ZANATTA, D. L.; BURLAMAQUE, F. V. A noiva fantasma, de Yangsze Choo e a formação do jovem leitor. Revista Diálogos (RevDia), “Edição comemorativa pelo Qualis B2”, v. 6, n. 2, mai.-ago., 2018.

A NOIVA FANTASMA, DE YANGSZE CHOO E A FORMAÇÃO DO JOVEM LEITOR

The ghost bride, by Yangsze Choo and the formation of the young reader

Deisi Luzia Zanatta (UPF)1

Fabiane Verardi Burlamaque (UPF)2


RESUMO: O presente artigo tem por norteamento central realizar uma possível análise da obra A noiva fantasma, de Yangsze Choo, com o objetivo de refletir sobre a transgressão psicológica da protagonista e como isso pode influenciar na formação dos leitores contemporâneos. Justifica-se o presente trabalho pela relevância de dar maior visibilidade à literatura chinesa e à primeira obra publicada no Brasil da referida escritora. Esta pesquisa tem caráter bibliográfico e possui como sustentação teórica os estudos de Diana Corso e Mário Corso (2011), Michèle Petit (2008, 2009), Jorge Larossa (2003), Judith Langer (2005) e Regina Zilberman (1989). A narrativa, que se passa em 1893, versa sobre a história de Li Lan, uma jovem que recebeu da família uma educação tradicional, mas por viver sem perspectivas após a falência do pai, recebe uma proposta capaz de mudar sua vida: tornar-se uma noiva fantasma. Concluímos, que o enredo do romance não somente mostra a tradição sobre os casamentos fantasmas da cultura asiática, mas também, a condição humana a respeito das mudanças drásticas que resultam na transgressão psicológica e na renovação que cada indivíduo precisa ultrapassar ao tomar determinadas decisões.

PALAVRAS-CHAVE: A noiva fantasma. Protagonista. Transgressão. Leitor.

ABSTRACT: This article is aimed at establishing a possible perform analysis of the work The ghost bride, by Yangsze Choo, with the aim of reflecting on the psychological transgression of the protagonist and how this can influence in the formation of the contemporary readers . It justified this study the relevance of raising the profile of Chinese Literature and the first work published in Brazil of that writer. This research has bibliographic and has as theoretical studies anchored in Corso & Corso (2011), Michèle Petit (2008, 2009), Jorge Larossa (2003) Judith A. Languer (2005) and Regina Zilberman (1989). The story, which takes place in 1893, deals with the story of Li Lan, a young woman who received the family a traditional education, but to live without prospects after his father's bankruptcy, receives a proposal able to change your life: behave a ghost bride. We conclude that the plot of novel not only shows the tradition of ghosts marriages of Asian culture, but also the human condition about the drastic changes that result in psychological transgression and renewal that each individual must overcome to make some decisions.

KEYWORDS: The ghost bride. Protagonist. Transgression. Reader.

1. INTRODUÇÃO

A literatura juvenil contemporânea vem ganhando novas proporções em nosso meio. O surgimento de obras com temáticas que discutem a relação do ser humano consigo, com o outro e com o mundo se destacam e tendem a se instalar nas mãos dos jovens leitores. Diante disso, pensamos que a leitura da literatura pode vir a auxiliar as pessoas a superarem qualquer tipo de adversidade. Dentre a produção que está ganhando espaço e direcionada ao público juvenil se insere a obra A noiva fantasma, da escritora Yangsze Choo.

Yangsze Choo é descendente de malaios, formou-se na Universidade de Harvard e ocupou vários cargos corporativos. Em 2015, lançou o livro A noiva fantasma, pela DarkSide Books. A literatura chinesa é pouco conhecida e difundida entre nós – o que nos inspirou a analisar a primeira obra de tal escritora publicada no Brasil.

Assim, neste artigo, se objetiva analisar o percurso psicológico da protagonista que, para não se submeter a um casamento de interesses, ultrapassa as barreiras da vida e da morte, a fim de fazer suas próprias escolhas. Entendemos que os acontecimentos que ocorrem na vida da personagem principal podem contribuir para que os leitores contemporâneos venham a se identificar com o texto.

Levando em consideração que é pela linguagem que a literatura e a cultura se manifestam, neste trabalho conduzimos uma análise da narrativa, dialogando com a teoria de Diana e Mário Corso (2011), Jorge Larossa (2003), Michèle Petit (2008, 2009), Judith Langer (2005) e Regina Zilberman (1989). É por meio da leitura literária que o leitor re(ordena) a percepção que possui do mundo, ampliando seus horizontes de expectativas. É o que se observa na obra a partir da protagonista Li Lan, que, ao tomar conhecimento da condição que está prestes a se submeter, luta com todas as forças para alterar o rumo de seu destino.

