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Revista Diálogos
- ISSN 2319
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Relendo Bakhtin, v.7, n. 3, out.
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O ÉPOS EM ALMAS MORTAS: LEITURAS EM DIÁLOGO
The epos in Dead souls: readings in dialogue
ÍSIS LOPES DE ALMEIDA
1
EUNICE TERESINHA PIAZZA GAI
2
RESUMO: Neste estudo, discutimos a
perspectiva interpretativa que Mikhail
Bakhtin (2014) expõe em Questões de
literatura e de estética sobre Almas
mortas, obra de Nikolai Gógol.
Apresentamos argumentos que permitem
identificar, na narrativa gogoliana, a
presença de uma essencialidade épica,
além do aspecto risível. Este
posicionamento difere do de Bakhtin
(2014), que considera a obra de Gógol
apenas a partir do riso. Entretanto,
levamos em conta a ambiguidade própria
do autor e seu complexo potencial de
transformação. Assim, percebemos que,
embora Almas mortas não seja uma
epopeia tradicional, compartilha de
aspectos oriundos do gênero épico e
possui força de expressão épica.
PALAVRAS-CHAVE: Nikolai Gógol.
Gênero épico. Ambiguidade.
ABSTRACT: In this research, we discuss
the interpretative perspective that Mikhail
Bakhtin (2014) exposes in Questions of
literature and aesthetics about Dead
souls, book of Nikolai Gogol. We present
arguments that make possible to identify,
in the gogolian narrative, the presence of
an epic essentiality, beyond the comic
aspect. This position differs from
Bakhtin’s, who considers the Gogol’s
work only from the laughter. However, we
take into account the author’s own
ambiguity and his complex transformation
potential. Therefore, we realize that,
although Dead souls is not a traditional
epic, it shares aspects of the epic genre
and it has epic force of expression.
KEYWORDS: Nikolai Gogol. Epic genre.
Ambiguity.
ALMEIDA, I. L. de; PIAZZA GAI, E. T. O Épos em Almas mortas: leituras em
diálogo. In. Revista Diálogos, v. 7, n. 3, out.-dez., 2019.
1
Mestre em Letras pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC - bolsista CAPES), linha de
pesquisa em Estudos literários e midiáticos, com dissertação desenvolvida sobre a obra do
escritor russo Nikolai Gógol, entitulada "Humorismo e epicidade em Almas mortas e Tarás Bulba",
sob orientação da professora Eunice Piazza Gai. Cursou a graduação em Letras -
Português/Inglês na mesma instituição, também pesquisando e escrevendo sobre Gógol.
Participou como bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID
UNISC), construindo experiências significativas na área da leitura e cognição através de projetos
realizados em escolas públicas de Santa Cruz do Sul. Estudante de Literatura Russa através dos
cursos do Ciclo de Literatura Russa, organizado e ministrado pelo professor João Armando Nicotti,
em Porto Alegre, desde 2013. Tem interesse nas áreas da Literatura Russa e dos estudos
hermenêuticos. <isis-lopes@hotmail.com>
2
Possui graduação em Letras pela Faculdade Portoalegrense de Educação Ciências e Letras
(1977), mestrado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1986) e doutorado
em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1996).
Atualmente é professor titular da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), com pesquisa e
orientações no Programa de Pós-Graduação em Letras da mesma Universidade. Tem experiência
nas áreas de Letras e Filosofia, com ênfase em Teoria Literária, Hermenêutica, Ceticismo,
atuando principalmente nos seguintes temas: narrativas e conhecimento, literatura portuguesa,
Machado de Assis, narrativas brasileiras contemporâneas, ironia. <piazza@unisc.br>
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A perspectiva interpretativa que desenvolvemos ao longo deste artigo a
respeito do ponto de vista de Mikhail Bakhtin e da obra de Nikolai Gógol, intitulada
Almas mortas, origina-se de um esforço hermenêutico a fim de ampliar nossos
horizontes de compreensão em relação ao universo das narrativas gogolianas
com vistas à questão do gênero épico. Para isso, buscamos apoio tanto em
teorias que sustentam nossos argumentos, como também confrontamos ideias
divergentes das nossas e dialogamos com autores que possuem outras
perspectivas teóricas de abordagem da obra literária. Por conseguinte, no
decorrer deste estudo, apresentamos a leitura que Bakhtin faz de Almas mortas e
destacamos em que pontos ela se aproxima ou se afasta de nossa própria
interpretação.
Antes disso, porém, consideramos relevante dizer algumas palavras sobre
Gógol e sua obra com o intuito de introduzi-los e contextualizá-los no âmbito de
nosso trabalho. Nascido em 1809 em uma província da atual Ucrânia, Gógol
escreveu contos, novelas, peças de teatro e um romance Almas mortas ou “seu
poema épico”, como se referia à obra. Por meio de uma comicidade que se utiliza
do exagero e do grotesco
3
, mas que também desce às profundezas da alma
humana, deu vida à um estilo literário complexo, ambíguo e bastante original.
