PEDERSEN, S. A.; TORTELLA, J. C. B. Onde estão os coelhos pretos no livro “A menina
bonita do laço de fita”? Revista Diálogos (RevDia), “Edição comemorativa pelo
Qualis B2”, v. 6, n. 2, mai.-ago., 2018.
ONDE ESTÃO OS COELHOS PRETOS NO LIVRO “MENINA BONITA DO
LAÇO DE FITA”?
Simone Alves Pedersen (UNESP)
1
Jussara Cristina Barbosa Tortella (PUC)
2
1
Doutoranda em Educação. UNESP campus de Rio Claro. s.pedersen@uol.com.br
2
Doutora em Educação. Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
jussaratortela@gmail.com
RESUMO: A fusão de dois autores em uma mesma obra: o autor do
texto e o autor de imagem, pode ser conflituosa. Nesse artigo,
discutimos a relação imagética e textual no livro Menina bonita do
laço de fita” de Ana Maria Machado, um dos livros mais adotados pelas
escolas do Brasil, sob o prisma da teoria Social Cognitiva. A mãe da
menina é desenhada como uma mulher sensual, contrastando com as
mães brancas em livros infantis. Apesar do coelho procurar uma coelha
preta para se casar no texto, as ilustrações não mostram coelhos
pretos.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura infantojuvenil. Teoria Sócio Cognitiva.
Modelação.
ABSTRACT: The fusion of two authors in the same work: the author of
the text and the author of the image, can be conflicting. In this article,
we discuss the imaginary and textual relationship in Ana Maria
Machado's book, "The Beautiful Girl with Ribbon Tie", one of the books
most adopted by Brazilian schools, under the prism of sociocognitive
theory. The girl's mother is drawn as a sensual woman, contrasting
with white mothers in children's books. Although the rabbit looks for a
black rabbit to marry in the text, the illustrations do not show black
rabbits.
KEYWORDS: Children’s literature. Social Cognitive Theory. Modeling.
1. A LITERATURA INFANTOJUVENIL
Era uma vez uma menina linda, linda.
Os olhos dela pareciam duas azeitonas pretas, daquelas bem brilhantes.
Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feitos fiapos da noite.
A pele era escura e lustrosa, que nem pelo de pantera-negra quando pula na
chuva.
(MACHADO, 1996, p.3)
A literatura infantil tem sido estudada em diferentes esferas
educacionais, demonstrando ser um gatilho para discussões críticas,
desde a mais tenra idade. Quem com dificuldade não se interessa por
literatura e não apreende o conteúdo dos livros literários, paradidáticos
e didáticos. Ao mesmo tempo, a literatura infantil oferece material de
leitura agradável e multidisciplinar, que permite à criança enquanto
aluno e pessoa , entre tantos outros benefícios, exercitar a
dialogicidade e reflexão.
Solé (1998) destaca a importância da atuação dos docentes para a
melhoria da aprendizagem da leitura e do papel da leitura para a
transformação dos conhecimentos. Para a autora, ler não é uma tarefa
apenas para aprender (conteúdo), mas também para pensar, e a
decodificação, apenas, não basta; afirma ainda, que a fluência leitora
necessita de exercício contínuo e que o leitor precisa aprender a
interpretar textos com graus de dificuldade cada vez mais altos.
Interpretar um texto ilustrado passa pela interpretação das
imagens. O discurso que as imagens carregam, assim como o discurso
no texto, nem sempre são aspectos considerados por professores em
sala de aula. O livro infantil é selecionado pelo colorido, pela capa, pelo
tema, mas nem sempre são lidos antes de serem ofertados aos alunos.
Também não é sempre que o livro infantil é analisado com rigor, antes
de ser lido para crianças. Muitas vezes o livro é considerado um
brinquedo.
Em direção oposta a esta, Pedersen e Tortella (2016) ressaltam
que a escola é uma ponte entre as crianças e a Literatura infanto-
juvenil, uma ferramenta de fácil acesso aos professores. A questão
reside na formação dos professores em relação ao livro infantil, aos
critérios de seleção, a avaliação desses livros, que podem trazer
discursos embutidos que nem sempre são identificáveis pelo título ou
pela capa. O professor precisa ler o livro antes de escolhê-lo quando
busca formar alunos capazes de refletir, ponderar, ter opiniões
próprias.
