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MIKHAIL BAKHTIN E ANTONIO CANDIDO: APROXIMAÇÕES EM FAVOR DE
UMA ANÁLISE ESTÉTICA IMANENTE
Mikhail Bakhtin and Antonio Candido: approximation in favor of immanent
aesthetic analyze
BÁRBARA DEL RIO ARAÚJO
1
RESUMO: Este artigo busca estabelecer
os princípios que fomentam a concepção
sobre forma estética para Mikhail Bakhtin,
especificamente nas obras Estética da
Criação Verbal, Questões de Literatura e
Estética e Problemas da poética de
Dostoievski, no que diz respeito à
estilística e ao plurilinguismo. A partir
disso, proporcionaremos uma
aproximação com o crítico Antonio
Candido sobretudo em relação à
conceituação da redução estrutural e da
formação do personagem de ficção, a fim
de mostrar que ambos executam uma
análise imanente, servida pelos princípios
materiais do texto, o quais são capazes
de levar para além dele, constituindo
representações sociais.
PALAVRAS-CHAVE: Estética imanente.
Mikhail Bakhtin. Antonio Candido.
ABSTRACT: This paper aims to establish
the main elements that compose the
conception about aesthetic analyses by
Mikhail Bakhtin, present on the books
Estética da Criação Verbal, Questões de
Literatura e Estética and Problemas da
poética de Dostoievski, related to stylistic
and plurilinguism. From these principles,
we will provide an approach with the
Brazilian critic Antonio Candido,
especially related to the structure
reduction concept and fiction character
building, in order to show that both
develop an immanent analysis about the
literature, composed by text materials,
which are able to take beyond it,
configuring relevant discussions about
social representations.
KEYWORDS: Immanent Aesthetic.
Mikhail Bakhtin. Antonio Candido.
ARAÚJO, B. del R. Mikhail Bakhtin e Antônio Cândido: aproximação em favor de
uma análise estética imanente. In. Revista Diálogos, v. 7, n. 3, out.-dez., 2019.
1
Doutoranda em Literatura Brasileira pelo programa de pós-graduação em estudos literários da
UFMG. Professora efetiva de Literatura Brasileira no Centro Federal de Educação Tecnológica de
Minas Gerais (CEFET-MG). barbaradelrio.mg@gmail.com
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Mikhail Bakhtin é um teórico quase inclassificável em relação aos estudos
estéticos, uma vez que podemos aproximá-lo tanto aos estudos formalistas,
quanto estruturalistas ou ainda marxistas, sem que consigamos reduzi-lo a
qualquer uma dessas linhas metodológicas. Por sua vez, o crítico literário Antonio
Candido também utiliza de diferentes metodologias, configurando análises
coerentes, ainda que adote, por exemplo, pontos de vistas “estruturalistas ou
funcionalistas, termos que atualmente se repelem (CANDIDO,2009, p.10). O que
se pode notar, a princípio, é uma relação bastante interessante entre os dois
estudiosos no que diz respeito à maneira de encarar a obra de arte. Entretanto,
essas aproximações podem ser expandidas no que diz respeito à forma artística,
aos estudos sobre os personagem de ficção e ao gênero romanesco.
Na obra Questões de Literatura e Estética: a teoria do romance, o filólogo
russo define o que seria estética e sua especial interação com a poética. Nesse
sentido, estabelece uma visão do todo artístico e da sua partes, enunciando a
importância da associação entre o material linguístico e as relações sociais,
que “forma é, por um lado, efetivamente material, inteiramente realizada no
material e a ele ligada, e como, por outro lado, ela, enquanto valor, nos coloca
nos limites da obra como material organizado, como coisa (BAKHTIN, 2010,
p.28.). Esse mesmo raciocínio também vigora nas pesquisas de Antonio Candido
que utiliza do conceito de forma orgânica para dizer da constituição
interdinâmica entre os elementos da obra garantindo a sua coerência e a sua
função social: “me convenço cada vez mais de que através do estudo formal é
possível aprender convenientemente sobre os aspectos sociais”. (CANDIDO,
2010, p.100).