Além disso, suas personagens são figuras oriundas do povo, e as cores com as
quais pinta suas histórias pertencem à tradição da cultura cômica popular. Por
esse olhar voltado especialmente ao povo russo, Gógol é considerado por grande
parte da crítica literária como um autor fundamental na expressão de uma
literatura nacional.
O projeto de Gógol para Almas mortas consistia em englobar toda a Rússia
através dessa narrativa, compondo uma espécie de Divina Comédia russa. Assim,
as três partes da obra pensadas pelo autor, se as relacionarmos com o inferno, o
purgatório e o paraíso de Dante Alighieri, corresponderiam ao processo de
3
Compreendemos o elemento grotesco a partir da perspectiva que Vladimir Propp (1992) destaca
em Comicidade e riso, para a qual o grotesco, como o tipo mais elevado de exagero, extrapola os
limites da realidade e alcança o âmbito do monstruoso e do terrível.
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evolução do protagonista de Almas mortas: Tchítchicov comete crimes, é preso e
então, arrependido, regenera-se. Durante essa transformação, o autor pretendia
descrever um panorama do povo russo. A ideia central da obra teria partido de
uma sugestão de Púchkin, de quem Gógol era amigo próximo, e a primeira parte
foi publicada na Rússia em 1842.
A história narra as andanças do trapaceiro Tchítchicov em busca de
fortuna, de modo que o enredo é composto por suas viagens a províncias da
Rússia czarista anterior à libertação dos servos. O objetivo de Tchítchicov é
comprar almas mortas, ou seja, os servos que haviam morrido desde o último
recenseamento e que ainda não tinham sido oficialmente declarados por seus
donos, os proprietários rurais. Por conseguinte, embora estivessem mortas, essas
almas figuravam como vivas dentro da burocracia oficial. Assim, de posse da
escritura das almas, Tchítchicov tem em vista empenhá-las no Conselho de
Tutela a fim de receber por elas uma alta soma do governo.
Embora Almas mortas ofereça ao leitor um variado leque de episódios
cômicos enquanto Tchítchicov trava conhecimento com os diferentes tipos sociais
que compõem a sociedade provinciana de sua época, percebemos na obra uma
aproximação com o gênero épico. Com isso, não queremos dizer que Almas
mortas apresenta-se conforme uma epopeia tradicional no que diz respeito às
formas clássicas que estruturam esse tipo de texto, mas que, apropriando-se de
alguns dos elementos do gênero, Gógol atribuiu à sua obra uma essência épica
4
.
Ao sustentarmos essa perspectiva interpretativa, levamos em consideração a
intenção de uma narrativa de tom épico que o autor possuía ao começar a
escrever Almas mortas e isto está posto em suas correspondências , bem
como os índices épicos que se manifestam ao longo da obra e que destacamos a
seguir.
Entretanto, ao concebermos que em Almas mortas convivem o riso do
humorismo e o caráter nobre da epicidade, colocamo-nos diante do paradoxo que
a teoria literária, em seus moldes mais rígidos e bem delimitados, não é capaz de
4
Para o desenvolvimento dessa ideia, valemo-nos do conceito de essência exposto por Emil
Staiger (1997) em Conceitos fundamentais da Poética, ou seja, a ideia de que a essência de uma
obra relaciona-se mais com o tom e com a força de expressão da narrativa, e menos com a
exterioridade da forma literária.
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abarcar: é possível que uma comédia seja épica ou que uma epopeia seja
cômica? Se optarmos por tentar compreender a obra de Gógol a partir de
parâmetros prontos e de um viés dualista, obviamente não chegaremos a
qualquer lugar relevante, que o modo de Gógol de apreender o mundo
transcende os limites de qualquer enquadramento encerrado em si mesmo. Ao
mesmo tempo, não há como negar o valor que os preceitos teóricos, tais quais os
discutidos por Bakhtin (2014) sobre o gênero épico, podem conferir a qualquer
pesquisa literária. Assim, dialogamos com o texto da Bakhtin (2014) não com o
intuito de anular sua leitura de Almas mortas, mas de iluminar outros caminhos
interpretativos que também se mostram possíveis caminhos, talvez, mais
próximos da complexidade humana, conforme concebida e retratada por Gógol.
1. O ÉPOS SEGUNDO BAKHTIN
Em sua obra Questões de literatura e de estética, Bakhtin (2014) possui um
capítulo denominado “Epos e romance”, no qual, além de arrolar uma série de
características que situam o romance e a epopeia dentro de seus respectivos
âmbitos literários, estabelecendo relações comparativas entre ambos, utiliza-se
de Almas mortas a fim de exemplificar os conceitos que desenvolve ao longo do
texto. Concentramo-nos, portanto, em apresentar aqui as principais ideias tecidas
pelo teórico russo no que concerne ao gênero épico e à obra de Gógol e, em
seguida, discuti-las.
