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Relendo Bakhtin, v.7, n. 3, out.
-dez., 2019
A CIÊNCIA DAS IDEOLOGIAS E A FILOSOFIA DA LINGUAGEM:
NAS TESSITURAS DE VOLÓCHINOV E O CÍRCULO DE BAKHTIN
WILDER KLEBER FERNANDES DE SANTANA
1
RESUMO: O presente trabalho traçou
como horizonte teórico-metodológico a
relação existente entre a ciência das
ideologias e a filosofia da linguagem,
sob a ótica de Valentin Volóchinov
(1895-1936), a partir do que
desenvolveu em Marxismo e Filosofia
da Linguagem (2017 [1929]) em diálogo
com Mikhail Bakhtin (1895-1975), e
Pável Medviédev (1892-1938). Como
corpus para análise delimitou-se a tela
de número 23, Aquellos Polvos (1797-
1799), da série “Os Caprichos”, de
Francisco Goya, a qual se encontra no
Museo del Prado. Identificou-se, assim,
a imprescindibilidade da perspectiva
sociológica para os estudos da
linguagem, esta permeada por signos.
PALAVRAS-CHAVE: Ciência das
ideologias. Filosofia. Linguagem.
ABSTRACT: The present paper traces as a
theoretical-methodological horizont the
relationship between the science of
ideologies and the philosophy of language,
from the perspective of Valentin Volóchinov
(1895-1936), from what he developed in
Marxism and Philosophy of Language (2017
[1929]) in dialogue with Mikhail Bakhtin
(1895-1975), and Pável Medvedev (1892-
1938). As a corpus for analysis, the screen
of number 23, Those Polvos (1797-1799),
from the series "The Caprichos" by
Francisco Goya, which is in the Prado
Museum, was delimited. It was identified,
therefore, the indispensability of the
sociological perspective for the studies of the
language, this permeated by signs.
KEYWORDS: Science of ideologies.
Philosophy. Language.
SANTANA, W. K. F. de. A ciência das ideologias e a filosofia da linguagem: nas
tessituras de Volóchinov e o círculo de Bakhtin. In. Revista Diálogos, v. 7, n. 3,
out.-dez., 2019.
1
Doutorando em Linguística (Proling - UFPB, 2018); Mestre em Linguística (Proling - UFPB,
2016); Mestre em Teologia (Faculdade Teológica Nacional, 2016); Mestrando em Arqueologia
Bíblica (Faculdade Teológica Nacional, 2017); Especialista em Gestão da Educação
Municipal (UFPB, 2017). Poeta e Escritor Paraibano. wildersantana92@gmail.com
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INTRODUÇÃO
Este trabalho se propôs a analisar a relação existente entre a ciência das
ideologias e a filosofia da linguagem, sob a ótica de Valentin Volóchinov (1895-
1936), a partir dos escritos que desenvolveu em Marxismo e Filosofia da
Linguagem (2017 [1929]), doravante MFL, cujas principais ideias se presentificam
em Problemas da poética de Dostoievski (BAKHTIN, 2008 [1929]). Faz-se
necessário circunscrever como é construído o pensamento do estudioso soviético,
membro do Círculo de Bakhtin, em reação às produções formalistas russas, assim
como o reconhecimento das tessituras volochinovianas em dimensão histórico-
ideológica, as quais dialogam com as obras de Mikhail Bakhtin (1895-1975), e
Pável Medviédev (1892-1938).
Nesse conjunto de interrelações discursivas, é retomado e instaurado, de
modo dinâmico, o conjunto de vertentes clássicas da linguística (Humboldt,
Potebniá e Baudouin de Courtenay) e da filosofia (Kant, Heidegger, Cassirer),
quer em afirmações teóricas, quer em gêneros e particularidades das relações
intradiscursivas, em que o signo é compreendido como representação simbólica
do social. Dispomo-nos, assim, a averiguar/perceber/examinar os escritos de
Volóchinov em diálogo com os postulados dos outros estudiosos russos,
membros do Círculo de Bakhtin. Nessas vias composicionais, atribuem-se
conceitos fundamentais da problemática da filosofia da linguagem humana e do
posicionamento dos pensadores soviéticos em relação à linguística, sob seu
método formal.
