurso um certo grau de
novidade. Portanto, para analisar um enunciado é preciso atentar para o discurso
do outro que exige do ouvinte uma atitude responsiva. Sobre essa questão,
Bakhtin (2011) ressalta que:
Por palavra do outro (enunciado, produção de discurso) eu
entendo qualquer palavra de qualquer outra pessoa, dita ou
escrita na minha própria língua ou em qualquer outra língua, ou
seja, é qualquer outra palavra não minha. Nesse sentido, todas as
palavras (enunciados, produções de discurso e literárias), além
das minhas próprias, são palavras do outro. Eu vivo em um
mundo de palavras do outro (...). A palavra do outro coloca diante
do indivíduo a tarefa especial de compreendê-la (essa tarefa não
existe em relação à minha própria palavra ou existe em seu
sentido outro). (BAKHTIN, 2011, p. 379, grifos do autor)
Portanto, o sujeito é sempre levado a fazer uma avaliação, quer seja para
concordar, discordar, emitir um julgamento, uma crítica. Mesmo que não haja uma
compreensão, sempre uma resposta. Ao assumir esta postura valorativa,
imprimimos os nossos valores e assumimos uma posição diante do objeto.
Corroborando com esta ideia, Volochínov (2013, p. 168) afirma que “[...] todo
discurso é dialógico, dirigido a outra pessoa, à sua comprensão e à sua efetiva
resposta potencial”. Desse modo, os sujeitos, ao buscar comprender um
enunciado, imprimem uma avaliação. Assim sendo, ao produzir um enunciado
deve-se considerar o destinatário, quem será o ouvinte e que valores sociais
podem ser atribuídos, pois “ao construir o meu enunciado, procuro defini-lo de
maneira ativa; por outro lado, procuro antecipá-lo e essa resposta antecipável
exerce por sua vez uma ativa influência sobre o meu enunciado”(BAKHTIN, 2016,
p. 63). Logo, não como produzir um enunciado sem levar em consideração o
endereçamento. É este aspecto que definirá o estilo do enunciado, as estratégias
discursivas e o gênero a ser produzido.
Volochínov (2013) também destaca que para a enunciação realizar-se é
sempre preciso a presença do falante e de um ouvinte, isso que dizer que o nosso
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discurso é sempre orientado para o outro. Além disso, a enunciação é sempre
situada, pois,
Não compreendemos nunca a construção de qualquer enunciação
por completa e independente que ela possa parecer se não
tivermos em conta o fato de que ela é um momento, uma gota
no rio da comunicação verbal, rio ininterrupto, assim como é
ininterrupta a própria vida social, a história mesma
(VOLOCHINOV, 2013, p. 158).
A compreensão de qualquer enunciação exige do sujeito o entendimento
do tempo, do espaço e do gênero produzido. Além disso, uma mesma palavra
pode ter sentidos diferentes a partir da entonação dada em cada contexto. Ao ser
dita num determinado momento, tempo e lugar, cada palavra apresenta
valorações diferentes, por isso é preciso observar os não-ditos expressos através
do que é dito lingusticamente. Bakhtin (2016) ainda acrescenta que o enunciado
apresenta três peculiaridades: a alternância dos sujeitos, a conclusibilidade e a
relação do enunciado com o falante e com outros participantes da comunicação
discursiva. A primeira diz respeito à possibilidade de o outro assumir o lugar no
discurso. “O falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou
dar lugar à sua compreensão responsiva” (BAKHTIN, 2016, p. 29). A
conclusibilidade é um dos traços fundamentais do enunciado e está diretamente
relacionada à alternância dos sujeitos e consiste no ato de resposta. São estas
peculiaridades que distinguem o enunciado de uma oração, pois envolve toda a
situação discursiva: falante, ouvinte, contexto e, sobretudo, a língua em sua
concretude. A terceira peculiaridade “refere-se a relação do enunciado com outros
enunciados - aqueles aos quais o enunciado do sujeito responde e aqueles ainda
nem existentes, mas aos quais o enunciado que ora se forma suscita uma
resposta” (KEIMAC , 2017, p. 24).
Para analisar os discursos que se manifestam através dos enunciados é
preciso considerar a sua constituição num determinado espaço social e partir
disso como os discursos são refratados e valorados de acordo com a posição
ideológica dos sujeitos. De acordo com Pereira e Rodrigues (2014), os nossos
discursos são construídos e reconstruídos de acordo com os valores que
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atribuímos. É essa relação valorativa que, conforme aponta Bakthin (2003), nos
leva a escolha do gênero, dos itens lexicais e do estilo. Portanto, analisar um
enunciado a partir das contribuições de Bakhtin e seu Círculo significa atentar
para as relações dialógicas que o consituem, uma vez que um enunciado sempre
retoma outros enunciados nos quias são impressos valores sociais imbricados de
uma atitude responsiva. A partir desta concepção, analisamos, na seção seguinte,
os discursos contra a ideologia de gênero.