Bakhtin (2014) começa por definir o texto épico a partir daquilo em que ele
se diferencia do romance. Segundo o autor, o romance é o único gênero literário
ainda em transformação, enquanto os outros manifestam-se a partir de suas
formas acabadas. A epopeia, a propósito, é descrita por Bakhtin (2014) como um
gênero criado muito tempo e, atualmente, bastante envelhecido. Além disso,
distingue o romance e a epopeia com base no tempo representado. Enquanto o
primeiro relaciona-se ao presente ainda não acabado e significa o contato vivo
com o agora em constante desenvolvimento, o segundo representa o “passado
absoluto”, isolado da contemporaneidade do escritor. Nessa perspectiva, o
contexto sobre o qual se constrói a epopeia é o passado nacional épico em forma
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de lenda: “O mundo da epopeia é o passado heroico nacional, é o mundo das
‘origens’ e dos fastígios’ da história nacional, o mundo dos pais e ancestrais, o
mundo dos ‘primeiros’ e dos ‘melhores’” (BAKHTIN, 2014, p. 405).
De acordo com Bakhtin (2014), quando essa fronteira da distância épica
não é respeitada, a epopeia enquanto gênero perde sua significação. O
apagamento da distância fundamental do épico, para o autor, culmina no
romance: “O material épico transpõe-se para o romanesco, para uma área de
contato, passando pelo estágio da familiarização e do riso” (BAKHTIN, 2014, p.
407). Em relação ao elemento cômico, por sinal, Bakhtin (2014) considera que ele
apenas pode manifestar-se quando a narrativa permite uma inferiorização do
objeto representado, não sendo próprio dos gêneros elevados como o da
epopeia.
Lembramos que, no que tange ao riso proveniente da cultura cômica
popular e, portanto, associado à familiarização cômica da figura humana, o teórico
russo ressalta o elemento da carnavalização. Em A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento, Bakhtin (1996, p. 10) descreve o riso carnavalesco: “É,
antes de mais nada, um riso festivo. Não é, portanto, uma reação individual diante
de um ou outro fato ‘cômico’ isolado. O riso carnavalesco é em primeiro lugar
patrimônio do povo. Nesse sentido, o riso é geral e compartilhado entre todos.
Além do mais, é universal e atinge a todos e a todas as coisas, de modo que “[...]
o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto
jocoso, no seu alegre relativismo” (BAKHTIN, 1996, p. 10). Assim, o riso
carnavalesco não possui uma única face, mas se manifesta de forma
ambivalente: “[...] alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e
sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente” (BAKHTIN,
1996, p. 10).
De volta a Questões de literatura e estética, percebemos que Bakhtin
(2014) reafirma o caráter popular festivo, portanto carnavalesco, do riso em
Gógol. Por conseguinte, nessa perspectiva, o riso associa-se ao tempo presente,
ou seja, à época contemporânea que conserva o seu potencial de atualização: “A
atualidade da época é uma atualidade de nível ‘inferior’ em comparação com o
passado épico” (BAKHTIN, 2014, p. 411). Em consequência, no momento em que
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os heróis atualizam-se no sentido de se tornarem contemporâneos , eles
passam a pertencer ao romance.
Em relação ao posicionamento do autor, Bakhtin (2014, p. 417) considera
que o deslocamento do centro temporal, no romance, permite ao escritor “[...] sob
todas as suas máscaras e aspectos, mover-se livremente no campo do mundo
que é representado, o qual, na epopeia, era absolutamente inacessível e
fechado”. Dessa maneira, o romancista pode mostrar-se no campo da
representação como quiser, seja participando da conversa das personagens, seja
atacando abertamente seus inimigos literários. Isso significa que, com o romance,
tornam-se possíveis novas relações com o mundo representado e supera-se a
distância épica. O universo da epopeia, de acordo com Bakhtin (2014), conhece
uma única concepção de mundo e esta é obrigatoriamente compartilhada tanto
pelas personagens como pelo autor e pelos ouvintes.
Nesse ponto, o crítico russo toma Almas mortas por exemplo. Para ele,
embora Gógol tenha pretendido criar uma epopeia sobre o povo russo,
inspirando-se na forma da Divina Comédia de Dante, o que o autor conseguiu foi
escrever uma sátira menipeia
5
, que não se distanciou o suficiente do mundo
representado em Almas mortas: “Ele foi incapaz de sair daquela esfera do contato
familiar uma vez entrado nela, e não pôde transferir para esta esfera as imagens
concretas distanciadas” (BAKHTIN, 2014, p. 417). Na concepção bakhtiniana, tais
imagens distanciadas, próprias da epopeia, e as imagens do contato familiar
vinculadas ao tempo presente não podem se encontrar no mesmo nível de
representação. A sátira menipeia, aliás, está profundamente enraizada ao riso do
folclore carnavalesco que descrevemos anteriormente.
Contudo, a leitura que Bakhtin (2014) faz da obra de Gógol não é negativa,
uma vez que considera a sátira menipeia uma instância literária provocadora, “[...]
dialógica, cheia de paródias e de travestizações” (BAKHTIN, 2014, p. 416). Desse
modo, o autor aponta que, como um gênero do campo sério-cômico, a sátira
menipeia pode tecer uma enorme tela, bem como proporcionar uma reflexão
5
Forma de sátira em prosa que apresenta estrutura e extensão semelhantes às do romance e que
critica a mentalidade de uma sociedade. É possível que a sátira menipeia tenha sido criada por
Menipo de Gadara, filósofo grego antigo.