Deste modo, para ambos os críticos, os estudos linguísticos, internos ao
texto, são importantes na medida em que levam à ampliação do dado material,
sendo ele importante quando garante a autonomia do instrumento artístico, sem
alheá-lo ou aliená-lo. Obviamente, existe especificidade no tratamento do texto
para cada um desses autores, como se colocará a seguir. De todo modo, “a forma
e o conteúdo estão unidos no discurso, entendido como fenômeno social social
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em toda as esferas de sua existência e em todos os seus momentos desde a
imagem sonora até os estratos semânticos mais abstratos(BAKHTIN, 2010, p.
71).
1. APROFUNDANDO...
Isto posto, Bakhtin se debruça em analisar os elementos linguísticos,
sobretudo no gênero romanesco, se detendo à estilística desenvolvida na relação
do autor e leitor inserida no texto, no purilinguismo e na pessoa que fala no
romance. Infelizmente, o teórico não concretiza uma teoria do narrador
2
, mas
muito se preocupa na criação de personagens e como o autor se insere
estilisticamente, ideologicamente e linguisticamente no texto. É nesse momento
que ele reconhece os célebres romances dostoievskianos em detrimento das
narrativas de Gogol, Tolstói, Turguiêniev e os outros que padecem da estrutura,
cujo aspecto material compromete a representação social.
Especificamente em Estética da criação verbal, o filólogo analisa as
operações semânticas e formais, salientando que elas são o que interessa em
seu estudo. Assim, afirma que “o material biográfico pode adquirir valor
estético, quando iluminado pelo sentido artístico da obra” (BAKHTIN, 2003, p.6).
Nessa seara, de modo semelhante, Antonio Candido afirma que os princípios
estruturais é que enformam a matéria” (CANDIDO, 2010, p.16). A preocupação
com a matéria faz Bakhtin desenvolver pesquisas sobre a estilística e o
plurilinguismo. Em relação ao primeiro, ele se opõe às categorias linguísticas
tradicionais, baseada no estudo dos tropos, e discute sobre as estratificações
internas da linguagem, na diversidade social da linguagem e na divergência das
vozes individuais. É exatamente aí que se encena a questão do plurilinguismo,
isto é, a diversidade dos gêneros verbais (folclóricos, retóricos, prosaicos e
literários). Isso se relaciona à riqueza do romance e da criação estética que
nela deve ser trabalhado as tendências descentralizantes da vida linguística
encenando uma grande polifonia do texto. Tomando o romance de Dostoievski
2
Como procedeu Wayne Booth, Oscar Tacca e Gerárd Genette.
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como exemplo, explicita que a forma do romance deve ser um grande diálogo de
um movimento em turbilhão:
Dostoievski teve a capacidade de auscultar relações dialógicas
em toda parte, em todas as manifestações de vida humana,
consciente e racional, onde começa a consciência, começa o
diálogo para ele. Apenas as relações puramente mecânicas não
são dialógicas, e Dostoievski negava-lhes categoricamente
importância para a compreensão e interpretação da vida e dos
atos do homem (sua luta contra o materialismo mecanicista, o
fisiologismo em moda e Claud Bernard, contra a teoria do meio,
etc.). Por isso, todas as relações entre as partes externas e
internas e os elementos do romance tem nele caráter dialógico;
ele construiu o todo romanesco como um “grande diálogo”. No
interior desse “grande diálogo ecoam, iluminando-o e
condensando-o, os diálogos composicionalmente expressos das
personagens; por último, o dialogo se adentra no interior, em cada
palavras do romance, tornando-o bivocal, penetrando em cada
gesto, em cada movimento mimico da face do herói, tornando-o
intermitente e convulso; isto já é o microdiálogo, que determina as
particularidades do estilo literário de Dostoievski. (BAKHTIN,
1981, p.34)
Em uma tentativa de organizar o raciocínio, podemos afirmar que
incialmente, Bakhtin concebe a linguagem a ser representada na narrativa como
um sistema vivo e dinâmico, que produz e é produzida pelo confronto de
consciência, abstraída de percepções ideológicas presente na realidade. A
linguagem literária não é, pois, um sistema uno, mas a reunião de outras
“linguagens” artisticamente ativas; assim, “ainda que a linguagem literária seja,
