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LINDAS, “SEXYS” E PERIGOSAS: ANÁLISE DA
VILANIA FEMININA EM CELEBRIDADE E AMOR À
VIDA
Rondinele Aparecido Ribeiro
(rondinele-ribeiro@bol.com.br)
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RESUMO: O artigo tece considerações acerca das personagens vilãs de duas telenovelas
exibidas pela Rede Globo. O estudo constatou que a vilania na teleficção contemporânea
reconfigurou-se de tal forma que passou a empregar personagens mais densas,
problemáticas, ambivalentes e fragmentadas. Nas duas telenovelas, o desejo de ascensão é
justificado pela vingança levada até as últimas consequências. O presente estudo está
ancorado nas pressuposições de Brait (2017), Candido (2014), Pallotinni (2012), entre
outros, a fim de encontrar uma fundamentação adequada sobre a (re)constituição da
personagem da teleficção contemporânea marcada por uma excessiva performance do
gênero, que justifica sua atitude pelo ideal de vingança.
Palavras-chave: Telenovela. Personagem. Vilania.
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O autor:
Mestrando em Letras pela UNESP-ASSIS (linha Literatura e Estudos Culturais). Membro
do GP Cultura Popular e Tradição Oral: Vertentes. Especialista em Cultura, Literatura
Brasileira e Língua Portuguesa.
Como citar este artigo:
RIBEIRO, R. A. Lindas, “sexys” e perigosas: análise da vilania feminina em Celebridade e
Amor à vida. Revista Diálogos, v. 7, n. 1, 2019.
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1. INTRODUÇÃO
O presente artigo intenciona analisar a trajetória de duas personagens vilãs da
teledramaturgia brasileira: Laura, vilã da telenovela Celebridade e Aline, vilã da telenovela
Amor à Vida. A escolha das duas personagens se deve pelo fato delas terem características
muito próximas ao agirem movidas pelo ideal de vingança. Dessa forma, o artigo tecerá
algumas considerações acerca da personagem e, por fim, enfocará como ocorreu a
representação da vilania feminina das personagens apontadas nas duas telenovelas, objeto
do presente estudo.
Enquanto narrativa complexa no cenário contemporâneo, a teleficção envolve os
mesmos componentes estruturais presentes nos textos escritos (suas matrizes por
excelência). Dentre esses elementos, inclui-se a personagem, categoria que possibilita a
existência do enredo, conforme defende Candido (2014). Beth Brait (2017), ao se referir a
esse elemento da narrativa, explica que a personagem é um habitante da realidade
ficcional. Para a autora, a matéria e o espaço em que habitam são diferentes dos espaços
dos seres humanos, embora as duas realidades mantenham uma relação imanente.
Uma constatação facilmente observada nos traços das personagens de ficção é a
reconfiguração da personagem vilã nas telenovelas contemporâneas. De modo geral, as
produções estão repletas de vilãs belas, “sexys”, vingativas, invejosas, arrivistas, frias,
inconsequentes e vulgares. Como se trata de um gênero de forte aceitação no cotidiano dos
brasileiros, a telenovela, enquanto componente cultural, fornece referências para o
imaginário nacional e pode ser enquadrada como um componente de memória, como
teorizado por Lopes (2014).
Basta se fazer uma pesquisa com o telespectador para se constatar a forte presença
no imaginário popular de personagens vilãs, que nutrem fortemente a memória da
telenovela no cotidiano do brasileiro. Odete Roitman, Nazaré Tedesco, Adma, Altiva,
Laura, Aline, Branca, Tereza Cristina, Flora, Carminha, Clara, Magnólia são vilãs
facilmente lembradas pela memória do receptor. Esse aspecto revela que a projeção dada às
vilãs, personagens complexas que tipificam ações marcadas por um jogo duplo em que a
moral é questionada e representada sob uma perspectiva cambiante na qual transparece os
dilemas de uma sociedade cada vez mais complexa, reconfigurou-se suplantando até
mesmo a projeção dada à vilania masculina.
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2. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A PERSONAGEM DE FICÇÃO
Elemento narrativo de suma importância, a origem do vocábulo personagem como
explica Coutinho (2008, p.52) está atrelada ao vocábulo persona, máscara no teatro grego
que se associava a um papel dramático. Nessa fase, não ocorria relação do ator com o
papel, contudo, aos poucos, passou a ocorrer a associação de pessoa com persona,
responsável pela identificação do ator com a personagem.
Ao definir essa instância, Candido (2014) defende a tese de que a personagem é um
ser fictício, mas construído de tal maneira pelo autor que, em muitos casos, esse elemento
da narrativa se comporta como uma extensão humana. Dessa forma, a personagem de
ficção é um ser envolto nas ações criadas pelo escritor e que figurativa as ações
estruturantes da narrativa.
Na tentativa de elucidar a importância dessa instância. faz-se necessário tecer
considerações acerca da personagem. Assim, recorrem-se às teorizações advindas de
estudiosos como Candido (2014), Brait (2017), Prado (2014), Pallottini (2012), entre
outros. Sobre a personagem de ficção, Brait (2017) explica que é impossível se pensar na
categoria personagem sem percorrer os caminhos trilhados pela crítica. Assim, de acordo
com a estudiosa, pensar num referencial teórico sobre essa instância narrativa, deve-se
voltar para o pensamento grego antigo. “No caso da personagem de ficção, é também nesse
momento que vai encontrar o início de uma tradição voltada para o conhecimento e a
reflexão dessa instância narrativa” (BRAIT, 2017, p.38).
De acordo com a autora, Aristóteles foi o primeiro a tratar desse termo, quando
defendeu a semelhança entre a personagem e a pessoa num conceito amplamente discutido,
e, às vezes, mal compreendido: mimesis aristotélica. Os conceitos propostos por
Aristóteles serviram como base para a concepção de personagem até o século XVIII,
“momento em que o conceito de mimesis flagrado no pensador grego e manipulado por
seus interpretadores começa a ser combatido” (BRAIT, 2017, p. 44).