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socialmente multiforme e polifônica de determinada época, possibilitando que, sob
diversas máscaras e aspectos, o autor se movimente livremente no campo da
representação narrativa. Por isso, Bakhtin (2014, p. 418) destaca a
insustentabilidade do projeto de Gógol que se embasava no poema de Dante:
“Gógol não teria tido êxito em passar do inferno e da escuridão para o purgatório
e para o paraíso com as mesmas personagens e na mesma obra: era impossível
uma passagem contínua.” O juízo crítico que Bakhtin (2014) manifesta a respeito
de Almas mortas, portanto, não é depreciativo, mas valoriza a obra a partir de
outro ponto de vista.
Assim, Bakhtin (2014, p. 418) considera que a obra de Gógol compreende
uma tragédia do gênero, “[...] entendendo-se o gênero não no sentido formalista,
mas como zona e campo da percepção de valores e da representação do
mundo.” Isso significa que, na opinião do autor, Gógol desviou-se do caminho
épico ao não conseguir manter o foco sobre o plano de representação da obra e
ao confundir-se entre passado e presente: “Gógol perdeu de vista a Rússia”
(BAKHTIN, 2014, p. 418). Portanto, ao invés de alcançar o patamar da epopeia,
Almas mortas situa-se no universo do romance.
Concordamos com Bakhtin (2014) no que diz respeito às características
que estruturam a forma tradicional da epopeia e que fundamentam o gênero
literário ao qual ela pertence. Não temos motivos para ignorar que, nas obras
épicas que constituem o cânone, encontram-se os traços formais resgatados por
Bakhtin (2014), tais quais o “passado absoluto” e acabado, a distância épica, o
caráter heroico e sagrado do universo representado etc. Dessa maneira,
compreendemos que, conforme sustenta Bakhtin (2014), Almas mortas não
representa um exemplo típico de obra épica como a Ilíada por sua inadequação
aos parâmetros estruturais do gênero. Por outro lado, percebemos na obra de
Gógol uma força de expressão épica, aspecto que será melhor desenvolvido no
próximo capítulo. Além disso, não é nossa intenção enquadrar a literatura
gogoliana em um sistema fechado, justamente porque ela constitui-se ambígua.
Sugerimos, então, repensar alguns momentos da exposição de Bakhtin
(2014) em “Epos e romance” a fim de esclarecer nosso ponto de vista e a ideia de
que os argumentos do autor não anulam nossa proposição. Para começar,
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ressaltamos o fenômeno do “criticismo de gêneros” que, no século XVIII, com a
ascensão do romance, influencia toda a literatura. Ao descrever essa
transformação impulsionada pela passagem do romance de gênero secundário à
condição de gênero predominante e valorizado, Bakhtin (2014) aponta que as
demais formas literárias acabam por “romancizar-se”, em maior ou menor grau.
Com isso, o autor destaca a estilização de gêneros que, até então, conservavam
seu antigo cânone. A partir da supremacia do romance enquanto gênero, “[...] as
linguagens convencionais dos gêneros estritamente canônicos começam a ter
uma ressonância diferente, diferente daquela época em que o romance o
pertencia à grande literatura” (BAKHTIN, 2014, p. 399).
Por conseguinte, os gêneros literários “romancizados” tornam-se mais
livres, admitindo um caráter de renovação e introduzindo novas problemáticas.
Esse resgate histórico que Bakhtin (2014) elabora em seu texto permite-nos
esboçar um caminho paralelo: se o romance, em sua expansão, afeta os demais
gêneros literários, estes também compartilham, em alguma medida, os elementos
que lhes são intrínsecos com o gênero romanesco. Além disso, como o próprio
Bakhtin (2014, p. 397) afirma, a “[...] ossatura do romance enquanto gênero ainda
está longe de ser consolidada, e não podemos ainda prever todas as suas
possibilidades plásticas”.
Isto posto, torna-se admissível que uma obra literária, embora não se
estruture formalmente enquanto epopeia, conserve certo caráter épico como sua
essência. Essa ressignificação dos gêneros literários, por sinal, já havia sido
percebida na Rússia com Púchkin, poeta que pode ser considerado o criador do
anti-gênero na literatura de seu país. Seus procedimentos líricos, por exemplo,
afastam-se de tal modo dos conceitos convencionais de composição que seu
poema “Ruslán e Ludmila” já foi abordado pela crítica como um “não-poema”.
Outro ponto que desejamos sublinhar é o que se relaciona à questão
temporal. Bakhtin (2014) é categórico ao afirmar que a obra épica representa um
contexto distanciado temporalmente de seu autor e inacessível a ele, porém,
admite que casos em que a contemporaneidade e o passado acabado
encontram-se. O teórico russo indica como exemplo a Ciropedia de Xenofonte,
discípulo de crates. Nesse sentido, o foco de representação da obra “[...] é o
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passado, o herói é o Grande Ciro. Mas o ponto de partida da representação é a
realidade da época de Xenofonte: é justamente ela que dita os pontos de vista e
as orientações para certos valores” (BAKHTIN, 2014, p. 418). Na Ciropedia,
portanto, o tempo presente configura-se como o princípio da orientação literária e
não exclui, de acordo com Bakhtin (2014), a representação do passado heroico.