O objetivo geral de nosso trabalho consiste em analisar as contribuições de
Volóchinov para a filosofia da linguagem com base no método sociológico. Para
tanto, fez-se mister averiguar o estudo das ideologias e da filosofia da linguagem,
assim como as especificações das ideologias, no contexto do marxismo.
Cabe salientar que os membros do Círculo de Bakhtin transcenderam a
algumas questões que foram tangentes aos estudos de Marx e Engels, “como a
relação da infra-estrutura com a superestrutura, a constituição e o papel dos
signos, a questão da constituição da subjetividade e da consciência, as questões
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da peculiaridade da palavra literária.” (MIOTELLO, 2013, p. 167). Nossos
subsídios teóricos se concretizam na integração das ideias de Volóchinov (2017
[1929]), Bakhtin (2010 [1920-24], 2008 [1929]), e Medviédev (2016 [1928]), as
quais se propagam na produção de pesquisadores em terreno nacional e
internacional, dentre eles, Miotello (2013) e Renfrew (2017), dentre outros. Desta
forma, este estudo reenuncia as propostas ideológica e sociológica dos autores
russos, os quais se posicionaram ativamente contra o sistema formalista vigente
não apenas na Rússia, mas também em partes da Europa.
Os entornos introdutórios sobre a ciência das ideologias incidem na
importância dos problemas da Filosofia da Linguagem para o Marxismo. De forma
ampla, uma das propostas de Volóchinov seria perceber e categorizar a
teoria marxista, situando-a em uma formulação coesa em relação à ideologia e à
psicologia, superando simultaneamente o objetivismo abstrato ou positivista e o
subjetivismo idealista. Assim, ao tecer uma crítica ao objetivismo abstrato,
Volóchinov justificou que as práticas do discurso nesse sistema consistem em
uma anulação do sujeito falante. Posto que o objetivismo tenha sido uma herança
de tradição filosófica racionalista já presente em Descartes
2
(1596 1650) e
Leibniz
3
(1646 1716), esta corrente postula que os sujeitos recebem a língua
finalizada em seus próprios significados, pois é transmitida aos seres humanos
estando pronta para ser utilizada. No campo da linguística, o objetivismo abstrato
foi representado pelo linguista Saussure (1857 1913), o qual pensou a língua
(esfera social) como o ápice para qualquer análise linguística, em detrimento da
fala (esfera individual).
4
Em termos estruturais, primeiramente traçamos um estudo sobre como a
filosofia da primeira metade do século XX se desenvolveu sob o signo da palavra,
e em seguida analisamos como Volóchinov e Bakhtin articulam seus
pensamentos com base nos princípios de Kant e dos neokantianos. Para um
2
Filósofo, físico e matemático francês considerado um dos fundadores do racionalismo na idade
moderna. Descartes percebeu que os "costumes", a história de um povo, sua tradição "cultural"
influenciam a forma como as pessoas pensam naquilo em que acreditam.
3
Filósofo, cientista e diplomata alemão, que admitia uma série de causas eficientes a determinar o
agir humano dentro da cadeia causal do mundo natural.
4
Para Saussure, a fala, o extraverbal, e a contextualização, assim como todos os elementos
transitórios componentes da produção de língua, não seriam objetos de estudo concernentes aos
estudos linguísticos estruturais.
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breve ato analítico, delimitamos a tela de número 23, Aquellos Polvos (1797-
1799), da série “Os Caprichos”, de Francisco Goya, a qual se encontra no Museo
del Prado.
1. A FILOSOFIA MODERNA SOB O SIGNO DA PALAVRA
Tendo em vista a gama de definições que se atribuiu à língua até meados
do século XX, Volóchinov (2017 [1929]), influenciado pelas discussões feitas nas
reuniões do Círculo de Bakhtin, afirma que toda a consciência individual está
impregnada de signos, e estes emergem na relação entre os indivíduos, na
interação entre os sujeitos. Portanto, para o autor russo, todo signo é social e
consciência onde há signo. Nessa linha interpretativa, a consciência também é
social: “A própria consciência pode se realizar e se tornar um fato efetivo apenas
encarnada em um material sígnico” (VOLÓCHINOV, 2017 [1929], p.95). Desse
modo, o signo é produto da interação entre duas consciências individuais.