Anjos e Vieira (2015) discutem, em pesquisa que
desenvolveram sobre a formação docente e a literatura infantil e suas
contribuições para o desenvolvimento de leitores na Educação Infantil,
que os programas de formação além da discussão sobre alfabetização e
letramento necessitam considerar as reais necessidades contextuais do
professor em sala de aula e a implicação dessas nas práticas
pedagógicas.
A literatura infantil e juvenil tem sido usada para leitura de
fruição, para leitura de conteúdo pedagógico, para discussão de
temática moralizante, como material paradidático e didático.
O autor das imagens, o ilustrador, tem um caminho diferente. Ele
é contratado pela editora ou pelo autor diretamente. O texto pronto lhe
é mostrado e ele então inicia a produção das imagens. Alguns artistas
gostam de compartilhar o processo com o autor do texto e pedem
orientações/sugestões, enquanto outros produzem individualmente e
não gostam de receber opiniões durante seu processo de criação. Alguns
editores pedem a remessa de imagens para avaliação antes de terminá-
las, outros confiam nas escolhas do ilustrador que entrega o material
todo de uma única vez.
Nesse movimento, podem surgir divergências entre os dois
autores. Algumas em tempo hábil de saná-las, outras que o oferecem
possibilidade de mudanças. Artistas têm concepções diferentes sobre
suas produções, e podem ou não aceitar que o autor do texto oriente
sua criação artística, para que o haja limitação criativa. Outros
artistas produzem para determinado cliente e procuram atender ao que
esse espera.
O que nos leva a ponderar sobre o que é arte. Se a arte pode ou
não ser direcionada. Se a arte é somente a criação livre, no caso da
literatura infantojuvenil que apresenta uma história, pode a
ilustração contar outra história? Se o artista descreve em desenhos a
história textualizada, está ele limitando sua capacidade artística?
Outra questão é sobre a liberdade artística versus conteúdo. Pode
a ilustração, em nome da arte e da livre criatividade, apresentar
informações incorretas?
Um elefante andando pela cidade de São Paulo é perfeitamente
cabível em uma narrativa criativa. Se, por outro lado, colocamos um
elefante em um livro infantil que descreve os animais que vivem na
Floresta Amazônica, pode levar ao aluno menos atento acreditar que
existem elefantes em nosso país. O objetivo do livro é que deve ditar as
regras em relação à escolha. Ficção ou livro informativo, paradidático,
didático, cada gênero tem suas possibilidades/limitações. O papel do
mediador é sempre levantar o questionamento quando a imagem e o
texto o se encontrarem de forma natural e perfeita. O que não se
pode é levar para a escola um livro para crianças que em sua narrativa
traga informações distorcidas.
Concordamos com o renomado matemático Laurent Laforgue, que
prega uma urgente reforma educacional global, quando ele afirma que
os conhecimentos literários são de imensa importância. Pois dominar a
própria língua, ler grandes autores e filósofos, é indispensável para o
desenvolvimento do espírito crítico e da própria formação do indivíduo.
Não se trata de censurar, de adotar apenas livros moralizantes
(para isso temos as fábulas) ou que sejam politicamente corretos. Por
outro lado, não faz sentido levar para a sala de aula livros que
promovam o preconceito, desvalores e desarmonia.
Autores de textos e de imagens o pessoas e estão sujeitos a
acertar e errar. Nem tudo que é publicado é material de qualidade
literária e imagética. Por vezes, os custos determinam as escolhas. E
nem sempre a Arte é o fator preponderante na escolha de qual livro
será produzido, quando e em que condições isso ocorrerá.
Portanto, esse texto procura compreender como e o que as
crianças aprendem ao entrar em contato com um livro e suas
ilustrações, a partir das explicações do conceito de modelação da teoria
social cognitiva. Pretende, ainda, alertar docentes e pais que não se
pode escolher um livro infantil de forma inocente, sem considerar o
discurso que ele traz. Não é porque um livro trata de homofobia que o
autor estava capacitado a tratar desse tema com o respeito que merece.
Não é porque um autor escreve um livro com um protagonista portador
de alguma deficiência que o livro é bom. O mesmo se estende ao
ilustrador. Nem todo artista é sensível ao ponto de ser capaz de ilustrar
temáticas polêmicas ou poéticas.
2. A APRENDIZAGEM POR MODELOS, SEGUNDO A TEORIA SOCIAL
COGNITIVA
Azzi (2010) explica que segundo o prisma da teoria sociocognitiva
de Albert Bandura, o processo de modelação possibilita que as pessoas
adquiram padrões de comportamentos culturais. Nesses padrões de
comportamentos estão as crenças e os valores que elas acrescentam no
decorrer de suas vivências e experiências, interagindo com o ambiente.