O poeta Horácio (65-8 a.C), além propagar as ideias de Aristóteles, reiterou suas
proposições acerca da personagem. O poeta acabou associando o aspecto de entretimento,
característica típica da literatura, a uma função pedagógica. Assim, o poeta acabou
aproximando o conceito de personagem ao aspecto moral desses seres ficcionais. Horácio
concebe a personagem não apenas como reprodução dos seres vivos, mas como modelos a
serem imitados, identificando personagem-homem e virtude advogando para esses seres o
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estatuto de moralidade humana que supõe imitação” (BRAIT, 2017, p. 44). Para a autora, o
pensamento do poeta contribui para uma tradução empenhada em conceber a personagem a
partir de elementos humanos.
A partir da segunda metade do século XVIII, a concepção de personagem se
reconfigurou. Assim, o ideal herdado de Aristóteles e Horácio entrou em declínio, cedendo
espaço para uma concepção na qual essa instância passou a ser associada a um viés
psicologizante, que relaciona a personagem a uma representação do universo psicológico
de seu criador.
Brait (2017) explica os elementos contextuais que influenciaram essa mudança de
perspectiva:
É nesse momento que o sistema de valores da estética clássica começa a
declinar, perdendo a sua homogeneidade e sua rigidez. É também nesse
momento que o romance se desenvolve e se modifica, coincidindo com a
afirmação de um novo público o público burguês -, caracterizado entre
outras coisas, por um gosto artístico particular (BRAIT, 2017, p. 46).
No século XX, a prosa de ficção sofre grandes mudanças estruturais surgidas a
partir de renovações experimentações narrativas. A concepção de personagem, nesse
contexto, é ampliada sobretudo pelas contribuições de Gyorgy Lukács (1885-1971). Em
sua obra intitulada Teoria do Romance, o autor encara esse gênero literário como uma
forma de narrativa responsável pelo confronto direto entre o herói problemático e o mundo
do conformismo e das convenções. Para Lukács, o herói problemático (também chamado
de herói demoníaco) está a todo momento em comunhão e oposição ao mundo, o que
revela os aspecto ambivalente dessa narrativa.
A obra de Forster (1897-1970) intitulada de Aspectos do Romance avançou na
categorização da personagem. O autor incluiu na sua classificação a personagem plana e a
personagem esférica. Como explica Brait (2017, p. 49), Forster (1998) encarou a intriga, a
história e a personagem como os três elementos estruturais essenciais ao romance e
defende o ser fictício como um componente básico da narrativa:
Essa concepção, que encara a obra como um sistema e possibilita a
averiguação da personagem na sua relação com as demais partes da obra,
e não mais por referência a elementos exteriores, permite um tratamento
particularizado dos entes ficcionais como seres de linguagem, e resulta
numa classificação considerada profundamente inovadora naquele
contexto (BRAIT, 2017, p. 49).
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De acordo com a categorização de Forster (1998), a personagem plana é aquela
facilmente reconhecida, que sua arquitetura é marcada pela estaticidade e pouco
densidade. Por sua vez, a personagem esférica, seria aquela complexa, marcada pela
densidade e por aspectos ambivalentes.
A partir das teorizações de Forster (1998), Candido (2014), cria duas
categorizações, que muito se assemelham aos ideais propostos pelo crítico inglês. Para
Candido (2014), a personagem pode ser classificada como personagens de costumes ou
personagens de natureza. Para o crítico brasileiro, as personagens de costumes são aquelas
com características e traços fortemente definidos, os quais são capazes de influenciar o
desenrolar das ações. Os traços dessa personagem, para o crítico, são estáticos e se revelam
com antecedência de tal modo que o leitor se identifica e tenha a convicção de que a
personagem tem os seus traços da maneira como se apresentou desde o início da narrativa.
Por sua vez, Candido (2014) encara as personagens de natureza como aquelas construídas
ao longo da narrativa, que não revelam traços identificáveis acerca de seu caráter. São
personagens complexas e multifacetadas, haja vista não se apresentarem de forma regular
na narrativa.
Ainda sobre a categorização da personagem Brait (2017) discute a particularidade
da imitação da realidade ser representada de tal forma que as ações das personagens muito
se assemelharem às pessoas. Dessa forma, a autora comenta acerca da construção e da
análise de personagens:
A construção de personagens obedece a determinadas leis, cujas pistas só
o texto pode fornecer. Se nos dispusermos a verificar o processo de
construção de personagens de um determinado texto e, posteriormente,
por comparação, chegarmos as linhas mestras que deflagram esse
processo no conjunto da obra do autor, ou num conjunto de obras de
vários autores, temos que ter em mente que essa apreensão é ditada pelos
instrumentos fornecidos pela análise, pela perspectiva crítica e pelas
teorias utilizadas pelo analista (BRAIT, 2017, p. 89).
Para Brait (2017), é perfeitamente possível classificar a personagem a partir de sua
relação com o narrador, já que, para ela, a personagem pode figurar na narrativa como um
ser que apenas vive a história ou como um ser que narra o enredo. Dessa forma, Brait
(2017) classifica o narrador em primeira pessoa como a personagem câmera e o narrador
em terceiro pessoa como se fosse uma câmera, que finge os registros na construção das
personagens. Sobre o narrador, o ponto de vista da autora está associado à concepção de
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que um condutor da narrativa por um narrador em primeira pessoa implica
obrigatoriamente sua categorização como uma personagem envolvida com os fatos que
estão sendo narrados:
A condução da narrativa por um narrador em primeira pessoa implica,
necessariamente, a sua condição de personagem envolvida com os
acontecimentos que estão sendo narrados. Por esse processo, os recursos
selecionados pelo escritor para descrever, definir, construir os seres
fictícios que dão a impressão de vida chegam diretamente ao leitor
através de uma personagem (BRAIT, 2017, p. 83).