Ao conceber a linguagem como um fenômeno social e fruto da interação
humana, Bakhtin (2012 [1920-24]) alerta para a necessidade de inseparabilidade
entre o mundo da cultura e o mundo da vida, enquanto Volóchinov (2017 [1929])
se opõe a duas tendências linguístico-filosóficas de sua época, por ele
designadas como objetivismo abstrato e subjetivismo idealista. Na esfera da
linguística, a primeira tendência tem Saussure (1857-1913) como seu maior
representante, enquanto a segunda, Humboldt ([1769-1859], posto que as
contribuições de Saussure estiveram para além dos limites da segunda tendência.
Saussure e Humboldt simbolizam duas grandes tradições do pensamento
linguístico-filosófico que permearam, desde os gregos pré-socráticos, as reflexões
sobre a linguagem: a primeira traz a língua como expressão do pensamento, e a
posterior a arquiteta como instrumento de comunicação.
Para Volóchinov (2017 [1929]), a filosofia moderna (desenvolvida a partir
da década de 1920) esteve se desenvolvendo sob o signo da palavra. O método
marxista submeteu as problemáticas da filosofia da linguagem a um exame
específico e tentou encontrar-lhes uma solução. Então, um dos pontos de partida
para estudar a ideologia foi o combate aos “estudiosos de então, marxistas,
linguistas, psicólogos e teóricos em geral das Ciências Humanas, ao colocar a
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questão da ideologia, ora na consciência, ora como um pacote pronto, advindo do
mundo da natureza.” (MIOTELLO, 2013, p. 168). Era preciso, portanto, reconstruir
a tradição de análise da ideologia enquanto idealista/psicologizada (como algo
pronto e acabado), e como subjetiva (espaço permanente na cabeça do ser
humano).
Ao transcender a ideia marxista da realidade econômico/social de um
produto como símbolo da ideologia (oficial) e do fenômeno ideológico enquanto
falsa consciência, afirma Volóchinov, em Que é a linguagem (1998 [1930], p.
107): “Por ideologia entendemos todo o conjunto dos reflexos e das
interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem e
se expressa por meio de palavras [...] ou outras formas sígnicas”. Desse modo,
um produto ideológico, ao passo que é um instrumento de produção ou produto
de consumo (tendo uma realidade natural ou social), também reflete e refrata
outra realidade, exterior.
Qualquer produto ideológico... reflete e refrata outra realidade que
se encontra fora de seus limites. Tudo o que é ideológico possui
uma significação: ele representa e substitui algo encontrado fora
dele, ou seja, ele é um signo. Onde não signo também não
ideologia. (VOLÓCHINOV, 2017 [1929], p. 91, grifos do autor).
Para identificar a diferença entre um corpo ideológico e um corpo natural, é
preciso observar suas representações diante do todo que o cerca. Quando um
corpo físico vem a valer, por si próprio, sua estrutura, sem que haja coincidência
simbólica com sua natureza, ele é natural em si mesmo, acabado em sua forma, e
nesta perspectiva não é ideológico. Porém, se um corpo é compreendido como
símbolo, representante de ideias culturais, sociais ou políticas, tanto é
considerado um instrumento comum particular quanto arte uma arte que se
converte em signo. É deste modo que o corpo ideológico reflete e refrata uma
realidade externa a si, ainda que não deixe de fazer parte de sua realidade
material.
O mesmo processo ocorre com um instrumento de produção, e um dos
exemplos conferidos pelo teórico russo é o da foice e do martelo, como emblema
da União Soviética. Em si mesmo, estes instrumentos não têm um sentido
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preciso, mas possuem apenas a função de desempenhar seu(s) papel(eis) na
produtividade. E eles desempenham essa função sem refletir ou representar
alguma outra coisa. Todavia, este(s) instrumento(s) pode(m) ser convertido(s) em
signo ideológico, na simbolização social ou política daquele conjunto territorial,
ainda que não deixem de conter suas funções mecânicas/materialísticas/
estruturais. “Mas ainda assim percebemos aqui uma fronteira semântica evidente:
um instrumento por si não se transforma em um signo nem o signo em um
instrumento de produção” (VOLÓCHINOV, 2017 [1929], p. 92).