Costa afirma que a modelação é um conceito também pertencente
ao senso comum. Pessoas discutem, por exemplo, o fato de a TV
apresentar modelos de conduta contrários à moral e aos bons costumes,
cenas de violência, de crimes, maus exemplos de como lidar com os
idosos, corrupção, etc.
O que parece ser apenas um comportamento copiado, é, segundo a
Teoria Social Cognitiva, um aprendizado. Aprendemos de forma direta
ou forma vicária. Na experiência direta aprendemos o que executamos.
Na experiência vicária observamos outros comportamentos que
podem ser pessoais, por meios de comunicação ou leitura e
ampliamos nosso repertório de condutas que aprovamos ou
desaprovamos.
Bandura trabalhou com modelos reais, pesquisou a efetividade de
modelos simbólicos mediados por filme (modelos humanos mais que
animais). Sugeriram os estudos um efeito eliciador e facilitador de
resposta aprendida desinibindo respostas pela extinção ou contra
condicionamento da ansiedade. Ou seja, um livro ou filme pode
desinibir comportamentos que a criança aprendeu e não havia
reproduzido ainda. Ou ensinar novos comportamentos.
Os três efeitos da exposição a um modelo são: aprender novos
comportamentos, inibir ou desinibir respostas aprendidas hibernadas e
instigar respostas similares.
Os processos envolvidos na aprendizagem por meio de modelos
são: atenção, retenção, reprodução motora e reforço e motivação.
Quanto mais atenção, maior probabilidade de aprendizagem do
comportamento observado. Quando tratamos de literatura infantil,
temos uma grande possibilidade de a criança prestar atenção.
Sem foco, sem prestar atenção, naturalmente não observaremos o
modelo de forma aprofundada. É necessário que a observação seja
memorizada, retida. Há necessidade de habilidades para reprodução. Se
o comportamento for sancionado negativamente, raramente será
ativada enquanto incentivos positivos favorecem.
O reforço afeta o nível de aprendizagem observacional ao
controlar a que as pessoas se tornam atentas e quanto elas codificam e
praticam o que viram. O reforço externo é um facilitador, não condição
necessária para a aprendizagem. As consequências do comportamento
afetam a decisão de reproduzi-lo ou não.
O modelo pode favorecer ou enfraquecer inibições de respostas
que os observadores previamente aprenderam (BANDURA, 1969). A
influência de modelos pode servir como estímulos desinibidores,
eliciadores de respostas, instigadores de emoções e como professores.
O comportamento aprendido não será necessariamente
reproduzido exatamente como foi visto. Somos frutos de uma tríade
recíproca, na qual segundo Bandura, nosso comportamento afeta o meio
e nossas crenças, reciprocamente. Um comportamento aprendido pode
ser reproduzido com variações adicionadas pelo nosso repertório
individual.
Essa equação faz com que nunca sejamos réplicas idênticas de
nossos modelos. Ao mesmo tempo que aprendemos quase tudo em
nossas vidas por meio de modelação, mesmo que seja ao observar o que
alguém informa por meio de comportamentos, palavras ou gestos.
A modelação es presente nos comerciais de TV quando nos
instiga a ter novas necessidades. Nas leituras e filmes. Nas conversas
sobre o passado. Nas conversas sobre o futuro. O tempo todo estamos
sob o processo da modelação.
Para Zimmerman e Schunk (2001) a modelação envolve mudanças
que resultam da observação de modelos, sendo essas mudanças nas
dimensões não cognitivas, como também afetivas e
comportamentais. Essa aprendizagem pode ser incidental, mas também
pode ser programada, mediante o contato com livros e programas de
televisão, filmes, peças de teatro, entre outros.
As atribuições do modelo, atributos do observador e valor
fundamental do que foi modelo afetam o poder do modelo. O
observador compara suas características com a do modelo e julga se as
consequências são negativas ou positivas quando decidi se adotará ou
não aquelas condutas. Se for um modelo de prestígio, de sucesso ou que
tenha envolvimento afetivo com a criança, ela prestará mais atenção.
Nesse ponto, os livros infantis são potentes modelos simbólicos.
A modelação não pode ser interrompida. Agora vou ser modelo.