A partir das explicações da crítica, percebe-se que o narrador em primeira pessoa é
aquele que vive as ações ocorridas no texto e, ao mesmo tempo, cumpre o papel de contar
o que viveu nessa história. Por sua vez, o narrador em terceira pessoa é visto por Brait
(2017) como uma câmera privilegidada, a qual simula um registro contínuo, focalizando
a personagem nos momentos precisos que interessam ao andamento da história e à
materialização dos seres que a vivem” (BRAIT, 2017, p. 77). Assim, para a estudiosa, o
narrador em terceira pessoa é aquele que não vivencia a história, mas sim um elemento
que, do lado de fora dos acontecimentos, observa tudo o que acontece e narra os fatos
como se estivesse distante das personagens. Enfim, apenas observa e narra os fatos como
ações, tempo e espaço.
A personagem de teleficção, por sua vez, apresenta uma forma característica de
análise que a difere do romance ou do conto. Prado (2014), ao analisar a personagem de
teatro, aponta relações de aproximação entre a peça e o romance: “ambas, em suas formas
habituais, narram uma história, contam alguma coisa que supostamente aconteceu em
algum lugar, em algum tempo, a um certo número de pessoas” (PRADO, 2014, p. 83). Ao
comparar as personagens dos dois gêneros, o autor assevera que no teatro, a personagem
constitui a totalidade da obra, uma vez que nada existe, a não ser por intermédio delas.
Para Cristina Costa (2000, p.158), são bastante perceptíveis as relações estruturais
que ocorrem entre a telenovela e o teatro. A estrutura narrativa é essencialmente
dramatúrgica a divisão dos capítulos em blocos, em cenas, a narrativa tendo por base
cenários internos ou sets, a ênfase no desenvolvimento psicológico das personagens como
base da interpretação evidenciam nítida influência das artes cênicas (COSTA, 2001, p.
159). Por esse motivo, é perfeitamente possível aproximar a categorização da personagem
de teatro proposta por Prado ao gênero telenovela.
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O crítico, ao fundamentar suas considerações acerca da personagem de teatro,
explica: “A personagem teatral, portanto, para dirigir ao público, dispensa a mediação do
narrador. A história não nos é contada, mas mostrada como se fosse de fato a própria
realidade” (PRADO, 2014, p. 84). Estabelecendo-se um paralelo entre a personagem
teatral e a personagem de teleficção, percebe-se uma aproximação entre elas, haja vista a
teleficção operar com a mesma categorização, uma vez que representa comportamentos
humanos por meio do próprio homem, ou seja, a presença de uma personagem
representada por um ator cuja finalidade é viver o enredo de modo muito similar à
realidade.
Enquanto gênero híbrido, a telenovela tem sua estrutura alicerçada na grande
tradição narrativa herdada de vários gêneros, como o folhetim, o melodrama, a radionovela
e a soap opera. Enquanto narrativa audiovisual, ela traz em seu bojo fundamentos das
narrativas primordiais, sendo que sua trajetória deve ser explicada pela sincronização de
linguagens, principalmente, do cinema e do rádio. Sadek (2008, p. 17), ao se referir à
telenovela, explica que o gênero pode ser incluída em umas das mais antigas tradições da
espécie humana: a de contar e ouvir histórias. Assim, para o autor, “ela tem um passado
significativo, que começa com a primeira narrativa” (SADEK, 2008, p. 17).
Ainda acerca da especificidade da telenovela em se constituir como um gênero
narrativo, Tuft (1995, p. 34) adota a concepção de que a telenovela se constitui como “um
moderno contador de histórias”. Para o autor, esse gênero é uma extensão das histórias
contadas oralmente: “São narrativas melodramáticas que além de serem produtos
comerciais surgiram da história da cultura popular. Elas possuem matrizes históricas em
antigas tradições de contar histórias verbalmente e literariamente, assim como em
contagem de histórias via mass media mais recente” (TUFT, 1995, p.36).
Como explica Andrade (2014), o Brasil ingressou no cenário da modernidade
conjugando em sua cultura o ideário veiculado pela televisão com a longa tradição oral, o
que significa que o país não abandonou sua cultura oral. Dessa forma, o hábito de assistir à
televisão e acompanhar o desenrolar das histórias seriadas seria uma espécie de oralidade
secundária fundada nos dispositivos midiáticos responsáveis pela reatualização de mitos
um universo oral.
Avançando na teorização acerca da categoria personagem, é oportuno recorrer a
Brandão e Fernandes (2015). Para os estudiosos em questão, a personagem é uma actante:
“a personagem é uma actante, uma agente, e se define por uma série de traços distintivos:
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herói/ vilão, mulher/homem, criança/adulto, enamorado/não enamorado etc” (BRANDÃO;
FERNANDES, 2015, p. 44).
Ao definir a personagem, a estudiosa Renata Pallotini (2012) explica que “a
personagem é um ser de ficção, humano ou antropomorfo, criado por um autor e filtrado
por ele. A personagem é a imagem de um ser, ou vários seres, que passa pelo crivo de um
criador”. “A personagem de teleficção nos parece hoje, e cada vez mais, aquele ser fictício
criado para representar histórias, que nasce no papel (ou no computador) e do qual o ator
se apodera para levá-lo ao público” (PALLOTTINI, 2012, p. 122). Como um elemento
primordial da narrativa audiovisual, pode ser visto como elemento capaz de representar as
ações propostas pelo enredo.
3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A VILANIA NA TELEFICÇÃO
Presente no Brasil desde 1951, ano em que ocorreu exibição da telenovela Sua Vida
me Pertence, decorreram seis décadas de exibição incessante desse verdadeiro “folhetim
repaginado”. Inicialmente concebido como um produto destinado a mulheres, a telenovela
não era o gênero de maior sucesso na grade da programação televisiva brasileira, uma vez
que lhe era atribuído o rótulo de produto melodramático e evasivo.