Assim, compreendemos que tal aspecto talvez não seja determinante para a
negação da essência épica de Almas mortas, podendo ser relativizado.
Por fim, destacamos ainda que, em outro momento de “Epos e romance”,
Bakhtin (2014) estabelece que a vida atual vulgar, “inferior”, não pode ser
representada pelos gêneros elevados, nos quais se situa a epopeia tradicional.
Para o autor, esse universo transitório era contemplado apenas pelos gêneros
inferiores, como os que se associavam à criação cômica popular e que
posteriormente deram origem ao romance através de suas raízes folclóricas.
Nesse sentido, a “ridicularização da atualidade vivente”, nos termos de Bakhtin
(2014, p. 412), e, consequentemente, o elemento risível, não podem estar
presentes na obra épica.
Entretanto, em Almas mortas, percebemos que tanto a vida atual vulgar
quanto o cômico convivem ambiguamente sob a sua natureza épica. Olhando
para seu povo e rindo por tudo aquilo que ele possui de ridículo e de mesquinho,
apesar da força com que se sustenta diante das adversidades, Gógol satiriza e
engrandece os homens russos. Portanto, o riso de Gógol é um riso ambíguo, nem
totalmente positivo, nem totalmente negativo: rebaixa e eleva, medidas as
proporções. Nesse caso, é possível que também o riso conserve seu caráter
épico.
Assinalamos ainda que tanto a essência do riso como a essência do épico
estão enraizadas em solo popular porque é sempre do povo que partem as
narrativas gogolianas de baixo, para Bakhtin (1996), porque diz respeito à terra,
ao sentimento de entrar em comunhão com ela. Na concepção artística de Gógol,
os mujiques, os cossacos, os homens das camadas populares mais baixas, são
as personagens mais nobres, em comparação aos altos funcionários e aos
generais. Assim, em nossa perspectiva, Gógol o perdeu de vista a Rússia no
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sentido atribuído por Bakhtin (2014), mas mostrou os homens russos como
realmente são obviamente, do ponto de vista do autor.
2. A EXPRESSÃO DA EPICIDADE E A CONSTRUÇÃO DE UM “HERÓI
PATIFE”
Com base nas considerações tecidas até este momento, tanto sobre o
estilo literário de Gógol quanto sobre os principais aspectos do gênero épico,
conforme estabelecido pela teoria clássica e compreendido por Bakhtin (2014),
podemos enfim desenvolver nossa interpretação de Almas mortas no que
compete ao seu caráter épico. Como assinalamos, além da intenção de obra
épica que Gógol possuía e que expressava nas cartas que escrevia a Púchkin e a
outros amigos, as passagens de natureza épica que se encontram em Almas
mortas corroboram nossa leitura e podem ser percebidas como índices de
epicidade lembremos das inúmeras vezes em que o autor se mostra dentro da
narrativa a fim de comentar algum trecho de seu “poema”. Apesar de os textos
épicos, dentro da tradição literária, serem narrados em terceira pessoa e
possuírem, em relação à sua forma, um tom mais objetivo, em Almas mortas,
Gógol manifesta a subjetividade de sua concepção narrativa ao colocar-se, ao
mesmo tempo, como um narrador distante, onisciente, e como um narrador que
dialoga de maneira muito próxima com o leitor.
O primeiro dos pontos que destacamos refere-se à ideia de “alma russa”,
uma vez que, ao descrever os homens a partir de uma coletividade, Gógol
constrói um vasto panorama da sociedade russa. Tomamos por exemplo um
trecho do quinto capítulo da primeira parte de Almas mortas, em que o autor
caracteriza a natureza do povo russo através de um ângulo específico o da
força da palavra. “Como o povo russo sabe expressar-se vigorosamente!”
(GÓGOL, 1972, p. 129), declara o autor, e afirma que, quando um homem resolve
dirigir a alguém uma “palavra forte”, esta se faz sentir durante toda a vida,
perpassando épocas e gerações. Isso significa que “[...] o que foi dito com
pontaria certeira, tal qual o que ficou escrito, não se derruba nem com um
machado” (GÓGOL, 1972, p. 130). Para Gógol, o vigor da palavra russa está
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relacionado ao âmago da própria Rússia, às profundezas do solo não tocado por
estrangeiros, onde “[...] existe o puro talento nativo, o espírito russo, vivo e
agudo, que tem sempre a resposta na ponta da língua, e não fica a chocá-la como
uma galinha os seus ovos, mas solta-a na cara qual tabefe, como um passaporte
para todo o sempre” (GÓGOL, 1972, p. 130).
A partir de uma perspectiva artística, Gógol apresenta a vida russa e os
homens que a sustentam. Conforme indica Emil Staiger (1997) em Conceitos
fundamentais da Poética, é justamente o ato de mostrar alguma coisa, de
apresentá-la em suas diversas facetas, a ação essencial do homem épico. Desse
modo, associamos a epicidade de Almas mortas à intenção do autor de mostrar
determinada realidade a partir do caminho percorrido por Tchítchicov.