Agora não vou mais ser modelo, posso ser eu mesmo. Somos modelos o
tempo todo. É uma grande responsabilidade. A criança amplia seu
repertório comportamental com cada detalhe que observa. E nesse
repertório incluem-se as histórias infantis que oferecemos a elas.
3. O LIVRO MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA” DE ANA MARIA
MACHADO
Ah, quando eu casar
quero ter uma filha
pretinha e linda
que nem ela…
(MACHADO, 1996, p. 3)
Lançado em 1996, o livro “Menina bonita do laço de fita” da
escritora Ana Maria Machado, recebeu inúmeros prêmios e foi
distribuído para escolas de todo o país. O livro trouxe a discussão sobre
o racismo para o universo infantil, com uma menina protagonista,
pequena, preta, bonita. As professoras logo descobriram o livro e
passaram a adotá-lo como pretexto para discutir a questão do
preconceito racial com seus alunos. A autora é escritora, professora,
jornalista e pintora, publicou mais de cem livros e vendeu mais de
vinte milhões de livros. Nascida em 1941, Machado acompanhou a
evolução do mercado editorial brasileiro, desde o seu quase início.
O livro começa Ainda por cima, a mãe gostava de fazer
trancinhas no cabelo dela e enfeitar com laço de fita colorido. Ela ficava
parecendo uma princesa das Terras da África, ou uma fada do Reino do
Luar” (p.4). e na sequência apresenta o personagem coelho branco, de
olhos vermelhos e orelhas cor-de-rosa. Do lado da casa dela morava
um coelho que achava a menina a pessoa mais linda que ele vira na
vida. Queria ter uma filha linda e pretinha como ela” (p.7). Assim, a
história se desenrola com o coelho perguntando à menina como fazer
para ter uma filha pretinha e linda que nem ela. E com uma prosa
poética e também momentos engraçados, o livro tem agradado adultos
e crianças por décadas.
O livro foi publicado em 1996. O PNBE (Plano Escolar da
Biblioteca Nacional) surgiu em 1997, e demorou alguns anos até
chamar a atenção das editoras com suas compras de dezenas de
milhares de livros. Antes disso, a comercialização de livros infantis, no
Brasil, era modesta. Os investimos com os livros para crianças eram
limitados. Também não havia a possibilidade da produção sob demanda
(livros impressos em pequenas quantidades), não havia a globalização e
a concorrência das gráficas chinesas, e poucos artistas conseguiam
viver da ilustração de livros nesse gênero.
O ilustrador desse livro, Claudius Ceccon, é arquiteto, designer,
cartunista, escritor e ilustrador. O artista é conhecido por sua produção
jornalística e seus cartoons. Um profissional renomado, com alguns
livros infantis em seu portfólio.
O texto da autora é delicado, poético, engraçado. As ilustrações
são extravagantes e caricatas. Houve uma seleção e os critérios podem
ter sido muitos, desde uma pessoa que aprecia o trabalho do artista, a
indisponibilidade de outro artista no prazo, o custo da produção do
artista, a sua popularidade que pode impulsionar a venda, entre tantas
outras possíveis variáveis. A produção dos livros infantis pode ser
afetada pelo contexto editorial que desconhecemos enquanto leitores.
A começar pela mãe da menina, uma mulher que foi representada
como o estereótipo da mulata bonita, muito vaidosa e encorpada. Com
muitos penduricalhos, anéis, pulseiras, brincos, muita maquiagem,
batom vermelho, a mãe da menina é retratada. Foi dada uma atenção
especial para o corpo cheio de curvas e seios volumosos. O artista
coloca em seus desenhos o que ele vê. Procuramos por livros com
mulheres brancas, mães com seus filhos, em livros infantojuvenis, que
se vestissem de forma sensual e não encontramos.
Nos anos 90, as ilustrações foram aprovadas. Podemos questionar
se hoje as mesmas ilustrações teriam sido aprovadas, com tantos
movimentos que lutam contra a imagem da mulher-objeto, que sofre
violência física e emocional, principalmente a mulher negra.
A mãe da menina é pintada de cor mais clara que a menina, com
um tom rosado, a menina é pintada de marrom claro e a vó que aparece
em um porta-retratos (p.14) é preta. Entretanto, o texto expressa
literalmente que a menina é pretinha, bem pretinha. Nas ilustrações ela
é menos preta que a avó, e a cor escolhida pelo ilustrador foi o marrom.
