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Como citar este artigo:
CARVALHO, P. B. P. Relação entre língua e identidade: a fala denuncia quem somos.
Revista Diálogos, v. 7, n. 1, 2019
A autora:
Doutora em Linguística e Língua Portuguesa (UNESP/FCLAr). É professora EBTT do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), campus
Barretos. Membro do Núcleo de Pesquisa em Sociolinguística de Araraquara (SoLAr).
RELAÇÃO ENTRE LÍNGUA E
IDENTIDADE: A FALA DENUNCIA
QUEM SOMOS
Pricila Balan Picinato de Carvalho
(IFSP/SoLAr)
pricilabp@hotmail.com
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Resumo: Este artigo tem como objetivo pesquisar como o falante da cidade de Sales
Oliveira (SP) constitui sua identidade e como isso se reflete no comportamento linguístico
que apresenta, ou seja, se o modo como o salense se corresponde ao modo como fala.
A hipótese inicial é a de que a identidade que o falante afirma ter nem sempre corresponde
com o modo como fala. Para comparar a relação entre língua e identidade, realizou-se uma
pesquisa de campo com 30 salenses, nascidos e moradores da cidade. Quando questionados
sobre as características que compunham a identidade “caipira”, os salenses elencaram traços
muito presentes na figura estereotipada veiculada pela mídia: simplicidade, relação com a
zona rural, roupas xadrez, falar errado, baixa escolaridade, vergonha e timidez.
Palavras-chave: Identidade. Língua. “Caipira”. Sales Oliveira-SP
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1 Introdução
“(...) Vivendo no mato, caipira de fato, feliz e não nego.” O trecho da canção intitulada “Caipira de fato”,
da dupla João Carreiro e Capataz, descreve a rotina de um indivíduo que se denomina “caipira” e explica os
traços que compõem esse modo de ser: vida simples, no mato, junto com a família e em contato com a natureza.
Na canção, “ser caipira” está associado a um modo de viver em comunhão com a natureza, por meio de uma
vida simples. Mas, alguns questionamentos colocam em xeque o modo de ser “caipira” apresentado na canção
como, por exemplo: i) se seria possível associarmos o modo como o caipira é apresentado nessa música com a
forma como os “caipiras” denominam seu modo de ser e/ou viver; ii) se existe ou não uma identidade “caipira”;
e iii) caso essa identidade “caipira” exista, quais traços a compõem.
Pensar em como a identidade é constituída é uma tarefa árdua. Questões como “quem sou eu?”, “quem
é você?”, o que eu poderia ser?podem suscitar questionamentos sobre como se define uma identidade
possível essa definição?) e quais os aspectos que a compõem. De acordo com Oliveira (2006), o termo identidade
é polissêmico, ou seja, cada área da ciência enfatiza um determinado conceito ou aspecto para definição. Por
isso, é possível encontrar estudos sobre identidade que transitam pelo campo da Psicanálise Chnaiderman
(2006) , da Sociologia Silva (2013), Hall (2013), Penna (2006), Woodward (2013) e Oliveira (2006) e até
mesmo da Linguística Ilari (2013), Labov (2008), Mey (2006), Oushiro (2015) e Rajagopalan (2006). Neste
artigo, buscaremos associar identidade e questões linguísticas, mais precisamente, como a língua auxilia na
constituição da identidade do indivíduo.
Oliveira (2006) afirma que a língua exerce papel fundamental na constituição da identidade de um povo,
pois, os falantes se expressam por meio da linguagem. É através da linguagem e na linguagem que o indivíduo
constrói sua identidade (ou identidades) (RAJAGOPALAN, 2006).
Este artigo é resultado de algumas reflexões realizadas na tese de doutorado intitulada “Diga-me como
falas e eu direi quem és: um estudo Sociolinguístico da fala ‘caipira’ na cidade de Sales Oliveira- SP”
1
, recém
defendida. Tais reflexões originam-se das tentativas em pesquisar como a língua relaciona-se com constituição
da identidade do indivíduo, ou seja, com a imagem que o falante possui de si mesmo, sob o olhar da
Sociolinguística. Sendo assim, como objetivo principal deste trabalho buscaremos responder ao seguinte
questionamento: o modo como o falante de uma cidade do interior do estado de São Paulo, chamada Sales
Oliveira, acha que fala corresponde ao modo como ele realmente se comporta linguisticamente? Como objetivos
específicos, buscaremos relacionar como as características elencadas pelos salenses como parte constituinte da
identidade desses falantes refletem nas suas crenças, além de descrever e analisar como a identidade desse povo
é constituída. A hipótese que permeia este estudo é a de que o modo como o falante acha que se comporta
linguisticamente nem sempre corresponde ao modo como ele fala.
1
Tese defendida, no ano de 2018, pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa, da Universidade Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” Unesp de Araraquara, sob a orientação da professora Dra. Rosane de Andrade Berlinck.
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Goffman (2014) afirma que, muitas vezes, acreditamos que os indivíduos se comportam de uma
determinada maneira na tentativa de construir ou representar uma imagem para o “outro”. Mas, de acordo com
o autor, é preciso analisar não apenas a forma como o indivíduo se apresenta, mas qual a crença que essa pessoa
possui no papel que está representando. Por exemplo, apresentar determinados comportamentos porque tais
atitudes são esperadas de nós. Entretanto, não precisamos acreditar no papel que estamos desempenhando.