2. A FORMAÇÃO DO JOVEM LEITOR: ANALISANDO A NOIVA FANTASMA

A “Noiva fantasma” (2015) é o primeiro romance de Yangsze Choo publicado no Brasil. A obra é composta por quarenta capítulos ambientados em 1893, na Península Malaia, em que se observa além da cultura, uma crítica visceral e contundente à sociedade chinesa. O enredo da história se passa na cidade de Malaca, na Malásia, e tem início com um diálogo entre Li Lan – a protagonista e também narradora da história, uma bela jovem solteira de 18 anos e seu pai, um homem que se tornara recluso da sociedade após ter perdido a esposa em um surto de malária.

Sem dinheiro devido à falência, o pai da personagem principal passa dias enegrecidos por conta do uso de ópio e sobre uma proposta de casamento que recebera para sua filha: o de se tornar uma noiva fantasma. A partir disso, a protagonista enfrenta uma perseguição por parte do noivo fantasma, tudo porque ela se apaixona pelo primo de seu pretendente. Inesperadamente, um certo dia, Li Lan adentra no mundo dos mortos e, ao lado do amigo, Er Lang, passa por uma série de obstáculos para despistar Lim Tian Ching e regressar ao mundo dos vivos para ter o direito de fazer suas próprias escolhas.

Percebemos que a inserção de personagens que buscam por elas mesmas superar os percalços encontrados no caminho são cada vez mais constantes na literatura destinada aos jovens. Isso representa uma característica muito importante para os leitores (as) contemporâneos: o seu caráter emancipatório e um auxílio em sintetizar seus desejos, angústias, medos, sofrimentos, curiosidades, alegrias e tristezas orientando-os a dar significado a coisas e fatos, ao mesmo tempo, na sua relação com o outro.

Muitas destas histórias “denominadas juvenis apresentam marcas formais e temáticas diversificadas, apropriadas à faixa etária de seus leitores e inerentes ao contexto sociocultural em que transitam autores e receptores” (MARTHA, 2014, p. 12-13), tem sido alvo de análises devido à complexidade de seus temas. Nesse sentido, se debruçar sobre a obra de Choo é importante não só para compreender a essência do “eu” humano por meio das características representadas nas personagens, mas também porque a cultura chinesa e malaia acerca da vida e da morte percorre a obra do início ao fim. Isso faz com que a história de Li Lan não navegue somente na terra dos mortos, mas também pelos lugares mais secretos e delicados do nosso coração. Logo, conforme Diana e Mário Corso:

A experiência artística nos coloca em sintonia com a fantasia alheia, ela amplia os horizontes aos quais podemos chegar com o uso da própria imaginação e abre a possibilidade de questionar a realidade, tanto a pessoal como a coletiva (CORSO; CORSO, 2011 p.48).

O início da narrativa já é representativo de tais questões, pois apresenta o modo como o pai conta à filha da proposta que recebera da família Lim. As percepções da narradora e protagonista ganham as páginas da obra e, de certa forma, levam o leitor a questionar a situação em que se encontra Li Lan:

Uma noiva fantasma, Li Lan.”

Prendi a respiração enquanto virava uma página. Era difícil dizer quando meu pai estava brincando. Às vezes eu não tinha certeza se ele mesmo sabia. Ele fazia pouco caso de assuntos sérios, como nosso orçamento minguante, dizendo que não se importava em vestir uma camiseta puída nesse calor. Mas às vezes, quando o ópio o envolvia com seu abraço nebuloso, ele ficava quieto e distraído (CHOO, 2015, p. 9).

Se num espaço marcado pela desesperança no qual os adultos enfrentam crises para lidar com os problemas, o que pensar e dizer sobre uma adolescente? Logo, é a partir desse momento que a protagonista começa a despertar sua curiosidade para a família Lim, de quem partiu a proposta. Sempre estivera circunscrita ao lar, ao lado da ama e do pai, no entanto, a partir da situação econômica familiar, a protagonista não nutria esperanças de realizar um bom casamento. Com a proposta inesperada de ser tornar uma noiva fantasma, Li Lan decide visitar a mansão Lim e saber mais sobre essa família, a qual queria que ela fizesse parte.