Essa escolha percorre todo o livro, usando tons de marrom para pintar
o que o texto descreve como preto. A beleza africana está na mulher e
nos seus adereços usados por ela, na ilustração. A mãe da menina usa
anéis em todos os dedos, muitas pulseiras, brincos e lenço que amarra o
cabelo, além de maquiagem, com sombra azulada sobre os grandes
olhos negros. O cabelo da mãe é colorido de marrom.
Uma possibilidade é que o autor escolheu cores diferentes para
dar um acabamento artístico, com mais contrastes. Não seria de se
questionar as diferentes cores de pele, porque somos brasileiros, e são
muitas as variações de nossas cores. O que não se explica nesse livro,
que é literal e discorre o tempo todo sobre preta da menina.
Ana Maria Machado inovou ao apresentar sua personagem, uma
menina preta e bonita. Encontrou um nicho que ainda não estava sendo
explorado, e um mercado sedento de materiais para discutir
preconceitos raciais com as crianças. Seria ainda melhor, em nosso
entender, se a menina fosse também inteligente, esperta, cheia de
amigos. Seria ainda interessante, se o pai da menina aparecesse no
livro, dividindo as tarefas com a mãe, cuidando da filha. Se o pai fosse
também preto, um homem bem-sucedido, jovem e bonito. A beleza
africana na literatura só aparece quando o personagem é mulher.
Homens pretos são normalmente retratados como fortes e valentes.
Não encontramos livros infantis com personagens masculinos pretos
fora desse estereótipo.
Todavia, não podemos nos esquecer que se trata de um livro
produzido nos anos 90, e, de para cá, muito mudou, mesmo não
tendo mudado o suficiente. São as imagens replicadas nos livros
infantis, as imagens que os autores têm em suas mentes, marcadas pela
cultura e pela sociedade.
Se nesse livro, a menina pretinha é pintada de marrom-claro, a
mãe é pintada de cor de rosa (mas com apelo extravagante e sensual),
surge então o personagem coelho, um animal branco de olhos
vermelhos, que enxerga toda a beleza da menina, e sendo animal, não
traz as marcas dos preconceitos dos humanos e a acha linda. O coelho
transmite afetividade em todos os momentos, sendo um personagem
empático e acolhedor.
A narrativa se desenvolve em torno do encontro dos dois. O
coelho pergunta para a menina como ele pode ter uma filhinha pretinha
e linda como ela. A menina pequena que ainda não sabe o que o coelho
pode fazer, oferece respostas que o coelho obstinado experimenta: ele
bebe muito café, come muita jabuticaba, se pinta com tinta preta.
No final da história, aparece uma ilustração de página dupla com
o coelho branco, sua esposa e onze filhotes. Esperasse que ele tenha
finalmente conseguido uma filha pretinha e bonita como a menina de
laço de fita. O coelho branco conhece uma coelha marrom, muito
maquiada e com bijuterias para mostrar a semelhança com a mãe da
menina. E desse casamento nenhum filhote nasce preto. Um é cinza
claro, um manchado, tem alguns amarelos, laranjas, rosados. A
impressão que se tem é que o autor da imagem se preocupou com a
composição das cores, com os contrastes e o efeito final, mas em
nenhum momento do livro ele se preocupou em pintar personagens da
cor que o texto indica. Ele não o que o coelho procura, uma esposa
preta e filhotes pretos.
Qual é a mensagem que o livro passa para as crianças? Quando
veremos mulheres negras inteligentes, bem-sucedidas, em profissões de
destaque, retratadas na literatura infantojuvenil de nosso país? O que
se discute nesse texto é a reprodução dos estereótipos na literatura
infantil e juvenil e a necessidade de uma formação de professores que
movimente essa reflexão. Os livros infantojuvenis o levados para a
sala de aula sem a seriedade que sua seleção demanda.
Não se trata de censurar nem de escolher e robotizar o leitor
mirim. Mas de ampliar a discussão para além da pergunta superficial
“Quem gostou da história” e aprofundar para uma reflexão crítica que
inclui a compreensão que o livro é o resultado de um trabalho coletivo,
onde o autor é um dos sujeitos envolvidos, em um processo que passa
por editores, pareceristas, revisores, preparadores e textos,
ilustradores, diagramadores, mediadores de leitura, e o leitor, muitas
vezes, está muito distante de quem originalmente escreveu a história.