2. Relações Dialógicas e Valoração nos discursos contra a Ideologia de
Gênero
Para a análise dos discursos apresentados contra a ideologia de gênero,
conforme explicitamos, selecionamos 2 (duas) postagens (imagens) e
comentários de páginas do Facebook. Partindo do princípio da natureza dialógica
do discurso, elencamos os seguintes questionamentos: a) Como se apresentam
os discursos que se posicionam contra a ideologia de gênero? Quais as relações
dialógicas apresentadas nos discursos contra a ideologia de gênero? c) Como o
discurso do outro é trazido para valorar o que é dito?, conforme apresentados
anteriormente.
Diante de tais questões, elegemos para análise as seguintes fanpages do
Facebook: “Não a ideologia de gênero”, “Diga não a ideologia de gênero” e
Brasil, contra a ideologia de gênero, Brasil a favor da família”. É importante
destacar que as postagens feitas nessas fanpages apresentam, principalmente,
imagens que ressaltam os discursos contra a ideologia de gênero. Além disso,
também vídeos, reportagens e campanhas contra as empresas que defendem tal
aspecto. As fanpages selecionadas apresentam em sua descrição que o contra
a ideologia de gênero, a erotização infantil e a pedofilia e que são a favor da
família nos moldes tradicionais.
Como procedimento de seleção dos dados, fizemos primeiramente uma
busca das páginas do Facebook que se posicionavam em relação à ideologia de
gênero. É importante destacar que a maioria das fanpages encontradas se
apresentam contra e, mesmo as que não se intitulam explicitamente, as
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postagens demonstram um posicionamento contrário ao assunto. Outro aspecto
importante é que nas páginas selecionadas, os comentários raramente são feitos
e quando isso acontece também não se opõem ao que é dito. Somente quando
as pessoas compartilham em seus status é que os discursos contrários
aparecem. Selecionamos para análise as postagens com o maior número de
curtidas e compartilhamentos. Em relação aos comentários, selecionamos apenas
2 (dois), pois os demais constituiam plicas dos discursos apresentados nos
que foram selecionados. Isso posto, observamos a imagem a seguir:
Imagem 1: Campanha contra a ideologia de gênero
Disponível em: www.facebook.com/Não-a-Ideologia-de-Gênero . Acesso em 15 de Janeiro de
2018
Como se observa no enunciado apresentado, uma campanha contra a
Ideologia de gênero liderada por dois grupos religiosos: católicos e evangélicos.
Quando atentamos para a posição axiológica do sujeito enunciador, percebemos
claramente o tom valorativo que é estabelecido através da postagem. Bakhtin
afirma que “um dos meios de expressão da relação emocionalmente valorativa do
falante com o objeto da sua fala é a entonação expressiva” (BAKHTIN, 2016, p.
48). No enunciado acima, o “NÃO”, além de aparecer em letras maiores, é
utilizado linguisticamente para demarcar a oposição entre os sexos masculino e
feminino. Estas categorizações ainda são enfatizadas pelas cores azul, para o
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homem, e rosa, para a mulher, bem como com os símbolos que demarcam cada
sexo.
Ao trazer o discurso religioso, é defendido um ponto de vista contra a
ideologia de gênero e a favor da família. É importante destacar que a concepção
de família defendida segue o molde tradicional, no qual é estabelecido claramente
o que pertence ao sexo feminino e ao masculino. A hastag “#juntospelafamília”
estabelece uma relação dialógica com o discurso bíblico apresentado em
Gênesis, uma vez que, implicitamente, o sujeito assume uma atitude responsiva
diante da distinção entre o homem e a mulher e propaga um modelo-padrão da
estrutura familiar: pai, mãe e filho, difundido pela religião. Sobre esta questão,
Bakhtin (2016, p. 24-25) ressalta que “[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o
significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma
ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente)”.
Os grupos religiosos, ao dizerem “Não à ideologia de gênero”,
desconsideram as questões relacionadas à identidade de gênero, orientação
sexual e às composições de famílias que não estão de acordo como os padrões
socialmente estabelecidos. Além disso, disseminam o preconceito, a intolerância
e a ideia de que todos são iguais. O movimento contra a ideologia de gênero ao
propagar que este tema não deve ser discutido na escola, apresenta alguns
pontos conflitantes: desconsidera a liberdade de expressão de um grupo em
evidência e tenta inculcar nas cabeças das crianças que apenas um modelo
familiar e que a diversidade sexual não existe.