Outras vezes, abandonamos alguns comportamentos por estes não serem compatíveis com o padrão ideal
(GOFFMAN, 2014).
Com o intuito de discutir as relações “ser” X “parecer” e “comportamento linguístico” X “identidade”,
elencadas acima, o artigo estrutura-se em 5 principais partes, a saber: i) introdução; ii) discussão sobre identidade
e definição de identidade “caipira”; iii) aspectos metodológicos que abrangem a pesquisa de campo realizada na
cidade de Sales Oliveira-SP; iv) discussão e apresentação dos dados oriundos da pesquisa de campo; e v)
considerações finais.
Na primeira parte, faremos uma breve explanação sobre a organização do artigo. Na segunda parte,
apresentaremos a correlação que existe entre língua e identidade, com enfoque nas relações de pertencimento a
um determinado grupo social e, consequentemente, linguístico: o modo como uma pessoa fala colabora para o
processo de identificação deste indivíduo em um determinado grupo social.
A terceira seção do artigo compreende os aspectos metodológicos. Para que pudesse ser feita uma
comparação entre a percepção que o salense relata sobre as características que constituem o modo de ser
“caipira”, a forma como esse falante se comporta linguisticamente e o fato deste negar ou se reconhecer como
“caipira”, foi realizada uma pesquisa de campo com 30 pessoas que nasceram e moram em Sales Oliveiras (15
homens e 15 mulheres) de três faixas etárias distintas: 10-15 anos; 30-45 anos e acima de 70 anos. A escolha por
três faixas etárias distintas nos permitiu observar se existem mudanças linguísticas em curso na comunidade
analisada. Além da aplicação de um questionário sobre o que é ser “caipira” e os traços que caracterizam esse
modo de ser, também foram realizadas gravações que nos permitiram observar se as falas dos salenses
entrevistados continham alguns aspectos fonéticos caracterizados como processos da fala “caipira”, elencados
na obra clássica do falar “caipira” intitulada “O dialeto caipira”, de Amadeu Amaral (1976). Dentre os aspectos
fonéticos analisados estão: i) ausência ou presença da variante “r” como retroflexa em posição de coda silábica (ex: mar); ii)
rotacismo (ex: mel>mer); iii) vocalização ou não da consoante lateral palatal /ʎ/ (ex: mulher>muié).
A escolha por realizar uma pesquisa de cunho sociolinguístico na comunidade salense justifica-se pelo
fato de Sales Oliveira ser uma cidade do interior do estado de São Paulo onde muitos traços da cultura “caipira”
descritos por Antonio Candido (2001) ainda se fazem presentes. Dentre esses traços, destacamos as fortes
relações de compadrio, o fato de as pessoas se conhecerem, se chamarem por apelido, se cumprimentarem nas
ruas, além do baixo nível populacional (aproximadamente 10 mil habitantes).
Ademais, acreditamos que seja de suma importância que os falares das cidades de menor porte do interior
também sejam investigados, descritos e analisados, pois, além de contribuírem com projetos que estudam a
variação linguística em um panorama mais amplo, esses estudos podem, quem sabe um dia, tornar a fala desses
lugares mais conhecida e mais respeitada.
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Torna-se necessário explicar que o termo “caipira” não será empregado no artigo como referência à
imagem cristalizada e estereotipada veiculada pela mídia como imagem do Jeca Tatu, criação de Monteiro
Lobato. “Caipira”, neste artigo, será utilizado como sinônimo de uma cultura ímpar, que preza pelas relações de
compadresco, baseadas nas trocas solidárias, assim como denominou Candido (2001).
A quarta parte diz respeito à discussão dos dados obtidos nas gravações. As análises realizadas apontam
para um alto índice de “r” pronunciado como retroflexo na fala de entrevistados que não se consideram
“caipiras”. As ocorrências de rotacismo e vocalização também apresentaram números mais expressivos na fala
dessas pessoas.
Por fim, a seção 5 deste artigo sintetiza as principais conclusões do estudo desenvolvido.
2 Breve explanação sobre identidade
Muito se tem falado sobre identidade atualmente, mas caracterizá-la ainda é um processo complexo. Essa
complexidade se pelo fato de um indivíduo o apresentar apenas uma única identidade e por ela não ser
algo fixo, imutável.
Para Woodward (2013) a identidade não é algo unificado ou fixo. Segundo a autora, cada pessoa possui
várias identidades, que se constituem em relação à diferença, ou seja, uma identidade é sempre estabelecida em
relação à outra (WOODWARD, 2013). Ao afirmar que a identidade se estabelece pela diferença, a autora explica
que a diferença é relacional e compreende aquilo que não somos. Quando afirmamos “somos brasileiros”,
negamos que somos argentinos, por exemplo. A existência da identidade “caipira” é possível mediante a
existência da identidade não caipira.
Ao compactuar as ideias de Woodward (2013) sobre as relações de oposição existentes na construção da
identidade, Hall (2013) afirma que toda relação dicotômica possui um lado que acaba sendo mais valorizado. A
parte mais valorizada, geralmente, é aquela que se aproxima mais das normas pré-estabelecidas socialmente e a
parte menos valorizada encontra-se mais próxima do que não é considerado como “ideal”. Sendo assim, o
processo de valorização ou não de uma identidade engloba questões de poder (SILVA, 2013).
