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Revista Diálogos
- ISSN 2319
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Relendo Bakhtin, v.7, n. 3, out.
-dez., 2019
O DISCURSO RELIGIOSO EM MEMES: O TOM VALORATIVO EXPRESSO
PELO MECANISMO DA COMPARAÇÃO
RANIERE MARQUES DE MELO
1
MARIA DE FÁTIMA ALMEIDA
2
RESUMO: Neste artigo, concebemos os
memes virtuais como gêneros discursivos
na perspectiva bakhtiniana e, assim sendo,
repletos de enunciados instituídos de
diferentes orientações socioideológicas.
Esses enunciados disseminam dadas
posições valorativas dos discursos sociais,
como o religioso, por exemplo. Logo, o
meme virtual, como enunciado concreto, é
pleno de apreciações, de posições
axiológicas que expressam determinadas
valorações e revelam um dado projeto
enunciativo por meio de mecanismos
enunciativos. Diante disso, este trabalho
analisa as posições valorativas e as
relações dialógicas emergentes nos
memes que tratam do discurso religioso,
em comunidades do Facebook. Nossa
análise fundamenta-se no domínio teórico-
metodológico centrado na perspectiva
dialógica da linguagem oriunda das
reflexões de Bakhtin e do Círculo, bem
como os estudos discursivos que se
orientam por ela. Quanto ao delineamento
metodológico, a pesquisa é de cunho
qualitativo-interpretativista, pautada no
método netnográfico. O corpus é composto
por três memes coletados na rede social
Facebook. As análises ratificam a tese de
ABSTRACT: In this article, we conceive
virtual memes as discursive genres in the
Bakhtinian perspective, and thus are full of
established statements of different socio-
ideological orientations. These statements
disseminate given values positions of social
discourses, such as religious, for example.
Therefore, the virtual meme, as a concrete
statement, is full of appreciations,
axiological positions that express certain
valuations and reveal a given enunciative
project through enunciative mechanisms. In
the light of this, this work analyzes the
values and emerging dialogical relations in
memes dealing with religious discourse in
Facebook communities. Our analysis is
based on the theoretical-methodological
domain centered on the dialogical
perspective of the language derived from
the reflections of Bakhtin and the Circle, as
well as the discursive studies that are
guided by it. As for the methodological
delineation, the research is qualitative-
interpretative, based on the netnographic
method. The corpus is composed of three
memes collected on the social network
Facebook. The analysis ratifies the thesis
that such statements reflect and refract the
position of the enunciator in relation to what
1
Doutorando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFPB.
prof.ranieremarques@gmail.com
2
Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). É professora
associada I do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, é membro do Programa de
Linguística / PROLING atuando na área de Teoria Linguística, Linguagem e Ensino, na linha
Discurso e Sociedade, participando principalmente no campo da: linguagem, discurso e leitura. É
líder do Grupo de Estudos em Linguagem, Enunciação e Interação/GPLEI. falmed@uol.com.br
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que tais enunciados refletem e refratam o
posicionamento do enunciador em relação
àquilo que anuncia, a partir de uma
referência cruzada para contrapor,
assemelhar sujeitos religiosos, a partir do
discurso sarcástico e humorístico.
PALAVRAS-CHAVE: Relações dialógicas.
Posicionamento axiológico. Memes.
announces, from a cross reference to
oppose, to resemble religious subjects,
from the sarcastic and humorous discourse.
KEYWORDS: Dialogical relation.
Axiological position. Memes.
MELO, R. M. de; ALMEIDA, M. de F. O discurso religioso em memes: o tom
valorativo expresso pelo mecanismo da comparação. In. Revista Diálogos, v. 7,
n. 3, out.-dez., 2019.
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INTRODUÇÃO
Os memes virtuais são gêneros discursivos que circulam no meio virtual, a
partir das redes sociais, e têm uma linguagem portadora de multissemiose, pois
sinalizam uma produtiva relação com a tecnologia, unindo à palavra, imagens,
links, hiperlinks, sons, cores e movimentos. São caracterizados por uma
linguagem curta e de leitura rápida, bem como constituídos por novas estéticas e
por uma hibridização feita com a palavra. Como são de ampla circulação virtual,
escolhemos para nosso objeto de pesquisa somente aqueles que circulam no
Facebook, uma vez que esta é a maior rede social do mundo com mais de um
bilhão de usuários e com participação de 91,6% pessoas com idade entre 25-34
anos, segundo dados da ComScore.
Enquanto recorte de uma pesquisa mais ampla
3
, este trabalho visa analisar
as posições valorativas e as relações dialógicas, presididas pelo mecanismo
enunciativo da comparação, nos memes que tratam do discurso religioso, em
comunidades do Facebook. Por se reportar a diferentes temas sociais,
3
Este artigo consiste em um recorte da dissertação de mestrado, sob orientação... defendida no
Programa de Pós-Graduação, em fevereiro de 2018.
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escolhemos três memes, de diferentes comunidades, que são atravessados pelo
discurso religioso, mais especificamente aqueles que atribuem significados,
valorações aos líderes religiosos Edir Macedo, Valdemiro Santiago e Silas
Malafaia, pastores neopentecostais. A escolha desse objeto não é aleatória, pois
está orientada, a priori, por um acontecimento na mídia, que tem espessura
histórica e a cada dia se reatualiza: a publicação de uma matéria jornalística
publicada pela revista Forbes no Brasil, em janeiro de 2013
4
. O discurso
produzido por essa matéria caracterizava os pastores supracitados como os mais
ricos do Brasil.
Isso posto, toda a produção de sentido e apreciações valorativas feitas aos
pastores nessa matéria os colocam em um lugar de tensão e conflito social. E
esta é a função do analista do discurso: ler, desler
5
, analisar e desnaturalizar os
discursos que estão nesse lugar social ou que se filiam a esse evento enunciativo.
1. SOBRE O PRINCÍPIO DIALÓGICO DA LINGUAGEM
Volóchinov (2013) defende que a linguagem é um fenômeno social, uma
vez que esta é imprescindível para a organização do trabalho humano e à
consciência de cada homem. Desse ponto teórico extraímos, inicialmente,
algumas considerações: é na/pela linguagem que a constituição do sujeito e
“[...] com a ajuda da linguagem se criam e se formam os sistemas ideológicos.”