Ao estabelecer as categorizações masculino e feminino e dizer o que
pertence a cada sexo, tenta-se pregar um ideal de igualdade que não
corresponde à diversidade existente. Esta concepção de que tratar da ideologia
de gênero é incentivar a criança à homossexualidade se insere numa posição
conservadora que se instaurou no país nos últimos anos e que também defende o
movimento da escola sem partido. Os preceitos propagados por estes
movimentos desconsideram o que é apresentado na Constituição Brasileira
(1988), no artigo 3, inciso IV, ao afirmar que constituem objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceitos de
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origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Portanto, ao retirar da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) a abordagem em
torno de temas relacionados ao gênero e orientação sexual e, com isso, não abrir
espaços para discutir a ideologia de gênero na escola é tentar silenciar um
público que vem crescendo bastante e ainda uma forma de tratar o assunto como
um desvio da conduta humana.
Considerando que o enunciado é constituído de uma parte verbal (o que é
expresso linguisticamente) e uma extraverbal (que inclui o espaço, o tempo, a
posição do sujeito perante o que é dito), percebemos, na imagem 1, que ao
dialogar com o ponto de vista do cristianismo uma valoração do dizer
estabelecida a partir da posição assumida: os católicos e evangélicos o contra
a ideologia de gênero e estão juntos pela valorização da família. Diante disso,
concordamos com a ideia de que “cada campo de criatividade ideológica tem seu
próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade a sua maneira
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1999, p. 31). Desse modo, a campanha criada pelos
católicos e evangélicos, ao se opor a uma discussão e até mesmo a uma maior
aceitação sobre a diversidade sexual desconsidera que o gênero o é definido
no nascimento da criança e que pode haver sujeitos diferentes dos padrões
estabelecidos: ou se é homem ou é mulher. Para os defensores desses grupos,
qualquer identidade de gênero que difere do que é concebido pela Bíblia constitui
um pecado, conforme podemos ver nas postagens a seguir:
Imagem 2: Comentário postado no Facebook
Disponível em: www.facebook.com. Acesso em 15 de Janeiro de 2018.
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Imagem 3: Comentário postado no Facebook
Disponível em: www.facebook.com. Acesso em 15 de Janeiro de 2018.
Imagem 4: Postagem no Facebook
Disponível em: www.facebook.com/Não-a-Ideologia-de-Gênero. Acesso em 18 de Janeiro de
2018.
Os discursos apresentados nos dois comentários (imagem 2 e 3) dialogam
com o discurso apresentado na imagem 4. Percebemos que, ao ser trazido o
discurso blico: Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou;
homem e mulher os criou” (GÊNESIS, 1: 27) é estabelecido um tom emotivo-
valorativo ao já-dito. Comungamos com a ideia de Bakhtin (2016) ao enfatizar que
ao trazer a palavra do outro para a minha palavra há uma reenunciação do já-dito,
ou seja, “[...] uma vez que eu opero com ela em uma situação determinada, com
uma intenção discursiva determinada, ela está compenetrada da minha
expressão” (BAKHTIN, 2016, p. 53). Desse modo, imprimimos nossas convicções,
crenças e ideologias. Tal discurso é refratado e valorado de acordo com as
posições que defendemos. No comentário apresentado na imagem 2, ao remeter
ao discurso bíblico, o sujeito se opõe à discussão sobre a homossexualidade na
escola. No enunciado “sejam o que vcs quiserem dps acertem as contas com
Deus”, percebemos um discurso que reafirma que “para os cristãos, a
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homossexualidade é um “pecado”, um desvio sexual, pois viola o padrão de
sexualidade designado pela Bíblia Sagrada” (SILVA; FRANCELINO, 2017, p. 37).
Além disso, no comentário uma posição contrária ao tratamento da questão de
gênero para as crianças, pois, segundo o enunciador, estaria manipulando-as e
conduzindo ao pecado.
Outro aspecto interessante a se obsevar no comentário apresentado na
imagem 2 é o uso da expressão “Esse povo quer fazer de tudo e qualquer reação
das pessoas eles falam que estão pregando o ódio, preconceito. Vão se lascar”.
Este trecho do comentário revela um posicionamento contra a homossexualidade
e propaga a ideia que os sujeitos não precisam considerar o fato como algo
natural. Nesse sentido, concordamos com Silva e Francelino (2017, p. 148-149)
ao se reportar à ideologia religiosa que considera a homossexualidade como uma
anormalidade ao dizer que “as vozes apresentadas estão carregadas de uma
valoração negativa, de um tom crítico”. O enunciado “vão se lascar” pode ser
considerado como uma forma de dizer “eu não estou nem para o que vocês
pensam e reforça a ideologia cristã assumida pelo enunciador.