Por meio dos dilemas que percorrem o interior da protagonista, vamos aprendendo, aos poucos, sobre a condição das mulheres na sociedade malaia do século XIX e sobre as crenças, valores, mitos e sistemas filosóficos que sustentam a submissão da mulher numa sociedade patriarcal. Chama a atenção, por exemplo, a descrição que ela faz da sua atuação nas competições voltadas às mulheres promovidas outrora na mansão Lim – disputas relacionadas aos afazeres domésticos e artesanais, sendo um indício de quão projetadas eram as atividades culturais a fim de reforçarem o papel de dona de casa das mulheres chinesas e malaias:

Para ela, a melhor parte da noite havia sido o fato de eu ter ganhado a competição. Eu fora forçada a contar aquilo diversas vezes, para seu deleite, e até a ouvira se gabando para o cozinheiro. Nunca havia me saído bem nas artes femininas, e suspeitava que Amah se sentia mal por causa disso. “Lendo, lendo!”, ela grunhia, e arrancava qualquer livro que eu tivesse em mãos. “Você vai estragar a vista, assim!” Uma vez argumentei que aquele trabalho de costura faria a mesma coisa, mas ela nunca me ouviu (CHOO, 2015, p. 49).

Michèle Petit (2008) afirma que a leitura tem o poder de despertar em nós regiões que estavam até então adormecidas e é o que acontece com a protagonista da história. Embora reclusa ao lar e com perspectivas financeiras em decadência, Li Lan não abandona a leitura e a capacidade simbólica que emerge dos livros, enquanto Amah gostaria que Li Lan fosse uma especialista nas tarefas femininas.

Assim, mesmo com todos os momentos de reclusão social vividos antes de receber a proposta, a protagonista possui uma válvula de escape: o mundo dos livros, o que, de certa forma, ajudou a moldar sua personalidade, evidenciada quando precisa correr contra o tempo, enfrentando os problemas que a cercam. A vida de Li Lan, então, começa a mudar. Sem receber a proposta, quem sabe, jamais conseguiria lutar contra a condição a ela destinada – por sua condição financeira, se tornar uma noiva fantasma. Em uma visita à mansão Lim, após várias perguntas da senhora Lim, mãe de seu pretendente, Li Lan percorre a casa e conhece o jovem Tian Bai, primo de Lim Tian Ching e, por ele se apaixona. Percebe-se o embaraço e, após, a leveza da protagonista quando conversam sobre a atividade do jovem – o conserto de relógios: “Eu realmente não deveria estar conversando com um homem jovem, ainda que fosse um criado, mas tendo ele voltado a se debruçar sobre a mesa, eu estava ainda mais à vontade” (CHOO, 2015, p. 23).

Ao saber do acontecido, Lim Tian Ching, o pretendente falecido, passa a invadir os sonhos de Li, tornando-os pesadelos correntes. Percebe-se que a obra rompe com alguns paradigmas da tradição chinesa, pois na maioria das sociedades em que casar uma pessoa viva com uma morta faz parte da cultura, o fantasma a atormentar os cônjuges vivos sempre foi do sexo feminino. Em uma entrevista, quando questionada sobre de onde veio a ideia para o livro, Choo enfatiza que:

As raízes talvez possam ser rastreadas até minha tese da universidade, quando eu quis escrever sobre opressão às mulheres – o papel histórico dos fantasmas femininos na cultura asiática. Eu tinha duas observações: 1) por que os fantasmas asiáticos pareciam ser muito mais aterrorizantes que os ocidentais; e 2) por que os piores eram sempre mulheres? 3

Li Lan incorpora, fielmente, uma jovem à frente de seu tempo que quer por ela mesma fazer suas próprias escolhas, transgredindo a tradição. Mas tal atitude implica numa série de dificuldades impostas a ela e aos envolvidos na proposta de casamento fantasma. A protagonista representa sua bravura ao se envolver cada vez mais com a situação quando permite que Lim Tian Ching invada mais seus sonhos. Porém, enuncia ao pretendente que não quer ser uma noiva fantasma, mesmo que ele insista: “Li Lam, sou um homem de palavras simples”, ele disse. “Você seria minha noiva?” “Não!” [...] “Eu não posso me casar com você.” (CHOO, 2015, p. 47).

Judith Langer (2011) assevera que é por meio da literatura que as pessoas encontram elas mesmas, imaginam como as outras são, valorizam as diferenças e buscam pela justiça e por uma melhor compreensão do futuro. Tais pessoas se tornam o tipo de pensadores literatos dos quais necessitamos para dar forma às decisões que moldam nosso futuro. A obra em análise representa esta característica para seus leitores, pois as personagens imersas no ambiente ficcional ganham vida ao se deparar com determinados problemas e precisam transgredi-los, como acontece com as pessoas do mundo real.