Como consequência dessas relações de poder, quando uma identidade é estabelecida, alguns indivíduos
pertencerão a ela e outros serão excluídos. Essa relação de inclusão e exclusão é um reflexo das relações sociais,
políticas e de hierarquização presentes na nossa sociedade. Silva (2013) afirma que a identidade não é fixa,
tampouco estável: ela é uma construção e, por isso, inacabada, fragmentada e contraditória, pois reflete toda a
heterogeneidade e os conflitos que permeiam a vida em sociedade.
Ao considerar a identidade como um processo em construção, deixamos de pensá-la apenas como um
atributo pessoal e passamos a compreendê-la como uma atividade individual e, ao mesmo tempo, coletiva, capaz
de abranger aspectos censitários como sexo e etnia , papéis sociais mãe, professor, médico, filho e as
decisões e posturas sociais assumidas pelos indivíduos enquanto seres sociais (OUSHIRO, 2015).
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Para Woodward (2013) a linguagem possui um papel de destaque na constituição da identidade, pois esta
possui sentido por meio da linguagem e dos símbolos. Por símbolos entendemos as roupas, adereços que são
usados e que “marcam” uma identidade. A mídia televisiva, por exemplo, quando cria personagens “caipiras”,
geralmente, os vestem de xadrez (como se todo “caipira” usasse apenas roupa xadrez), ou seja, esse tipo de
roupa tornou-se uma espécie de “marca” da identidade “caipira”.
Em relação à linguagem, tamanha é sua importância para a caracterização da identidade que Rajagopalan
(2016, p. 41) afirma que “a identidade de um indivíduo se constrói na língua e através dela”, ou seja, é através
da língua que pensamos, sentimos, nos identificamos com outras pessoas. Como afirma Ilari (2013), a língua é
um elo de identidade que estabelecemos com o outro
A relação entre língua e identidade é claramente perceptível por Labov (2008) em Martha’s Vineyard. Os
vineyardenses não possuíam um sentimento muito afetuoso em relação aos turistas que compravam casas na
ilha apenas para passar o verão. Uma das características dos habitantes mais antigos de Martha’s Vineyard era
centralizar [ay] e [aw], o que não acontecia com frequência na fala dos turistas. O processo de identificação pela
língua começa quando os jovens que não tinham a pretensão de deixar a ilha começam a imitar o comportamento
linguístico dos mais velhos, deixando marcado para o turista que este o era habitante nativo da ilha. Por outro
lado, os jovens que aspiravam a sair da ilha não realizavam tantas centralizações em suas falas (LABOV, 2008).
Nesse caso, a língua funcionava como um dos traços constituintes da identidade de morador da ilha, ou seja,
esse é um exemplo de como questões linguísticas estão relacionadas à identidade.
2.1 Identidade “caipira” e o estereótipo do atraso social
A origem da comunidade “caipira” está nos movimentos de entradas e bandeiras que ocorreram nos
séculos XVI, XVII e XVIII, com o intuito de dilatar fronteiras em busca de mão-de-obra escrava. Devido a
esses movimentos impulsionados pelo governo geral e realizados pelos bandeirantes, muitas cidades do interior
do estado de São Paulo, como Piracicaba, Araraquara, São Carlos e Ribeirão Preto, foram formadas
(PICINATO, 2013).
A princípio, os “caipiras” eram nômades e desenvolviam uma agricultura ecológica, apenas para
subsistência. Entretanto, a partir do momento que foram se fixando, começaram a surgir os povoados e o estilo
de vida dessas pessoas voltou-se para as relações de compadrio, da vida em harmonia, da divisão dos alimentos
(PICINATO, 2013). A partir do momento que começou a industrialização das capitais e o cultivo de café no
interior do estado de São Paulo, esse modo de vida passou a ser comparado com o estilo dos grandes centros
urbanos. É importante ressaltar que, nas capitais, havia uma grande tendência a seguir os padrões estipulados
pelos países europeus e como o modo de vida do interior não se assemelhava aos padrões oriundos da Europa,
começou a ser estigmatizado.
A desvalorização do “caipira” atingiu seu ápice quando Monteiro Lobato, em 1914, criou Jeca Tatu:
personagem dotado de preguiça, que ajudou a cristalizar a imagem do “caipira” como sinônimo do atraso social.
Embora tenhamos tido pesquisadores (e defensores) da cultura “caipira”, como Antonio Candido (2001) e
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Cornélio Pires (a partir da década de 10, século XX a1958), a imagem do “caipira” como símbolo do atraso
social ainda é muito difundida, principalmente, pela mídia televisiva. Como consequência disso, a identidade
“caipira” é, até hoje, construída a partir de elementos como: ruralidade, simplicidade e falta de estudo
(PICINATO, 2018).