Ao longo de sua trajetória, o gênero diluiu sua extensa carga melodramática e
incorporou aspectos mais cotidianos da sociedade brasileira responsáveis para que o
público se identificasse com o enredo apresentado. Outra alteração na estrutura do gênero
foi a adoção do formato diário responsável por suplantar o formato “ao vivo”, que imperou
nos primeiros dez anos de existência da telenovela no Brasil. Também se pode acrescentar
a adoção de uma linguagem própria para o formato e a incorporação de aparatos
tecnológicos, os quais foram responsáveis por ditar o caráter industrial desse folhetim
repaginado.
Como destacam Hummell e Alvetti (2007, p. 255), a presença de uma personagem
vilã nutre o imaginário social desde a gênese da narrativa. Dessa forma, passando pela
literatura, pelos jogos eletrônicos e por qualquer forma de narrativa, tem-se a presença de
um elemento para se opor ao protagonista. Nas telenovelas, essa característica não poderia
ser diferente, já que a teleficção traz em seu bojo toda a história da longa tradição narrativa
marcada pela sincronização de linguagens. Dessa forma, analisar a imagem da vilania na
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telenovela é se deparar com uma categoria antitética: rejeição e aceitação pelo público, que
são trazidas para a temática de observação da vilania.
Para Brandão e Fernandes (2015, p. 46), o vilão corresponde a uma criação do
melodrama presente nas narrativas folhetinescas do século XIX em que os aspectos
maniqueístas eram simplificados para serem assimilados facilmente pelo público. Dessa
forma, tratar acerca da personagem de telenovela é impossível sem que se escreva sobre o
melodrama. Para Martín-Barbero (2001), o que se convencionou denominar de melodrama
tem sua gênese no ano de 1790 em dois países: Inglaterra e França. Consistindo numa
forma de teatro de cunho popularesco centrada nas discussões temáticas relacionadas a
novas formas comportamentais que estavam em vigor na época.
Para Martín-Barbero (2001), ocorre uma verdadeira relação com a sociedade, que
passou a se identificar com os personagens bem como com os enredos encenados. Dessa
forma, pode-se entender que o melodrama se tornou uma arte massiva que se produzia
tendo como público alvo a população menos culta. Essa situação grassou em uma época
em que ocorreu a proibição de peças de cunho popularesco devido ao projeto político do
governo francês em tentar controlar a revolta popular. Desse fato, permite-se a seguinte
conclusão: as peças de cunho oficial eram destinadas ao público elitizado, o que acabava
excluindo o restante da população.
Como características, o melodrama se valia de representações carregadas de carga
de sentimentalidade. Enquanto gênero de cunho popular devido a aproximação que causa
ao leitor, o melodrama consagrou-se. Sua estrutura fundamentava-se em torno do conflito
maniqueísta que se estabelece entre bem e mal bem como de marcas típicas de oralidade,
perfazendo um jogo estético e de juízos morais, jogos sentimentais com a intensificação
das virtudes das personagens. “Apelando para a polarização ou hiperdramatização das
forças em conflito, o melodrama faz parte de um sistema estético coerente, com um
repertório mais ou menos fixo de histórias exemplares” (COSTA, 2001, p. 49).
Fazendo uma análise acerca do melodrama, é perfeitamente possível concluir que o
gênero está associado à execução de um espetáculo cuja finalidade é emocionar. Como a
fórmula para conseguir a identificação com o público se demonstrou eficaz, surgem na
ficção um conjunto de histórias que estimulam e aguçam a curiosidade do leitor, o qual
deseja ser surpreendido sempre com boas doses diárias de promoção à ficção. Tal público
se mostra com verdadeiro espectador de cenas e está pronto para compartilhar todo um
universo repleto por momentos lacrimosos e, ao mesmo tempo, cheios de nostalgia.
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O melodrama enquanto gênero foi apropriado pela cultura de mídia e se tornou um
forte constituente nos meios de comunicação. “A espetacularização da vida, típica do
melodrama teatral, expandiu-se para o cinema e para a televisão. Os enredos das
telenovelas são trabalhados com esmero para sensibilizar o telespectador a cada desfecho,
a cada nova situação surpreendente” (BRANDÃO; FERNANDES, 2015, p. 47).
Na teleficção, o gênero encontrou espaço privilegiado, tanto é que as primeiras
produções da primeira década eram marcadas pelo aspecto melodramático com uma
definição bem delineada acerca do herói e do vilão. Sobressaiu, nessa fase, as telenovelas
escritas por Glória Magadan, autora pioneira na autoria de telenovelas e responsável por
inúmeros sucessos na teledramaturgia nacional marcados pelo viés melodramático. Por
esse motivo, suas produções eram conhecidas como “romances de capa e de espada”.
Nas palavras de Brandão e Fernandes:
O antigo gênero irrompeu nos meios de comunicação contemporâneos,
migrando no encalço do seu público e abrindo espaço para a face
emocional, para o exagero, para a beleza da cena, voltada para o
acontecimento de impacto. A maioria das tramas não pretende indicar
ensinamentos morais, mas na forma, na linguagem principalmente, quer
encantar a audiência, fascinar com seus discursos inconclusivos e belas
imagens aos moldes melodramáticos (BRANDÃO; FERNANDES,
2015, p. 47).
Brandão e Fernandes (2015) explicam que nas duas primeiras fases da telenovela
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as personagens vilãs eram essencialmente masculinas. A figura feminina ficava restrita a
disputas amorosas típicas da representação maniqueísta. Nas telenovelas de Janet Clair, por
exemplo, a vilania era um traço masculino exercido com traços de ambiguidade, violência,
obstinação e subjugação, como Cristiano (Selva de Pedra). “Mas, mais que contraponto ao
protagonista, esse vilão serve à novela para pôr em pauta os temas que tendem a provocar
discussões éticas e morais, em geral desencadeadas pela luta do bem contra o mal, que ele
representa” (BRANDÃO; FERNANDES, 2015, p. 260).