Li Lan precisa adentrar no lugar de onde o pretendente falecido a assombra, conhecer como funciona este outro mundo para não se tornar uma noiva fantasma. Nesse sentido, a protagonista representa as jovens mulheres contemporâneas, aquelas que primam por sua liberdade e que desejam tomar suas próprias decisões e escolher com quem irão se relacionar. Ao mesmo tempo, que a curiosidade a impulsiona, alguns questionamentos surgem na mente da personagem:

Às vezes eu me questionava se aquela imersão no mundo dos mortos não era um início de insanidade. Testei minha memória e chequei minhas pupilas, buscando sinais de loucura, mas eu não gostava de me olhar no espelho por muito tempo. Havia sombras demais. A única coisa que me consolava era o relógio de Tian Bai. [...] Na verdade, Tian Bai era a pessoa com quem eu realmente queria falar [...] (CHOO, 2015, p. 53).

Quando se intensificam os pesadelos com Lim Tian Ching, Li Lan ao lado de sua ama procura uma médium, que a orienta nos atos que precisa executar a fim de despistar o fantasma que a atormenta nos sonhos. A médium é a personagem que, por sua experiência, representa a avó, que aconselha a protagonista e passa a ela alguns rituais para desviar o pretendente fantasma de sua vida. Na cultura asiática, os familiares que ficam no plano físico queimam objetos e dinheiro para os que estão no plano espiritual, pois acreditam que, assim, os mortos passam habitar os mesmos lugares de quando estavam vivos, façam e comprem as mesmas coisas, só que em outro plano. É o que a médium aconselha Li Lan a fazer, pois de alguma forma já sabia que a protagonista passaria por complicadas situações no mundo dos mortos até atingir o amadurecimento.

O divisor de águas na vida da personagem principal acontece, então, quando toma mais do que a dose ideal do pó que a médium lhe dera. A finalidade era dormir e esquecer os fortes pesadelos da noite anterior, mas isso leva Li Lam ao coma no mundo dos vivos, passando a habitar livremente o mundo dos mortos. A conversa entre o médico e seu pai a deixa preocupada, pois seu espírito estava rondando e precisava retornar ao corpo. A partir disso, a protagonista decide que precisa fazer algo pelo seu corpo e sua alma, lutar contra uma condição que a prende entre a vida e a morte:

Essa conversa me deixou ainda mais convencida de que eu precisava fazer algo. Qualquer coisa. A catástrofe do meu desencarne havia ofuscado todas as demais preocupações, mas agora eu temia que essa minha forma me transformasse em presa fácil para Lim Thian Ching e seus esquemas (CHOO, 2015, p. 99).

A desencarnação é o início do amadurecimento e a inserção da protagonista no mundo dos mortos é um rito de passagem na resolução dos problemas de sua vida. Caso permanecesse entre os vivos, o pretendente fantasma habitaria cada vez mais seus sonhos e na condição de moça pobre acabaria se casando com Lim Thian Ching.

Se é a proposta de casamento fantasma que inicia uma crise existencial na escala subjetiva do “eu” de Li Lan, entre os mortos ela encontrará forças para compreender os outros e a si mesma. De acordo com Petit (2009), em algum momento da vida, cada um de nós é um “espaço em crise” e a protagonista parece estar nesse dilema. É exatamente o que, muitas vezes, acontece com as pessoas reais, pois em determinadas situações, precisamos abandonar a preocupação com a existência física e refletir sobre nossa essência, tendo em vista que grande parte dos problemas precisam ser resolvidos e superados dentro de nós mesmos.

Langer (2011) defende a tese de que a literatura propicia vivências na nossa vida e que

a “experiência subjetiva” acontece quando olhamos para dentro de nós mesmos na busca por significados e compreensões, quando trazemos novas experiências e idéias ainda mais para perto de nós mesmos, de modo que possamos “vê-las” de uma perspectiva interna [...]. Passamos a construir sentido e obtemos compreensão através da interiorização [...] (LANGER, 2011, p. 18).

De certa maneira, nesse caminho a percorrer, é Lim Thian Ching quem apresenta à Li Lan os problemas que, agora, habitam sua vida. A trajetória da protagonista na Malaca fantasmagórica vai além de lutar contra os medos que invadem seus sonhos e vão até a realidade de seus dias. Além de encontrar e contar com o apoio de sua mãe, Li Lam conhece Er Lang, uma espécie de “oficial do além”, um ser que transita entre os vivos e os mortos.

A jornada subjetiva da personagem se intensifica quando ela se dá conta de que o sistema do mundo dos mortos é similar ao dos vivos: é uma sociedade em que há casas, ruas, mansões, rios, pássaros e claro, as pessoas que outrora habitavam o mundo de cima, tudo semelhante ao lugar onde Li residia antes de abandonar seu corpo físico, mas sem saber como lidar com sua nova forma, vaga entre os dois mundos.