O outro exemplo apresentado por Volóchinov se concentra entre os polos do
produto de consumo, enquanto acabado em si mesmo, e o do campo religioso,
nas representações de crença e vida. O pão e o vinho, por exemplo, são produtos
de consumo na vida social da maioria das pessoas, enquanto é comercializado,
servindo de venda para o gozo culinário. Deste modo, possuem uma forma
particular. Porém, tornam-se símbolos religiosos no sacramento cristão da
comunhão a comunhão representativa do corpo e do sangue de Cristo. De igual
maneira, o valor de signo ideológico pode ser coberto com a forma de número oito
ou de uma roseta.
Estas duas dimensões categóricas de representação (a simples e a
ideológica) podem se associar, como um plano simbolizador, mas é preciso ficar
claro que esta associação não anula a linha de demarcação existente entre elas.
O universo de signos é particular, e ele está ao lado dos fenômenos naturais, do
material tecnológico e dos artigos de consumo.
O signo pode distorcer uma realidade, ser-lhe fiel ou representar uma
parcela de sua essência. Em todos os lugares em que o signo se encontra,
encontra-se também o ideológico. Tudo o que é ideológico, como bem pontua
Volóchinov, possui um valor semiótico. Vale ressaltar, sobretudo, que na esfera
ideológica, grandes diferenças entre os campos representacionais, como o
religioso, o científico etc. Cada qual tem sua função na vida social, porém, são
definidos em plano geral pelo caráter semiótico. Um signo característico deste
ter sempre encarnação material) é objetivo, e fenômeno do mundo exterior.
Em contrapartida, as críticas de Volóchinov recaem sobre a filosofia
idealista e a visão psicologista da cultura porque, segundo o pensador, estas
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situam a ideologia na consciência, classificando-a como pura sensorialidade.
Afirmam os idealistas e psicologistas que a ideologia é um fato do nível
consciente e que o aspecto exterior do signo é simplesmente um revestimento,
um invólucro ou meio técnico de realização do efeito interior (no nível da
compreensão). Ao contrário dessa linha filosófica, o estudioso soviético afirma,
respaldado em Cassirer
5
(1874 1945), que o aspecto sensorial introduzido pelos
seus estudos não é o do puro consciente, mas o do signo simbólico, como uma
sensorialidade representativa.
O que o idealismo e o psicologismo ignoram é que a própria
compreensão pode ser realizada apenas em algum material
sígnico (por exemplo, no discurso interior). Eles desconsideram
que um signo se opõe a outro signo e que a própria consciência
pode se realizar e se tornar um fato efetivo apenas encarnada em
um material sígnico. Porque a compreensão de um signo ocorre
na relação destes com outros signos já conhecidos; em outras
palavras, a compreensão responde ao signo e o faz também com
outros signos. (VOLÓCHINOV, 2017 [1929], p. 95).
Em outras palavras, são incompletas e descontínuas as visões idealista e
psicologista, pois não abordam de forma suficiente e clara a manifestação do
dialógico a partir das produções mentais. De acordo com o crítico russo, em suas
notas, é possível observarmos mudanças de perspectiva no neokantismo
moderno. Na medida em que faz apontamentos sobre o livro de Ernst Cassirer,
Philosophie der symbolischen Formen, vol. I, 1923, afirma que, por mais este
situe seus estudos no terreno da consciência, também os expande, ao considerar
os traços da representação.
Nesse prisma interpretativo, a consciência também é composta por
elementos representativos, os quais atuam como suporte de uma função
simbólica. A ideia, na ótica de Volóchinov, é tão sensorial quanto a matéria, e
5
Considerado como Filósofo Alemão, Ernst Cassirer, além de estudar direito, literatura, e filosofia,
foi um dos mais importantes representantes da tradição neokantiana de Marburgo, desenvolvendo
uma filosofia da Cultura como uma teoria dos símbolos, baseada
na Fenomenologia do Conhecimento.
Expandiu o campo da crítica kantiana a todas as formas da atividade humana. As categorias a
partir das quais Kant pensa o fato científico, são para Cassirer um aspecto particular de formas
simbólicas que revelam também o fato mítico, estético e social. Pode-se dizer que Cassirer
transformou a Crítica da Razão Pura em uma crítica da cultura.
