COUTO, H. H. do; COUTO, E. K. N. N. do. A Ecolinguística e o estudo das línguas de sinais: língua, linguagem e sinais domésticos. Revista Diálogos (RevDia), “Edição comemorativa pelo Qualis B2”, v. 6, n. 2, mai.-ago., 2018.

A ECOLINGUÍSTICA E O ESTUDO DAS LÍNGUAS DE SINAIS

Língua, linguagem e sinais domésticos

Hildo Honório do Couto (UnB)

Elza Kioko Nakayama Nenoki do Couto (UFG)


Sobre os autores

Hildo Honório do Couto é graduado em Letras Vernáculas pela Universidade de São Paulo (1969), mestrado em Lingüística pela Universidade de São Paulo (1973) e doutorado em Lingüística pela Universitaet zu Koeln (1978), Alemanha. Atualmente é Pesquisador Associado da Universidade de Brasília. Tem experiência na área de Lingüística, com ênfase em Fonologia, Contato de Línguas, Crioulística e Ecolingüística, atuando principalmente nos seguintes temas: contato de línguas, relações entre língua e meio ambiente (Ecollinguística). Atualmente, está desenvolvendo, juntamente com colaboradores, a versão da Ecolinguística chamada Linguística Ecossistêmica, no âmbito da Escola de Ecolinguística de Brasília. Para detalhes, ver o blog: www.meioambienteelinguagem.blogspot.com

Elza Kioko Nakayama Nenoki do Couto possui pós-doutorado em Linguística na UNB, mestrado e doutorado em Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora Associada da Universidade Federal de Goiás. Vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística. Orienta trabalhos de Mestrado e Doutorado na área de Linguística com ênfase em Análise do Discurso, Ecolinguística, Linguística ecossistêmica, Análise do Discurso Ecológica, Antropologia do Imaginário, Sua produção acadêmica tem contemplado temas que envolvem questões relacionadas ao discurso, ecologia, mito, práticas discursivas da atualidade, mídia, cinema. É coordenadora do Núcleo de Pesquisa NELIM- Núcleo de Ecolinguística e Imaginário cadastrado no CNPQ. Representante regional (Brasil) da Análise do Discurso Ecológica (Critical Ecosystemic Linguistics) no steering groups da International Ecolinguistics Association, localizada na University of Gloucestershire, UK.

RESUMO: O objetivo deste artigo é mostrar que a Ecolinguística tem um potencial muito grande como modelo teórico a ser utilizado no estudo das línguas de sinais. Além de ver a língua sempre em contexto, ela considera a interação comunicativa o núcleo da linguagem. Com isso, aquilo que a tradição considera “a língua”, ou seja, a gramática, é visto como parte das regras interacionais: suas regras sistêmicas (gramática) também existem para garantir a eficácia da comunicação. O ensaio argumenta ainda que a distinção entre “língua” e “linguagem”, inexistente nas línguas germânicas, é importante para distinguir determinadas situações: a primeira refere-se ao que se poderia chamar “língua plena”; a segunda, designaria situações como a de indivíduos surdos que interagem com os membros da família por sinais domésticos, entre outras. Enfim, língua é um tipo especial e específico de linguagem.

PALAVRAS-CHAVE: Ecolinguística; língua e linguagem; línguas de sinas; sinais domésticos; língua como interação.

ABSTRACT: The purpose of this article is to show that Ecolinguistics has a tremendous potential as a theoretical model to be applied in the study of sign languages. Besides always seeing language in context, the ecology of communicatie interaction is its nucleus. Therefore, what tradition considers “language”, i.e., grammar, is considered as part of interactional rules: systemic rules (grammar) also exist to enhance understanding. The essay argues further that the distinction between “língua” and “linguagem” – which does not exists in Germanic languages – is important for ditinguishing certain situations: the former refers to what we could call “full language”; the latter designates situations like that of deaf people that interact with members of their families by means of domestic signs, among other possibilities. In summary, “língua” is a specific and special type of “languagem”.

KEY-WORDS: Ecolinguistics; “língua” and “linguagem”; sign languages; domestic signs; language as interaction.

1. INTRODUÇÃO

Nós não somos especialistas em línguas de sinais; apenas fizemos reflexões sobre elas em algumas oportunidades, com a finalidade de testar a importância de sua existência para a teoria linguística, no caso, a Ecolinguística ou, mais especificamente, a Linguística Ecossistêmica. A primeira incursão na área foi numa tentativa de definir o que se entende por "comunidade surda" (COUTO, 2005), assunto que será objeto da seção 4 do presente ensaio. Segundo, algumas observações esparsas em Couto (2007) sobre a linguagem de dois surdos do interior de Minas Gerais, observações que reproduzimos mais abaixo. Além do mais, nosso Encontro Brasileiro de Ecolinguística (EBE) tem contado com a participação de especialistas em línguas de sinais (LIBRAS), muitos dos quais têm colaborado com Ecolinguística: Revista brasileira de ecologia e linguagem (ECO-REBEL)*, órgão da Ecolinguística brasileira.

O subtítulo "língua, linguagem e sinais domésticos" é de propósito, não obstante o fato de ele poder ser interpretado em sentido que não é politicamente correto; não é a intenção aqui. O objetivo é estabelecer claramente uma distinção entre os conceitos de "língua" e "linguagem". As línguas de sinais (LS), como a libras, são línguas naturais, exatamente como as línguas orais, como a própria expressão "línguas de sinais" já dá a entender. A comunicação entre surdos e membros ouvintes de suas famílias, por seu turno, não chega a constituir uma língua propriamente dita, mas é uma linguagem, a linguagem de sinais domésticos. Enfim, linguagem é qualquer meio de comunicação e língua é um tipo específico de linguagem.

