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ANÁLISE DE UM ARTIGO OPINATIVO PELO VIÉS
DIALÓGICO: OS MEANDROS DA PONTUAÇÃO
Anderson Silva
SEE-SP/PUC-SP
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RESUMO: este artigo discute a presença da pontuação em um artigo opinativo,
destacando o papel das aspas. Da perspectiva teórica, ancoramo-nos na Análise Dialógica
do Discurso, na qual elencamos como categoria de análise: enunciado e responsividade.
Em termos metodológicos, organizamos esta pesquisa em duas etapas: a) abordagem da
pontuação em diferentes trabalhos que tematizaram a relação subjetiva da pontuação na
constituição dos sentidos; b) análise de um artigo publicado na Folha de S. Paulo, com
ênfase nas pontuações. Em nossas considerações, observamos que a pontuação exerce um
papel relevante quando combinada com os signos linguísticos, revelando a subjetividade
presente no discurso.
Palavras-chave: pontuação; enunciado; análise dialógica do discurso.
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O autor:
Doutor em linguística aplicada e estudos da linguagem. SEE-SP/PUC-SP.
Como citar este artigo:
SILVA, A. Análise de um artigo opinativo pelo viés dialógico: os meandros da pontuação.
Revista Diálogos, v. 7, n. 1, 2019.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
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Esta pesquisa analisa um artigo opinativo, com ênfase no emprego da pontuação,
destacando o papel das aspas no fio do discurso. Aliado a isso, considera também outros
elementos que corroboram a construção de sentidos do texto. Como todo enunciado
concreto, a construção enunciativa compreende a relação dos (inter)locutores, os juízos de
valor e o acabamento. Nesse ponto, dentro da perspectiva dialógica, parte-se da
materialidade linguística, da qual a relação entre os sinais de pontuação e os signos
linguísticos possuem papel fundamental. Justifica-se este trabalho pela relevância que os
sinais de pontuação possuem dentro dos estudos linguístico-discursivos, despontando em
ascendência em trabalhos acadêmicos (SILVA, 2009), livros (PUZZO, KOZMA, UYENO,
2014) e capítulos de livros (GURPILHARES, 2003; PUZZO, 2007; PUZZO, 2012;
SILVA, 2017) sobre a temática nos últimos anos. Dessa maneira, vislumbra-se com esta
investigação contribuir para a expansão do assunto no âmbito escolar e acadêmico, mais
precisamente no campo dos estudos da linguagem.
Para tanto, ancoramo-nos dos conceitos-chave desenvolvidos pela Análise
Dialógica do Discurso, doravante ADD, elencando as noções de enunciado concreto e
responsividade, cuja base está nos escritos de Bakhtin e do Círculo. Em termos
metodológicos, a pesquisa foi organizada da seguinte maneira: a) apresentação das
categorias de análise à luz da perspectiva dialógica, focando nos conceitos de enunciado
concreto e responsividade; b) abordagem sobre o conceito de pontuação/aspas e sua
relação com a materialidade linguística. Em uma segunda etapa, descrevemos o corpus que
compreende um artigo opinativo de Gustavo Ioschpe, publicado na Folha de S. Paulo. Por
fim, a partir da perspectiva dialógica, analisamos o texto que compreende diversos fatores,
dos quais destacamos a relação dos (inter)locutores com a materialidade linguística e o
contexto sócio-histórico.
2. ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO: DELINEANDO OS CONCEITOS-
CHAVE PARA ANÁLISE
Ao propormos analisar um artigo opinativo veiculado na mídia impressa, levaremos
em conta a relação dos vocábulos com os sinais de pontuação. Destarte, consideramos o
corpus elencado como um enunciado concreto e, como tal, explicitamos nossa visão sobre
esse conceito à luz do viés dialógico, cujo cerne ultrapassa os limites linguísticos e
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considera o extraverbal, possibilitando acabamentos a partir da relação entre os
participantes do discurso.
