Página | 84
Preferimos adotar uma outra perspectiva, que consideramos necessária e urgente: a perspectiva da
dinâmica linguística. Recorrendo mais uma vez a Faraco (2004): “o movimento é inexorável, e fenômenos
frequentes na fala culta acabam por inevitavelmente se estabelecer na escrita” (FARACO, 2004, p.49). Tomando
esse ponto de vista, então, o que significam tais usos, senão o resultado da inesgotável plasticidade da linguagem,
que se transforma continuamente na voz de seus usuários, gerando novas formas, construções, arranjos,
significados? Aceito pelo grupo, o novo feito norma integra o sistema.
Uma segunda questão proposta, a partir de Braga e Manfili (2004), é avaliar em que medida os usos do
pronome relativo onde em contextos não locativos estariam em um processo de expansão. Essa é a ideia
defendida pelas autoras, como mencionamos na Introdução. Nosso estudo apontou para a ocorrência de usos
não locativos do pronome na fala paulista, mas a constatação da ocorrência seria indício de processo de
expansão? Entendemos que nossos dados, por si só, não nos permitem chegar a essa conclusão.
O fato de se identificar uma natureza multifuncional nos usos de onde, em contraste com o que vem
prescrito na tradição gramatical, pode sugerir esse movimento: se essa tradição retrata de algum modo o que a
língua foi e resiste a registrar o que a língua é, o distanciamento indicaria que houve mudança. Mas é preciso
considerar que o estabelecimento da norma gramatical (do padrão) se constrói a partir de uma seleção de uma
norma (entre tantas) (Haugen, 2001). Como então afirmar que os usos não locativos de onde hoje observados
fazem parte de um processo recente na língua? Como garantir que tais usos, já presentes em períodos anteriores
da história da língua, simplesmente não foram contemplados na codificação do modelo de referência da língua?
Apenas o estudo histórico do fenômeno vai poder verificar se estamos de fato diante de uma ampliação
desses usos. O trabalho de Bonfim (1993), referida por Zilles e Kersch (2015), oferece uma perspectiva nesse
sentido. Nele se investiga a variação de ‘u’ e ‘onde’ no português arcaico, processo que resulta no
desaparecimento de ‘u’ e na incorporação de seu valor por ‘onde’. A discussão é especialmente interessante para
a análise da multifuncionalidade de onde. A situação de variação provém de um cenário que inclui um conjunto
mais amplo de formas para a expressão do valor locativo: as formas latinas ubi (‘lugar onde’), unde (‘lugar de
procedência’), quo (‘lugar para onde’) e quā (‘lugar por onde’). Zilles e Kersch (2015) argumentam que, por
expressar o sentido de proveniência, unde/onde também foram empregados com sentido de causa” no
português antigo (ZILLES, KERSCH, 2015, p.166). Bonfim constatou já no século XIII o emprego de onde
que chama de ‘discursivo’ (que “estabelece uma ligação intra ou extrafrástica entre segmentos do texto, por
necessidade argumentativa” (Bonfim, 1993, p.99; apud Zilles e Kersch, 2015, p.167). O estudo de Kersch (1996)
confirma o uso de onde como articulador de orações para além da estrutura relativa desde o português arcaico.
Assim, está bem estabelecida a ideia de que a multifuncionalidade de onde lhe é constitutiva desde que
se consolidou como pronome relativo, no período arcaico. Como nos dizem Zilles e Kersch (2015), “usos
diferenciados desse relativo, com valores distintos do prescrito pela norma curta, podem ser encontrados já em
Camões, que é citado, quando convém, como exemplo de referência para um português ‘puro’” (ZILLES,
KERSCH, 2015, p.172). São as mesmas autoras que chamam a atenção para a necessidade de um estudo
histórico, em tempo real ou aparente, para que se possa, de fato, afirmar se os usos não prescritos estão ou não
em processo de expansão, esforço ainda a empreender para descobrir e trilhar os caminhos de onde.