Brandão e Fernandes (2015), ao explicarem o sucesso da telenovela, associam-na
ao melodrama. Para os autores, o melodrama migrou para os meios de comunicação de
massa contemporâneos e abriu espaço para a face emocional, para os traços exagerados e
para a beleza da cena, cada vez mais centrada no acontecimento do impacto. “A maioria
das tramas não pretende indicar ensinamentos morais, mas na forma, na linguagem
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Maria ImmacolataVassallo de Lopes dividiu a história do gênero no país em 3 fases: Sentimental (1951-
1967), Realista (1968 1990) e Naturalista (a partir dos anos 1990).
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principalmente, quer encantar a audiência, fascinar com seus discursos inconclusivos e
belas imagens aos moldes melodramáticos” (BRANDÃO; FERNANDES, 2015, p. 47).
Notoriamente, à medida que a telenovela passou a dialogar de maneira mais visível
como a sociedade, captando e fornecendo referências sobre aspectos inerentes de uma
sociedade que se modernizou e se inseriu no cenário global, a presença da vilania feminina
passou a ser expressa de forma mais acentuada.
4. A REPRESENTAÇÃO DAS PERSONAGENS VILÃS LAURA E ALINE:
SEDUTORAS, MAS PERIGOSAS
Para Hummell e Alvetti (2007), a notoriedade dada à personagem vina teleficção
pode ser explicada devido ao aspecto performático do gênero responsável por alimentar o
ideário do telespectador. As personagens vilãs se apresentam como força melodramática.
Sua função é se opor ao purismo e à visão idílica manifestada pela protagonista.
Apresenta-se com traços inescrupulosos, hipócritas movidas pela ambição, inveja e pela
inconsequência, ingredientes fundamentais para garantir o sucesso das tramas numa
sociedade em que a espetacularização da vida ganhou contornos expressivos. “A
espetacularização da vida, típica do melodrama teatral, expandiu-se para o cinema e para a
televisão. Os enredos das telenovelas são trabalhados com esmero para sensibilizar o
telespectador a cada desfecho, a cada nova situação surpreendente (BRANDÃO;
FERNANDES, 2015, p. 47).
A concentração da figura da vilania no papel feminino nas telenovelas
contemporâneas não significa a supressão dos vilões, mas sim uma reconfiguração de
ações. Se nas telenovelas Realistas, as personagens vilãs ganharam destaque, nas
telenovelas Contemporâneas ou Naturalistas, produzidas a partir dos anos 1990, a vilania
se revitaliza com contornos mais acentuados.
Para Hummell e Alvetti (2007), o papel da personagem vilã extrapola a mera
função de se opor ao protagonista. Sua inserção na telenovela está ligada à visibilidade e à
abertura para a discussão de temas que tendem a provocar a discussão ética e moral na
sociedade cristalizadas na visão maniqueísta. Ademais, as telenovelas passaram a
empregar “vilãs com traços bem demarcados, movidas por egoísmo, vaidade, desejo de
vingança, questões que o senso comum tende a associar ao feminino” (HUMMELL;
ALVETTI, 2007, p. 257).
Brandão e Fernandes (2015), resumem os traços da vilania feminina na atualidade:
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1) São mulheres e não homens que protagonizam a vilania em confronto
com o ator/atriz principal; 2) Ações típicas: mentir trapacear, manipular,
trair; 3) Objetivo: dinheiro e poder; 4) São belas e sedutoras; e 5) Agem
com requintes de banditismo: manipulam armas, planejam sequestros,
roubos e assassinatos (BRANDÃO; FERNANDES, 2015, p. 55).
Os traços apresentados pelos estudiosos são facilmente identificados nas vilãs das
telenovelas Celebridades e Amor à Vida. Em ambas as produções, a vilania é justificada
pelo desejo de vingança que Laura (Cláudia Abreu) e Aline (Vanessa Giácomo) nutrem
pelos rivais. No caso de Celebridade, a protagonista Maria Clara é alvo de todas as
maldades arquitetas por Laura para se apropriar da fama da rival; Em Amor à vida, Aline
mantém a obstinação em provocar a ruína de César (Antônio Fagundes), médico e
empresário responsável pela morte de sua mãe.
Exibida em 2004 pela Rede Globo de Comunicação, Celebridade foi uma
telenovela urbana cujas ações se passam no Rio de Janeiro. A temática da telenovela
abordava o jornalismo, a apropriação da fama e a ascensão social. Na telenovela em
questão, a vilania foi extremamente justificada pela rivalidade entre Laura e Maria Clara
(ex-modelo) dona da produtora Mello Diniz.
Laura é apresentada desde o início como uma personagem arrivista, invejosa e
inconsequente, que se aproxima de Maria Clara como forma de conseguir um emprego na
empresa da protagonista a fim de iniciar seu projeto de vingança. Ela julga-se injustiçada
por ser filha da verdadeira musa da canção responsável pela ascensão social de Maria
Clara. Enquanto isso, Laura passou por uma vida marcada pela miséria.
Juntamente como seu comparsa Marcos (Márcio Garcia), a vilã consegue ingressar
no cotidiano de Maria Clara. Laura passa a ser assistente pessoal da empresária e o
comparsa será o motorista. A antagonista associa-se também a outros personagens, que
tinham interesse em causar a decadência da protagonista. Assim, tem-se Renato Mendes
(Fábio Assunção), típico mau caráter que frequenta um mundo requintado, mas se envolve
no submundo da prostituição e do crime. Sua aparência física desperta bastante atenção por
ser bonito e charmoso, mas de atitudes extremamente condenáveis. Atua ora como
antagonista ora como parceiro de Laura.