Outro objetivo deste artigo é ressaltar que a Linguística Ecossistêmica é uma teoria linguística bastante apropriada para se estudarem LS. Como se pode ver na figura 1 logo abaixo, ela enfatiza não apenas a língua (L), mas as pessoas (P) que a usam e o contexto em que isto se dá, o território (T); ela vê a linguagem sempre em contexto. O que é mais, por ser ecossistêmica, enfatiza a própria interação comunicativa, frente à gramática, as regras interacionais, considerando as regras sistêmicas como parte delas.

2. ECOLINGUÍSTICA E LINGUÍSTICA ECOSSISTÊMICA

Ecolinguística tem sido entendida como sendo o estudo das relações entre língua e meio ambiente. Essas relações podem ser encaradas de diversos pontos de vista. Um primeiro é partir da linguagem e ver como ela pode influir em nossa atuação sobre o meio. Um outro faz o contrário, procura ver o que há do meio ambiente na língua. As duas concepções reificam a língua, considerando-a uma coisa que se relaciona com outra coisa (seu meio ambiente). Além disso, elas usam, ou podem usar, conceitos ecológicos apenas metaforicamente, ou seja, transplantando-os para os estudos da linguagem. A versão brasileira da Ecolinguística, a Linguística Ecossistêmica, parte de premissas bem diferentes.

Para entender a posição da Linguística Ecossistêmica é preciso lembrar que, como o próprio nome já sugere, ela parte do conceito central da ecologia, o ecossistema (biológico). Na Ecologia biológica, ele consta de uma população de organismos (P), convivendo em seu meio ambiente ou território (T) e seus membros interagindo (I) com esse meio (interação organismo-meio) e entre si (interação organismo-organismo). Como a Linguística Ecossistêmica é um ramo da Ecologia Geral, seu conceito central é o de ecossistema linguístico. Também ele consta de uma população/povo (P), cujos membros convivem eu seu território (T) e interagem entre si e com o meio pelo modo tradicional de interagir, ou seja, sua linguagem (L). Vale dizer, linguagem e língua são interação. A língua não é instrumento (uma coisa) de comunicação. Ela é a própria comunicação.

O ecossistema linguístico tem sido representado como se vê na figura 1 (COUTO 2007, 2015, 2016a).

Fig. 1.

P

/ \

L---T

Ecossistema linguístico

Comunidade (de língua, de fala)

Fonte: os autores

Como se pode ver nas duas referências recém-mencionadas, há pelo menos quatro ecossistemas linguísticos, todos representáveis pelo tripé ecolinguístico. São eles o ecossistema natural, o mental e o social da língua. Os três são açambarcados pelo ecossistema integral da língua. No interior de cada um deles, a língua/linguagem (L) é vista como interação, e o lugar em que essas interações se dão (o T físico, o cérebro/mente, a sociedade, nessa ordem) é o meio ambiente da língua. Assim, podemos manter a definição original dada acima, mas reinterpretada. A figura 1 mostra que o ecossistema linguístico pode ser encarado da perspectiva da comunidade de língua e da da comunidade de fala, assunto que será retomado na seção 4.

Como no ecossistema biológico, também no ecossistema linguístico o conceito central é o de interação, de que há também dois tipos. O primeiro tipo de interação (pessoas-meio, T) equivale à referência, significação, nomeação etc. O segundo tipo (pessoa-pessoa), à comunicação. Com isso, a Linguística Ecossistêmica – também conhecida como Ecologia Linguística – não reifica a língua nem usa conceitos ecológicos como meras metáforas. Pelo contrário, para ela a língua é interação comunicativa, como as interações ecológico-biológicas. Sendo uma parte da Ecologia, ela não usa seus conceitos metaforicamente, de fora para dentro. Ela os usa de dentro para fora. O linguista ecossistêmico é um ecólogo estudando fenômenos linguísticos, não um linguista que usa metáforas ecológicas em seus estudos. Hoje em dia já existe uma considerável bibliografia sobre esses assuntos, como a que foi mencionada no penúltimo parágrafo.

Como a língua/linguagem é interação, o seu núcleo é constituído pelas regras interacionais. Isso não significa que a Linguística Ecossistêmica não reconhece aquilo que se tem chamado de estrutura, gramática. A diferença é que “estrutura” ou “gramática” são um subconjunto das regras interacionais, também elas existem para o entendimento das pessoas em seus atos de interação comunicativa, que se dão no contexto da ecologia da interação comunicativa. No caso das línguas de sinais, tudo isso é de fundamental importância. Vejamos as 15 regras interacionais já detectadas e possíveis aplicações às línguas de sinais. Elas estão numeradas de 1 a 15, sendo a regra décima quinta a que constitui as regras sistêmicas (estrutura, gramática).

1) "Emissor e receptor ficam próximos um do outro". A distância varia de uma cultura para outra ou conforme as circunstâncias. Nas línguas de sinais, isso é muito importante, pois os interlocutores têm que estar atentos a todos os sinais visuais (manuais, olhos, boca, movimento da cabeça etc.)