(VOLÓCHINOV, 2013, p.155). Ora, se para esse estudioso não consciência
sem signo, logo todo signo é ideológico. Não há, pois, ideologia sem estar
materializada em um signo. A linguagem, para essa concepção, não é
representada pela abstração da forma linguística, mas ela é o sítio das relações
sociais, da produção de sentidos estabelecida pela palavra (signo
socioideológico), pela língua com o sujeito.
4
Para ler a matéria na íntegra, acesse:
<https://www.forbes.com/sites/andersonantunes/2013/01/17/the-richest-pastors-in-
brazil/#4d8ca4705b1e>.
5
A arte de “desler”, na concepção de Demo (2006), significa a habilidade de “contraler”, a
autonomia de contrainterpretar, de brigar com o autor. Leitura, nessa concepção, é concebida com
gesto.
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A partir desse mirante sobre a descrição da natureza social da linguagem,
percebemos que a enunciação é sempre orientada para outro. A esse respeito,
Volóchinov (2017 p. 204-205, grifos nossos) defende:
Efetivamente, o enunciado se forma entre dois indivíduos
socialmente organizados, e, na ausência de um interlocutor real,
ele é ocupado, por assim dizer, pela imagem do representante
médio daquele grupo social ao qual o falante pertence. A palavra
é orientada para o interlocutor, ou seja, é orientada para quem
é esse interlocutor: se ele é integrante ou não do mesmo grupo
social, se ele se encontra em uma posição superior ou inferior em
relação ao interlocutor [...] (VOLÓCHINOV, 2017, p. 204).
Desse modo, é possível afirmar que a linguagem está sempre ligada ao
tempo, ao espaço e à posição do sujeito no mundo. O diálogo, nesse sentido,
compõe-se como característica imprescindível da linguagem, como intercâmbio
verbal de enunciações; logo, ele é a manifestação mais natural da linguagem, que
consiste em uma conversação recíproca, alcançando dois interlocutores. Como se
percebe, a palavra é sempre amalgamada por duas faces determinantes: de
alguém de onde procede e do outro, a quem se dirige. É ela, assim, o produto
desse jogo de interação entre locutores.
Diante dessa concepção, percebe-se que o dialogismo é o princípio
constitutivo da linguagem e a condição de sentido do discurso. Chama atenção,
ainda, o fato de o dialogismo estar presente na vida do homem muito mais do que
ele pensa, entretecendo um tecido dialógico de sentidos em torno de cada ato
desse sujeito. Nesses termos, o filósofo russo assume:
A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar do
diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar, etc. Nesse diálogo
o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os
lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-
se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico
da vida humana, no simpósio universal. (BAKHTIN, 2011, p. 348).
Em primeiro lugar, deve-se observar que as relações sociais que envolvem
o homem são relações dialógicas. Como se percebe, o estatuto do dialogismo,
nesse primeiro momento, relaciona-se ao que conhecemos como alteridade,
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que o outro é indispensável na constituição desse sujeito, isto é, torna-se
inconcebível pensar o homem afastado das relações que o ligam ao outro.
2. O ENUNCIADO CONCRETO
Para Bakhtin (2002), o Enunciado Concreto é a unidade de comunicação
verbal, aquela que forma os gêneros discursivos. Reporta-se sempre a um evento
real, em um contexto específico de comunicação, amalgamado de aspectos
sociais, históricos e ideológicos. Possui sempre um acabamento e pausas reais,
que é o locutor que lhe confere uma tonalidade específica de dizer.
Diferentemente da oração quanto aos outros aspectos, é orientado para um
interlocutor; em outros termos, é um projeto enunciativo de alguém para outro
alguém.
Nessa perspectiva, o enunciado se define a partir de uma concepção de
língua dinâmica, a partir de seu funcionamento real e concreto. Ele é conduzido
por um vínculo social que lhe o estatuto da alternância de enunciadores. É,
ainda assim, o produto de vivências subjetivas e históricas de cada sujeito que
não pode ser encerrado, única e minimamente, em cláusulas constituídas por
formas de uso gramatical; contudo, é dotado de uma dada expressividade
emotiva que organiza o uso dessa forma, atribuindo-lhe a produção de sentidos
construídos no social.
Desse modo, o sentido da palavra, do enunciado não está dado a priori;
está determinado por uma situação extraverbal que se concretiza na interação
entre enunciadores. Ora, se o enunciado é concebido no social, a palavra que a
ele pertence não pode ser congelada, pois não é neutra, tampouco unívoca. Não
pode homogênea, pois ela desliza-se, atualiza-se em cada enunciação. Ela é,
pois, objeto de expressividade e de valoração.
Segundo Bakhtin, o enunciado, unidade real do discurso, pode ser falado
ou escrito, pressupõe um ato de comunicação social. E nesse processo
enunciativo uma interação entre os sujeitos falantes. Ao ouvir e compreender
um enunciado, o interlocutor assume uma postura responsiva e não passiva, isto
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é, posiciona-se diante do enunciado, seja acordando, divergindo,
complementando, enfim, posicionando-se no ato enunciativo.
3. O TOM VALORATIVO EM BAKHTIN
Bakhtin, em “O problema do conteúdo, do material e da forma”, publicado
em 1924, concebe
Por aspecto entonacional da palavra compreendemos a sua
capacidade de exprimir toda a multiplicidade das relações
axiológicas do indivíduo falante como o conteúdo do enunciado
(no plano psicológico a multiplicidade das ações emocionais e
volitivas do falante). [...] A atividade do autor torna-se a atividade
de uma avaliação expressa, que matiza todos os aspectos da
palavra: a palavra invectiva, acaricia, é indiferente, denigre,
decora, etc. (BAKHTIN, 2002, p. 64-65).