Entender essa cadeia produtora pode ajudar a desvelar os
sentidos que uma história traz, para que o leitor possa, enfim,
encontrar o seu sentido, carregado das suas vivências, das suas
inferências, conexões e predições, de forma ativa, e o sendo apenas
um ser passivo nesse processo dinâmico que a leitura deve ser.
Não se pode relevar o impacto que um modelo simbólico pode ter
sobre um leitor. É pensarmos nos movimentos que os grandes heróis
causam, com filas e comoções em massas. Pessoas que passam noites no
frio esperando o lançamento do próximo livro do Harry Potter, com
mais de 500 páginas. Crianças com menos de 5 anos que pedem para
repetidamente assistirem o mesmo desenho ou que leiam o mesmo livro
infantil.
4. DISCUSSÃO: A LITERATURA INFANTIL EM SALA DE AULA
Para Solé (1998), os professores da Educação Básica precisam
aprender uma forma nova de pensar e entender a leitura, que é comum
no meio acadêmico, mas que não está presente na prática educativa.
Segundo a autora, são os docentes que podem, de fato, contribuir para a
melhor aprendizagem da leitura. A autora, ainda, afirma que a escola
ensina a ler, mas não oferece tarefas para que os alunos exercitem essa
competência e aprofundem a compreensão leitora. Para ela, os
objetivos da leitura são muitos e diferentes em cada situação e
momento, destacando--se os seguintes: obter uma informação precisa;
seguir instruções; obter uma informação de caráter geral; aprender;
revisar escrito próprio; por prazer; comunicar um texto a um auditório;
praticar a leitura em voz alta, verificar o que se compreendeu etc.
Ler não é um ato simples e automático. Compreender o que se
necessita da participação ativa do leitor. Para Simões e Souza (2011), as
competências e habilidades envolvidas no processo de ler o as
seguintes: decodificação, seleção, antecipação, inferência, verificação,
confirmação de hipótese etc., além de que, ler pode ser para informar,
copiar, distrair. Pode-se, ainda, ler para o outro, com o outro, em voz
alta ou silenciosamente. A leitura pode ser efetuada em diferentes
momentos e locais, e vem em diferentes suportes, como jornal, livro,
página digital, entre outros.
No texto ilustrado, sugerimos que há um terceiro tipo de leitura, a
leitura de texto ilustrado, que além do significado do autor textual, traz
a tradução do autor de imagens, para depois o aluno construir o sentido
seu, por meio da sua subjetividade, das suas experiências. Isso senão
houver um mediador, professor ou não, que pode trazer ainda a sua
compreensão.
A compreensão leitora é construída pelas pistas que o texto traz, o
conhecimento prévio e nesse caso, se as pistas da ilustração forem
contraditórias ao texto, teremos uma situação em que em nome da arte
imagética, a arte literária é deformada. Exemplo está na ilustração do
livro Menina bonita do laço de fita” que luta contra o preconceito
enquanto o autor das imagens reproduz estereótipos construídos em
pilares racistas.
Acreditamos que o professor precisa conhecer a literatura
infantil, em primeiro lugar, para que não apenas saiba selecionar o que
é bom, mas para que também tenha um repertório amplo que
possibilite renovar suas escolhas e adaptá-las aos diferentes alunos.
Lajolo (2010) diz que o professor deve ser leitor para formar leitores,
gostar de ler, principalmente os que lecionam nos anos iniciais.
A compreensão do texto é construída com base no repertório de
cada aluno. Para Solé (1998), o leitor que aciona conhecimentos prévios
efetua uma leitura crítica quando analisa o que e o compara com o
que ocorre no mundo.
Fountas e Pinnell (2001) explicam que quando você um
romance ou história qualquer sobre um lugar onde esteve, aquela
leitura, mesmo que ficção, irá acrescentar ao seu conhecimento ou
trará novos sentidos aos conhecimentos prévios, de forma
complementar. Assim como as experiências vividas e a cultura em que
somos inseridos influem na construção de personagens e de como lemos
os personagens criados por outros.
A conexão consiste em ligar o que lemos com algo semelhante que
sabemos. Para Simões e Souza (2011), compreendemos melhor o que
estamos lendo quando fazemos conexões com eventos ocorridos em
nossas vidas, ou com informações de outros textos lidos, ou ainda com
situações que ocorrem em outros lugares do mundo.
Uma criança que mora no interior terá mais facilidade em fazer
conexão com um personagem que vive no campo, do que outra que vive
em uma capital, e vice-versa. Uma criança se identifica com
personagens de histórias infantis.