2) "Emissor e receptor ficam de frente um para o outro". Talvez mais do que a primeira regra, esta é conditio sine qua non para a eficácia dos atos de interação comunicativa em línguas de sinais, quando não devido ao requisito da visualidade. Um fato interessante a notar aqui é que as línguas de sinais se manifestam pelo sentido mais comum da espécie humana. Como dizem os especialistas em psicologia da percepção, 75% de nossas percepções são visuais. A audição se dá em 20% dos casos, sobrando apenas 5% para os demais sentidos: tato, olfato, paladar (SANTAELLA, 2012: 1).

3) "Emissor e receptor devem olhar para o rosto um do outro, se possível para os olhos". Esta regra na verdade complementa as duas anteriores.

4) "O emissor deve falar em um tom de voz mediano: alto demais será agressivo; baixo demais, inaudível". Como essa regra é de natureza auditiva, não se aplica às línguas de sinais ou, talvez, adaptada para a visualidade, ou seja, fazer os sinais suave ou bruscamente.

5) "A uma solicitação deve corresponder uma satisfação". Trata-se de uma regra de polidez, portanto, qualquer pessoa que viva em sociedade deve segui-la, independentemente de ser ouvinte ou surdo.

6) "Tanto solicitação quanto satisfação devem ser formuladas em um tom cooperativo, harmonioso, solidário, com delicadeza". Pelos mesmos motivos da regra anterior, também esta se aplica às LS.

7) "A solicitação deve ser precedida de algum tipo de pré-solicitação (por favor, oi etc.)". Idem.

8) "A tomada de turno: enquanto um fala, o outro ouve". Por ser uma regra "universal" (LEVINSON, 1983: 368-369), é válida para toda e qualquer língua. Portanto, é válida também para as LS.

9) "Se o assunto da interação for sério, emissor e receptor devem aparentar um ar de seriedade, sem ser sisudo, carrancudo; se for leve, um ar de leveza, com expressão facial de simpatia (leve sorriso, se possível); a inversão dessas aparências pode parecer antipática, não receptiva etc." Nas línguas visuais, isso se aplica até com mais força.

10) "Emissor e receptor devem manter-se atentos, 'ligados' durante a interação, sem distrações, olhares para os lados". Isso é válido para qualquer tipo de interação comunicativa, mas nas LS o princípio é indispensável.

11) "Durante a interação, emissor e receptor de vez em quando devem sinalizar que estão atentos, sobretudo na interação telefônica, que ainda 'estão na linha'”. São as sinalizações fáticas, conforme Jakobson (1969: 122-123). Os interlocutores em LS também devem obedecer esse princípio, mostrando que estão atentos, que ainda não se “desligaram” etc.

12) "Em geral, é quem iniciou a interação que toma a iniciativa de encerrá-la; o contrário pode ser tido como não cooperativo, não harmonioso". A interação comunicativa em LS deve obedecê-la como qualquer outro tipo de comunicação oral.

13) Adaptação mútua: "O emissor deve expressar-se como acha que o receptor entenderá e o receptor interpretará o que o emissor disse como acha que é o que ele quis dizer". Trata-se de um princípio universal de cooperação. Qualquer pessoa que queira ser entendida e entender o interlocutor em uma interação comunicativa segui-lo-á.

14) "O encerramento da interação comunicativa não deve ser feito bruscamente, mas com algum tipo de preparação; quem desejar encerrá-la deve sinalizar essa intenção (tá bom, tá, é isso etc.)". Também aplicável na íntegra.

15) "Regras sistêmicas". Como já dito, trata-se de um bloco de regras, as regras estruturais que constituem o que se tem chamado gramática na tradição. Obviamente, toda LS as contém, pelo simples fato de se tratar de língua natural, que serve a todas as necessidades comunicativas e expressivas de seus usuários. Porém, trata-se de um conjunto de regras inteiramente diferente do das línguas orais. Afinal, as LS são visuais. O que deve ficar bem claro é que pelo fato de se tratar de uma "gramática" diferente, não quer dizer que seja "inferior". Afinal, mesmo entre as línguas orais existem diferenças consideráveis, como se pode ver dando uma olhada nas línguas indígenas americanas, nas línguas africanas e nas polinésias, comparadas às da Europa. Mesmo entre estas últimas há muitas diferenças, como entre as línguas latinas e as germânicas, as eslavas e sobretudo, línguas como o finlandês e o basco.

Seria interessante investigar se as LS, no caso Libras, têm regras interacionais específicas, que não estão elencadas acima. Seria uma grande contribuição à Linguística Ecossistêmica e à Linguística em geral.

3. OS SINAIS DOMÉSTICOS

Conhecemos duas pessoas surdas da zona rural de Patos de Minas (MG), na localidade antigamente chamada de Capelinha do Chumbo, mas, atualmente, Major Porto. A primeira é uma adolescente de uns 12 anos de idade, surda de nascença. Ela não aprendeu Libras nem o português oralizado. Pode-se dizer que não aprendeu nenhuma língua. No entanto, comunica-se com os parentes por meio de gestos caseiros para todas suas necessidades interacionais. É uma pessoa extremamente inteligente, diríamos mesmo de inteligência acima da média. Tanto que, quando alguém levou um computador usado para a família, foi ela quem primeiro conseguiu lidar com ele, inclusive indo além do que lhe foi ensinado. Nisso ela foi além de outro membro da família, ouvinte, que estava no término do segundo grau.