Com base nessa assertiva teórica, a palavra do enunciado congrega os
movimentos de interpretação, os pontos de vista e a expressividade do sujeito
enunciador. Contudo, a “[...] a emoção, o juízo de valor e a expressão são
estranhos à palavra da língua e surgem unicamente no processo do emprego vivo
da enunciação.” (BAKHTIN, 2016, p.51). Esse aspecto da tonalidade apreciativa é
gestado pelas relações axiológicas, pelos valores ético-morais atribuídos do
enunciador para o conteúdo do objeto do discurso. Ademais, são as ações
expressivas dotadas de aspectos emotivos e volitivos do falante que tornam a
palavra acentuada de um dado tom apreciativo. Emoção e volição representam,
nessa ordem, expressividade e desejo do falante, isto é, o objeto do seu discurso
é abalizado por aquilo que esse enunciador toma como parâmetro social para
avaliar, comensurar, ornamentar, por exemplo.
4. O TOM VALORATIVO EXPRESSO ATRAVÉS DO MECANISMO DA
COMPARAÇÃO
Acreditamos que, por meio da língua e das lentes da TDL, é possível
articularmos leituras dessa materialidade verbo-visual que trazem para o cerne da
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discussão os modos de abordagens, as comparações/ associações/equiparações,
as entonações que colocam em cena o propósito comunicativo do enunciador em
memes a serem analisados.
A partir disso, neste momento da análise, nosso olhar se debruça sobre
três memes, que tratam, por meio de um jogo
comparativo/equiparativo/associativo do enunciador, sobre temáticas específicas
do movimento religioso neopentecostal: questões econômicas, mais
especificamente, as práticas de extorsão e de charlatanismo.
Correspondentemente, esses enunciados se constroem em referência a três
televangelistas neopentecostais: os intitulados apóstolo Valdemiro Santiago,
Bispo Edir Macedo e o Pastor Silas Malafaia, nessa ordem.
Primeiramente, é necessário afirmar que, segundo Mariano (1999), o
movimento neopentencostal teve seu início no Brasil, na metade dos anos 1970,
cuja base teológica abarca temas como: a teologia da prosperidade, oração em
línguas estranhas (angelicais), confissão positiva (ativada pelo poder da palavra),
expulsão de demônios, constituída pela "guerra espiritual” contra o diabo e seus
demônios.
Sob essa compreensão acerca dessa teologia, a prosperidade é um dos
objetos mais frequentes de exposição “bíblica” dos pastores dessas igrejas, pois
parece funcionar como um dispositivo da fé, por meio do qual as igrejas têm a
capacidade de se estrututar financeira e empresarialmente. Para tanto, os
seguidores membros dessas igrejas são ensinados [...] que os que são
verdadeiramente fieis a Deus devem experimentar prosperidade financeira.”
(VARGENS, 2017, p. 22). Essa construção socioideológica do movimento
neopentecostal fomenta, sobretudo, que [...] a prosperidade está aberta a todos,
mas é preciso que se dê a maior quantia de dinheiro para a igreja, pois só assim o
fiel conseguirá a satisfação de seus problemas terrenos.” (NUNES, 2006, p. 128).
No tocante a esta análise, mais precisamente com base no primeiro meme
a ser analisado, encontramos dois sujeitos, postos um ao lado do outro. À
esquerda, o apóstolo Valdemiro Santiago; à direita, o espírita brasileiro Chico
Xavier. Por ordem de apresentação, o apóstolo é o fundador da Igreja Mundial do
Poder de Deus (doravante, IMPD), a qual, socialmente, mantém uma prática de
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doutrinamento da “prosperidade” e de “cura divina”; funciona com um verdadeiro
império de riqueza, totalizando mais de 900 mil seguidores e 4.000 templos
distribuídos em todo o país, segundo a Revista Forbes. Em janeiro de 2013, teve
seu patrimônio avaliado pela referida revista em aproximadamente 220 milhões
de dólares (cerca de R$ 450 milhões).
No início do ano de 2017, em um de seus cultos, Santiago
6
faz um apelo a
8 mil pessoas para ofertarem uma quantia de R$ 1,000 mil reais para patrocinar
um mês de programa de TV a cabo. Contudo, o referido apóstolo mantem um
padrão de vida sofisticado e não cogitou a possibilidade, pelo menos em rede
nacional, de vender uma de suas quatro aeronaves dois jatinhos e dois
helicópteros para saldar a vida.
À direita dessa figura, encontramos o esrita Chico Xavier. Franciscondido
Xavier foi um dium esrita brasileiro. Pode ser descrito por alguns como: homem
de fala mansa; fazia uso de peruca; tinha acentuado estrabismo; era pessoa
humilde. Para alguns de seus seguidores, ele não configura o tipo físico
idealizado do líder religioso. Em suas atividades religiosas, psicografou mais de
400 livros, dos quais abnegou os direitos autorais, concedendo-os às instituições
beneficentes.
Ademais, esse médium, entre os anos de 1981 e 1982, recebeu indicação
ao prêmio Prêmio Nobel da Paz, fruto de uma mobilização de cerca de dois
milhões de pessoas que coletaram suas assinaturas em todo Brasil e em
organizações de 29 países, requerendo o referido prêmio para ele. Anos depois,
em 1999, esse espírita brasileiro foi condecorado pelo Governo de Minas
Gerais com o título "Comenda da Paz Chico Xavier", distinção que é outorgada,
anualmente, a pessoas físicas ou jurídicas que trabalham pela paz e pelo bem-
estar social.
A partir dessas descrições, passemos, agora, a analisar o primeiro meme
que trata do apóstolo e do espírita brasileiro Chico Xavier:
Figura 1. Valdemiro Santiago versus Chico Xavier
6
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RJs-iufcZy8. Acesso em 10 de outubro de
2017.
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Fonte: Facebook Edir Macedo da Depressão
7
Chama-nos a atenção, inicialmente, o meio de circulação desse meme: em
uma comunidade destinada, principalmente, às críticas ao Bispo Edir Macedo
Edir Macedo da Depressão. Distanciando-se da ordem de previsibilidade do
tratamento temático, conforme anunciado na intitulação da referida comunidade,
possivelmente, o que permite a sua circulação nesse e em outros espaços virtuais
é o fato de este texto carregar um projeto enunciativo de denúncia às práticas
religiosas neopentecostais, talvez, semelhantes àquelas exercidas pelo Bispo
Macedo.