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essa natureza sensorial, ao passo que pertence ao simbólico, possui caráter
representativo. Nessa linha de raciocínio, em O método formal nos estudos
literários, Medviédev (2016 [1928], p. 49-50), afirma que
Todos os atos individuais participantes da criação ideológica são
apenas os momentos inseparáveis dessa comunicação e são
seus componentes dependentes e, por isso, não podem ser
estudados fora do processo social que os compreende como um
todo. O sentido ideológico, abstraído do material concreto, é
oposto, pela ciência burguesa, à consciência individual do criador
ou do intérprete... Cada produto ideológico e todo seu “significado
ideal” não estão na alma, nem no mundo interior e nem no mundo
isolado das ideias e dos sentidos puros, mas no material
ideológico disponível e objetivo, na palavra, no som, no gesto, na
combinação das massas, das linhas, das cores, dos corpos vivos,
e assim por diante.
Na ótica de Medviédev, o que também é perceptível nas críticas de
Volóchinov, não incidência de ideologia caso exista separabilidade entre o
processo cultural (meio sócioideológico) e o objeto. Enquanto representações
sígnicas, jamais os enunciados/as enunciações podem ser avaliados/as longe de
sua realidade sócio-histórica, das vozes que os/as atravessam.
2. VOLÓCHINOV E BAKHTIN EM DIÁLOGO COM KANT E OS
NEOKANTIANOS
Boukharaeva (1997) sugere que o caráter metodológico e a
conceptualidade filosófica são pontos fundamentais na elaboração intelectual de
Bakhtin. Desse modo, veremos como ocorrem alguns diálogos de Bakhtin e
Volóchinov com alguns filósofos clássicos.
Immanuel Kant, influenciado por estudos de base epistemológica, propôs
uma divisão de linhas de pensamento científico-filosófico: delimitou, de um lado, o
racionalismo continental, representado por René Descartes e Gottfried Leibniz, no
âmbito da precisão e raciocínio dedutivo, e na outra extremidade, a tradição
empírica inglesa, Kant fora influenciado por John Locke (1632 1704), George
Berkeley (1685 1753) e David Hume (1711 1776). O filósofo prussiano é
famoso pelo seu idealismo transcendental (no terreno da consciência):
pensamento pelo qual todos os seres humanos trazem formas e conceitos a
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priori, preestabelecidos, que ainda não passaram por experiência concreta, os
quais seriam impossíveis de determinar. O conhecimento a priori se
complementaria com a categoria a posteriori, que se adquire com a experiência, e
introdução do conhecimento.
Bakhtin percebe, na teoria kantiana, um encaminhamento de propostas
que não são suficientes para dar conta de situar o sujeito numa esfera social,
responsável e ativa, o que justifica a ruptura de pensamentos e produções entre a
escola de Marburgo e o Círculo de Bakhtin. Clark e Holquist ([1984] 2008, p. 83)
explicitam que Bakhtin procurava “amalgamar os três grandes tópicos da
metafísica ocidental epistemologia, ética e estética em uma única teoria dos
atos”. Para Bakhtin, o ato ético era real e atualizado em face da materialidade
imediata.
A perspectiva pós-fenomenológica adotada pelo Círculo de Bakhtin em
posicionamento axiológico à escola kantiana se dá porque esta enxergava o
mundo a partir da ótica racionalista, o que se denomina teoreticismo, ou tendência
em teoricizar pensamentos separados da vida. Na ótica de Renfrew (2017, p. 42-
43), esse embate filosófico, o qual ganhou concretude na obra Para uma filosofia
do ato responsável, na qual Bakhtin fundamenta a philosofia prima na base do ato
responsável, “quase imediatamente identifica o teoreticismo como uma das
doenças-chave do pensamento moderno (particularmente do pensamento
científico)”. Nesse sentido, de acordo com o pesquisador inglês, “Teoreticismo é o
nome dado por Bakhtin a todas as formas de pensamento que imaginam que a
cognição ou a descrição daquilo que ele chama de “conteúdo-sentido” de todo
ato esgota seu pleno valor ou significação”. (RENFREW, 2017, p. 43).