Enfatizamos, portanto, uma atitude contemplativa, mas, ao mesmo tempo,
participativa.
O segundo índice que, conforme percebemos, ressalta a epicidade de
Almas mortas, pode ser encontrado nos cenários russos que o autor pinta ao
longo da obra. O sentimento de grandeza que Gógol manifestava ao planejar seu
poema sente-se também nas imagens da natureza russa que colorem diversos
episódios de Almas mortas planícies imensas, estradas intermináveis, densos
bosques e a poderosa amplidão da mãe Rússia”. Nas paisagens descritas pelo
autor, tudo é vivo e exuberante.
Encontramos uma descrição do “horizonte sem fim” da Rússia provinciana
de Gógol nas primeiras páginas do décimo primeiro capítulo. Aqui, o autor
apresenta as estradas russas em relação a tudo aquilo que um viajante pode
encontrar pelo caminho, apontando para as miudezas da vida do povo:
E de novo, de ambos os lados da estrada real, começaram a
passar os marcos de verstas, guardas de estações, poços, filas de
carroças, aldeias cinzentas com seus samovares, suas
camponesas, e o estalajadeiro esperto e barbudo, correndo-lhes
ao encontro com aveia na mão, e o andarilho de alpercatas
surradas, arrastando-se a oitocentas verstas, cidadezinhas
construídas às pressas, com vendinhas de madeira (GÓGOL,
1972, p. 265).
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Com “campos infindáveis” de ambos os lados da estrada e todo tipo de
gente que habita os arredores, mujiques que entoam uma canção e corvos que
voam em bandos como moscas, os cenários construídos pelo autor representam
quadros panorâmicos da vida russa. Entretanto, a ótica gogoliana capta uma
faceta muito específica da existência do povo. A pena do autor não se ocupa de
“milagres da arte”, pois a Rússia que aparece à margem da estrada não possui
refinamentos, não é feita de altos palácios ou de montanhas radiosas. A Rússia
desnudada em Almas mortas é pura em sua simplicidade: “Tudo no teu interior é
escancarado e deserto, tudo é plano” (GÓGOL, 1972, p. 266).
Os mujiques de Almas mortas constituem nosso terceiro índice épico. Há,
em relação aos mujiques que povoam a obra de Gógol, certa inversão dos valores
convencionais. Comumente considerados como artigos de força bruta que podiam
ser adquiridos por alguns rublos, tornando-se então propriedade de um senhor de
terras, os servos almas passam a ser vistos pelo autor como possuidores
daquilo que de mais verdadeiro na alma russa. Isto posto, podemos apreender
que, simbolicamente, os mujiques são as personagens mais nobres de Almas
mortas, pois se encontram mais próximos da terra e da força do povo, enquanto
que os proprietários rurais têm suas almas corrompidas pelos vícios da
sociedade.
Aliás, é interessante pensar a respeito dessa inversão em relação aos
pilares tradicionais que estruturam as antigas epopeias, que, segundo observa
Helena Parente Cunha (1999), esses textos são centrados nas ações de
personagens nobres. É claro que as personagens nobres apontadas por Helena
Parente Cunha (1999) pertencem a outro contexto. Contudo, ao seu modo, os
mujiques de Almas mortas podem ser considerados como moralmente superiores
às personagens que possuem títulos de nobreza, por exemplo. Assim, o olhar do
autor valoriza especialmente as pessoas do povo, conferindo-lhes certa nobreza
de espírito.
Na perspectiva de Gógol, contudo, os mujiques não são apenas percebidos
como aqueles que, arando a terra, vivem seus dias com mais dignidade. Para o
autor, caso não haja um proprietário justo e fiel às suas funções para conduzi-los
pelo caminho correto, os camponeses tornam-se maus e preguiçosos. Ao narrar a
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situação da propriedade de Tentiêtnikov, na segunda parte da obra, o autor
ressalta que, pela falta de habilidade do bárin
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em administrar as terras, os
mujiques passam a enganar seu senhor e perdem totalmente o respeito por ele,
de modo que até mesmo as galinhas se atrevem a bicá-lo. Assim, na casa “[...]
reinava a omissão, a incúria, a ladroeira, não faltando também a bebedeira”
(GÓGOL, 1972, p. 333).
Apesar disso, da tendência a corromperem-se na ausência de trabalho e
da inclinação à bebida, os mujiques continuam sendo as personagens mais
próximas de um propósito divino para a vida, pois é somente no trabalho com a
terra “[...] que o homem imita a Deus” (GÓGOL, 1972, p. 383). Por sobreviverem
em condições precárias, possuindo muito pouco para se sustentarem e uma alma
simples, mas conhecedora da vida prática, os homens do povo apresentados por
Gógol podem ser pensados como figuras sobre-humanas e, de certo modo,
épicas.