em seu núcleo inicial, socialmente homogênea, como principal linguagem falada e
escrita por um grupo social dominante, ela conserva, apesar disso, a
diferenciação social significativa que está sempre presente” (BAKHTIN, 2010,
p.97). Diante do que se menciona, Bakhtin explicita sobre o plurilinguismo da
linguagem literária, que é capaz de concentrar outros gêneros pela sua natureza
dissimulada das representações, que deforma parodicamente alguns pontos da
linguagem cotidiana e comum. Elegendo o romance como o gênero hibrido,
estrutura compósita de todos os outros, essa forma consegue fazer com que os
demais gêneros tornem-se objeto de sua reflexão transformando-as em uma
relação estilística pluralizada: “todos esses gêneros que entram no romance
introduzem nele as suas linguagens e, portanto, estratificam a sua unidade
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linguística e aprofundam de um modo novo o seu plurilinguismo”. (BAHKTIN,
2010, p.125)
Uma vez colocada a complexidade da linguagem literária e o plurilinguismo
romanesco, o autor explicita a necessidade da narrativa ser polifônica. O valor do
gênero romanesco e o valor artístico de modo geral está em proporcionar na
forma linguística a representação das vozes sociais diferentemente. Deste modo,
Bakhtin se recusa ao monologismo e divulga a polifonia como condição para uma
estética autêntica. Entretanto, ele associa essa polifonia à capacidade de
representação não meramente de vozes dos personagens, mas de consciências
em diálogo, relações contraditórias entre pontos de vistas marcados no discurso:
por maior que seja a precisão com que é transmitido, o discurso
de outrem incluído no contexto sempre está submetido a notáveis
transformações de significado (...) a palavra alheia introduzida no
contexto do discurso estabelece com o discurso que a enquadra
não um contexto mecânico, mas uma amalgama química (no
plano do sentido e da expressão); o grau de influência mútua do
diálogo pode ser imenso (BAKHTIN, 2010, p.141).
Interessante, nesse sentido, é a prescrição que o estudioso faz sobre
quando e como a polifonia é atingida e revela, em análises de obras literárias,
experiências malfadadas. A questão central para a ocorrência da polifonia está na
construção das personagens e na relação entre o autor e texto. Nesse sentido,
ele recusa a conclusibilidade e o panfletarismo em que o autor se manifesta
através dos personagens seus anseios estéticos. Incapaz de fazê-lo
artisticamente, esse autor “fala” através da criação. Isso, Bakhtin associa à
retórica, ao discurso publicista, mas não à literatura que precisa representar um
ideograma social fundido no seu discurso, na sua linguagem e nas imagens
singularizadas deste. Assim, os horizontes (social, ideológico, linguístico) devem
ser expandidos; as personagens devem ter relativa liberdade no plano linguístico
polifônico e nas ideias.
Especificamente em relação às personagens, Bakhtin mostra que sua
caracterização não deve ser rígida, mas uma relação entre sua consciência e
autoconsciência: não interessa que nela estejam colocados traços da realidade,
mas como ela enxerga esses traços e o valor deles para ela. Assim, garante-se
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que essa personagem tenha uma liberdade relativa e não seja apenas constructo
da palavra final do autor. Inclusive, essa personagem é uma linha de força, pois o
próprio autor será inserido em seu campo de visão permitindo que ela crie
perspectivas sobre ele:
no plano monológico, a personagem é fechada e seu limites
racionais são rigorosamente delineados: ela age, sofre, pensa e é
consciente nos imites daquilo ela é, isto é, nos limites da sua
imagem definida como realidade (...) A autoconsciência da
personagem está inserida num sólido quadro que lhe é
interiormente inacessível da consciência do autor que a
determina e representa e é apresentada no fundo sólido do mundo
exterior. (...) A personagem dostoieviskiana não é uma imagem
objetiva mas um discurso pleno, uma voz pura; não o vemos nem
o ouvimos. Afora a sua palavra, tudo o que vemos e sabemos é
secundário e absorvido pela palavra como matéria sua ou
permanece fora dela como fator estimulante e excitante.