Petit (2008) afirma que a maioria dos jovens tem grande dificuldade de encontrar um lugar neste mundo, não só por razões econômicas, mas também afetivas, sociais, sexuais e existenciais. A protagonista só passa por determinadas experiências a partir do momento em que sai da casa do pai e passa a habitar a casa da família Lim e, consequentemente, a sociedade. A proposta de casamento fantasma não mostra somente a cultura asiática, mas também a possibilidade de a protagonista passar por alguns percalços, ultrapassá-los e atingir o amadurecimento - fora das paredes do lar.

Neste percurso, o encontro entre a protagonista e sua mãe evidencia que aquela está em fase de transição, pois após passar pelos conselhos da médium, que representa a avó, a personagem principal da obra necessita do convívio com a mãe, para concretizar o amor que as une e pelos conselhos maternos para seguir adiante em sua trajetória.

O encontro com a mãe preenche o abismo físico que se formou entre as duas devido à morte precoce da senhora Lan. Contar com o aconchego e com a ajuda da mãe, sabendo que sua escolha faria com que jamais a visse novamente, mostra que a protagonista está atingindo a emancipação, uma vez que o desaparecimento da mãe das páginas do livro evidencia que Li está apta a enfrentar seus monstros e fazer suas próprias escolhas.

Assim, é na Planície dos Mortos que a protagonista descobre os segredos que rondam sua família e a família Lim. Os acontecimentos encobertos a fazem descobrir que, em tempos de riqueza, era prometida a Tian Bai, o verdadeiro herdeiro dos Lim. Mas com a falência do pai, o jovem que Li ama é prometido a uma moça rica; à protagonista sobraria a proposta de casamento fantasma se não decidisse lutar com todas suas forças. As novas informações fazem com que Er Lang a ajude ganhar tempo para não ser designada às Cortes do Inferno, uma espécie de tribunal que decide se os seres em transição merecem voltar ao corpo físico ou habitar o lugar fantasma dos mortos eternamente.

Para descobrir se Lim Tian Ching foi realmente assassinado por Tian Bai, Li Lan entra na casa de seu pretendente mesmo temendo ser descoberta e correndo o risco de nunca mais regressar a seu corpo físico. Inicialmente, a protagonista se oferece para trabalhar como serviçal na mansão, mas ao descobrir que haverá uma festa, logo decide servir no salão e, mesmo com medo de ser pega de surpresa, enfrenta esse sentimento como evidenciam seus pensamentos:

Disse a mim mesma que não importava. Eles não me notariam, escondida no fundo da sala e vestindo um uniforme discreto. Ainda assim, minhas mãos tremiam enquanto eu fazia o trabalho. Não pensei que fossem as mesmas criaturas que eu vira de guarda na minha casa. Aqueles eram soldados rasos, enquanto esses dois tinham um aspecto de alto escalão. Rezava para que eles não me vissem, nem de relance (CHOO, 2015, p.210).

Mas, inesperadamente, no meio do salão, se depara com Mestre Awyoung, um senhor idoso que encontrara no início de sua jornada no submundo, mas que mentira sobre suas atividades no local. Consequentemente, Li Lan foi levada e trancada em um quarto e interrogada. Mas o momento de tensão acontece quando, após ser capturada novamente, acorda com alguém alisando seus cabelos e num momento de horror, grita aos se deparar com Lim Tian Ching. Nesse estágio, a protagonista enfrenta o ser que desde então mudou completamente a sua vida.

O embate entre ambos representa que Li Lan está madura para enfrentar seus medos como evidenciam as seguintes passagens do texto: “Não encoste em mim ! Você não tem o direito de me tocar!” “Como pode dizer isso? Você foi prometida para mim.” “Eu não prometi nada.” (CHOO, 2015, p. 244). É nesse momento que Li Lan tira todas as suas dúvidas acerca do assassino de Lim Tian Ching e ,como suspeitava, não fora Tian Bai o autor do crime.

A etapa de transgressão se direciona para o ápice quando, invocado pela personagem principal, Er Lang surge novamente e a ajuda a fugir do cativeiro na mansão Lim. Porém, a fuga da Planície dos Mortos para o mundo dos vivos não é fácil, uma vez que as bestas voadoras os perseguem até a passagem pelo túnel:

Com gritos agudos e lamentosos, lançaram-se sobre nós como criaturas esfomeadas. Não havia nada além de asas coriáceas, olhos penetrantes e bichos afiados feito lâminas. Não eram como nenhuma ave que eu já havia visto, com suas garras como foices. Um bico raspou meu rosto enquanto eu me encolhia atrás de Er Lang, usando seu corpo instintivamente como escudo [...].