A segunda pessoa é um rapaz de uns 25 anos, também surdo de nascença. Tampouco ele aprendeu Libras ou a oralizar o português. O que ele faz é interagir com os membros da família e amigos por meio de mímica doméstica. Inclusive com o primeiro autor ele se comunicou, perguntando-lhe se ia ficar muitos dias na localidade ou se ia embora logo. No geral, tanto a adolescente quanto o rapaz ficam sempre atentos, observando quem está conversando, aparentemente, tentando deduzir o que dizem pela leitura labial, mas não parece que o conseguissem nem de maneira sofrível.

A questão que se impõe diante de casos como o desses dois surdos, e há muitos em situação semelhante não só no Brasil, mas em todo o mundo, é que não adquiriram nenhuma língua, não implementando a capacidade biológica para a linguagem, uma vez que ambos haviam ultrapassado o chamado período crítico para adquirir língua, ou seja, por volta dos 7 anos de idade, discutido detalhadamente por Lima Jr. (2012). Teriam eles perdido a referida capacidade? Nesse caso, deveriam estar, no máximo, no nível do chimpanzé comentado por Bickerton (1990: 106-110). Não seriam capazes de aprender plenamente nenhuma língua. No entanto, dado seu nível de inteligência, tudo leva a crer que se lhes fosse ensinada uma língua como Libras, eles a dominariam com toda certeza. Não se trata de uma conjetura sem fundamento. O fato de a adolescente ter aprendido a lidar com o computador rapidamente (lembre-se que eles moravam em uma fazenda tradicional, praticamente sem contato com a cidade), revela sua inteligência, sua habilidade e, certamente capacidade para aprender uma língua que no seu caso, seria Libras.

Na verdade, isso ocorreu alhures. Kegl, Senghas & Coppola (1999) mostraram que, na Nicarágua, sempre houve sinais domésticos isolados, mas que não chegavam a constituir uma língua. Assim que alguns desses surdos tiveram a chance de se juntar em escolas na virada dos anos 70 para os 80, surgiu naturalmente uma língua, que passou a ser chamada de lenguaje de señas nicaraguense, algo como um pidgin que os surdos usavam para a intercomunicação entre si. Assim que crianças começaram a nascer nesse contexto, formaram uma língua plena, chamada idioma de señas nicaraguense, que continua em uso e sendo aprendida pelos que vêm depois. O fato é que, após formada, ela passou a ser uma língua plena tanto para o segundo quanto para o primeiro grupo.

A contraprova se deu na ilha de Providência. Sua população era de apenas 2.500 habitantes, mas havia uma grande quantidade de surdos. Cada indivíduo surdo local desenvolveu algum tipo de sinais domésticos, muitas gerações atrás, na interação com as pessoas com quem conviviam em casa. Seria de se esperar que do contato entre surdos de diversas famílias tivesse surgido uma língua de sinais plena. No entanto, não é o que aconteceu. A razão é que os ouvintes, frequentemente familiares, assumiam uma atitude paternalista em relação aos surdos, tratando-os como crianças. Por esse motivo, na maior parte das vezes eles ficavam fora das conversações. Mesmo quando se manifestavam, um ouvinte intervinha e "interpretava" oralmente o que achava que o surdo queria dizer. Às vezes, nem esperava o surdo terminar seu enunciado. Pelo fato de serem tratados quase como incapazes, eles sequer se juntavam entre si, em grupos, com o que talvez tivessem formado uma comunidade de fala. Com isso, não desenvolveram uma língua plena (Washabaugh 1991). Não temos informação suficiente sobre o assunto, mas temos certeza de que são tão inteligentes e aptos a aprender uma língua plena como os dois surdos de Major Porto e os da Nicarágua, mesmo depois de adultos. Assim sendo, seu dom natural para a linguagem continuava presente devido à interação que vinham mantendo com os membros da família mediante sinais domésticos. Bastaria plantar a semente para a árvore da linguagem germinar. A semente no caso, é a prática da interação comunicativa, que leva à formação das regras interacionais e, subsequentemente, das regras sistêmicas.

O que aconteceu com os dois surdos de Major Porto e com os da ilha de Providência é de alto interesse para a teoria linguística, em geral, e para os estudos de aquisição de língua, em particular. Com efeito, eles são dotados do dom biológico para a linguagem, como qualquer outra pessoa, têm o dom e a habilidade de produzi-la e reproduzi-la sonoramente, tanto que emitem sons para atrair o possível interlocutor à interação. Por fim, foram expostos aos dados na idade própria à aquisição da língua de seu meio. Era de se esperar que tivessem adquirido essa língua, a variedade de português local – ou do espanhol, em Providência. No entanto, o português é uma língua oral, assim como o espanhol, o que impossibilitava perceberem os sons emitidos pelos ouvintes. Felizmente, porém, eles entraram no fluxo interacional de seu meio mediante sinais e gestos domésticos. O terem entrado no fluxo comunicacional de sua comunidade dessa maneira manteve sua capacidade para a linguagem ativa, com o que permaneceram capazes de aprender outro meio de comunicação, como a Libras, a qualquer hora, mas como L2. Para eles, o que funciona como L1 é o meio de comunicação gestual doméstico que desenvolveram, sua linguagem mímica. Qualquer outro meio de comunicação que lhes fosse ensinado, funcionaria como L2, sobretudo para o de 25 anos para cima.