É inegável que as transformações sociais, culturais e históricas pelas quais os habitantes do interior têm
passado influenciam na forma como são, atualmente, representados. O “caipira” cedeu espaço para o caubói,
para o agroboy
2
, ou seja, temos novos status e, consequentemente, novas identidades. Para Woodward (2013) a
cultura, a mídia e as relações sociais acabam moldando a identidade e, consequentemente, as formas de
representação. Por uma questão de poder, algumas representações acabam ganhando maior destaque e passam
a ser preferidas pelos indivíduos (WOODWARD, 2013). Ainda segundo a autora, a forma como representamos
a nós mesmos tem sofrido mudanças, pois estamos passando, enquanto sociedade, por um período de
fragmentação pessoal oriunda das mudanças sociais. Por isso, é comum ouvirmos dizer que está ocorrendo uma
crise de/nas identidades. O que acontece, de fato, é que a vida moderna nos leva a assumir identidades que,
devido às questões sociais, podem estar em conflito (WOODWARD, 2013).
Quando a mídia representa o “caipira” de maneira semelhante à figura do Jeca Tatu, o morador do
interior nem sempre (ou nunca) se sente representado pela imagem estereotipada que é veiculada na telinha e
quando questionado sobre o fato de ser ou não “caipira”, provavelmente, negará pertencer a esse grupo. Isso
ocorre porque os estereótipos são, em sua maioria, avaliações de cunho pejorativo cujo objetivo é fazer
julgamentos, favorecendo o aparecimento e a perpetuação de atitudes discriminatórias. Pereira (2002) apresenta
algumas definições sobre o assunto, ao longo dos anos. No século XIX, por exemplo, os estereótipos estavam
relacionados aos pacientes que, por apresentarem problemas de demência, realizavam os mesmos movimentos
repetidas vezes. A ideia de repetição também estava presente quando o termo começou a ser associado aos
moldes utilizados nas gráficas para realizar impressões (PEREIRA, 2002). no século XX, começaram a
associá-lo às estruturas que abarcavam crenças e expectativas sobre um grupo. Atualmente, esse conceito de
estereótipo surge nos mais variados contextos e corresponde às crenças que são compartilhadas de forma
mecânica: daí a associação com os movimentos repetidos realizados pelas pessoas com problemas mentais e
com os moldes das gráficas que imprimiam de forma mecânica e igual os escritos. (PEREIRA, 2002).
Dentre os fatores considerados mais importantes para a caracterização dos estereótipos, Pereira (2002)
cita o consenso, ou seja, eles são compartilhados pelas pessoas; a homogeneidade das características, pois para
estabelecê-los é necessário observar quais são os traços comuns presentes no grupo a ser estereotipado; e a
distintividade, que compreende os traços diferentes e que nos permitem tecer diferenciações como, por exemplo,
o que faz um grupo não ser igual outro. Além dessas características, existem também os elementos avaliativos:
aqueles que atribuem valores positivos ou negativos para os traços de um grupo social (PERERIRA, 2002).
2
Termo usado para designar o “playboy” do campo. Geralmente, possui caminhonete, gosta de beber, tem ligação com a área da
agricultura, ouve música sertaneja e é muito paquerador. O cantor Landau define o agroboy, em uma de suas canções, como o “caipira
hardcore”.
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Os estereótipos podem ser considerados sob duas perspectivas: a individual e a coletiva. No plano
individual, como o próprio nome diz, a imagem estereotipada está apenas na pessoa, sendo assim, a vítima
desse processo de uniformização não tem conhecimento sobre essa imagem. Isso pode acontecer, por exemplo,
quando uma pessoa, ao longo da vida, teve experiências não agradáveis com um determinado grupo e acaba
criando uma imagem sobre esse grupo e as pessoas que o compõem. no plano coletivo, a imagem criada é
perpetuada e difundida pelos membros da sociedade. O grupo estereotipado possui conhecimento sobre a
estereotipação, pois, em muitos casos, sofre com preconceito e é vítima de atitudes discriminatórias (PEREIRA,
2002).
Pereira (2002) afirma que uma das formas do estereótipo coletivo ser ainda mais difundido é sua
veiculação nas mídias, nos meios de comunicação em massa. Ainda hoje, a imagem do “caipira” está arraigada
pelo estereótipo que vem sendo difundido ao longo dos anos. Mas, é necessário compreender a forma como o
próprio “caipira” o habitante do interior se para que seja possível comparar com o modo como são
retratados pelas mídia. Quando um grupo é tima de estereotipação, existe uma tendência de que os seus
membros tentem se proteger a fim de evitar situações discriminatórias e/ou preconceituosas. Uma forma de
proteção é buscar no grupo estereotipado traços que sejam vistos como positivos e supervalorizar essas
características. Outra forma de defesa é tecer comparações entre os membros do próprio grupo ou evitar as
situações que evidenciem os traços estereotipados (PEREIRA, 2002).
Quando pensamos na imagem veiculada do “caipira”, alguns traços são mais estereotipados, como a
vestimenta e o modo de falar, principalmente, em se tratando do emprego da variante “r” como retroflexa.
Durantes alguns estudos realizados no mestrado, analisamos o modo como a mídia televisiva retratava as
personagens “caipiras” nas telenovelas e constatamos a existência de uma forte tentativa de enfatizar o emprego
da variante retroflexa na fala das personagens menos instruídas e moradoras da zona rural (PICINATO, 2013).
O esforço para se proteger dos traços estereotipados é tamanho que, quando questionamos trinta
salenses sobre a possibilidade de eles serem ou não “caipiras”, 12 pessoas responderam de forma negativa.