Os neokantianos
6
pretendiam recuperar a filosofia como reflexão crítica da
Valia da cognição atividade cognitiva. Representados principalmente por
Hermann Cohen
7
(1842 1918), Paul Natorp
8
(1854 1924) e Ernst Cassirer.
Esta postura dos neokantianos era contrária ao idealismo objetivo de Hegel
6
Estudiosos que retornam de forma mais profunda aos desenvoltos de Immanuel Kant desde
meados do século XIX até os primeiros anos da década de 1920, principalmente na Alemanha.
7
Filósofo Alemão, professor titular de Filosofia em Marburgo entre 1876 e 1912, Cidade
Universitária Alemã.
8
Filósofo e educador alemão, considerado um dos co-fundadores da escola de
Marburgo de neokantismo.
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9
(1770 1831), com sua perspectiva de dialética histórica. Tanto Bakhtin quanto
Volóchinov postulam que as ideologias humanas, criadas em sociedade,
semioticamente determinadas a partir das relações humanas, não dependem em
nada da psicologia individualista. Quando Volóchinov e Medviédev reinserem os
neokantianos em discussões sociológicas, apontam como válidas as
reenunciações de Cassirer, o qual reacentuou o pensamento de Kant, nas
representações transcendentais. Nesse direcionamento, a proposta de Cassirer
estaria brevemente ligada ao campo ideológico, que se utiliza da psicologia de
forma representacional, através do simbólico.
A categoria ideológica, em plano vivo, se estende a partir da interação
entre uma consciência individual e uma outra. A própria consciência individual
está repleta de signos. A consciência se torna consciência quando se
impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no
processo de interação social. Sem que haja manifestação do sociointerativo, quer
dizer, apenas no plano do psicológico individual, não há ideologia, não há material
semiótico.
Apesar de profundas as divergências metodológicas, a filosofia
idealista da cultura e os estudos culturais psicológicos cometem o
mesmo erro crucial. Ao localizarem a ideologia na consciência,
eles transformam a ciência das ideologias uma ciência da
consciência e de suas leis, sejam elas transcendentais ou
empírico-psicológicas. Em decorrência disso ocorre tanto uma
distorção fundamental da própria realidade estudada quanto uma
confusão metodológica nas interrelações entre as diferentes áreas
do conhecimento. A criação ideológica um fato material e social
é inserida à força nos limites da consciência individual. Por outro
lado, a própria consciência individual é privada de qualquer apoio
na realidade. Ela se torna ora tudo, ora nada. (VOLÓCHINOV,
2017 [1929], p. 95-96).
Enquanto, para o idealismo, a ideologia está situada em um plano
superior ao das relações sociais e políticas, como uma soberania abstrata e
intocante, para o positivismo psicologista, ao contrário, a consciência se reduz a
9
Também filósofo Alemão. A primeira metade do século XIX foi fortemente marcada pelo
hegelianismo. Após sua morte, a filosofia desta perspectiva objetiva caiu, pela maioria, em
descrédito. A partir de 1850 alguns críticos propunham sua ineficácia para os problemas sociais,
políticos e históricos.
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nada, como se fosse determinada única a exclusivamente pela individualidade
consciente dos seres humanos.
O ideológico enquanto tal não pode ser explicado em termos de raízes
supra ou infra-humanas. Seu verdadeiro lugar é o material social particular de
signos criados pelo homem (VOLÓCHINOV, 2017 [1929]). Sua especificidade está
no fato de que a categoria semiótica (ideológica) se pauta entre indivíduos
organizados, sendo o meio de sua comunicação. Os signos podem aparecer
em um terreno interindividual, ou seja, em uma área maior e mais bem-elaborada
que o coeficiente da individualidade.
Porém, não é de qualquer maneira que o ideológico se estabelece. É
imprescindível que os indivíduos estejam socialmente organizados, na
caracterização de um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos
pode constituir-se. É nesta perspectiva que a consciência individual deve ser
explicada a partir do meio ideológico e social. No final das contas, a consciência
tornou-se o asylum ignorantiae para todas as construções ideológicas
(VOLÓCHINOV, 2017 [1929], p. 97).