Nosso último índice diz respeito justamente ao caráter heroico do
protagonista de Almas mortas. Embora o autor se refira a ele como “nosso herói”,
opera-se nessa postura uma nova significação do caráter convencionalmente
conhecido como heroico, que o próprio autor afirma, no último capítulo da
primeira parte da obra, que seu herói é um patife. Por conta das artimanhas
empregadas por Tchítchicov a fim de alcançar seus objetivos e da natureza
ardilosa de sua personalidade, o autor compreende que tal protagonista muito
dificilmente poderá agradar aos leitores que “[...] exigem que um herói seja o
supra-sumo da perfeição, e se ele apresentar a mínima jaça, física ou espiritual, é
um desastre!” (GÓGOL, 1972, p. 269).
Como explicação ao fato de o ter tomado por herói um homem virtuoso,
Gógol revela:
É porque está em tempo de dar finalmente um descanso ao
pobre homem virtuoso; porque soam ocas nos lábios as
palavras “homem virtuoso”; porque transformaram em
cavalgadura o homem virtuoso, e não escritor que não o
monte, espicaçando-o com o chicote e com o que mais lhe cair
nas mãos; porque extenuaram de tal forma o homem virtuoso, que
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Tratamento dado aos amos pelos servos. Em russo, significa “senhor” ou “patrão”.
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agora ele não tem mais nem sombra de virtude, mas sobraram
dele apenas pele e ossos em lugar do corpo; porque é com
hipocrisia que apelam para o homem virtuoso; porque não
respeitam o homem virtuoso. Não, é tempo de atrelarmos um
patife (GÓGOL, 1972, p. 269-270).
Desse modo, o herói gogoliano mostra-se um velhaco, e seus principais
atributos um senso apurado de observação e um tipo de inteligência voltado ao
lado prático da vida , mesmo que não pareçam de todo maus, são
constantemente utilizados em prol de alguma trapaça ou astúcia. Percebemos,
contudo, que o caráter do herói de Almas mortas se constrói e adquire novas
nuances ao longo da narrativa. Ao final da primeira parte da obra, o autor deixa
entrever a ideia de que a alma de Tchítchicov possa regenerar-se: “[...] quem
sabe, ainda nesta mesma estória, sentir-se-á vibrar em cordas até agora não
tocadas, surgirá a riqueza incomensurável do espírito russo (GÓGOL, 1972, p.
269). Talvez, com os planos de redenção que Gógol tinha para seu protagonista,
os leitores pudessem ver “[...] o quão profundamente arraigado na natureza
eslava está tudo aquilo que a natureza dos outros povos roçou pela rama”
(GÓGOL, 1972, p. 269).
Embora a segunda parte da obra reforce essa ideia com trechos em que a
alma de Tchítchicov parece despertar para um novo sentido, tocada pelas
palavras de Murázov, que tenta exortá-lo a levar uma vida simples e decente, a
parte de Almas mortas que chegou até nós não é suficiente para completar essa
intenção épica em relação à evolução da personagem, apenas para vislumbrá-la.
O que temos, de fato, é um herói patife que, apesar das incertas propensões a
arrepender-se, permanece como um homem arrastado pelas próprias ambições.
Apesar disso, do ponto de vista da epicidade, o personagem não deixa de ser um
herói um herói às avessas, mas ainda assim um herói.
Mesmo que a obra de gol não se constitua como uma epopeia
tradicional, os elementos do gênero épico que compõem a narrativa, revisitados e
reconfigurados pela criatividade do autor, contribuem para a expressão de uma
essência épica. Em Conceitos fundamentais da Poética, ao rever as noções de
épico, lírico e dramático, Staiger (1997) distingue entre a Épica enquanto forma
portanto, enquanto gênero e o épico enquanto essência. Segundo seu ponto de
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vista, existe, sem dúvidas, uma relação entre lírico e a Lírica, épico e a Épica e
dramático e o Drama, uma vez que os mais típicos exemplos do épico são
encontrados nas epopeias, por exemplo. Contudo, como apontamos
anteriormente e conforme reafirma Staiger (1997, p. 15), considerar que uma obra
possa apresentar-se puramente lírica, épica ou dramática consiste em uma
conclusão precipitada, pois “[...] qualquer obra autêntica participa em diferentes
graus e modos dos três gêneros literários.” Em vista disso, é possível denominar
um drama como lírico e um romance como dramático.
Sob essa perspectiva, ao considerarmos os índices de epicidade
apresentados até aqui, podemos perceber que a essência épica, em Gógol, surge
da intenção de expor a história do povo russo obviamente, não de toda a Rússia
e nem de todas as suas épocas, mas sob determinado ponto de vista. Assim
compreendida, Almas mortas não se comporta como uma epopeia protagonizada
por um herói clássico, mas como uma obra cuja essência épica emana dos muitos
homens que constituem o povo russo.