A personagem Beatriz, interpretada por Débora Evelyn, é uma parceira bastante
poderosa da vilã, que se une a ela com o intuito de afastar seu marido, Fernando
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(interpretado por Marcos Palmeira) e para evitar que ele não descubra um segredo de não
ser o verdadeiro pai de um dos filhos do casal.
Ana Paula é uma mulher invejosa, que luta por ser aceita como irmã de Maria
Clara. Por isso, pratica todo tipo de traição a fim de conseguir seus objetivos. É uma
personagem bastante superficial, a qual usa toda a família para obter vantagens
econômicas.
Laura também se associa a Ubaldo (Grancindo Junior), seu padrasto e verdadeiro
compositor da canção, que fez bastante sucesso e foi responsável pela ascensão de Maria
Clara. Em liberdade condicional, depois de ter ficado 15 anos preso pelo assassinato de
Wagner pelo fato dele ter roubado a canção de sua autoria, a personagem aparece para se
vingar da produtora e de seu patrocinador, Lineu Vasconcelos (interpretado por Hugo
Carvana), seu amigo na juventude e agora empresário da área de comunicação. Presidente
do Grupo Vasconcelos, Lineu controla publicações destinadas ao universo das
celebridades. A Revista Fama é a principal publicação do grupo. Além disso, Lineu é
patrocinador dos eventos musicais promovidos por Maria Clara no espaço Fama.
Ubaldo sabe que o empresário foi responsável pela sua prisão e acredita que tanto o
ex-amigo quanto a empresária ficaram ricos devido a um crime: o roubo de sua canção.
Ubaldo é o verdadeiro compositor da música Musa de Verão, que foi roubada por Wagner,
noivo de Maria Clara. A composição era para Marília (interpretada por Alessandra
Negrini), mãe de Laura.
Maria Clara, ao descobrir toda a verdade, abre mão dos direitos e cede para Ubaldo.
Laura assume a produtora Mello Diniz. Passa a morar na casa da rival junto com Marcos,
a avó Hercília (Norma Blum) e o padrasto. A protagonista acaba descobrindo o projeto de
Laura e luta para reconquistar seu espaço no mundo da música. Intenciona desmascarar a
vilã a fim de se recolocar no mundo das celebridades, abrindo uma casa de samba chamada
de Sobradinho.
Chama atenção a atitude da vilã de extrapolar seu desejo de vingança. A certa altura
da narrativa, ela havia conquistado seus objetivos, mas nutre pela protagonista um ódio
doentio, que se aproxima do patológico. Seu aspecto físico belo contrasta com a
vulgaridade, grosseria, inveja e frieza. Afinal, Laura não apresenta qualquer traço de
humanização. Pelo contrário, suas atitudes são inconsequentes e pensadas unicamente com
o intuito de eliminar a rival.
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Laura comete também um assassinato. Ela confessa ter matado Lineu Vasconcelos,
porque ele havia lhe roubado as provas que confirmariam ser Ubaldo o verdadeiro
compositor da canção. Antes de ser presa, a vilã arquiteta um último plano: o sequestro da
filha de Maria Clara e Fernando. Perseguidos e encurralados pela polícia, os vilões Laura e
Marcos acabam sendo assassinados por Renato Mendes, que também é preso por serem
reveladas suas atrocidades.
Os traços da vilania de Laura podem ser explicados pelas teorizações de Fisher
(2012):
Sai de cena o contorno nítido e maniqueísta de figuras claramente
definidas, cedendo lugar ao esboço borrado dos espectros fugidios e
voláteis que perfazem personas lacunares, multifacetadas, embrionárias.
Valores do bem e do mal se inscrevem, diegeticamente, em personagens
ambíguas, coincidentes, hibridizadas, que transitam por entre “vilanias” e
“heroísmos” dos mais variados tipos. Assim, heróis e vilões entrelaçam
traços, superpõem fundos, misturam tonalidades e criam/revelam as
imagens multifocadas e plurais da contemporaneidade líquida e
cambiante em que na ficção e na dita realidade, na produção e na
recepção estamos todos inseridos enquanto protagonistas e
coadjuvantes (FISHER, 2012, p. 744).
A vilania da personagem Aline (Wanessa Giácomo) em Amor à Vida também é
justificada pelo ideal de vingança. Bela e virtuosa, Aline é apresentada ao público como
secretária de César (Antônio Fagundes). Odeia a família Khoury e arquiteta uma vingança.
Diferente de Laura, que é enquadrada como personagem plana, Aline é caracterizada como
uma personagem esférica pelo seu caráter multifacetado e ambivalente revelado apenas no
decorrer da narrativa.
O desejo de vingança da vilã foi meticulosamente arquitetado com a ajuda de sua
tia Mariah (Lucia Verissimo), que era bailarina, foi amante de César, engravidou, mas não
pode ficar com a filha, porque César levou Paloma para morar com ele e com Pilar (Suzana
Vieira) não revelando que se tratava de sua filha em um caso extraconjugal.
Mariah e a mãe de Aline foram vítimas de uma tragédia envolvendo um acidente de
carro. Mariah ficou sem os movimentos da perna e sua irmã faleceu no acidente. Aline foi
criada pela tia que despertou nela desde cedo o desejo de vingança contra César,
considerado o verdadeiro responsável pelo acidente.
A secretária se aproxima de César e da família, tornando-se, inclusive, amiga de
Pilar e de Bernarda (Natália Timberg). Ela se envolve com o médico, seduz e acaba
ficando grávida dele. Vai morar numa casa bastante afastada com ele e arquiteta um plano
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para matar o marido aos poucos por envenenamento. César perde a visão e fica dependente
dela.