(BAKHTIN, 1981, p.42-45)
A relação entre o autor e a elaboração das personagens é determinante na
estrutura polifônica e dialógica. Aplicando o princípio da não identidade, em que o
homem nunca coincide consigo mesmo e não cabe a aplicação da fórmula A=A, a
forma estética preza pela autenticidade de seus elementos, e, por mais que
estejam vinculados à ideia do autor, não podem se delimitar ao campo de visão
monológico dele. Assim, para haver polifonia e dialogismo é preciso uma
mudança radial da postura do autor, o que revela uma imensa força de
construção poética: Não se exige do autor do romance polifônico uma renúncia a
si mesmo ou à sua consciência mas uma ampliação incomum, o aprofundamento
e a reconstrução dessa consciência para que ela possa abranger as consciências
plenivalentes dos outros”. (BAKHTIN, 1981, p.58)
Segundo Bakhtin, isso não é um fenômeno exclusivamente necessário à
recriação artística, mas sobretudo inerente à natureza da própria vida que carece
de uma representação complexa. Assim, criar personagem presos e fechados em
um determinado discurso que se ignoram mutuamente é estar surdo à realidade.
O personagem assim como o autor deve estar aberto a todas as ideias inserindo-
as nos seus discursos e nos seus campos de visão. Deste modo, teremos
diferentes imagens de uma ideia, permitindo auscultar o fenômeno de modo
amplo, inclusive captar relações dialógicas de uma determinada época.
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Em Dostoievski, duas ideias tem o caráter de ser duas pessoas, que
cada ideia representa o homem e seu todo. Nesse sentido, Bakhtin discute a
necessidade do personagem sempre ter a capacidade de “outrar-se”,
incorporando novas personas. Isso tem reflexo direto na questão estilística do
texto a qual deve ofertar não somente a existência de certos estilos de linguagem,
dialetos sociais, mas sobretudo que elas estejam em posição dialógica e isso
pode ocorrer se esses discursos se materializassem, isto é, passarem para outro
campo de visão para que sejam confrontados. Assim, Bakhtin salienta:
Existe um conjunto de fenômenos do discurso-arte que muito
tempo vem chamando a atenção de críticos literários e linguistas.
(...) Trata-se da estilização, paródia, do skaz e do diálogo
(composicionalmente expresso, que se desagrega em réplicas).
Apesar das suas diferenças substanciais, todos esses fenômenos
tem um traço comum: aqui a palavra tem duplo sentido, voltando
para o objeto do discurso enquanto palavra comum e para um
outro discurso, para o discurso de um outro. (BAHKTIN, 1981,
p.160)
O que salta aos olhos nesse fragmento é, além das técnicas, a busca por
elas perpetuarem um grande diálogo em que seja possível a ampliação discursiva
e também representacional. A intenção é que ocorram convergências entre
enunciações para o mesmo objeto; duas palavras de mesmo peso sobre o
mesmo tema entrando em relação significativa e refrativa de mútua relação.
Em Personagem de Ficção, Antonio Candido relaciona ideias à formação
dos caracteres e da personalidade da personagem. Para o crítico, “a personagem
vive o enredo e as ideias e os torna vivos”. (CANDIDO,1987, p.54) Desta forma,
elas não são caixas de ressonância do autor ou do mundo, pura e simplesmente.