Segundamente, compreendemos que a dimensão valorativa emerge nesse
meme a partir das escolhas desse enunciador: dois sujeitos de funções sociais
divergentes, inscritos em ordens religiosas distintas, isto é, um pastor e um
médium, correspondentemente, um protestante e um espírita. Essa
referenciação, dada a partir da seleção de duas fotografias distintas, compondo
um enunciado, permite um movimento de leitura e de intepretação por meio de
um enfrentamento dialógico ou de acareação de duas personalidades: o
intitulado apóstolo evangélico Valdemiro Santiago versus um espírita brasileiro,
Chico Xavier. Assim, está posta uma arena de interesses do sujeito produtor
quanto à seleção dessas imagens.
7
<https://scontent.fcpv31.fna.fbcdn.net/v/t1.09/527773_181187005331401_1496099092_n.jpg?oh=
ffad970bfaa2a4086c262f6a1f004c85&oe=5AF45877> Acesso em 02/03/2017.
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Do ponto de vista visual, a imagem de Chico Xavier representa,
iconicamente, na tradição ocidental, uma performance de carinho, de amabilidade
e de respeito, ativada semioticamente pelo gesto do beijo realizado com a mão
direita. Talvez, esse sinal seja argumentativamente mais persuasivo ao leitor para
se contrapor ao outro sujeito da imagem, o que justifica, então, nosso movimento
de leitura da direita à esquerda.
Em oposição ao espírita, o referido apóstolo aparece com os olhos bem
abertos, sem nenhum traço de sorriso no rosto, com as linhas da fronte
tensionadas e visivelmente marcadas, sugerindo uma tensão facial. Nessa
angulação capturada pela câmera, o pastor, ao olhar de frente e de forma
centralizada para as lentes, sugestiona, diferentemente do segundo sujeito, uma
percepção de amendrontamento , de um “olho que tudo vê”. Logo, essa
formulação imagética, é portadora de um produtivo teor de argumentatividade,
que se direciona, de forma favorável, a Chico Xavier, o que revela a nuance de
uma estratégia de contraposição argumentativa.
Somado a isso, a linguagem verbal, a partir de um jogo linguístico de
ordem comparativa e associativa, vai constituindo sentidos, dadas as adjetivações
destinadas a cada um desses sujeitos religiosos representados. As tonalidades
enunciativas axiológicas emergem através do mecanismo contrastativo, por meio
do qual se coloca um sujeito em correspondência ao outro. Essas tonalidades de
valor podem, também, ser evidenciadas no plano verbal, marcado por diferentes
letras, tamanhos e formatos, a partir de uma dada recursividade de
nominalizações e de definições.
Ora, se a palavra é signo ideológio por essência, confome defendido no
enquadramento teórico, os substantivos e os termos com função predicativa
empregados a Valdemiro Santiago Santo, Apóstolo, Enviado de Deus, Mão de
Deus na terra, Verdade em pessoa presumem uma dada posição entoacional
ligada a um jogo de ironia. Essa tonalidade sarcática está explicitada não pela
referência cruzada às nominalizações destinadas ao médium espírita Monstro,
Bruxo, Demônio, Mentiroso, Aberração, Estelionatário, Ladrão mas também,
pelos fios condutores de uma memória social que ligam o sujeito leitor aos
eventos, às práticas e às descrições empregadas, mesmo que estereotipadas, de
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cada um desses. Indaga-se, possivelmente, o leitor: como concordar ser ladrão e
estelionatário alguém que doou seus direitos autorais às obras de caridade, a um
sujeio que Morreu Pobre? Certamente, a resposta será negativa, dada a
incoerência das informações. Não poderia, aparentemente, ser ladrão o sujeito
que se filia a uma religião que busca o estímulo vivo à fraternidade, a partir de
uma xima “fora da caridade não salvação” , postulada por Allan Kardec
em “O Evangelho segundo o Espiritismo”.
Outro aspecto linguístico da apresentação desse enunciado verbo-visual,
que serve com contribuição dessa força irônica, é o aparecimento do discurso
econômico cruzado ao religioso. A tarja preta com referências a valores em reais,
usufruídos ou não por cada um desses sujeitos, mais do que anunciar meramente
a quantia, exterioriza uma defesa, através de verbos. Abaixo da imagem de
Valdemiro, lê-se: “Usou 50 Milhões”; em Chico Xavier, “NUNCA COBROU 1
centavo”. Do ponto de vista semântico, nesse jogo de comparação, o verbo “usar”
tem a acepção de “usurpar”, com o sentido de apoderar-se de algo de forma
desonesta, tomar posse de modo fraudulento, contrastando com nunca cobrar.
Note-se que essa reacentuação da palavra foi possibilitada pelo enunciado que
lhe complementa sintaticamente de seus fiéis que vão a igreja atrás de
milagres e esquecem até de Deus!”. Essa confrontação posta entre esses sujeitos
está declarada em jogo antitético, “Usou” e “NUNCA COBROU”, sendo esta
construção em letras garrafais, a fim de, forma explícita, justificar as práticas de
benevolência de alguém que levou a paz, alívio, esperança as pessoas e Morreu
Pobre!!!”. Observe-se, ainda, que a ênfase na pontuação, dada pela repetibilidade
das exclamações, somada às letras iniciais maiúsculas em Morreu Pobre”,
integram esse reforço ao projeto enunciativo que, através de um paralelo ao
apóstolo, coloca Chico Xavier em posição distinta, elevada.
No plano da construção do enunciado, as nominalizações atribuídas a
Valdemiro Santiago a partir da ideia de que ele é um homem santo, homem de
“Deus”, “Mão de Deus”, é rejeitada/negada, inclusive, pelo próprio jogo semântico
instaurado dentro dessa construção. Ora, se o apóstolo possui vinculações ao
sagrado e a Deus, por que, então, seus fiéis “esquecem até de Deus”, mas “vão a
igreja somente atrás de milagres”? Com efeito, a vinculação a Deus está
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associada, por meio de uma formação discursiva religiosa, àquele que levou a
paz, alívio, esperança as pessoas e Morreu Pobre!!!”.