Nesse processo de compreensão leitora, como seria se o texto
infantil o tivesse ilustração? Será que crianças somente se
interessam por histórias ilustradas? Onde fica a transmissão oral das
histórias infantis? Não pretendemos sugerir que livros infantis não
sejam ilustrados. A ilustração é uma arte bela e sensível, que nos move
e inspira. Todavia, não podemos supor que a ilustração de uma história
seja mais importante que a história em si. São duas formas de arte
distintas e independentes.
Assim sendo, um mesmo livro pode ser ilustrado por outro
ilustrador, em uma outra edição, enquanto as ilustrações de uma
história nunca se encaixarão perfeitamente à outra história. Os livros
de imagens, sem texto, contam histórias sem texto. Alguns, são obras-
primas, como o premiado Bárbaro de Rogério Moriconi (2013), autor da
história e das imagens, que narra a trajetória de um guerreiro rbaro
que luta contra monstros mitológicos, aque é salvo por uma mão que
surge do alto, para no surpreendente final da história, descobrirmos
que era a imaginação de um menino em um carrossel. O autor da
história e das imagens, quando o mesmo, tem a possibilidade de
traduzir exatamente a sua visão de mundo e da narrativa produzida.
Regina Zilberman (2003) considera que o mundo dos adultos por
vezes é reproduzido em obras literárias infantis. “seja pela atuação de
um narrador que bloqueia ou censura a ação de suas personagens
infantis; seja pela veiculação de conceitos e padrões comportamentais
que estejam em consonância com os valores sociais prediletos
“(ZILBERMAN, 2003, p. 23). O autor de texto ou de imagens, ao fazê-lo,
pode estar inconsciente do que faz, revelando valores incorporados
previamente.
Debus (2017, p.23) afirma que a temática da cultura africana e
afro-brasileira, bem como a escrita de escritores afro-brasileiros ficou
silenciada. Contemporaneamente, é possível encontrar rios trabalhos
que evidenciam esse fato; [...]”; A autora reuniu em um livro a
produção de quatro escritores que tematizam cultura africana e/ou
afro-brasileira em suas narrativas, explorando a temática na literatura
infanto-juvenil nacional, pelo ponto de vista de autores
afrodescendentes. A autora complementa que após a Lei n.
10.639/2003, que trouxe a obrigatoriedade do ensino da cultura
africana nas escolas brasileiras de Ensino Fundamental e Médio, houve
um acréscimo nas publicações de obras literárias com tal temática.
Nesse sentido, podemos constatar que anteriormente à tal lei, os
livros com personagens negros eram em número ainda mais reduzido.
Livros com uma protagonista negra, bonita e orgulhosa de sua etnia,
como a menina bonita do laço de fita, eram uma novidade em nosso
país. Não havia uma discussão ampla sobre a promoção de condutas
antirracistas nas escolas. Esse livro, foi um precursor, recebido e
adotado em escolas de todo o país. Não havia, ainda, um movimento
social que levasse a uma análise mais profunda de livros infantis com
temática antirracista.
Na construção de sentido que o aluno faz, na leitura do mundo, os
modelos que ele conhece influenciam em seu entendimento. Um livro
infantil fará parte de seu conhecimento prévio dali em diante. Simões e
Souza (2011) afirmam que a estratégia de ativação dos conhecimentos
prévios é uma estratégia “guarda-chuva”, e que a mesma amplia a
compreensão do texto.
Por exemplo, ao visualizar um castelo medieval, alguns podem
lembrar dos castelos mais antigos, sem nenhum conforto, frios, nos
quais havia pouco mobiliário e uma câmara de tortura para os inimigos.
Também podemos pensar em outros castelos, com torres altas como nos
contos de fadas, em particular aquele onde Rapunzel ficou cativa.
Algumas crianças podem imaginar o Castelo da Cinderela, em sua
versão animada pela Disney, enquanto as moças românticas podem
visualizar o real Castelo de Neuschwanstein na Baviera, Alemanha, que
inspirou o castelo da Cinderela. Ou pode, ainda, a criança, visualizar o
castelo de brinquedo que ela tem em casa, ou o castelo que viu em um
filme de terror.
As cores, tamanho, estilo, detalhes são pessoais, se não houver
uma descrição para o imaginário. Um livro pode trazer um castelo
medieval bonito ou sujo, mostrar a sala de jantar ou a câmara de
tortura. O imaginário do ilustrador pode ter sido construído em direção
oposta do autor do texto.