São em partes autônomas para animarem a ideia. Ali na narrativa quem cria a
perspectiva são elas, porém não podem existir separadas da realidade que as
encarnam, isto é, do mundo que partilhamos. Candido é claro quanto a
necessidade de uma boa estruturação e de um diálogo bem construídos: “no fim
de contas a construção estrutural é o maior responsável pela força e eficácia de
um romance” (CANDIDO, 1987, p.55)
Assim, a questão da verossimilhança é algo importante para ambos os
estudiosos. Por meio da configuração interna das personagens e das vozes que
encenam o romance há de se alcançar não exatamente a realidade, mas a
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impressão mais lidima da realidade. Trata-se de uma linguagem particular,
inserindo a imediata realidade em uma singularidade estética, tornando-a assim
mais inteligível. Candido, então, aborda a questão da descontinuidade na
construção das ideias da personagem como algo importante a promover os
efeitos de realidade. Essa descontinuidade é a implosão da unidade que
aparentemente se em uma personagem. O objetivo é aproximado ao filólogo
russo que busca a quebra do monologismo e tua absorção de consciências
plenivalentes. Candido deixa evidente a importância das personagens serem
capazes de abranger a personalidade das outras, possibilitando uma
dinamicidade dialógica entre os elementos do romance. Reforça, por fim, a
necessidade dessas figuras serem inclonclusas e incompletas, sempre dispostas
a abrigar novas perspectivas assimilando a característica humana fragmentária:
“No ser uno que a vista ou o contato nos apresenta, a convivência espiritual
mostra uma variedade de modos-de-ser, de qualidades por vezes contraditórias”.
(CANDIDO, 1987, p.55)
Citando Dostoievski e mostrando uma aproximação com o autor Machado
de Assis, Candido reconhece a importância dos estudos da psicanalise nessa
questão de ouvir as consciências na produção da personagem assim como
Bakhtin (1981) reconhece a importância das vanguardas, sobretudo do
surrealismo na ampliação do diálogo. Candido reforça portanto a configuração da
personalidade do personagem como algo multifacetário e complexo. Assim,
reconhece a importância do gênero romanesco nessa trajetória: O romance
moderno procurou, justamente, aumentar cada vez mais esse sentimento de
dificuldade do ser fictício, diminuir a ideia de esquema fixo, de ente delimitado,
que decorre do trabalho de seleção do romancista. (CANDIDO, 1987, p.59)
O romance moderno caminhou rumo ao reconhecimento da complexa
psicologia e variedade dialógica, deste modo, é possível perceber uma passagem
do enredo complicado e de personagens simples, típicos do romance do século
XVIII para o enredo até mais simplificado com personagens complicadas,
subvertendo tudo inclusive o próprio gênero. Diante dessa transformação,
Candido enuncia sobre a importância na mudança do papel do escritor.
Contrariando Foster que afirma o autor saber tudo sobre suas personagens, o
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estudioso diz que as personagens não podem ser projeções das limitações,
aspirações e frustações pessoais da esfera autoral, pois “o princípio que rege o
aproveitamento do real é o da modificação, seja por acréscimo, seja por
deformação de pequenas sementes sugestivas”. (FOSTER apud CANDIDO,
1987, p.67) Assim, o romance deve ser dinâmico e vivo como a realidade, longe
de monologismos e próximo das diferentes virtualidades. Portanto, o que lhe
garantirá verossimilhança é justamente a análise de sua composição não a sua
comparação fixa com o mundo. Referindo à Machado de Assis no livro Memórias
Póstumas de Brás Cubas, o que interessa é a “substância da vida” estetizada no
texto.