Como aporte teórico, ancoramo-nos na Análise Dialógica do Discurso, que há
algumas décadas vem expandindo cada vez mais seu arcabouço teórico-metodológico no
país dentro das pesquisas na área de Letras e Linguística. Assim, a ADD compreende os
conceitos delineados ao longo das décadas de 20 a 70 do culo XX, em que Bakhtin e
outros teóricos contemporâneos desenvolveram o pensamento dialógico por meio de
diversos escritos que chegaram ao Brasil, primeiro, via traduções indiretas do francês,
inglês e espanhol, e, mais recentemente, ganhou corpo nas novas traduções diretamente do
russo, corroborando ainda mais para a difusão dessa perspectiva teórica dentro do país.
Fazendo uma espécie de trilha por meio das publicações bakhtinianas, observa-se
que conceitos-chave, como o caso de enunciado concreto, foram delineados não em apenas
uma única obra, mas nos diversos escritos do chamado Círculo bakhtiniano. Entre os
primeiros escritos que abordam o assunto, destaca-se Para uma filosofia do ato
responsável (BAKHTIN, 2010). Esse trabalho investigou o ato em sua realização efetiva,
asseverando que não há enunciado neutro, uma vez que deixa transparecer o tom
axiológico nas situações do cotidiano. Bakhtin (2010) afirma que o ato (entendido como
pensamento e ação) não pode ser apreendido apenas em termos teóricos, uma vez que é
real em sua totalidade, ou seja, em sua concretização.
Em A construção da enunciação e outros ensaios (VOLOCHÍNOV, 2013), o autor
afirma que o enunciado é sempre orientado para um ouvinte-interlocutor, mesmo quando
não existe uma pessoa próxima e real. Nesse ponto, um artigo opinativo como o corpus
escolhido, em primeira instância, possui um determinado público-alvo, mas não é possível
antever a compreensão e todos os possíveis acabamentos que os sujeitos darão ao
enunciado. Entre outras publicações que dialogam com a constituição do enunciado,
encontra-se em Palavra na vida e a palavra na poesia (VOLOCHÍNOV, 2013).
Volochínov deixa claro que o enunciado cotidiano nasce de uma situação extraverbal e está
continuamente relacionado a um contexto. Para que o interlocutor possa apreender esse
enunciado e dar-lhe sentido, é necessário considerar três fatores: o horizonte espacial, o
conhecimento e a avaliação comum entre os sujeitos do discurso. Nesse caso, como
exemplo, podemos citar novamente o artigo opinativo, pois os sujeitos, mesmo tendo
consciência do perfil dos seus interlocutores e das coerções existentes pela empresa
jornalística em que trabalham, acabam (d)enunciando por meio da materialidade linguística
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pistas da subjetividade inerente ao texto. Com relação ao nosso exemplo, o autor do texto
pressupõe que nem todos os seus leitores compartilham dos mesmos enunciados, pode
colocar mais informações, como a inserção de explicações extras entre parênteses ou notas
de rodapé, sendo a pontuação um recurso para a constituição de sentidos.
Nas palavras de Bakhtin, nenhuma enunciação verbalizada pode ser constituída
somente por quem a enunciou, uma vez que é resultado de uma situação social estabelecida
na interação dos (inter)locutores. Nesse ponto, observa-se aspectos fundamentais para a
caraterização do enunciado concreto, reflexões que dialogam com outro escrito, publicado
em período posterior: Marxismo e filosofia de linguagem. Problemas fundamentais do
método sociológico na ciência da linguagem (VOLÓCHINOV, 2017), doravante MFL.
Observa-se uma relação explícita entre sociedade e linguagem, com destaque para a
interação social. Os signos são considerados como parte de um processo comunicativo
ininterrupto em que podem ser analisados a partir de um contexto sócio-histórico
específico. A expressão verbal é socialmente dirigida e construída, pois, dependendo dos
sujeitos envolvidos no momento enunciativo. Desse modo, ao investigarmos um artigo
opinativo, a materialidade linguística é ponto de partida para análise da constituição de
sentidos e possíveis índices de subjetividade, dos quais destacamos e escolha de vocábulos
e o imbricamento com os sinais de pontuação.