Aline se revela uma vilã em potencial. Por ser uma personagem esférica, suas ações
despertam no público mais reprovação que as atitudes de Laura, em Celebridade. Além
disso, a vilã se revela uma péssima mãe, já que é incapaz de amar o próprio filho,
encarando-o como uma forma de investimento. Nem mesmo a tia acaba ilesa de suas
atrocidades. O ideal de vingança foi arquitetado pelas duas, mas no decorrer da narrativa,
Mariah se revoltou com os ideais da sobrinha e acabou sendo assassinada por Ninho,
interpretado por Juliano Cazarré, amante e ajudante de Aline no plano de vingança.
As atitudes da vilã também se voltam contra Paloma (Paolla Oliveira). Aline arma
uma situação para que a protagonista pense que Aline e Bruno (Malvino Salvador) estavam
tendo um caso, o que acaba provocando a separação dos dois. A verdadeira intenção da
vilã é manter a médica longe do pai para que ela possa dar continuidade aos seus planos. O
casal apenas retoma o casamento depois de ter visto o vídeo em que Mariah, antes de ter
morrido, gravou com o intuito de revelar à Paloma que era sua mãe biológica, além de
contar toda a verdade.
Preocupados com a saúde do médico, Paloma, Félix (Mateus Solano) e Lutero (Ary
Fontoura) tentam convencer César a sair da casa e buscar um tratamento mais adequado.
Induzido por Aline, ele rejeita a proposta, rompe com todos, alegando que os filhos
estavam interessados apenas em seu dinheiro. Na mansão, Aline e Ninho fazem tudo o que
querem, inclusive se beijam na frente do médico, já que ele não pode ver.
Paloma consegue convencer o pai a pelo menos aceitar em casa a presença de uma
médica para cuidar melhor de sua saúde. Rebeca (Paula Braun) passa a fazer parte do
cotidiano da casa. Na verdade, ela cumpre duas funções: a de médica e a de espiã, que
Paloma sabia das más intenções de Aline.
A médica acaba flagrando os amantes juntos e é presa por Ninho em um quarto.
Por meio de um plano arquitetado por Félix para desmascarar Aline, o médico acaba
sabendo das traições da mulher. Rebeca é libertada. César tenta matar Aline a golpes de
faca, mas Félix o impede e acaba levando-o para morar na casa de Pilar juntamente com o
menino.
Aline acaba esfaqueando Ninho, deixando-o muito ferido. Ela tenta uma fuga para a
Bélgica, mas Ninho consegue revelar o plano para Paloma. A vilã é presa no aeroporto. Na
penitenciária, a vilã recebe a visita de César, que está disposto a perdoá-la, mesmo depois
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de ter sofrido a traição. A vilã se revela contando todo o plano arquitetado com a tia, cospe
na cara do ex-marido, que tem um AVC. Assim como Laura, a personagem Aline tem um
desfecho trágico: a morte. Aline é eletrocutada na cerca elétrica da prisão, ao tentar fugir
com um grupo de detentas.
A partir da trajetória da vilã da telenovela em questão, tem-se um delineamento
acerca do perfil contemporâneo dessa personagem:
O perfil dos vilões e heróis na telenovela brasileira da contemporaneidade
vem sendo cada vez mais significativamente modificado e relativizado:
lugares estereotipados, que até muito recentemente costumavam ser fixos,
estáveis e previsíveis, atualmente se instalam na narrativa de forma a
permitir e por vezes mesmo privilegiar a emergência de espaços que
comportam personagens desdobradas, cujos percursos cambiantes são
caracterizados por movimentações que se alternam, confundem e se
fundem o tempo todo, posto que se sobrepõem em deslizamentos e
compartilhamentos (FISHER, 2012, p.744).
Na atualidade, as produções teleficcionais têm produzido personagens cada vez
mais complexas. Uma explicação plausível pode estar associada ao fato das telenovelas
contemporâneas dialogarem com a realidade tornando-se uma espécie de “espelho da
nação”. Como um componente de mídia, a telenovela tornou-se uma narrativa cujo enredo
reflete e refrata a sociedade. Assim, no atual estágio marcado pela fragmentação e pela
fluidez de identidades, as produções audiovisuais refletem essa complexidade, que a
ficção se espelha na realidade para criar seu discurso.
Ao privilegiar temáticas sociais e ficcionalizar tensões, as narrativas audiovisuais
da atualidade são marcadas pelo esfacelamento, pela fragmentação, pela compressão de
culturas, pela velocidade e pela intensidade. Assim, emerge uma narrativa fortemente
constituída por personagens marcadas pela dubiedade e por todas as incertezas desse
sujeito em crise. Nesse contexto, destaca-se também a representação do cenário urbano,
que passou a se constituir num espaço problemático, o que representa o surgimento de
novas configurações identitárias e novos problemas para serem representados.
Em se tratando da personagem vilã da telenovela, percebe-se que, em sua essência,
são marcadas pelo individualismo e pela ganância em ascender socialmente. Dessa forma,
o desejo de vingança é um grande nutriente responsável por justificar as ações das vilãs.
Percebe-se que as duas personagens analisadas não lutam contra a protagonista para lhes
roubar o protagonista mocinho, como costumeiramente ocorria nesse nero de origem
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melodramática. Do ponto de vista dramatúrgico, a personagem vilã é responsável pela
movimentação da narrativa, que é por meio de suas ações que a trama evolui. É a
antagonista quem cria obstáculos à felicidade da protagonista. A apresentação dessas
personagens se de forma sedutora. Embora ainda sobressaia uma visão maniqueísta
típica do gênero, a vilã da teleficção tem despertado a empatia do público.
Em Celebridade, a vilã, de acordo com a caracterização proposta por Forster
(1998), é enquadrada como uma personagem plana, porque desde o primeiro capítulo se
apresenta como uma vilã predestinada a eliminar a rival movida pelo ideal de vingança.