Os pássaros o cercaram, com rasantes e ataques ferozes. A princípio, pensei que Er Lang estivesse em vantagem, porque muitas aves tombaram dos céus. Mas estavam em muitas. Eu mal podia vê-lo, por entre as formas negras que o atacavam, cortando-o impiedosamente até que gotas de um sangue negro escorressem pelo corpo escamado (CHOO, 2015, p. 262-263).

Após passar por esse estágio, a protagonista se questiona o que faria em Malaca sem Er Lang, uma vez que achava que ele tivesse padecido na Planície dos Mortos. Tal assertiva mostra que nasce um sentimento de Li Lan para com o ser que a ajudou nessa trajetória: “Ainda naquele momento eu queria voltar, procurar seu corpo, mesmo que fosse loucura. E se ele estivesse ferido, largado em algum lugar? Essa ideia me perturbava tanto que eu mal podia respirar” (CHOO, 2015, p. 265). Contudo, além da preocupação com seu amigo, Li Lan precisava reencontrar o caminho de casa na Malaca dos vivos. Esse outro caminho a percorrer evidencia que a personagem principal precisa aliar a emancipação subjetiva ao corpo físico, ou seja, uma vez resolvidos os problemas existenciais, a forma física é necessária para a concretização do ato.

Ao habitar novamente seu corpo físico, Li Lam reflete sobre todas as etapas que ultrapassou. A jovem, que outrora estivera apaixonada por Tian Bai, não vê mais nele a possibilidade para um relacionamento como mostram seus pensamentos que invadem as páginas do livro: “Nada me satisfazia como antes, nem mesmo Tian Bai. Ele vinha me visitar quase todos os dias, agradável e charmoso como sempre. Mas eu já não era a mesma garota que se impressionara por suas viagens e experiências no mundo” (CHOO, 2015, p. 310). De acordo com Silva, “transgredir limites é ação de teor iniciático, constitui um passo adiante no processo de maturação psicológica do transgressor” (SILVA, 2008, p. 61) e tal enunciado se percebe no texto analisado, uma vez que a protagonista perdeu a ingenuidade, justamente porque viveu as dificuldades que a sociedade lhe impôs e ao conduzir seu pretendente fantasma a outro redimensionamento, ultrapassou barreiras, adquiriu vivências.

De acordo com Langer (2011), a literatura exerce um papel fundamental na vida, mesmo que o sujeito, muitas vezes, não se dê conta, pois estabelece o cenário para que exploremos tanto a nós mesmos como aos outros, para que definamos e redefinamos a nós mesmos e aos outros, para que saibamos quem podemos vir a ser e como o mundo pode vir a ser.

Logo, a obra de Choo é uma produção literária importante, porque apresenta muitas das características das (os) jovens do mundo atual, a saber: seres humanos, que, embora tenham medos, frustrações, angústias, tristezas também possuem sonhos, desejos e força para se firmar na sociedade, encarando e ultrapassando os problemas da vida e fazendo por eles mesmos suas próprias escolhas.

Conforme Hans Robert Jauss (1989), a obra de arte tem função social. No contato com o texto, o sujeito rompe com seu individualismo e confronta-se com o outro; assim, a obra amplia os horizontes do leitor, emancipando-o. Com isso, Jauss (1989) divide a experiência estética em três categorias de fruição: Poiesis, Aisthesis e Katharsis, cuja concretização depende da participação e interação do leitor com a obra.

A Poiesis corresponde ao prazer, sendo compreendida no sentido aristotélico de “faculdade poética”; ela é produto da experiência do homem; é o prazer sentido pelo criador da obra ou pelo receptor que, em contato com ela, a recria. A Aisthesis, por sua vez, designa o prazer estético da percepção reconhecedora e do reconhecimento perceptivo, explicado por Aristóteles pela dupla razão do prazer ante o imitado; ela compreende a recepção prazerosa do objeto estético.

Por último, a Katharsis constitui o prazer provocado pelo discurso ou pela poesia, capaz de conduzir o ouvinte e o espectador tanto à transformação de suas convicções quanto à liberação de sua psique. É na katharsis que se encontra a função social da arte, a de emancipação, a qual, segundo Zilberman (1989), ao inovar, desafia um código existente, oferecendo a seu leitor novas dimensões existenciais. Por meio disso, libera esse leitor das presilhas cotidianas e da dominação do sistema vigente.