Corroborando com a visão delineada em MFL (VOLÓCHINOV, 2017), o texto Os
gêneros do discurso (BAKHTIN, 2016) trouxe uma nova perspectiva à concepção de
língua, pois a relaciona a todas as esferas da atividade humana. O enunciado concreto é
considerado como unidade real de comunicação verbal, e as fronteiras deste objeto
marcam-se pela alternância dos (inter)locutores. Essa atitude pode ser considerada em
ambas as situações: tanto na ação em que os falantes estão presentes, como no caso de os
(inter)locutores estarem separados. Nas duas hipóteses, uma complexa rede de
comunicação, pois os discursos constitutivos se entrelaçam para dar acabamento e sentido
ao enunciado em questão.
Adentrando a nossa outra categoria de análise, é necessário observar a relação
eu/outro, uma vez que uma análise enunciativo-discursiva pressupõe a observação da
subjetividade inerente aos (inter) locutores. Pode-se depreender que uma das facetas da
responsividade (o que espero ou suponho como o outro irá receber meu enunciado) é que
não se trata de um processo passivo e tranquilo, mas ao contrário, escapa ao nosso
controle, (d)enunciando o diálogo infindo entre os enunciados.
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Quando se enuncia, o locutor antecipa a resposta de seus prováveis interlocutores,
por conseguinte, pressupõe também as possíveis atitudes responsivas. Nesse sentido, os
postulados bakhtinianos levam-nos à compreensão do “[...] papel do outro na constituição
do sentido ou sua insistência em afirmar que nenhuma palavra é nossa, mas traz em si a
perspectiva de outra voz (BARROS, 1994, p. 3). Na constituição enunciativa, existem
múltiplas vozes que dialogam entre si para a elaboração do enunciado. Percebe-se a
constituição dos sentidos por meio da materialidade linguística, na qual destacamos a
presença da pontuação a partir do material verbal observável impresso ou online.
3. PONTUAÇÃO E CONSTITUIÇÃO DE SENTIDOS: ASPAS NA
MATERIALIDADE LINGUÍSTICA
Em um trabalho de fôlego, Silva (2009) analisou os efeitos de sentido dos sinais de
pontuação em artigos opinativos impressos de alguns colaboradores da Folha de S. Paulo.
Nessa pesquisa, ratificou-se que não uma objetividade absoluta nos textos jornalísticos,
cabendo ao pesquisador/analista do discurso observar as manifestações linguístico-
discursivas materializada pelo enunciado concreto. Nessas análises, observou-se índices de
subjetividade a partir do emprego dos sinais de pontuação, indo além das prescrições
gramaticais, configurando escolhas estilísticas dos autores.
Tendo como viés teórico a ADD, é fundamental observamos o artigo como um
enunciado concreto, sendo necessário considerar as condições de produção, circulação e
recepção. Além disso, é necessário pensar que o articulista é um empregado de uma
empresa com uma linha editorial que podem influenciar e serem influenciados pelo perfil
dos leitores e assinantes. Nesse sentido, como explicitado em nossa base teórica,
consideramos o artigo opinativo como um enunciado concreto e, como tal, para sua
análise, diversos fatores que o constituem devem ser observados.
De acordo com o Manual de Redação da Folha (1987), os colaboradores do jornal
devem poupar trabalho ao leitor, tentando deixar o texto o mais compreensível, sem
imaginar, supor ou julgar um conhecimento prévio que o leitor possa ter sobre o assunto
em discussão. No entanto, sabemos que elementos que escapam a qualquer prescrição e
é sobre esse aspecto que nos propomos a refletir. Corroborando com essa ideia, o próprio
manual deixa explícito que “ao redigir um texto e editá-lo, o jornalista toma uma série de
decisões que são em larga medida subjetivas, influenciadas por suas posições pessoais,
hábitos e emoções” (FOLHA DE S. PAULO, 1987, p. 34). Como vimos, não uma
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recomendação mais ampla sobre a utilização das aspas na escrita, pelo menos neste
periódico. Desse modo, os casos que fogem das regras prescritas pelo manual (Folha de S.