Outro fato interessante sobre o meio de comunicação que os dois surdos de Major Porto desenvolveram é que, como já observado, ele não tem 'regras sistêmicas' (gramática); ele consta apenas de alguns gestos que apontam para determinadas coisas ou indicam determinadas ações, ou seja, ele consta apenas de itens lexicais, e de regras interacionais. Na década de 50, havia um "mudo" (é assim que chamavam os surdos) que compartilhava um sinal com todos jovens de Major Porto da época: ele constava em pôr a mão direita sobre o ombro esquerdo do próprio falante. Diante disso, o surdo partir para cima da pessoa, para agredi-la. O gesto lembrava o fato de que ele teria tido intimidades com uma égua. Para consumá-las, ele teria posto a cauda dela em cima do ombro. Toda a molecada local se divertia caçoando dele por isso. A conclusão inevitável é a de que o essencial para a comunicação não é a gramática, mas as regras interacionais, mais algum léxico. A gramática seria apenas um recurso adicional para expandir as possibilidades expressivo-comunicacionais. Isso decorre do fato de a função primordial e principal da linguagem ser a comunicação, como defendido pela Linguística Ecossistêmica, para a qual a língua é comunicação, não meio de comunicação.

Interações comunicativas mediante mímicas no âmbito familiar são suficiente para que a faculté du langage seja ativada, ficando o indivíduo aberto à aprendizagem de novas línguas, no caso, como L2, L3 etc. Em suma, esses dois surdos, e muitos outros pelo mundo afora, não aprenderam um código (gramática), nos moldes do que Chomsky e seguidores defendem; eles aprenderam a se comunicar, a interagir. Pelo fato de terem aprendido essa habilidade, entraram no mundo da linguagem. É por isso que, mesmo já tendo ultrapassado o pretenso período crítico para a aquisição da linguagem, segundo algumas teorias de aquisição de L1, continuam aptos a aprender uma L2, uma vez que já estão insertos no fluxo comunicacional que vige em sua comunidade. Este é, a nosso ver, um forte argumento a favor da abordagem interacionista frente à mentalista. Como disse Fettes (1999: 3), "a linguagem como a conhecemos hoje pode ter pegado carona na capacidade prévia para comunicação mimética" (p. 3).

A ideia de que é o indivíduo que constrói sua linguagem é muito antropocêntrica. Na verdade, se há um papel ativo nesse processo ele consiste no fato de que o indivíduo "se joga" no fluxo interacional, para ver o que acontece. Tanto que resultados só surgem após essa imersão. Mas, a imersão se dá assim que o indivíduo se vê na sociedade. Pelo menos a aquisição de L1 parece estar nesse caso. Tanto que, como disse Chomsky, a aquisição de L1 é algo que acontece à criança, não algo que ela faz. É como o crescimento dos órgãos. Não temos certeza se podemos afirmar o mesmo para a aprendizagem de L2, sobretudo a aprendizagem monitorada, na escola. A aprendizagem não monitorada, que se dá "na rua", parece ter muito em comum com a aquisição de L1, ou seja, o indivíduo é jogado no fluxo comunicacional. Assim, parece inevitável que se aproprie pelo menos de algo da língua vigente nesse meio. Só não se apropria mais devido ao fato de seu cérebro já não dispor da plasticidade do da criança dos sete ou dez anos de idade.

Como diz o resumo do livro de Leather & van Dam, mencionado logo abaixo, "enquanto a maioria das pesquisas sobre aquisição continua a considerar o indivíduo principalmente em termos de sistemas fechados, a Ecologia da Aquisição de Língua enfatiza a emergência do desenvolvimento linguístico através das interações das crianças e dos aprendizes com seu meio ambiente (espacial, social, cultural, educacional e assim por diante), trazendo à baila as similitudes entre desenvolvimento linguístico primário, aprendizagem de L2 adulta e aquisição linguística por robôs. Essa perspectiva localizada e contextualizada de aquisição é capaz de inter-relacionar achegas de uma variedade de paradigmas e disciplinas, ao mesmo tempo que evita um apelo indevido à normatividade. Os estudos teóricos e empíricos apresentados aqui desafiam muitas ideias dominantes na pesquisa sobre teorias de aquisição de língua, marcando uma nova orientação importante" (LEATHER & van DAM, 2003).

O surdo compartilha com os demais membros de sua família muitos dados culturais e, como sabemos, muitas das regras interacionais são culturais, donde as regras interacionais-culturais. O surdo domina praticamente tudo da cultura brasileira que é praticado no domínio doméstico. O mesmo não se daria com um chinês que tivesse aprendido o português na escola em seu país e viesse a conviver com a mesma família. Apesar de aparentemente "falar português", pelo menos no início ele teria muita dificuldade na interação com os membros da família, pois não estria familiarizado com os padrões culturais locais, ou seja, com os padrões de interação comunicativa (PIC) domésticos. Isso mostra que as regras interacionais e as regras culturais são mais importantes numa interação comunicativa do que exclusivamente as regras sistêmicas (estrutura, gramática). Para se comunicar bem em determinada linguagem ou língua não basta dominá-las e ser capaz de formar frases gramaticais ad libitum. Isso é importante, mas apenas como auxiliar dos dois outros tipos de regras (interacionais e culturais). A interação fica muito mais difícil se o chinês for monoglota em chinês, ou seja, se não dominasse nenhuma outra língua ocidental. Tratar-se-ia de uma situação muito diferente da do surdo que, apesar de monoglota na linguagem mímica doméstica, se comunica perfeitamente com os parentes em casa, numa linguagem própria do grupo familiar em torno dele.