Desde sua primeira aparição na telenovela, ela já demonstra querer se apropriar da fama de
que a rival desfruta. Dessa forma, suas atitudes iniciais movidas pela impulsividade, pela
intolerância, pela ausência de escrúpulos e pela violação de preceitos éticos revelam a
psicologia dessa personagem.
Por sua vez, Aline, vilã da telenovela Amor à Vida, é uma personagem esférica por
ser apresentada inicialmente com uma moça sonhadora, batalhadora e ingênua. Sua vilania
é apresentada aos poucos, mas ganha contornos megalomaníacos quando implementa sua
vingança. Seu egocentrismo acentuado, sua sensualidade e inconsequência são
extremamente empregadas na telenovela como uma característica inerente ao seu perfil.
Habilidosa, Aline não mede esforços para atingir seus objetivos. Julga-se perspicaz e
arquiteta inúmeras armações para eliminar seus inimigos, praticando, inclusive, o
assassinato. Por isso, age com frieza e perversidade a todo momento.
Ademais, como esclarece, Silva (2008), a personagem vilã de teleficção é
caracterizada com traços de psicopatia:
Os heróis do passado estão se tornando os otários dos tempos modernos.
O desrespeito, a frieza, a luxúria e a perversidade dos psicopatas estão
ganhando espaço nas telinhas e nas telonas, arrebatando espectadores,
críticos especializados e atores que buscam fama e reconhecimento
profissional ao interpretarem personagens de psiquismo tão complexos
(SILVA, 2008, p. 192).
Para a autora, ao abrir espaço para essas personagens tão complexas, a teleficção
explora o comportamento arrivista, fragmentado e desmedido da sociedade
contemporânea. Valores como o “ser”, tão amplamente cultuados, foram substituídos
pelo “ter”. Assim, a vantagem financeira e a finalidade de ascensão social a qualquer custo
para a satisfação pessoal imediata são valores presentes nessa sociedade e captados pela
ficção. Por esse motivo, a autora explica que a sociedade contemporânea está imersa numa
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“cultura da psicopatia”. Ademais, o ponto de vista de Hummell e Alvetti (2007) de que a
personagem vilã de teleficção integrar uma verdadeira “performance do gênero”
complementa as teorizações de Silva (2008).
Outro aspecto a ser mencionado acerca do tratamento dado à vilã da teleficção é
purgação em que a vilã tem um ajuste de contas com a protagonista. Essa estratégia
ocorreu nas duas telenovelas analisadas. Ambas são surradas pelas protagonistas em cenas
marcadas pela extrema violência, mostrando também que as personagens protagonistas, de
certa forma, também se reconfiguraram, abandonando as características meramente
sofredoras, evasivas, angelicais e passíveis, conforme destacou Fisher (2012). Ademais, o
desfecho punitivo imposto às duas vilãs revela um ideal ético no qual se deixa bem claro a
punição exemplar para aqueles que enveredam para a criminalidade.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo, longe de esgotar as teorizações e possibilidades de estudo acerca
da personagem vilã de teleficção, objetivou tecer considerações acerca de duas
personagens vilãs das telenovelas contemporâneas, que foram representadas pela
inconsequência de seus atos movidos pelo ideal da vingança. A telenovela, enquanto
narrativa audiovisual, possibilita o desenvolvimento de personagens em camadas
sobrepostas delimitadas por uma representatividade psicológica mais densa.
Inicialmente, o estudo fundamentou suas proposições teóricas acerca da
personagem de ficção e como essa categoria narrativa foi ancorada durante a história da
ficção. No que tange à teleficção, o estudo constatou que a telenovela tem empregado cada
vez mais personagens vilãs em suas narrativas devido à performance do gênero, como
atestam Hummell e Alvetti (2007) na qual as personagens ficam situadas entre a cultura
do excesso e o elogio da moderação.
Mesmo que a maioria das vilãs da teledramaturgia sejam enquadradas como planas,
elas se articulam perfeitamente com a sociedade complexa e multifacetada da
contemporaneidade. De maneira geral, a personagem vilã é representada com sérios
problemas, falhas de comportamento e pensamento, que refletem em muito o próprio
telespectador, levando-o a uma reflexão de seus preceitos éticos e morais. Por esse
motivo, recebe tanta aceitação do público, que se envolve nos debates acerca dos temas
refletidos pela telenovela, seja no âmbito privado, político ou social, o telespectador, ao se
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posicionar e refletir sobre as temáticas e situações expressas pelas telenovelas, exercita sua
condição de participante de uma comunidade imaginada.
Partindo das categorias de personagem propostas por Forster, enquadramos a vilã
Laura como personagem plana e Aline como personagem esférica, uma vez que sua
personalidade é construída de maneira complexa. Ambas carregam traços da cultura da
psicopatia apontados por Silva (2008) e são exemplos dessa verdadeira performance do
gênero teleficcional em que a vilania feminina está cada vez mais acentuada e ganha até
mais evidência que a vilania exercida pelas personagens masculinas.
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1995.
LINDAS," SEXYS " Y PELIGROSAS: ANÁLISIS DE LA VILANIA FEMENINA
EN CELEBRIDAD Y AMOR A LA VIDA
RESUMEN: El artículo teje consideraciones acerca de los personajes villanos de dos
telenovelas exhibidas por la Rede Globo. El estudio constató que la vilanía en la teleficción
contemporánea se reconfiguró de tal forma que pasó a emplear personajes más densos,
problemáticos, ambivalentes y fragmentados. En las dos telenovelas, el deseo de ascensión
está justificado por la venganza llevada hasta las últimas consecuencias. El presente
estudio está anclado en las presuposiciones de Brait (2017), Candido (2014), Pallotinni
(2012), entre otros, a fin de encontrar una fundamentación adecuada sobre la (re)
constitución del personaje de la teleficción contemporánea marcada por una excesiva
performance del género, que justifica su actitud por el ideal de venganza.
Palabras clave: Telenovela. Personaje. Villanía.