Essas designações, por seu turno, põem em circulação esses sentidos,
inclusive ativam aqueles que foram materializados em uma repostagem da
sucursal brasileira da revista norte-americana Forbes, quando listou os cinco
líderes evangélicos com os maiores patrimônios, em janeiro de 2013, dentre ele,
Valdemiro. Observe-se, assim, que o meme está ligado a uma enunciação, a um
contexto social, a esse fato motivador tratado no artigo da revista. Esse
enunciador, ao dizer que Chico Xavier não cobrou, ou melhor, “NUNCA COBROU
1 centavo” denuncia a performance social de exploração do apóstolo aos fiéis,
busca deslegitimá-lo de sua função social.
Sendo assim, as nominalizações empreendidas nessa tonalidade
discursiva atribuem valores a esses sujeitos, de modo que, também, por meio
dessa referência financeira, os adjetivos se invertem de posição, um
deslocamento. Passam, a partir de um exercício de aversão, a assumir novas
posições no enunciado. Dessa forma, a escolha estilística, por meio das palavras
monstro, bruxo, demônio, mentiroso, aberração, estelionatário, ladrão para se
referir ao espírita, contraria duplamente, logo em seguida, tais nomeações: 1-
quando diz que Chico Xavier levou a paz, alívio, esperança às pessoas e Morreu
Pobre!!!”; quando afirma que 2- Valdemiro gastou os milhões de seus fieis. Por
sua ordem, são contraditórias às nominalizações feitas ao apóstolo santo,
apostolo, enviado de Deus, Mão de Deus na terra, Verdade em Pessoa”, uma vez
que ele é caracterizado, por ordem de inversão/comparação ao espírita brasileiro,
como um explorador da fé das pessoas, com capacidade de enganar os fieis e de
extorquir quantias exorbitantes deles. As nominalizações só são possíveis de
aparecer, pois elas estão em diálogo com com outros discursos, retoma, inclusive,
a voz de denúncia da Forbes.
É interessante, nesse sentido, ponderar que esses enunciados são
proferidos sob a condição da verdade, os quais, ditos de modo frequente, tendem
a tornar-se, quase sempre, verdade inquestionável e absoluta. Essas
nominalizações feitas naturalizam as consagrações destinadas aos sujeitos
envolvidos, sem qualquer exceção ou modalização. Nessa arena de tensões, bem
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versus mal assumem posições antagônicas, combatem-se e interrelacionam-se,
acarretando, de forma estratégica, a negação de um líder religioso em detrimento
do outro. Na esteira desses enunciados, intriga-nos, do ponto de vista discursivo,
a forma como essas estratégias de convencimento são agressivas, constituidoras
de verdade e de estereótipos.
Como se percebe, as tonalidade de valoração envolvem os dois sujeitos;
mas, conforme descrição e análise realizadas, Valdemiro Santiago é valorado a
partir de uma referência: Chico Xavier. Essa referência, como se constata, não é
parcial, antes é amalgamada, sobretudo, pelo interesse de divulgar as boas
práticas do espírita, depreciando e reprovando socialmente o referido apóstolo.
Chegamos, então, ao segundo meme. O enunciado, a seguir, trata de um
tema social religioso, pertencente ao universo de alguns cristãos: a prática de
exorcismo. Essa prática está situada em alguns movimentos da igreja católica,
bem como no movimento neopentecostal protestante. Quanto a esse último, essa
prática é caracterizada sinonimamente como “libertação” e, geralmente, acontece
por meio de “cultos/ campanhas de libertação”, estratégias mobilizadas por
algumas igrejas neopentecostais para atrair fieis, garantindo-lhes que serão livres
da “possessão do Diabo” e viverão um nova vida em Deus. Vejamos este
enunciado.
Figura 2 Exorcismo
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Fonte: Facebook: Bispo Morcego
8
Na figura acima, encontramos dois sujeitos. À esquerda, em um ambiente
aparentemente doméstico, encontramos um padre trajado com batina preta e
estola lilás, segurando um crucifixo com a o esquerda; à direita, o bispo Edir
Macedo, segurando pelos cabelos uma senhora com aparentemente possessão
demoníaca, possivelmente em um altar de suas igrejas. Em relação à
apresentação desses religiosos, faremos uma sucinta exposição, a fim de nos
situarmos melhor.
À esquerda, encontra-se Gabriele Amorth, um padre italiano, conhecido
como exorcista. Realizou mais de 100 mil exorcismos, em 30 anos de carreira,
dentre os quais narrou o seu nono exorcismo no documentário “O Diabo e
Padre Amorth”. Pe. Gabriele Amorth foi, durante muitos anos, o principal
exorcista do Vaticano. Nasceu em 1 de maio de 1925, em Módena, uma comuna
na Itália; veio a óbito em Setembro de 2016. Foi considerado um sacerdote
italiano conhecido por ser um exorcista da diócese de Roma. Foi ordenado
sacerdote católico em 1954 e se converteu em exorcista oficial em junho de 1986,
8
<https://i.pinimg.com/736x/34/a7/14/34a714e2f74b13cc3c12582800772a5c.jpg> Acesso
21/03/2017.
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sob a direção de Candido Amantini. Foi membro da Sociedade de São Paulo, a
congregação fundada por Santiago Alberione em 1914. Em 1986, fez seu primeiro
exorcismo sob a tutela do Padre Candido Amantini.
À direita, o outro sujeito que olha para câmera é o Bispo fluminense Edir
Bezerra Macedo. Empresário e líder mundial da Igreja Universal do Reino de
Deus (1977, RJ), (doravante, IURD), Edir Macedo foi considerado pela referida
reportagem da Forbes como o 1º pastor mais rico do mundo. A IURD, atualmente,
tem sua sede mundial localizada em São Paulo no Templo de Salomão
9
e possui,
segundo dados da própria igreja
10
, 8,3 milhões de membros, atuando em mais de
180 países. O número de igrejas, em 2017, no Brasil, era de aproximadamente
7.157.