4. COMUNIDADE DE LÍNGUA E COMUNIDADE DE FALA

Os conceitos de comunidade de língua e comunidade de fala tiveram um longo percurso na Ecolinguística brasileira, isto é, na Linguística Ecossistêmica. Até certa época, a comunidade de fala era pensada como se fosse apenas menor do que a comunidade de língua. No entanto, elas são de natureza um tanto diferente, como foi pormenorizadamente discutido em Couto (2016a). É verdade que comunidade de língua (CL) é o domínio do que chamamos laicamente de língua. É a língua vista da perspectiva do sistema. Assim, a CL portuguesa compreende Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. O sistema da língua portuguesa está presente em todos esses países, independentemente de se a língua está sendo falada agora, ou em qualquer hora. Basta haver uma consciência, uma convenção tácita entre os habitantes desses países de que seu país é de língua oficial portuguesa para ele poder ser considerado pertencente à CL portuguesa.

A comunidade de fala (CF), por seu turno, já é bem mais difícil de ser caracterizada, pelo menos à primeira vista. Na verdade, ela é o ecossistema linguístico por excelência, pois, como o ecossistema biológico, ela é delimitada pelo observador. Se o ecólogo pode delimitar, como o ecossistema a estudar, desde a Amazônia inteira até estado do Amazonas, a cidade de Manaus, o canteiro de um quintal de Manaus ou um tanque de peixinhos, algo semelhante pode ser feito pelo ecolinguista. Ele pode delimitar o Brasil inteiro como a CF a ser investigada, mas pode fazê-lo também só com o estado de Minas Gerais, assim como só com Belo Horizonte, o bairro da Floresta, um quarteirão desse bairro e até uma família. Em Couto (2016a), pode-se ver que até duas pessoas em diálogo podem ser consideradas uma CF, no caso, uma CF mínima, o que estaria perfeitamente em sintonia com o conceito de ecossistema como proposto originalmente por Tansley (1935). Aliás, tanto CF quanto CL são ecossistemas, mas a CF atende mais idealmente os pré-requisitos para sua existência, justamente devido a sua maleabilidade e delimitabilidade.

Se o linguista ecossistêmico considerar o domínio de uma família (pai, mãe, um filho, uma filha) como a CF a ser estudada, a casa constituirá seu lado T, os quatro membros da família o lado P. A linguagem (L) será constituída pelos padrões de interação comunicativa (PIC) vigentes no seio dessa família. Nesses PIC, certamente aparecerão as regras sistêmicas da linguagem da região, mas, sobretudo, das regras interacionais vistas na seção 2, bem como uma ou outra regra específica dessa família.

A comunidade de língua também é ecossistema linguístico. No caso, ela equivaleria ao bioma da Ecologia. Os domínios de biomas como a taiga, a tundra, a floresta temperada ou o cerrado do Brasil Central estão dados pela natureza, embora as transições se deem de modo gradual. Do mesmo modo, os domínios da CL portuguesa estão dados, independentemente de um linguista para delimitá-lo. A CF equivale ao ecossistema propriamente dito da Ecologia, aquele que é delimitado pelo linguista. Diante disso, como fica a CL e a CF surda, dos usuários de Libras, por exemplo?

Como foi avançado em Couto (2005: 206-207). "no caso do Brasil, a CL dos surdos é constituída por todos os cidadãos surdos que se espalham pelo país e que dominam o sistema da língua brasileira de sinais, também conhecida por Libras. Quanto à CF, como acabamos de ver, não é só uma, são diversas. Existem tantas CFs de surdos no Brasil quantas forem as associações de surdos locais. Portanto, como faz o ecólogo, também o linguista que for estudar o uso de LS tem que fazer um recorte e determinar que associação vai investigar. Nessa perspectiva, é importante saber que, devido à origem e condição social diversas de cada membro de cada CF, há muita variedade no que se refere ao nível de linguagem que dominam. Uns têm mais sinais domésticos, outros menos. Alguns podem ter noção de outras línguas de sinais, como a americana. Alguns praticam datilologia mais, outros menos. Alguns são mais influenciados pelo português escrito e até oralizam mais, outros menos, e assim por diante".

Nos termos atuais, no caso das LS tratar-se-ia de CL difusa, pelos motivos que acabam se ser vistos. Por seu sistema (da LS) estar espargido pelo domínio de uma língua oral, são as situações em que os surdos se reúnem de modo reiterado para interagir entre si que constituem CF surda. Tratar-se-ia de uma CF intermitente. Algumas delas seriam até efêmeras (COUTO, 2016a).

No texto recém-mencionado está dito que "quando se fala em comunidade surda, parece que isso implica que só há surdos na comunidade. Não é bem o que acontece. Na verdade, das comunidades surdas geralmente fazem parte, além dos próprios surdos, motivo principal da própria existência da sociedade, parentes, profissionais ou ainda surdos que vêm de outros lugares e que ainda não aprenderam toda a L da comunidade" (COUTO, 2005: 208). Na cidade mineira de Prata, "até o ano de 2002 (ano de fundação de sua associação), os surdos e surdos-cegos locais viviam relativamente dispersos, sem um contato sistemático uns com os outros, embora sempre inventassem pretextos para se encontrarem" (p. 215-216). Essa comunidade foi detalhadamente estudada por Almeida (2003, 2004).