Quando questionados sobre o porquê de não se considerarem “caipiras”, os salenses responderam que não
moravam na roça, o falavam coisas “erradas” e, por isso, não eram “caipiras”. É interessante observarmos as
justificativas apresentadas: elas funcionam como uma tentativa de rebater os traços mais evidentes constituintes
do estereótipo “caipira”. Dentre os 30 salenses entrevistados, 6 disseram ser “um pouco caipira” e 12 afirmaram
ser “caipiras”.
A presença dos traços estereotipados são fortes na memória discursiva das pessoas. Até mesmo nas
justificativas dadas pelos salenses que afirmaram ser “caipiras” (12 pessoas) ou “um pouco caipira” (6 pessoas)
encontramos a presença de traços estereotipados: timidez, o fato de usarem bota e chapéu, a dificuldade de
conversar, a simplicidade, o fato de morar no interior todas essas características citadas pelos salenses
considerados “caipiras” nos fazem perceber a existência de uma forte associação da identidade “caipira” com a
ideia de caipirismo.
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2.2 Identidade “caipira” pelos salenses
Para compreender quais motivações podem levar uma pessoa a se julgar como “caipira”, “não caipira”
ou um “pouco caipira” é necessário descobrir qual o significado de ser “caipira” para esse indivíduo. Quando
realizamos a pesquisa de campo com 30 salenses 15 homens e 15 mulheres, sendo 5 homens de 10-15 anos e
5 mulheres de 10-15 anos; 5 homens de 30-45 anos e 5 mulheres de 30-45 anos e 5 homens com 70 anos ou
mais e 5 mulheres com 70 anos ou mais , perguntamos a essas pessoas se elas se consideravam “caipiras” e o
porquê. Como resultado, obtivemos 12 respostas afirmativas, 12 negativas e 6 como “um pouco”. A maioria
das pessoas que afirmaram ser “caipiras” se referem aos salenses entre 30-45 anos ou com 70 anos ou mais (4
participantes com 70 anos ou mais e 6 participantes com 30-45 anos). Dentre eles, 7 possuem relação com a
zona rural: nasceram ou moraram em áreas rurais. Por outro lado, a maioria dos mais jovens, quando
entrevistados, disseram ser “um pouco” ou negaram ser “caipiras” (1 participante entre 10-15 anos afirmou ser
“um pouco caipira” e 7 disseram não ser “caipiras”) (PICINATO, 2018). Para compreendermos as motivações
que levaram esses entrevistados a responder de forma afirmativa ou negativa, era necessário descobrir quais
traços, na opinião dos salenses participantes da pesquisa, compunham a identidade “caipira”. Por isso, foi
perguntado a essas pessoas: “o que é ser caipira para você?”. Dentre as características apresentadas, destacamos:
baixa escolaridade, falta de conhecimento, falar errado, simplicidade, humildade, roupa, ligação com a zona rural,
relação com a natureza, honestidade, forma de cultura, timidez, vergonha e acanhamento. Ou seja, muitos traços
apresentados pelos habitantes são os que estão presentes nas figuras estereotipadas veiculadas pela mídia
(PICINATO, 2018).
A atitude do participante de negação ou afirmação reflete as crenças que ele possui sobre o que é ser
“caipira” e sua identificação ou não com essa imagem assimilada. Para Aguilera (2008), as atitudes compreendem
as crenças, o sentimento e o comportamento dos indivíduos ou grupos sociais. Dessa forma, se o entrevistado
acredita na visão estereotipada, calcada no Jeca Tatu como modelo do que é ser “caipira” e não se identifica
positivamente com essa imagem, provavelmente, apresentará um comportamento que reforça essa negação de
não ser parte do grupo social que se reconhece como tal.
3 Metodologia
Como apresentado na Introdução, este artigo é uma reflexão sobre língua e identidade fruto da pesquisa
de doutorado. Os resultados que serão apresentados são oriundos de uma pesquisa de campo realizada com
trinta moradores da cidade de Sales Oliveira-SP. A escolha por analisar a fala dos salenses justifica-se pelo fato
de Sales Oliveira possuir cerca de 10 mil habitantes e ser uma cidade do interior em que ainda são preservados
traços da cultura “caipira”, como chamamento por apelidos, manter fortes os laços de compadresco, as pessoas
se conhecerem, conhecerem as famílias que ali vivem.
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Os principais requisitos para a participação na pesquisa eram que as pessoas entrevistadas tivessem
nascido e que morassem na cidade em questão. Partindo dessas condições, foram gravadas 30 pessoas: 5 homens
entre 10-15 anos, 5 mulheres de 10-15 anos, 5 homens de 30-45 anos, 5 mulheres de 30-45 anos, 5 homens com
70 anos ou mais e 5 mulheres com 70 anos ou mais. A divisão em três faixas etárias distintas nos permitiu fazer
uma comparação entre o modo de falar de cada geração, com o objetivo de identificar possíveis mudanças
linguísticas. Além das mudanças linguísticas também buscamos observar se as percepções sobre o “caipira” e
seu modo de ser variavam de acordo com a idade.
Analisar a fala de homens e mulheres também é muito importante, pois o nero pode ser um fator
relevante para as questões de variação, devido não às questões biológicas, mas, sim, às sociais. Para Labov (2001)
as mulheres possuem uma maior tendência ao padrão. Entretanto, estudos mais recentes como o de Freitag
(2015) indicam que as mudanças sociais pelas quais as mulheres têm passado como, por exemplo, a inserção no
mercado de trabalho, maior participação política e social, acarretaram mudanças no papel que estas
desempenham na sociedade e no modo como falam: a fala da mulher nem sempre está relacionada ao emprego
das formas de padrão.