Além da construção de mega templos no Brasil e no Mundo, Edir Macedo
também é empresário de emissoras de Rádio e TV do grupo Record, meio de
divulgação, inclusive, da doutrina, dos ensinamentos, por meio da exibição de
diversos cultos ao vivo. Funcionam como mecanismo de evangelização. É,
portanto,
[...] o mais poderoso meio empregado pela Universal para atrair
rapidamente grande número de indivíduos das mais diversas
localidades geográficas à igreja. Por sua capacidade ímpar de
introduzir a igreja, sua mensagem e seu apelo religioso nos lares,
o evangelismo eletrônico apresenta a vantagem de poder alcançar
aqueles que não possuem contato ou relação de confiança,
amizade e parentesco com fiéis da denominação. (MARIANO,
2004, p.130).
O Bispo Macedo, por meio desses programas, através de seu ensino
doutrinário, usa esses meios para a difusão de testemunhos propagandísticos de
curas e de libertação, persuadindo os telespectadores de que precisam ser
libertos dos poderes demoníacos em um dos cultos da igreja.
9
Construído na cidade de São Paulo, no bairro do Brás, é considerado uma réplica do Templo de
Salomão que, atualmente, é a sede mundial da IURD, sucessora do Templo da Glória do Novo
Israel. O custo estimado da obra foi de aproximadamente 680 milhões de reais. O altar e a
fachada do templo foram feitos com pedras nativas de Israel.
10
Modesto, Cláudia Figueiredo (15 de maio de 2012). «34 anos de evangelismo
eletrônico». Observatório da Imprensa. BR. Consultado em 3 de outubro de 2017.
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No plano teológico, o Bispo Edir Macedo, como um dos representantes do
neopentecostalismo no Brasil, caracteriza-se por enfatizar, em programas de TV,
em rádio, em cultos transmitidos ao vivo, a guerra espiritual contra o Diabo, em
campanhas intituladas “Sessão do Descarrego”, “Quebra de Maldições”,
“Corredor do Sal”, “Sexta-feira da Libertação”, “Sexta-Feira do Desmanche”, para
citar algumas. Nesses intitulados cultos/campanhas, o fiel, depois dos ritos iniciais
do culto, passa em corredores de sal, ou de velas, e, havendo a existência de
algum suposto espírito obsessor, os pastores e obreiros, através de orações por
meio de imposição de mãos na fronte e na nuca, praticam o ritual de libertação.
Nesse sentido, segundo Mariano (1999, p. 27), “[...] ao combater a
umbanda, o candomblé, o espiritismo e o catolicismo, aque ponto Universal e
Internacional da Graça não são influenciadas e incorporam elementos da crença,
da lógica e da visão de mundo dessas religiões?”. A prática do exorcismo,
conforme apresentada em Barbosa (2017), frequente em algumas igrejas
neopentecostais, parecer ter como propósito de demonstração de poderes
sobrenaturais, sendo assim, um “chamariz” para novas conversões, a partir de
uma promessa de afastar todos os males da sociedade brasileira.
Antes de iniciarmos os movimento de leitura e de análise desse meme, é
necessário afirmar que ele carrega estampado em si mesmo, sobre as fotografias
e em letras garrafais, o nome de sua comunidade de circulação: Bispo Morcego.
Conforme descrita na metodologia deste trabalho, essa comunidade, grosso
modo, apresenta críticas ao Bispo Edir Macedo. Isso pode ser percebido no jogo
grafo-fonético “Macedo” e “Morcego”.
De forma semelhante ao meme anterior, em um jogo comparativo, temos
dois sujeitos distintos, com filiações religiosas distintas, em ambientes diferentes,
usando trajes prototípicos de cada uma de sua performance social. Do ponto de
vista visual, ao que se percebe, o título “EXORCISMO”, no topo, aparece em
letras garrafais e na cor vermelho, englobando tematicamente os dois religiosos,
os quais, por ordem, são assim intitulados: 1- “PADRE EXORCISTA USA”; 2-
“PASTOR EXORCISTA BR”. O jogo de cores atribuído a essas proposições
corrobora a informatividade que se pretende transmitir. O vermelho em
“EXORCISMO” retoma a ideia de fogo e, consequentemente, de inferno. Em
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seguida, nas titulações, as cores branco e azul referendam a nacionalidade de um
padre estadunidense; as cores verde e amarelo, a nacionalidade de um pastor
brasileiro.
Estruturalmente, esse enunciado verbo-visual está organizado em tópicos
“FERRAMENTAS”, “DURAÇÃO”, “COMO O POSSUÍDO CHEGA?” e
“CARACTERÍSTICAS DA FALA”, a fim de supostamente facilitar o entendimento
mais rápido do leitor. Esses tópicos estão, de forma repetida, em cada uma das
imagens inseridas. Ao padre, é empregada uma caracterização e uma atribuição
de valor díspar daquele endereçado ao pastor. Vejamos.
O bispo Edir Macedo é valorado no meme, a partir de apreciações
marcadas linguisticamente, as quais estão em contraposição ao padre Amorth. Na
combinação dos itens “ferramentas” e “duração”, toda linguagem empregada por
esse enunciador aponta para um descrição minuciosa da “destreza do exorcismo”
praticado pelo bispo, com vistas a denunciar a prática de charlatanismo. Pode-se
perceber através dos rastros linguísticos microfone, puxão de cabelo, tapa na
ouvido que essa é uma performance duplamente agressiva: ao corpo do fiel e à
fé. “Microfone”, nessa ordem, tem uma estreita associação semântica à
“audiência na tv” e à “ibope”, pois juntamente pormenorizam a cena do evento o
fato de o Bispo realizar as entrevistas com diferentes entidades manifestadas nos
cultos , bem como alude a possível estratégia de convencimento do
telespectador, por meio da exploração da fé. Esse entorno entoacional mais do
que descrever denuncia a uma possível “teatralização”, “encenação” fomentadas
pelo Bispo.