No comentário 2 (imagem 3) está explícita a posição assumida: o sujeito
também é contra a ideologia de gênero e associa essa posição axiológica à
impossibilidade de pessoas do mesmo sexo poderem gerar outro ser,
propagando, assim, o modelo de família tradicional. Tal concepção apresenta
uma relação dialógica com o artigo 226, inciso da Consituição Brasileira, que
estabelece que para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento. Apesar de ter havido uma mudança na lei, uma vez
que é permitido no Brasil o casamento de pessoas do mesmo sexo, o modelo
de família que é valorizado gira em torno da heteronormatividade. Através da
expressão “Vão falar que é preconceito, mas é um princípio”, o enunciador apóia-
se, sobretudo, no discurso bíblico para enfatizar o modelo de família tradicional.
Percebemos que as vozes apresentadas nos comentários ratificam a
intenção de se opor à ideologia de gênero e implicitamente dialogam com o que é
apresentado na imagem 4. “A ideologia de Gênesis” é uma forma de evidenciar a
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não aceitação do que se tem propagado nos últimos tempos diante da variedade
de gênero. O enunciado “Eu apoio a Bíblia” constitui-se numa forma de dizer “eu
sou cristão” e estou a favor da moral e dos bons costumes. A campanha liderada
pelos evangélicos e católicos trata-se de uma doutrinação ideológica, que busca
desviar da escola e também da família qualquer discussão sobre o assunto.
Ao ser trazido o discurso bíblico de Gênesis para enfatizar a luta contra a
Ideologia de gênero, percebemos que mesmo se utilizando do discurso de outro,
o enunciado apresenta uma singularidade, pois novos sentidos podem ser
produzidos. Diante disso, Bakhtin (2016, p. 95) afirma que “o enunciado nunca é
apenas um reflexo, uma expressão de algo existente fora dele, dado e
acabado. Ele sempre cria algo que não existia antes dele, absolutamente novo e
singular e que, ademais, tem relação com o valor”. Portanto, ao trazer o discurso
do outro ressignificamos o que foi dito e atribuimos novos valores a esse dizer.
Assim, o discurso religioso é trazido não apenas para enfatizar um princípio
cristão, mas para valorar o que é dito e demarcar a posição defendida contra a
Ideologia de gênero.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da discussão apresentada no decorrer deste trabalho, reafirmamos
que analisar os discursos sob a ótica dos estudos bakhtinianos significa perceber
as relações dialógicas estabelecidas. A partir do corpus selecionado, vimos que
através de elementos verbo-visuais estão presentes ecos discursivos que o
valorados de acordo com a posição ideológica assumida pelo enunciador. Desse
modo, o discurso do outro, ao ser retomado, passa por um processo de
discursivização, em que são imprimidos pelos sujeitos os seus valores sociais.
Portanto, para analisar um enunciado, enquanto uma unidade da comunicação
discursiva, é preciso observar a relação como outros enunciados e perceber que
os sujeitos, ao se depararem com determinados discursos, assumem uma atitude
responsiva e, a partir disso, são conduzidos a fazer uma avaliação, assumindo
uma posição axiológica, refratando e valorando a realidade.
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Ao analisar os enunciados que se posicionam contra ideologia de gênero,
observando as relações dialógicas apresentadas e ainda como os discursos
religiosos são retomados para valorar e refratar o que é dito, percebemos que
campanhas que se opõem à ideologia de gênero utilizam um discurso em favor da
família e, para isso, trazem o discurso bíblico apresentado em Gênesis para
estabelecer as diferenças entre o sexo masculino e feminino e ainda propagar um
modelo de família tradicional.
Os discursos apresentados nas campanhas contra a ideologia de gênero
evidenciam uma valoração negativa em relação à diversidade de gênero e
reafirmam a posição ideológica de uma frente conservadora instalada no país nos
últimos anos que defende que não é papel da escola discutir sobre o assunto e/ou
desenvolver atividades voltadas à orientação e diversidade sexual, o que acarreta
na ausência de uma discussão voltada para o respeito, a tolerância e a liberdade
de expressão do grupo LGBTI. Não respeitar a diversidade de gênero e
orientação sexual é ferir os direitos humanos e se opor ao um grupo que
apresenta uma grande visibilidade no cenário atual. Tal posicionamento surgiu em
defesa de uma ideologia religiosa cristã que defende que Deus fez o macho e a
fêmea e qualquer “desvio” desse padrão é considerado um pecado e, em favor da
família e dos bons costumes, não deve ser estimulado a uma aceitação na
sociedade.
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