O recrutamento das pessoas para participação foi feito por meio de indicação de inserção na rede de
contatos do presente autor, na qual os amigos da pesquisadora indicavam possíveis participantes e estes, quando
gravados, indicavam outras pessoas. A pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética e os menores de 18 anos
participaram mediante autorização dos pais ou responsáveis. O total de horas gravadas foi de 19 horas 11
minutos e 10 segundos (PICINATO, 2018). A pesquisa de campo compreendeu quatro partes: ficha social,
conversa com o participante, questões de vocabulário e questionário sobre identidade. Neste artigo, nos
ateremos apenas à explicação da segunda e última partes, pois as outras o dizem respeito aos objetivos aqui
propostos.
Na conversa com os entrevistados, fizemos 14 perguntas para os participantes. O objetivo era observar,
analisar e descrever o modo como o participante fala. As perguntas realizadas abordavam os seguintes temas: se
o entrevistado possuía alguma religião ou não, se frequentava cultos, missas, em quais grupos sociais estava
inserido, o que ele fazia nos finais de semana, como havia sido a infância, como era a rotina, pedia para contar
algum acontecimento marcante; enfim, eram questões que permitiam que o participante se envolvesse
emocionalmente e tornasse a entrevista uma conversa, pois, dessa forma, o entrevistado ficaria menos
preocupado com o modo como estava falando e teríamos uma fala mais informal, dentro de uma situação de
gravação, que, por si só, já possui certa formalidade.
Na parte sobre identidade, as perguntas se detinham na identidade “caipira” e na percepção do falante
em relação ao modo como fala e à imagem que tem de si. Nessa parte, as questões foram: i) “O que você acha
das expressões ‘nóis vai’, ‘pra mode’ e ‘porta verde’ (pronunciada com o “r” como retroflexo)?”; ii) As pessoas
que convivem com você falam desse jeito?”; iii) “Você fala desse jeito?”; iv) O que você acha do modo de falar
“caipira”?”; v) “Você usa a palavra caipira em qual situação?”; vi) “O que é ser caipira para você?”; e vii) Você
se considera caipira? Por quê?” (PICINATO, 2018). As respostas dadas a essas questões permitiram
compreender qual imagem o entrevistado tem do “caipira”, se ele se considera “caipira” e o motivo que leva à
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negação ou afirmação desse modo de ser. Também questionamos sobre o modo de falar desse participante:
você reconhece em sua fala alguns traços do falar “caipira” como, por exemplo, o “r” como retroflexo ou
expressões como “pra mode”?”.
Realizadas as entrevistas, analisamos os dados. Na parte das conversas, observamos a ocorrência do “r”
como retroflexo em posição de coda, os processos de rotação e de vocalização da lateral /ʎ/. A escolha em
investigar a ausência ou presença da variante retroflexa em posição de coda justifica-se pelo fato do “r” como
retroflexo ser como uma espécie de “marca” do falar “caipira”. A opção por observar a ocorrência ou o dessa
variante apenas em posição de coda foi feita tomando como base estudos anteriores de Picinato (2013; 2018)
realizados nessa comunidade, em que não encontramos nenhuma ocorrência de “r” como retroflexo em posição
de ataque.
A princípio, selecionamos todas as palavras em que o “r” aparecia em posição de coda para analisarmos.
Entretanto, observamos que os resultados estavam sendo comprometidos por dois fatores: pela quantidade de
apagamento do “r” em infinitos verbais (amar > amá) e pelo número desproporcional de dados por
participantes, pois alguns entrevistados tinham muito mais dados do que outros. Para que tivéssemos uma
amostra homogênea e, portanto, menos propensa à alteração de resultados, estipulamos uma média de 50 dados
por participantes e retiramos os casos de infinitivo verbal. Com essas medidas, a amostra final consta com 671
palavras (PICINATO, 2018).
Escolhemos os processos de vocalização e rotação para serem analisados porque aparecem como traços
fonéticos constituintes do falar “caipira”, descritos por Amaral (1976). As análises compreendem um total de
640 dados de rotacismo e 239 de vocalização. Quantificamos esses dados no programa computacional Goldvarb
(2005). Dentre as variáveis dependentes temos: sexo (masculino e feminino), idade (10-15 anos, 30-45anos e 70
anos ou mais) e identidade (se o participante se reconhece como “caipira”, como não “caipira” e como um
“pouco caipira”). Definimos a variável identidade a partir da opinião do participante sobre si mesmo: quando o
entrevistado afirmava ser “caipira”, sua identidade era marcada como tal.
4 Análise dos dados
A pronúncia do “r” retroflexo na nossa sociedade ainda é vista de forma estigmatizada. Em outros
lugares, como nos E.U.A, por exemplo, o apagamento é a forma estigmatizada e a retroflexão é a forma
prestigiada. O que faz, portanto, uma variante ser vista como prestigiada não são os aspectos linguísticos, mas,
sim, os sociais. Como afirma Scherre (2008, p. 43), “(...) as questões que envolvem a linguagem não são
simplesmente linguísticas; são, acima de tudo, ideológicas”.