A consciência não pode derivar diretamente da natureza, como tentaram e
ainda tentam mostrar o materialismo mecanicista ingênuo e a psicologia
contemporânea (sob suas diferentes formas: biológica, behaviorista, etc.). A
ideologia não pode derivar da consciência, como pretendem o idealismo e o
positivismo psicologista. A consciência adquire forma e existência nos signos
criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Em outras
palavras, a consciência individual é alimentada pelos signos, que são a matéria
simbólica do desenvolvimento consciente. Isso culmina em um princípio
metodológico segundo o qual o estudo das ideologias independe da psicologia, e, na
verdade, é a psicologia objetiva que deve se apoiar no estudo das ideologias.
De forma a considerar a palavra como o signo neutro, de maior
combinação possível aos elementos (materiais ou imateriais) linguísticos, se
forem separados os fenômenos ideológicos da consciência individual, eles
estarão sendo conectados às condicionalidades e às estruturas da comunicação
social. O signo representa, desta maneira, a materialização desta comunicação (e
nisso consiste a natureza dos signos ideológicos). A maneira mais clara e
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completa de todo este espaço semiótico é a linguagem. É então conferenciado,
pelo estudioso russo (2017 [1929], p.98) que “a palavra é o fenômeno ideológico
por excellence”, e toda a realidade da palavra é absorvida por sua função de
signo. Desse modo, a representatividade da palavra como fenômeno ideológico,
assim como a nitidez de sua estrutura semiótica, pode fornecer razões suficientes
para que a palavra seja colocada em primeiro plano no estudo das ideologias.
Pensando em um estudo que não avalia apenas uma tendência idealista
de observação da linguagem, nem ao menos se restringe ao absolutismo da
tendência positivista, mas que propõe um modo de análise pautado no
materialismo dialético, enxergamos no todo sociológico procedimentos
coerentes para um ensino voltado para a interação.
A partir do instante em que delimitamos uma palavra que possa permear
diversas áreas do saber, e ao mesmo tempo dialogar com diversas épocas e
lugares, acumulando-se seus sentidos, estamos diante de uma proposta
dialógica. A inserção da noção de ideologia é fundamental para os processos de
ensino-aprendizagem de qualquer especificação de conhecimento, até porque
percebe-se a necessidade de que as diversas especificações ideológicas (arte,
moral, religião, literatura) estejam interligadas com o campo geral das ideologias,
conforme Medviédev (1928 [2016]).
Na perspectiva de Volóchinov ((2017 [1929]), a palavra não é colocada
apenas como o signo mais puro, mais indicativo. Também é representada como
um signo neutro. Cada um dos diversos sistemas semióticos é específico de
algum campo particular da criação ideológica. O signo, então, é criado por uma
função ideológica precisa e permanece inseparável dela. A palavra, ao contrário,
é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Pode preencher
qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa.
3. BREVE ANÁLISE DA TELA AQUELLOS POLVOS, DE FRANCISCO GOYA
A composição artística Os Caprichos, estética e historicamente, consiste
numa série de 80 gravuras do pintor espanhol Francisco Goya, na representação
categórica de uma sátira da sociedade espanhola de finais do século XVIII,
principalmente da nobreza e do clero da chamada Inquisição. Dividiu-se em as
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gravuras mais realistas e satíricas, com críticas à razão e ao comportamento dos
padres e líderes, na primeira parte, enquanto na segunda metade representou o
emblema de gravuras no nível do fantástico.
Tomemos como corpus para análise a tela de número 23, Aquellos Polvos,
da série “Os Caprichos”, de Francisco Goya, a qual se encontra no Museo del
Prado. A tela, produzida entre 1797 1799, é esteticamente configurada em
gravura a água-forte, drypoint, escoplo, aquatinta polida sobre papel laminado,
com faixas de 306 x 201 mm.
Figura 01. Aquellos Polvos (1797-1799).