Percebe-se, através do mecanismo valorativo contrastativo, que as
“ferramentas” empregadas pelo Pe. Amorth ao ato de exorcizar se filiam a uma
estereotipação construída pela memória social, por uma dada heterogeneidade
constitutiva do discurso. Elas representam, iconicamente, a simplicidade e o
tradicionalismo da fé católica crucifixo, água benta e rosário , em oposição aos
equipamentos utilizados pelo Bispo na IURD microfone e câmera. Nesse jogo
de oposição, elementos da ordem do sagrado litigam contra elementos que estão
na ordem da midiatização, instrumentos de propagação de informação.
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Outrossim, é indispensável frisar que o Padre exerce um trabalho exaustivo
e, muitas vezes, prolongado para exorcizar a vítima, não havendo a necessidade
de preocupação com o ibope e com a audiência na TV. Ao valorar dessa forma, o
enunciador, inscrito sob certas condições socioideológicas, joga humorística e
ironicamente como a linguagem, no que se refere às construções tipificadas e ao
projeto enunciativo de denúncia contra Edir Macedo.
Essa denúncia expressa no meme se constrói a partir de um discurso outro
que é constitutivo desse enunciado [heterogeneidade constitutiva], mas sem
deixar rastros linguísticos, mais especificamente, daqueles discursos que foram
ditos sobre o sujeito Edir Macedo e sua Igreja. Isso pode ser evidenciado em
referência às demonstrações de cultos, ao vivo, pelos canais aberto da emissora
Record e filiadas, em cultos de “libertação”, ou nos estúdios dessas emissoras,
quando o bispo e seus pastores demonstram poderes sobrenaturais ao
submeterem as pessoas dito possessas a orações fortes e, consequentemente, o
espírito possessor se manifesta, submetendo-se ao bispo sob os mais conhecidos
comandos “ajoelhe-se”, “vomite a macumba”, “desfaça a obra de macumba”, etc..
A partir de uma série de interrogatório, sob o facho de visibilidade de algumas
câmeras televisivas, o sujeito possuído é sempre liberto depois da oração forte
que o bispo ou seus pastores têm o poder de fazê-la.
Retornando ao enunciado, no item “COMO O POSSUÍDO CHEGA?”,
percebemos que o nome “Janete
11
sugestiona, através da memória, uma
personagem espalhafatosa e humorística de um programa da Rede Globo, é
alguém estereotipadamente pobre, construída como sendo a responsável por
levar o possuído à “ilurd”. Nota-se, ainda, que esse último termo é um
neologismo, criado a partir de uma associação entre vocábulos, “iurd” e “ilusão”,
justificando, assim, a suposta atuação cênica desempenhada pelo possível
possuído: “imitação da galinha pintadinha, com as mãos pra trás, tentando ciscar
o chão”. Em assimetria à Janete, há a “sensitiva meia bosta”, capaz de identificar
a possessão, mas não tem poderes para resolvê-la; por isso, encaminha o caso
11
A personagem Janete, do humorístico “Zorra Total” exibido na Rede Globo, aparece com peruca
despenteada, roupas extravagantes e os lábios salientes. Ela é levada, mal educada e se acha bonita. Às vezes,
fala em inglês, quando um homem lhe endereça uma performance mais erótica.
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ao “padre da Vila City”. Essa dissemelhança apresentada é geradora de
apreciações, não do bispo e de sua Igreja “ilusória”, “enganadora”, mas de
seus fiéis, representados como pobres, na alusão à constitutividade do nome
“Janete”, e como “pessoas do morro, nordestinos, com espírito baiano”, visto em
“CARACTERÍSTICAS DA FALA”. Na integralidade desse texto multimodal, essa
tipificação da fala é preconceituosa, veicula um juízo de valor sobre o sujeito, sua
condição financeira, seu sotaque e sua região.
Seguindo a mesma linha de compreensão e de análise acerca do tom
valorativo expresso/marcado por um mecanismo de comparação, apresentamos o
enunciado verbo-visual da figura 6.
Figura 3 Mané Galinha versus Silas Malafaia
Fonte: Facebook - Bispo Morcego
12
O enunciado acima, da Comunidade “Bispo Morcego”, apresenta uma
paridade estrutural: dois sujeitos em um jogo comparativo/associativo, sendo um
deles um pastor. À esquerda, temos o cantor, compositor e ator brasileiro Seu
Jorge, cuja atuação cinematográfica é relativamente ampla, iniciada em 2002,
através do filme “Cidade de Deus”, no qual interpretou o papel do traficante “Mané
Galinha”.
Esse personagem é a reprodução da vida de Manoel Machado
Rocha, vulgarmente conhecido como Mané Galinha. Nascido no Rio de
12
<https://scontent.fcpv31.fna.fbcdn.net/v/t1.09/17523563_1321792941242798_400710670598012
6489_n.png?oh=6ef9d2dbf4fb97b554bedd80e3d3b08f&oe=5ADF12F1> Acesso 01/04/2017.
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Janeiro, em 8 de setembro de 1979, ele foi considerado um
criminoso brasileiro que dominava parte do então sub-bairro Cidade de Deus (que
viraria favela), na cidade do Rio de Janeiro no final dos anos 70 do século XX.
Em 2002, no filme Cidade de Deus, dirigido por Fernando Meirelles, Seu
Jorge faz o papel de Mané Galinha cujas ações acontecem em razão do
enfrentamento e do plano de vingança contra o traficante Zé Pequeno, em virtude
das atrocidades cometidas por este contra a namorada e família daquele. O fato
de associarmos, a partir da leitura do meme, Seu Jorge a esse personagem se dá
em virtude de que encontramos nesta materialidade um rastro linguístico,
evidenciado pela escolha da expressão “boca de fumo”, que possui uma
espessura histórica e reatualiza o sentido, a partir de um jogo com a memória
ativada pelo filme.
Ao lado desse personagem, no mesmo meme, agora à direita,
encontramos o pastor pentecostal brasileiro Silas Malafaia. Sua formação
teológica aconteceu no Instituto Bíblico Pentecostal; em Psicologia, formou-se
pela Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro. Malafaia é líder da Igreja
Assembleia de Deus Vitória em Cristo, é presidente da editora Central Gospel.