Ademais, nossa concepção interpretativa dos textos literários não possui
caráter fundamentalista, e, por isso, tendemos a um olhar mais sensível
direcionado à obra, mesmo quando são envolvidos aspectos teóricos “acabados”
e pouco maleáveis como é o caso do passado épico. Portanto, apesar da
afirmação de Bakhtin (2014) de que Gógol não alcançou a ideia de obra épica em
Almas mortas por não seguir as regras do gênero, será que a intenção épica do
autor não pode ser percebida em sua obra? Seque a essência dessa intenção
não se manifesta na própria natureza da narrativa gogoliana? Embora Gógol não
a tenha concluído, a parte de Almas mortas que chegou até nós parece oferecer
possibilidades suficientes para viabilizar nosso estudo.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste trabalho, apresentamos um recorte específico sobre a
obra de Gógol e abarcamos uma perspectiva interpretativa diversa da nossa,
dentre as muitas que ainda seriam possíveis. Com isso, ressaltamos que as
considerações que tecemos aqui não possuem a pretensão de figurarem como
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absolutas ou acabadas, uma vez que as obras literárias não se esgotam no ato da
interpretação. Assim, segundo aponta o hermeneuta Ernildo Stein (1996), quem
fala sobre o mundo, fala sobre algo que não se limita. Desse modo, ao invés de
validar nosso discurso por meio da anulação de outro, nosso intuito foi antes o de
dialogar com um ponto de vista distinto do que possuímos, levando em
consideração os novos horizontes interpretativos que ele é capaz de proporcionar
à nossa pesquisa.
Ademais, esperamos ter contribuído com os estudos acerca da literatura de
Gógol ao elaborar uma leitura menos objetiva e mais complexa de sua obra
uma leitura mais humana. Mais do que um escritor multifacetado, o autor de
Almas mortas também era um sujeito de muitas individualidades. Dentro dele,
travaram-se por toda a vida profundos conflitos entre o homem religioso e o
artista, entre aquele que teme a Deus e o que ri do diabo, entre o moralista e o
livre pensador, conforme assinala a pesquisadora Arlete Cavaliere (2009). Tais
elementos conflitantes constituíam a personalidade ambígua de Gógol e podem
ser percebidos tanto em seus escritos pessoais, como, por exemplo, nas cartas a
amigos, quanto em sua obra literária. Nos últimos anos de vida, essas
inquietações interiores acentuaram-se de tal forma que, não sendo capaz de
conciliar o tom moralizante que planejava imputar a Almas mortas e seu talento
criativo, o autor atirou ao fogo os manuscritos da segunda parte da obra, restando
dela apenas alguns fragmentos.
Em Gógol, esse aspecto multifacetado permite que sua obra se equilibre
sempre entre dois mundos ou mais , exigindo do intérprete a habilidade de
perceber tonalidades que, apesar de à primeira vista parecerem contraditórias e
inconcebíveis, são coerentes com o ponto de vista do autor. Em Almas mortas,
aliás, o autor aponta para a natureza dessa questão ao destacar que o riso possui
delimitações muito tênues e um imprevisível potencial de transformação: “Mas por
que será que, no meio dos momentos mais leves, alegres e despreocupados, às
vezes surge por si mesma uma corrente estranha? O riso ainda nem teve tempo
de se apagar do nosso semblante, e nos transformamos em outro” (GÓGOL,
1972, p. 71).
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Existe na perspectiva gogoliana, por conseguinte, uma imbricação entre o
sério e o risível. Ela é expressa pelo próprio autor em determinados momentos da
narrativa, como no que ressalta que “[...] o igualmente maravilhosas as lentes
que mostram os sóis e as que mostram os movimentos dos ínfimos insetos”
(GÓGOL, 1972, p. 159-160), ou no que afirma que é necessária muita profundeza
de alma para focalizar um quadro da vida mundana. Com isso, Gógol fundamenta
as bases de sua estética e torna possível que, em uma única obra, coabitem a
seriedade elevada do épico e o limo da mesquinharia revelado através do riso.
Nesse sentido, podemos conceber que, talvez, Bakhtin (2014) tenha realizado
uma leitura demasiado dura de Almas mortas.
Por fim, em nossa interpretação da narrativa de Gógol, distinguimos forma
de essência com base nas considerações de Staiger (1997). O autor ressalta que
a essência predominante de uma obra não depende de sua forma, podendo
nascer de uma atitude que tenha especial força de expressão. Destaca ainda que,
em uma mesma obra literária, podem manifestar-se características de diferentes
gêneros. Por conseguinte, sustentamos a ideia de que, embora Almas mortas não
represente uma epopeia tradicional no que diz respeito à sua forma, compartilha
em certa medida de aspectos oriundos do gênero épico e possui essência épica
por apresentar a vida do povo russo.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec;
Brasília: EDUNB, 1996.
BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
Trad. Aurora Fornoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior,
Helena Spryndis Nazário, Homero Freitas de Andrade. 7. ed. São Paulo: Hucitec,
2014.
CAVALIERE, A. O teatro de Gógol: tradição e modernidade. In: GÓGOL, Nikolai.
Teatro completo. Organização e tradução de Arlete Cavaliere. São Paulo: 34,
2009.
CUNHA, H. P. Os gêneros literários. In: PORTELLA, Eduardo (Org.). Teoria
literária. 5. ed. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1999.
GÓGOL, N. Almas mortas. Trad. Tatiana Belinky. São Paulo: Abril cultural, 1972.
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PROPP, V. Comicidade e riso. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas
de Andrade. São Paulo: Ática, 1992.
STEIN, E. Aproximações sobre Hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
STAIGER, E. Conceitos fundamentais da Poética. Trad. Celeste Aída Galeão.
3. ed. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997.