Tendo em vista o panorama da literatura brasileira, a qual mantem reações
com as demais literaturas, Candido analisa o romance de Machado de Assis e o
valoriza pela característica polifônica, como Bakhtin o faz com Dostoievski
comparando-o com seus predecessores. Candido reconhece em Machado de
Assis não o aprofundamento de um sistema literário, caracterizado pela
circulação de obras, notáveis produções de artistas e projeção positiva de um
público leitor, mas sobretudo o fato de ter incorporado uma tradição da literatura
nacional, tornando-a crítica e produtiva. Aprendendo com os autores de seu
tempo e do passado, a exemplo José de Alencar e Joaquim Jose de Macedo,
Machado de Assis soube parodiar o discurso romântico inserindo-o criticamente
em seus romances assim como fez com o discurso realista e cientificista, em voga
na sua época de produção. Ler Memórias Póstumas de Brás Cubas é se inserir
em um intenso e imenso espaço dialógico e polifônico, já que
A sua técnica consiste essencialmente em sugerir as coisas mais
tremendas de maneira mais cândida; ou estabelecer um contraste
entre a normalidade social dos fatos e a sua anormalidade
essencial; ou em sugerir, sob aparência do contrário, que o ato
excepcional é normal, e anormal seria o ato corriqueiro. está o
motivo da sua modernidade, apesar de seu arcaísmo de
superfície. (CANDIDO, 2004, p.23)
A adesão pela combinação dos contrários revelada sobretudo na
volubilidade das personagens fazem de Machado de Assis um escritor que
procura trabalhar a polifonia e o conflito de perspectivas no seu texto. Segundo
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Antonio Candido, o autor fluminense tem como temática fundamental da sua obra
é a problemática da identidade e em que medida um personagem força ganha
vida por meio de outros personagens. Isso muito tem a ver com a questão das
consciências inseridas no diálogo com outro capaz de emanar o senso dialógico
da obra. De modo comum, esses críticos ressaltam na formação do personagem
o problema da divisão do ser, do desdobramento da personalidade
importantíssimo não pela profundidade moderna do assunto quanto para criar
a polifonia no romance.
Assim, pode-se dizer que Candido valoriza Machado de Assis por trazer no
conteúdo dos romances uma temática importante, mas valoriza sobretudo a forma
como se trabalha esse conteúdo. Preza-se, deste modo, pelo rigor formal de um
trabalho com a linguagem a qual cultiva o elíptico, o incompleto, o fragmentário,
sendo capaz de representar uma pluralidade de perspectivas ativas no texto. Digo
mais, Candido valoriza “o estilo guindado e algo precioso com que trabalha e que
se de um lado pode parecer academicismo, de outro sem dúvida parece forma
sutil de negaceio, como se o narrador estivesse rindo um pouco do leitor”
(CANDIDO, 2004, p.22)
A formação do personagem, o estilo que valoriza a técnica e a linguagem,
além da polifonia e do plurilinguismo romanesco fazem com que Machado de
Assis seja para Antonio Candido um autor engenhoso, ainda que exista ressalvas
em alguns contos. A questão técnica é primordial para o estudioso pois é ela
capaz de configurar a redução estrutural, isto é, “o processo por cujo intermédio a
realidade do mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional, componente de uma
estrutura literária, permitindo que esta seja estudada em si mesma como algo
autônomo” (CANDIDO, 2010, p.9). Deste modo, a questão se passa por revelar
os materiais literários e ampliá-los mostrando como o fatores do texto capazes
de exprimir e representar a realidade social:
Frequentemente os críticos que levam em conta a sociedade, a
personalidade ou a história acabam por interessar-se mais pelo
ponto de partida (isto é, a vida e o mundo) do que pelo ponto de
chegada (o texto). O meu interesse é diferente, porque se
concentra no resultado, não no estímulo ou no condicionamento.