Em 2009, o pastor anunciou, em um culto que realizou em Boca Raton,
na Flórida, Estados Unidos, a compra de um avião particular que, conforme
adjetivado pelo próprio pastor, seria uma "galinha morta", visto que o preço pago
foi de 12 milhões de dólares, enquanto o avião valeria cerca de 16 milhões de
dólares. Em 2010, afirmou que a atual igreja Assembleia de Deus Vitória em
Cristo contava, à época, com mais de 15.000 mil membros. Em pouco mais de
três anos, sob a sua liderança, foram criadas mais de 200 igrejas em todo o
estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Pernambuco, Paraná, Rio
Grande do Norte, Santa Catarina (VITORIA EM CRISTO, 2014).
Vamos considerar, primeiramente, que o enunciado acima, como os
anteriores, é composto por uma materialidade semiótica híbrida, formada por uma
parte verbal (“QUAL A DIFERENÇA? / Se não pagar a boca de fumo te mando
pro caixão/ Se não pagar o dízimo da igreja te mando pro inferno? / NENHUMA!”)
e por uma parte visual (foto do personagem traficante Mané Galinha, à esquerda,
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em que ele aparece com demonstração de intimidação com o dedo apontado; à
direita, Silas Malafaia com a mesma gestualidade).
É preciso, nesse sentido, considerar que essa gestualidade, imbricada de
um teor emocional, também corrobora para ressignificação desse meme. O dedo
apontado para o sujeito interlocutor, constituído por um dada historicidade,
reclama por uma validação interlocutória, motivada por essas condicionalidades.
Esse gesto, chamado de dêitico-discursivo, consiste em uma ação gestual-
referencial que aponta para o que está fora do texto, assinalando, fazendo
referência, nesse caso, ao “você”. Essa referência dêitica, constitutiva do
enunciado, aponta para dois interlocutores diferentes. O dedo do personagem
“Mané Galinha” está associado ao seu domínio social “ao não pagador da boca
de fumo”; por seu turno, o dedo de Malafaia, àquele “que não paga o dízimo”.
Em consonância com a teoria bakhtiniana, pode-se notar o deslocamento
de sentido que esse enunciado congrega, quando por meio de uma
interpelação/questionamento do enunciador ao leitor, “QUAL A DIFERENÇA?”, há
a emergência de um efeito de sentido não previsto, antirreligioso, (e até
contraditório, diríamos) atribuído ao pastor Silas Malafaia: comparação simétrica
ao personagem Mané Galinha. Essa simetria é expressa linguisticamente com a
resposta uniforme: “NENHUMA!”.
Em relação ao aspecto verbal das proposições geradoras dessa resposta,
é pertinente destacar o jogo dialógico com a condicionalidade sintático-semântica,
empregado nas formas da língua por meio de verbos do subjuntivo (se x, então y).
O “y” seria, então, a resposta comum em referência a ambos sujeitos. É esse
rastro linguístico que, também, os tornam com efeito de parecença.
Esse projeto de dizer cuja finalidade é fazer circular uma apreciação
endereçada ao pastor Silas Malafaia é gerador de um efeito de sentido
irônico/sarcástico, uma vez que o indivíduo é condenado ao inferno pelo pastor
porque não entregou o dízimo; de forma semelhante, o traficante da “boca de
fumo” merece pagar, também, por sua dívida.
Outros traços linguísticos reforçam essas apreciações aos dois sujeitos.
Todavia, o que se observa, no nível das respostas supostamente vinculadas a
cada um desses sujeitos, são os termos “caixão” e “inferno”, os quais recuperam
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a ideia de morte, luto e sofrimento. No entanto, mesmo que hipotético e
humoristicamente, o discurso entregue ao pastor em 1ª pessoa tem um caráter de
julgamento religioso, bem como do além-morte. “TE MANDO PRO INFERNO”, em
letras garrafais vermelhas, além de recuperar o imaginário das “chamas
ardentes”, denuncia uma prática anti-cristã, antirreligiosa do pastor, equiparando-
o discursivamente ao status de Mané Galinha. Sem dúvidas, a constitutividade
dessa resposta encontra-se nos discursos proferidos por Silas Malafaia em seus
cultos, em tom de amedrontação aos fiéis a fim de que estes sejam dizimistas.
Diante do exposto, mesmo vinculados a enunciadores distintos, esses três
memes, em suma, têm como traço marcante a valoração de pastores a partir de
um ponto de vista negativo, depreciativo. Para cumprir tal efeito, a apreciação
dada pelo mecanismo da comparação a outrem, geralmente a um sujeito religioso
ou antirreligioso, funciona como uma referência cruzada para o efeito da
contraposição ou de uma associação simétrica entre os personagens.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados obtidos, com a realização desta pesquisa, possibilitaram-nos
compreender que a escolha de uma palavra é, por natureza, uma apreciação
valorativa, discursivamente empregada com força ideologicamente argumentativa.
Além disso, é oportuno entender que os memes, enquanto enunciados concretos,
de materialidade verbo-visual, são repletos de contornos entoacionais, isto é, de
tonalidades apreciativas.
Em suma, os memes analisados têm como traço marcante a valoração de
pastores a partir de um ponto de vista negativo, depreciativo. Para cumprir tal
efeito, a apreciação expressa pelo mecanismo da comparação funciona como
uma referência cruzada para contrapor, assemelhar, ironizar esses sujeitos, em
função do discurso sarcástico e humorístico
Por fim, quanto ao mecanismo analisado, verificou-se que, por meio da
comparação, a apreciação expressa por esse mecanismo, geralmente, direciona-
se a um sujeito religioso ou antirreligioso para cumprir o efeito de
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associação/acareação. Esse mecanismo funciona como uma referência cruzada
para o efeito da contraposição ou de uma associação simétrica entre os
personagens envolvidos. Sempre é constituído por uma forma de definir,
caracterizar e atribuir nominalizações.
REFERÊNCIAS
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