O papel do professor é o do mediador na leitura do livro, do texto,
das imagens e do mundo, extrapolando a pergunta final costumeira
“Vocês gostaram da história?” e direcionando para questões voltadas a
reflexão crítica, para que o leitor não leve gato por lebre, ou coelho
marrom por preto.
5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Pretendemos com esse texto discutir os conflitos que podem
surgir entre a história escrita e a história ilustrada. Trouxemos um
exemplo do que julgamos ser um conflito conceitual em um livro
infantil, entre a imagem e o texto. O aporte teórico da Teoria Social
Cognitiva, com base no constructo da modelação vicária simbólica,
embasa a possibilidade de aprendizagem de conceitos e valores, por
meio dos livros infantis, e o processo pelo qual pode acontecer.
Bettelheim (2017, p.12) diz que “justamente porque a vida é com
frequência desconcertante para a criança, ela necessita mais ainda que
lhe seja dada a oportunidade de entender a si própria nesse mundo
complexo com o qual deve aprender a lutar”. Nesse livro, encontramos
imagens estereotipadas da personagem mãe, ao apresentar uma mulher
afrodescendente de forma sensual, com roupas justas que acentuam
curvas, decote que desnecessariamente sugere fartos seios, forma
atípica para um livro infantil. Não encontramos mulheres brancas
retratadas com sensualidade em livros infantis.
Trata-se de um livro para trabalhar a temática racista que
persiste em nosso país, com uma história adotada em muitas escolas, e,
portanto, as ilustrações poderiam ser pensadas com maior cuidado. No
início da história (p.3), a autora se refere a menina “a pele era escura e
lustrosa, que nem pelo de pantera-negra quando pula na chuva”. O fato
de o coelho se casar com uma coelha marrom, e ter muitos filhotes,
sendo que nenhum é totalmente preto, se distancia da narrativa que
desde o início busca encontrar um meio do coelho branco ter filhotes
pretos.
Colomer (2015, p.75) sumariza nossas preocupações com a frase
“Em definitivo, os problemas sobre os modelos de socialização são da
literatura infantil e juvenil na mesma medida em que são de toda a
sociedade”. Livros infantis o uma ferramenta potente para abordar
assuntos que fazem parte da nossa cultura, em linguagem adequada aos
leitores mais novos, na escola.
A formação inicial e continuada de professores ainda não explora
estratégias de leitura e a potência estética e literária dos livros infantis
e juvenis. que é imensa atualmente em todo o mundo, inclusive no
Brasil. Muitos se prendem aos clássicos pela sua qualidade
sacramentada, enquanto outros recorrem aos contemporâneos sem
conhecer critérios de seleção de obras. Cosson (2007) aponta que não
podemos nos prender ao passado sacralizando as obras cânones, nem
tampouco adotar obras contemporâneas ao ponto de esquecer nossa
história e cultura.
Enquanto discutimos práticas pedagógicas descolonizadoras e
alunos agentes de suas aprendizagens, não podemos nos esquecer de
questionar e refletir sobre nossas ações e tradições pedagógicas.
Mesmo um bom livro pode trazer armadilhas. As listas de livros que
passam de um ano para o outro, sem questionamentos. Os livros
escolhidos pela capa ou por catálogos bem diagramados, podem
esconder armadilhas discursivas de uma literatura moralizante que
predominou na literatura para crianças produzida no Brasil no século
passado, e, que ainda, continua a ser publicada em grande número.
Entendemos que nem todo livro infantil precisa discutir valores.
Existem excelentes livros infantis com histórias que transportam as
crianças para outro mundo, um mundo de puro deleite e fruição, seja
por meio de uma boa história, seja por meio de poesia. Os livros
infantis que trazem em sua história princípios morais, valores e
comportamentos, se escolhidos, também devem ter alta qualidade
estética. Não se pode abrir mão da qualidade estética em prol do
conteúdo do livro.
O livro “Menina bonita do laço de fita”, de Ana Maria Machado é
um bom exemplo de história que promove a discussão sobre racismo,
de forma lúdica, com qualidade literária. Mas, nem todo livro
publicado, até por grandes editoras, autores e ilustradores premiados, é
isento de características questionáveis.
Questionar a mensagem que as ilustrações desse livro transmite,
foi o foco desse artigo. Esperamos que os coelhos brancos tenham o
direito de ter uma filha preta, como desejam, e que os livros infantis
não sensualizem nem clareiem os personagens pretos.
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