(...) O alvo é analisar o comportamento ou o modo de ser que se
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manifestam dentro do texto, porque foram criados nele a partir dos
dados da realidade exterior (CANDIDO, 2010, p.10)
De modo semelhante, Bakhtin valoriza o autor Dostoievski e reconhece
nele aprofundamento de técnicas, quando compara Gente Pobre aos Irmãos
Karamazov. Nesse sentido, o filólogo percebe que inicialmente existia apenas
uma palavra refrativa do discurso epistolar que segue para uma distribuição
ampla de tipos e modalidades de discursos, apresentados de modo bivocal e
acentuado. Assim, reconhece que essa transformação elabora de modo profundo
a representação dissonante da sociedade:
O diálogo exterior composicionalmente expresso é inseparável do
diálogo interior, ou seja, do microdiálogo, e em certo sentido neste
se baseia. E ambos são igualmente inseparáveis do grande
diálogo do romance no seu todo, que os engloba. (...) As obras de
Dostoievski são o discurso sobre o discurso, voltado para o
discurso. O discurso representável converge com o discurso
representativo em um nível e com os mesmos direitos. Penetram
um no outro, sobrepõe-se um ao outro sob diferentes ângulos
dialógicos. (BAKHTIN, 1981, p. 236)
A valorização do texto
3
é algo comum entre as análises de Antonio
Candido e Mikhail Bakhtin, que a representação social, ainda que almejada,
se faz possível através da forma do texto. Existe sim uma valorização da
representação da realidade, mas isso se passa pelo texto, pela estilística na
configuração das vozes das personagens. Tanto o crítico brasileiro quanto o
teórico russo deixam claro que o texto é condição para que se tenha uma estética
capaz de exprimir as relações humanas fora do âmbito da fetichização e da
coisificação, picos do engendramento capitalista. Apostar na pluralidade
discursiva da narrativa é sem dúvida apostar na perspectiva dialógica; é,
inclusive, apostar na variedade estilística e na polifonia, sendo assim capaz de
configurar a diversidade de matizes que compõe a realidade. Monologismo, estilo
cerrado, panfletarismo é reduzir a capacidade de um texto literário, cuja base se
3
Esse artigo destaca como aspecto positivo o fato de Bakhtin e Antônio Candido encararem o
texto como forma de mediação das representações sociais. Nesse aspecto, esses estudiosos se
opõe àquelas vertentes teóricas que valorizam o texto apartadas do aspecto histórico, como os
estruturalistas franceses e o formalista Jakobson. Para mais informações a respeito dessa
contraposição, ver: MERQUIOR, José Guilherme. De Praga a Paris: uma crítica do estruturalismo
e do pensamento estruturalista e pós-estruturalista. São Paulo: Nova Fronteira, 1991.
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caracteriza como um apelo de profanação, de paródia, de colocação de
questionamentos essenciais.
2. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
A imanência do texto
4
é a grande substância das análises de Mikhail
Bakhtin e Antonio Candido, que orienta os princípios importantes da configuração
estética. A palavra e a materialidade do texto na perspectiva desses estudiosos é
a internalização dos movimentos sociais e históricos, sendo parte representativa
dessa totalidade. Nesse aspecto, seguir os artifícios de uma crítica imanente é,
em primeiro lugar, obviamente, atender a apreciação do texto e do objeto literário
sabendo que ele é uma mediação para diversos níveis, inclusive para representar
a complexidade do real. Em segundo lugar, é parecer ser muitas vezes
redundante na busca pela explicitação minuciosa da leitura, tentando fazer dela
meio para reflexão, explorando seu primado materialista. Assim, muitas vezes o
que parece estar sobrando é na verdade uma tentativa de captação da dinâmica
do objeto, confrontando-o e não retalhando em direção a uma teoria
preconcebida. O que se nota é o refinamento da interpretação a qual não
despreza nem o material textual nem o social, mas fazem deles momentos de um
processo extremamente mediatizado, em que um se torna a aparição do outro.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. M. Problemas na poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra.
Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1981.
BAKHTIN, M. M. Questões de Literatura e de estética: a teoria do romance.
6ed. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et all. São Paulo: Ed. Hucitec, 2010.
4
A intenção, ao utilizar a expressão “estética imanente” ou “imanência do texto”, é explicitar a
concepção de que a análise do texto literário experimenta uma perspectiva dialógica ressaltando
uma inter-relação entre texto e discurso. Nesse aspecto, o texto literário, tanto para Bakhtin quanto
Antonio Candido, é aquele capaz de proporcionar uma reflexão sobre o enunciado, os discursos
que o constituem, além das esferas de produção, circulação, mobilizando o conjunto sígnico e
ideológico.
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BAKHTIN, M. M. A estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo:
Cia das Letras, 2003.
CANDIDO, A. O discurso e a cidade. 4ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
2010.
CANDIDO, A. Literatura e Sociedade. 11ed.Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
2009.
CANDIDO, A. Vários escritos. 4ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004.
CANDIDO, A. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1987.