Ao questionar os participantes das entrevistas se eles falavam “porta verde” (“r” pronunciado como
retroflexo), “nóis vai” ou “pra mode”, 50% disseram que falavam pelo menos uma das expressões, 17%
declararam falar às vezes e 33% asseguraram não usar essas expressões. Ao analisarmos as falas das pessoas que
afirmaram não empregar essas palavras quando estavam contando sobre suas vidas ou sobre o que gostam de
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fazer, notamos que esses falantes chegam a apresentar um índice de mais de 70% de palavras ditas como
retroflexas. 3 entrevistados que negaram falar essas expressões apresentaram 100% de “r” como retroflexo em
suas falas e 5 participantes atingiram a margem percentil acima dos 90% (PICINATO, 2018). Embora o
participante negue falar dessa forma, ele fala. Essa situação mostra, claramente, que nem sempre o
comportamento linguístico que o participante imagina ter corresponde ao que ele apresenta de fato. Negar e
empregar essas expressões é, de certa forma, não assumir a identidade “caipira” ou um dos traços desse modo
de falar.
O emprego da variante “r” como retroflexa é comum na sociedade salense, independentemente de idade
ou sexo. Quando rodamos os dados no Goldvarb (2005), o programa selecionou a variável sexo como a mais
relevante para a ocorrência dessa variante: homens (0.305) e mulheres (0.641). Mas, ao observarmos esse
resultado com base em números de dados, notamos que, provavelmente, a diferença entre a fala de homens e
mulheres estava na quantidade de dados: as mulheres apresentaram um total de 393 palavras, sendo 377
pronunciadas como retroflexas. os homens apresentaram 278 palavras, sendo 237 pronunciadas como
retroflexas. Ao compararmos os números, percebemos que retroflexão do “r” atinge grande parte das palavras
pronunciadas tanto por homens como por mulheres. Além do sexo, a ocorrência do “r” como retroflexo
também foi alta em todas as faixas etárias. A tabela 1 apresenta os resultados obtidos:
Tabela 1 Ocorrência do “r” como retroflexo na fala dos salenses
Variáveis
“r” como retroflexo
“r” como não retroflexo
Total de palavras
Ocorrências
%
Ocorrências
10-15 anos
159
9.7
17
176
30-45 anos
216
8.9
21
237
70 anos ou mais
239
7.4
19
258
“Caipira”
269
7.9
23
292
Não “caipira”
215
8.9
21
236
Pouco “caipira”
131
9.0
13
144
Fonte: Própria
A presença da variante retroflexa na fala dos salenses é muito alta. Embora a variante retroflexa seja uma
espécie de “marca” registrada do falar “caipira”, as pessoas que não se veem como “caipiras” empregaram essa
variante em demasia: mais de 90% dos casos. Uma possível explicação para tal comportamento pode estar no
fato de essa variante ter perdido o aspecto de ruralidade, conforme estudos anteriores realizados na cidade de
Sales Oliveira comprovam (PICINATO, 2018). Ao perder esse traço, o entrevistado que não se considera
“caipira” por nunca ter morado na zona rural acaba não sentindo a necessidade de se policiar durante a gravação
e produz a variante retroflexa em grande quantidade em sua fala.
Embora o emprego do “r” como retroflexo tenha ocorrido em grande quantidade e se caracterize como
a variante utilizada pelos salenses, não nos cabe afirmar que esta não seja vista de forma pejorativa na sociedade
de Sales Oliveira. Como exemplo, podemos citar uma adolescente entrevistada que, durante as entrevistas,
afirmou buscar falar o “r” de outra forma, assim como os atores de filmes e/ou novelas pronunciam (“r” como
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tepe). A menina admitiu que não teve sucesso nessa tarefa e quando questionada sobre a forma que ela considera
mais “bonita”, ela afirmou ser o tepe. Esse é um exemplo de que o estigma em relação ao emprego do “r” como
retroflexo existe, inclusive no próprio falante.
Em relação ao rotacismo, estudos recentes realizados na comunidade salense (PICINATO, 2018)
apontaram que existe uma forte relação entre zona rural e esse processo fonético. Nosso maior questionamento,
ao rodar os dados, era: o salense que se considera “caipira” apresenta casos de rotacismo em sua fala, uma vez
que essa variável possui relação com a zona rural e o traço de ruralidade é sempre muito “marcante” para a
caracterização da identidade “caipira”? Quando rodamos os dados, o programa Goldvarb (2005) selecionou
como variáveis relevantes o sexo, a idade e a identidade, conforme dados apresentados na tabela 2:
Tabela 2 Variáveis selecionadas como relevantes para rotacismo
Variáveis selecionadas
Peso relativo
%
10-15 anos
0.390
0.7
30-45 anos
0.152
0.5
70 anos ou mais
0.818
6.3
Homens
0.715
3.7
Mulheres
0.403
2.9
“Caipira”
0.254
0.7
Não “caipira”
0.644
3.6
Pouco “caipira”
0.897
10.8
Fonte: Própria
Os dados apresentados na tabela 2 demonstram que as pessoas que não se consideram “caipiras” ou se
consideram “pouco” são as que mais produziram rotacismo em suas falas. Essa situação se repete com os casos
de vocalização da lateral /ʎ/:
Tabela 3 Variáveis selecionadas como relevantes para vocalização da lateral /ʎ/
Variáveis selecionadas
Peso relativo
%
10-15 anos
0.618
6.7
30- 45 anos
0.027
1.1
70 anos ou mais
0.818
22
“Caipira”
0.230
3
Não “caipira”
0.639
22.7
Pouco “caipira”
0.935
27.7
Fonte: Própria
Interessante observarmos que, novamente, as ocorrências mais altas correspondem àquelas pessoas que
não se consideraram “caipiras” ou se consideraram um pouco. Assim como nos casos de rotacismo, a
vocalização também é um processo que, na sociedade salense, está mais presente na fala de pessoas que tiveram
algum tipo contato com a zona rural (PICINATO, 2018).