Com isso, as considerações sobre a obra e o receptor se tornam relevantes quando o assunto é a formação de leitores, pois

O fato revela o vínculo íntimo e umbilical que toda ação de ler estabelece não somente com o mundo dos objetos, mas principalmente com a linguagem. Emergindo esta da interação entre o ser humano e a realidade, sua existência não pode ser compreendida sem o ato de leitura, posto que é ele que está no bojo de um tal intercâmbio. Por sua vez, assistindo-se aí o nascimento da linguagem, verifica-se também que falar e ler a realidade implicam uma manifestação primordialmente verbal, de modo que, dentre as possibilidades de expressão, a língua é a que contém de maneira mais completa o produto destes contatos primordiais com o real (ZILBERMAN, 1989, p. 18).

Entendemos, então, que a obra com todos os seus componentes, enquanto literária, não existe até ser ativada pelo leitor. A obra é mais do que o texto; por isso, é só na concretização que ela se realiza. E a concretização é o processo que determina a atividade do leitor de preenchimento das lacunas ou vazios de um texto, caracterizando o processo de comunicação próprio à literatura.

Os acontecimentos que assolaram a protagonista fazendo-a enfrentar crises existenciais podem ser constantes na vida das pessoas reais. Um destes pontos foi o convívio com Er Lang, um ser meio humano, meio monstro, durante sua jornada no mundo dos mortos. Em meio a este processo, Li Lan dá-se conta que, após atingir o amadurecimento, que este é o companheiro ideal, pois esteve a seu lado durante toda a emancipação subjetiva:

Eu quero ver Er Lang. Não quero esperar cinquenta anos, nem enganar Tian Bai com um amor que ele nunca terá. Em meio à escuridão de milhares de almas, é a mão de Er Lang que eu busco, seu pulso firme que me tirou de tantos perigos. Um futuro incerto com ele, com todas as risadas e discussões, é melhor do que ser deixada para trás. Tendo resistido tanto a me tornar a noiva fantasma de Lim Tian Ching, não é nem um pouco engraçado que eu queira abandonar minha família por um homem que nem mesmo é humano. Quando Er Lang vier buscar sua resposta, direi que sempre pensei nele como monstro. E que desejo ser sua noiva (CHOO, 2015, p.337).

O perfil de Er Lang meio humano, meio monstro evidencia o que os seres humanos são em sua essência: pessoas duplas, nem boas nem más, que vivenciam conflitos tanto físicos quanto existenciais. Com isso, a leitura da obra “A noiva fantasma” pode auxiliar o leitor a enfrentar a vida, constituir-se como pessoa, possibilitar atitudes de libertação, como também favorecer a mobilização do ato de ler como forma de identificação, tendo em vista que a relação leitor-texto é de interação. De acordo com Jorge Larossa (2003), pensar a leitura como formação, implica pensá-la como uma atividade que tem a ver com a subjetividade do leitor, não com aquilo que ele sabe, mas com o que ele é. Assim, “trata-se de pensar a leitura como algo que nos forma (ou nos de-forma ou nos trans-forma), como algo que nos constitui ou nos coloca a questão do que somos4 (LAROSSA, 2003, p. 25-26).

Então, pode-se destacar a importância do texto literário no que se refere à formação de leitores, tendo em vista que a literatura funciona como um portal pelo qual podemos visualizar e compreender melhor o mundo real. De acordo com Petit (2008), a leitura contribui assim para criar um pouco de "jogo" no tabuleiro social, para que os jovens se tornem um pouco mais atores de suas vidas, um pouco mais donos de seus destinos e não somente objetos do discurso dos outros. Ajuda-os a sair dos lugares prescritos, a se diferenciar dos rótulos estigmatizantes que os excluem, e também das expectativas dos pais ou dos amigos, ou mesmo do que cada um deles acreditava, até então, que era o mais adequado para o definir.

Li Lan enfrentou os medos em todas as suas formas, desde a exclusão social quando circunscrita à casa do pai, à possibilidade de se tornar uma noiva fantasma, não viver o amor e perder, mesmo que, por um certo tempo, o seu corpo físico. Ao final, após uma longa, aventureira, perigosa e proveitosa jornada subjetiva, a protagonista se renova e rompe com uma tradição que se alastra pela Malásia ao longo dos anos, embora deixe claro que as diferenças humanas, sociais e sobrenaturais não são empecilho para a emancipação, para o amor e para a felicidade.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente artigo, objetivamos analisar a trajetória psicológica da protagonista da obra que, para não se submeter a um casamento de interesses, ultrapassa as barreiras da vida e da morte, com a finalidade de fazer por ela mesma suas escolhas, principalmente, com quem se relacionar e como isso faz com que o leitor da obra se identifique com as situações apresentadas.