É nessas associações ou em clubes que os surdos se sentem plenos, pois convivem com pessoas como eles, que se comunicam como eles, que têm os mesmos problemas e interesses. Por exemplo, o senhor Wilson, da comunidade de surdos de Prata “se sentia mais à vontade e alegre entre os surdos do que na festa de seu filho” (ALMEIDA, 2003)". Isso se dá porque é nas respectivas CF que os surdos se sentem em comunhão, que, como definida em Couto (2017), é uma espécie de pré-requisito para atos de interação comunicativa, nos termos de Malinowski (1972) e de Jakobson (1969). Sempre que algumas pessoas se veem juntas, haverá comunhão se houver uma satisfação com o próprio fato de estarem juntas, mesmo não havendo nenhuma novidade para ser transmitida. Se houver, tanto melhor, todas estão receptivas e até ávidas por novidades. Se não houver, não importa. O que importa é o estar junto, falando sobre frivolidades, contando piadas, enfim, simplesmente em comunhão, como o termo religioso já dá a entender. Aliás, essa é a principal função da língua, ou seja, a interação comunial, não a transmissão de informação. Jakobson chamou-a de comunicação fática.

Na ilha de Providência não se formou uma língua porque os surdos não puderam se reunir em lugar nenhum. Por isso, cada família em que havia um surdo constituía uma CF cujo conjunto de mímicas constituía sua linguagem. Elissa Newport diz explicitamente que a CL surda consta de um povo, uma língua e um território. Em suas palavras, “em qualquer região do mundo em que haja um grupo de surdos interagindo, existe uma língua de sinais rica e gramaticalmente complexa distinta da língua falada ao seu redor (e que é também estruturalmente distinta e mutuamente ininteligível com línguas de sinais de outras regiões)” (NEWPORT, 1999, p. 162). No caso, o "grupo de surdos" é o lado P; "qualquer região do mundo", o lado T; a "língua de sinais", o lado L. Ela só não deixa clara a natureza dessa CL. Não sabemos se ela está se referindo a uma CL ou uma CF.

Lucinda Ferreira-Brito informa que, entre os indígenas kaapor do sul do Maranhão, “Kakumasu (1965) encontrou setes pessoas surdas em uma população de 500. Ao visitar o grupo em janeiro e fevereiro de 1982, eu diria que atualmente são menos de 500, incluindo-se cinco pessoas surdas: três crianças e dois adultos” — como está informado no site do Instituto Socioambiental, a “incidência de surdez deveu-se evidentemente à bouba neonatal” –. Em termos de CF, Ferreira-Brito diz que “uma língua de sinais se desenvolveu na tribo e é usada em aldeias em que há ou houve pelo menos uma pessoa surda”. A autora continua afirmando que “as aldeias estão bem longe uma da outra, mas a língua de sinais é a mesma nas diferentes aldeias” (1984: 45). Como os ouvintes falam além do kaapor essa língua de sinais, eles são bilíngues. Isso nos leva a ver em cada aldeia em que haja surdos de duas perspectivas diferentes. Da primeira, considerando somente os ouvintes, teríamos a comunidade de fala ouvinte kaapor. Da segunda, incluindo os surdos (ou apenas um surdo), a aldeia seria uma comunidade de fala bilíngue kaapor-LS. Isso mostra mais uma vez a maleabilidade do conceito de CF. Os ouvintes são bilíngues; os surdos, monolíngues.

Aparentemente, não há CF surda (constituída só de surdos), uma vez que os ouvintes da aldeia também conhecem a LS local. Com isso, os surdos não sentem necessidade de se reunirem, só eles, ema algum lugar a fim de se comunicarem entre si, trocar ideias, falar de interesses comuns. Por isso, a LS kaapor é uma LS sui generis, pois, apesar de ter uma CL – espargida pela CL dos ouvintes – não se constituem em CF. Trata-se de uma CL sem CF distinta e específica. De qualquer forma, essa LS parece ser uma língua de pleno direito, não apenas uma linguagem em geral.

Nem a língua nem a comunidade dos surdos constituem anomalias. Ambas são perfeitamente iguais a diversas outras situações que se dão entre ouvintes. Por exemplo "os caboverdianos imigrados em Boston se reúnem na sede da associação deles na região para falar de sua terra natal, de suas tradições, da família que deixaram em Cabo Verde, entre outros assuntos. Tudo se passa em crioulo. Terminadas as reuniões, cada um vai cuidar de sua vida, geralmente falando inglês, pois estão dispersos na comunidade americana" (COUTO, 2005: 207).

Frequentemente não se faz uma distinção clara entre "língua" e "linguagem". Nas línguas germânicas isso não é problema porque não existem as duas palavras. Por exemplo, language em inglês e Sprache em alemão significam tanto "língua" quanto "linguagem" no português e nas línguas latinas em geral. No entanto, essa distinção feita nas línguas latinas é muito importante para a Linguística Ecossistêmica. Nela fica bem claro que, embora tenham mais em comum do que de diferente, são duas realidades distintas. Mais especificamente, linguagem é mais abrangente do que língua: esta é parte daquela. Vejamos como os dois conceitos são tratados.