Pesquisa em: https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/aquellos-
polbos/a6a5d912-f4be-4c67-bd13-
8c71c4fa235c?searchMeta=aquellos%20polvos
Sob abordagem dos signos, o objeto estético plástico-pictural, em sua
densidade arquitetônica, contém cores fechadas, acinzentadas, e o autor-pintor
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conferiu artisticidade a esses elementos sígnicos, os quais significam no jogo
imagético. Importa mencionar que a categoria arquitetônica, mobilizada por Bakhtin
(2010 [1930-1934]), advinda de Kant, em seus estudos sobre estética e literatura,
“está vinculada à completude integrante de um ser, ou se um objeto. Averiguar
um objeto em sua densidade arquitetônica é poder visualiza-lo como um todo,
tanto sua exterioridade quanto seus elementos internos” (SANTANA, 2018, p. 36).
Em relação ao célebre objeto pictural, de numeração 23, Aquellos polvos,
o pintor Francisco Goya expõe indignação e reprovação para com a ganância dos
inquisidores do seguinte modo: pinta um prisioneiro com as mãos atadas, e
cabeça baixa, como se estivesse em plena reverência a excelência católica, ou
como se este fosse um ato de autoculpa, na densidade do ter que revelar, ainda
que não haja nada a ser dito. Sentado em uma plataforma, de frente para o líder
religioso, além de estar perante a população (com algemas e amarraduras,
estando sua cabeça afundada no peito em símbolo de vergonha), o homem é
obrigado a ouvir a leitura de sua declaração/sentença.
Do lpito para a presença de uma grande camada eclesiástica se
constrói um sentimento de pavor e tensão, na espera do que provavelmente
aconteceria: o castigo de declaração de morte, ao réu. Aquellos polvos (os pós),
traz semanticamente a ideia de que ele, o acusado, trouxe essa lama, ou seja,
trouxe o pó/lama a sujeira de outra cultura, ou de outra prática que não fosse a
clerical.
Todos os signos representativos desta tela, Aquellos Polvos, são criados
e marcados pela função ideológica, e os sentidos se dão na multiplicidade
dialógica dos signos, os quais se tornam inseparáveis, na criação pictórica, em
resposta ao sistema social estabelecido pela inquisição. Todos os elementos,
como chapéu, maneira de estar sentado, o cenário, são pertencentes exatamente
a esta crítica, e não podem se separar do todo.
Embora existam signos ideológicos que jamais possam ser substituídos por
palavras, como uma sonata, cada um deles possui a palavra como apoio, como
se cada uma das palavras pudesse o acompanhar, e complementá-lo, ou até
mesmo traduzi-lo. Não signo que, quando esteja compreendido e dotado de
sentido, permaneça isolado separado dos demais. Ele torna-se parte de um
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todo, que também se estabelece como unidade da consciência verbalmente
constituída.
É então que, para os fins desta proposição, quaisquer que sejam as
propriedades das palavras examinadas por Volóchinov, tanto em sua pureza
semiótica ou natureza sociológica e implicação na comunidade humana, têm
possibilidade de acompanhar um conjunto ideológico, complementando-o. As leis
da ondulação ideológica, bem como suas formas e seus mecanismos, devem ser
estudadas a partir desse material, da forma e o conteúdo. Diante de toda essa
aquiescência, destaca-se a um dos pontos centrais das reflexões russas a
consciência sígnica, ou ideológica.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossas reflexões circunscreveram aspectos teórico-metodológicos em que
Bakhtin, Volóchinov e Medviédev posicionaram-se criticamente ao sistema formal
russo, e fundamentaram seus estudos em uma dimensão estritamente filosófica e
sociológica, em diálogo com a escola de Marburgo, ou neokantismo, a qual que
almejava o retorno à investigação original de Kant, ou a filosofia como
metodologia da ciência.
Nesse sentido, fez-se de extrema importância trazer as reflexões russas,
pensando no método sociológico de observação e análise. Desse modo,
compreende-se que a proposta de Volóchinov e os outros membros do círculo de
Bakhtin, além de desenvolverem suas produções com base na teoria dialógico-
sociológica, asseveram a insuficiência do formalismo russo, e alertam para a
necessidade da interação quanto ao nível enunciativo da linguagem.
Então, ao incidirmos nos pressupostos soviéticos do Círculo de Bakhtin,
sobre como a filosofia moderna estava se desenvolvendo sob o signo da palavra
na primeira metade do culo XX, traçamos um estudo sobre a ciência das
ideologias e a filosofia da linguagem.
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poética sociológica. Tradutoras: Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova
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