Além disso, percebemos que “A noiva fantasma”, de Yangsze Choo se consolida como uma obra inovadora no cenário literário, justamente porque aborda um tema tradicional nas sociedades chinesa e malaia – o do casamento fantasma – mas, ao mesmo tempo, rompe com essa tradição, ao engendrar uma personagem que, ao ser condicionada a casar com uma pessoa já falecida, ultrapassa todas as barreiras psicológicas e constitui-se como sujeito que faz suas próprias escolhas. A obra de Choo é uma narrativa moderna na qual envolve uma personagem comum numa situação incomum. Com isso, analisar tal obra na atualidade se faz relevante, tanto para a fortuna crítica da escritora como para problematizar questões presentes no enredo.

A leitura da obra proposta neste artigo não é a única, tampouco seria nossa intenção esgotar as várias possibilidades de reflexão e discussão. Choo (2015) criou uma narrativa permeada de sentidos capaz de ser alvo de diversas interpretações, com base em diferentes abordagens teóricas.

Vale mencionar o quão importante determinados fatores citados como a condição e submissão da mulher na sociedade oriental no século XIX são para a compreensão integral da obra, visto que numa sociedade patriarcal, o destino de jovens mulheres é definido pelos caprichos, interesses econômicos e desejos de status e elevação social, no lugar do respeito por sua liberdade, individualidade e personalidade.

Mesmo que temporariamente, Li Lan se torna vítima de um sistema que já dura gerações, o que origina a perspectiva de uma vida infeliz, uma vez que a protagonista não se conforma e luta contra esta condição – o que a faz amadurecer psicologicamente.

Portanto, por meio desta análise, percebemos que a produção literária de Yangsze Choo coloca em destaque a personalidade dos jovens contemporâneos: pessoas comuns que são atingidas, a todo momento, por sentimentos diversos e que precisam enfrentar com coragem determinadas situações para, então, atingirem o amadurecimento pleno. A jornada subjetiva a qual Li Lan foi submetida pode colaborar para que muitos leitores busquem por sua liberdade, independência e felicidade, constituindo-se como protagonistas de suas ideias, opiniões e decisões.

REFERÊNCIAS

CHOO, Y. A noiva fantasma. Trad. Leandro Durazzo. Rio de Janeiro: Dark Side Books, 2015.

CORSO, D.; CORSO. A psicanálise na terra do nunca: ensaios sobre a fantasia. Porto Alegre: Penso, 2011.

ENTREVISTA COM YANGSZE-CHOO. Disponível em: http://nerdgeekfeelings.com/2015/07/12/livro-a-noiva-fantasma-entrevista-com-yangsze-choo/ Acesso em: 10. Jan. 2016.

LANGUER, J. Pensamento e experiência literários: compreendendo o ensino de literatura. Trad. Luciana Lullhier e Maria Lúcia Bandeira Vargas. Passo Fundo: Editora da UPF, 2005.

LAROSSA, J. La experiência de la lectura. México: FCE, 2003.

MARTHA, A. A. P. A narrativa juvenil contemporânea revisita a história: Sem ordem, Sem lugar, Sem rir, Sem falar, de Leusa Araujo. In: AGUIAR, Vera. Teixeira de.; MARTHA, Alice Áurea Penteado. Literatura infantil e juvenil: leituras plurais. 1. Ed. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014.

PETIT, M. A arte de ler ou como resistir à adversidade. Editora 34, 2009.

PETIT, M. Os Jovens e a leitura. Editora 34, 2008.

SILVA, V. M. T. O universal e o local: raízes e frondes do imaginário infantil. In: SILVA, Vera Maria Tietzmann. Literatura infantil brasileira: um guia para professores e promotores de leitura. 2. ed. rev. Goiânia: Cânone Editorial, 2009. p.53-67.

ZILBERMAN, R. Estética da recepção. São Paulo: Ática, 1989.



1 Doutoranda em Letras pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Docente do Instituto Educacional Santa Catarina (IESC) – Faculdade Jangada, de Jaraguá do Sul e do Centro Universitário Católico de Santa Catarina, câmpus de Jaraguá do Sul, Brasil. deisil.zanatta@gmail.com

2 Doutora em Letras – Teoria Literária pela PUC RS. Docente do programa de pós-graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF) e Coordenadora das Jornadas Literárias de Passo Fundo, Brasil. fabianevb@uol.com.br


3 http://nerdgeekfeelings.com/2015/07/12/livro-a-noiva-fantasma-entrevista-com-yangsze-choo/

4 Trad. nossa.