De um modo geral, linguagem é o modo pelo qual os membros de comunidades de fala interagem verbalmente, ou, pelo menos, majoritariamente por meio de palavras. Isso porque, como vimos na seção 2 acima, língua não é instrumento de comunicação; ela é a própria comunicação (verbal). Isso porque ela é o lado I (de interação) do ecossistema linguístico. Como se vê, linguagem está no nível da comunidade de fala. Para usar uma terminologia tradicional não muito adequada, linguagem é qualquer meio de comunicação, aí inclusa a língua. Língua, por seu turno, é o conjunto de regras sistêmicas (gramática), juntamente com algumas regras interacionais, encaradas da perspectiva da comunidade de língua. Linguagem pressupõe as regras interacionais com ou sem as de número 15, as regras sistêmicas. Língua pressupõe em primeiro lugar justamente as regras sistêmicas, com ou sem as demais regras interacionais. De qualquer forma, o L da figura 1 acima vale para língua e para linguagem.

Por estar associada a sistema, língua designa algo fixo, que está lá, como os biomas. Não depende de um observador para delimitá-la. A linguagem, por ser um conceito maleável, é aplicável a muitas situações. Ela pode, e deve ser aplicada ao modo de comunicação de qualquer agrupamento de pessoas que o linguista delimite como a comunidade de fala que vai estudar. Afinal, a comunidade de fala é o ecossistema linguístico por excelência, pois, por ser delimitada pelo observador, é exatamente paralela ao ecossistema biológico.

As línguas de sinais – Libras, língua de sinais americana, língua gestual portuguesa etc. –apresentam as duas facetas. Elas dispõem de um elenco de regras interacionais, que não é necessariamente idêntico às das línguas orais (seção 2), e regras sistêmicas, que fazem parte das regras interacionais.

Enfim, tanto língua quanto linguagem constam de um conjunto de regras interacionais, que contém regras sistêmicas, associados a P e T. A diferença entre elas é a perspectiva a partir da qual são olhadas: a língua vai das regras sistêmicas e para as regras interacionais; a linguagem vai das regras interacionais para as regras sistêmicas.

Sinais domésticos como os mencionados acima são claramente exemplos de linguagem, não de língua. Eles geralmente, se não sempre, não têm regras sistêmicas. Eles constam apenas de alguns itens lexicais e regras interacionais. No caso, a família como um todo em que eles são usados constitui o lado P da sua comunidade de fala; a casa seria o T. O lado L seria a linguagem mímica em uso no seio de sua minicomunidade. Provavelmente, alguns vizinhos, amigos e parentes distantes pudessem se comunicar na linguagem dessa comunidade.

Há muitos outros exemplos de linguagem que não chega a ser língua, como a "linguagem de gêmeos" (twin language), ou criptofasia. Como disse Peter Bakker, "essas línguas [...] apresentam uma ordem relativamente livre de sujeito, verbo [e] objeto. Elas têm muitos vocativos, [...]. Elas não têm morfologia (contrariamente às línguas de sinais). Elas parecem apontar para o fato de que estamos lidando com um tipo 'natural' de linguagem, que emerge em algumas situações desprovidas de input linguístico" (Bakker 1990: 90). Em Couto (1981) e, mais detalhadamente em Couto (2016b), há a tentativa de mostrar que a cultura de um povo é, na verdade, a totalidade de todas as linguagens existentes em seu meio.

Quanto à interação comunicativa intermediada por intérprete, muito comum entre os usuários de línguas de sinais, não difere em praticamente nada dos casos em que falantes de línguas orais mutuamente ininteligíveis recorrem a intérpretes.

Por tudo que acaba de ser dito, as línguas de sinais e a linguagem dos sinais domésticos em geral trazem muitas informações para aumentar nosso conhecimento sobre a linguagem humana.

6. OBSERVAÇÕES FINAIS

Não tivemos a pretensão de apresentar grandes novidades no estudo das línguas de sinais. Pretendíamos mais apontar novas perspectivas de pesquisas nesse fascinante domínio da linguagem humana. Para aqueles que ainda têm preconceito contra as LS, é bom repetir que são elas que se manifestam pelo sentido humano mais geral, a visão que, como foi visto, abrange cerca de 75% de nossas percepções. O sentido da audição, base das línguas dos ouvintes, perfaz apenas uns 20% de nossos contatos perceptivos com o mundo. Dos 5% restantes para os três outros sentidos, uma estimativa bastante razoável é a de que o tato venha em primeiro lugar, talvez com uns 3%, sobrando um 1% para o olfato e 1% para o paladar. Deixando de lado a comunicação dos surdos pela escrita braile, sabemos que os surdocegos só conseguem se comunicar é pelo tato, como mostrado no estudo de caso levado a cabo por Almeida (2008). Aparentemente, não se conhece nenhum sistema de comunicação olfativa nem gustativa, a não ser na "perfumaria" para a primeira e da culinária para a segunda. Mas, nesses dois casos trata-se de linguagem para uma comunicação em áreas específicas, como a linguagem do trânsito, por exemplo, não de uma linguagem para a interação entre grupos de pessoas que se agregam em determinados contextos, formando comunidades de fala e/ou de língua.

Enfim, a distinção entre “língua” e “linguagem” é muito importante para se entender as diversas situações de comunicação humana. No caso dos meios de comunicação dos surdos, isso se aplica talvez até com mais força.

NOTA

*Ecolinguística: revista brasileira de ecologia e linguagem (ECO-REBEL) v. 3, n. 1, 2017 disponível em http://periodicos.unb.br/index.php/erbel/index (acesso: 29/11/2017), contém três ensaios sobre línguas de sinais.

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