Embora a faixa etária não tenha sido selecionada pelo programa como variável relevante para a
ocorrência de vocalização, observamos maior ocorrência de vocalização na fala dos homens e mais velhos. Entre
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os adolescentes, os casos de vocalização que ocorreram dizem respeito a três jovens: uma com relação com a
zona rural e os outros dois sem relação com a zona rural. Dentre esses dois jovens que o possuem relação
com a zona rural, um deles, uma menina, afirmou ser um pouco “caipira” porque, segundo a própria adolescente,
gosta de se vestir de xadrez, usar bota, mas não tem a simplicidade que é necessária para ser uma “caipira”, de
fato.
Tanto o emprego da variante “r”, como retroflexa, como os casos de rotacismo e vocalização foram
apontados por Amadeu Amaral (1976) como aspectos fonéticos e fonológicos da fala “caipira”. Em Sales
Oliveira, embora o “r” como retroflexo seja a variante mais empregada pelos salenses, nota-se que os casos de
vocalização e rotacismo estão mais presentes na fala dos mais velhos, do sexo masculino. Talvez esse possa ser
um indício de que estamos passando por um processo de mudança linguística.
5 Considerações finais
Ser ou não ser “caipira”? Não se reconhecer como “caipira”, mas apresentar na fala características do
falar “caipira”? Quando nos propusemos a estabelecer uma relação entre língua e identidade, tínhamos como
hipótese inicial que a forma como as pessoas falam nem sempre condiz com o que elas dizem ou aparentam ser.
Tal hipótese, ao longo do nosso trabalho, foi confirmada, pois muitos salenses que não se consideravam
“caipiras” ou apenas “um poucoapresentaram altos índices de rotacismo, vocalização e de pronúncia do “r”
como retroflexo em suas falas, durante as gravações realizadas.
Partindo da premissa de que os aspectos fonéticos analisados vocalização, rotação e retroflexão são
considerados como processos recorrentes na fala “caipira”, mesmo quando o salense nega ser “caipira”, a sua
fala “denuncia” traços desse modo de falar.
Além da língua, que é um dos principais componentes da identidade, existem outros elementos que
colaboram para a construção da identidade. Ao serem questionados sobre quais seriam esses elementos, os
salenses apontaram roupas, relação com o campo, simplicidade, timidez, baixa escolaridade, dentre outros. Tais
elementos se assemelhavam bastante com a imagem do “caipira” veiculada pela mídia como aquele que vestia
roupa xadrez, morador da zona rural, baixa escolaridade, simples, fácil de ser ludibriado. Ou seja, o estereótipo
do “caipira” está muito presente na memória discursiva do povo. Por isso, ao serem questionados como sendo
“caipiras”, muitos salenses não se identificam com essa imagem caricatural e negam ser “caipiras”.
A figura do “caipira” ainda está associada ao conceito de “caipirismo” e como consequência disso,
uma negação dessa identidade. Atualmente, o interior vem se apresentando no cenário nacional como sinônimo
de economia forte e tais mudanças o condizem mais com a figura do habitante do mato, sem trato social.
Sendo assim, o morador do interior nega ser “caipira” ou não se reconhece como um completo “caipira”, mas
isso não significa que ele não produza traços do modo de falar “caipira” na sua fala.
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RELATIONSHIP BETWEEN
LANGUAGE AND IDENTITY: THE
SPEECH REPORTS WHO WE ARE
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Abstract:
This article aims to understand how the speaker of sales Oliveira, a small city of São Paulo State,
constitutes his identity and how this is reflected in his linguistic behavior . How does the salense
see himself and how this corresponds to the way he speaks? The initial hypothesis is that the
identity the speakers claims to have does not always corresponds to the way they speak. In order
to make a comparison between language and identity, a field survey was carried out with 30
salenses who were born and are still living in the city. Based on the results obtained, 12 people
said they were “caipiras”, 6 said that they were only a little “caipiras” and 12 sad they were not
“caipiras”. When questioned about the characteristics that made up the “caipira” identity, salenses
sad the same traits as the stereotypical figure showed by the media: simplicity, rural relations, plaid
clothes and shyness. In addition to the interviewee’s perception of whether or not he was
“caipira”, people’s speech was analyzed with the aim of observing the caipira’s speech traces, as
listed by Amadeu Amaral (1976). The traits analyzed were: absence and presence of “r” as retroflex
in coda position, cases of rotacism and vocalization. The data were quantified by Goldvarb
program (2005) and the results showed that salenses who considered themselves a little or not
considered themselves “caipiras” had the highest rates of vocalization and rotacism.
Keywords: Identity. Language.“Caipira”. Sales Oliveira -. SP
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