Paulo, 1987) ficam a critério e discernimento dos colaboradores do jornal, o que nos revela
inúmeras possibilidades de análise e evidencia ainda mais os traços de subjetividade no
discurso.
Tendo como aporte a ADD, explicitamos de maneira sucinta o caderno em que o
texto foi publicado na época. Destarte, o suplemento Folhateen permaneu na Folha de S.
Paulo por duas décadas, ele era um caderno semanal, entre oito a dez páginas, destinado ao
público adolescente, publicado às segundas com temáticas como: esportes, profissão, sexo,
saúde, comportamento, cinema, televisão e música. O suplemento acabou virando uma
página como parte do caderno semanal Ilustrada. Ratifica-se aqui a escolha de um texto
pela temática das aspas, fato pouco comum na esfera jornalística. Na reprodução do
corpus, inserimos uma numeração no início de cada parágrafo no intuito de facilitar nossos
comentários e análises.
Tabela 01. Matéria do jornal Folha de São Paulo.
“Aspas que protegem e aprisionam”
Gustavo Ioschpe
(1) Na primeira vez em que fui à Redação da Folha, lembro que o que mais me chamou a
atenção foi um pequeno placar eletrônico colocado acima de cada editoria e que, com
pouco mais de meio metro de largura e com um letreiro de uns dez centímetros de altura,
cuspia freneticamente letras e mais letras em seu néon vermelho insuportável. Era o
Programa de Qualidade da Folha, e o que o "trumbico" não se cansava de repetir eram os
erros de cada edição: ortografia: 4 zuuuum, gramática: 6 zuuuum, concordância: 3 zuuum e
por aí afora. O jornalismo é, intrinsecamente, um negócio estranho, porque os jornalistas se
acham uma mistura de artistas e revolucionários, mas trabalham para uma empresa que,
como todas as empresas, quer é ganhar dinheiro. Mas, mesmo esquecendo-se das
veleidades dos jornalistas, aquele letreiro era Big Brother demais, humilhante demais.
(2) Compreensível, porém. A salvaguarda da língua é tarefa e paixão de qualquer letrado mais
entusiasmado ("Minha pátria é minha língua", como diria Paul lan by Caetano Veloso),
ainda mais de uma empresa de comunicação. Mas salvaguarda de que, exatamente? Ora, de
erros, cara-pálida. Aquela coisa feia que as tias do colégio riscam com a caneta vermelha.
(3) Mas e quem determina o erro, o que é certo e errado? Ah, a coisa fica mais interessante.
Diriam os ingênuos e/ou pragmáticos (não seriam a mesma coisa?) que o certo é o que está
no Aurélio, nas gramáticas, nos oráculos saídos da moribunda ABL. Mas, peraí: a língua
não vem do dicionário ou da gramática. Todos esses textos simplesmente codificam a
língua que, como a palavra já indica, vem do que nós falamos com essa boca que a terra
de comer e Luana de beijar. Caso não seja óbvio, basta notar que a comunicação verbal
precede a escrita por vasta margem. Começamos a marcha para a fala há uns 50 milhões de
anos, quando nossos parentes distantes desenvolveram o polegar opositor e não
precisávamos ficar de boca na comida para trinchá-la. Com o bocão desocupado por tanto
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tempo, começou a tagarelice, enquanto a escrita surgiu 5.000 anos, por razões bem
menos naturais e espontâneas, como o desejo de perpetuar memórias, contar histórias etc.
(4) Assim, decorre que a língua escrita deveria ser mera transposição da língua falada, não? E
por que não é? Por uma série de razões. Uma, por facilidade: estabelecem-se as regras no
começo da partida, e se as trocam quando, "de facto", o estiver dando mais pra
jogar. Outra, por economia, já que cada troca gramatical implica uma série de custos.
Outra, pela própria natureza dos meios, que o escrito, como um lago, tende para o
perene, enquanto a língua falada está em constante mudança, qual um rio. Mas,
fundamentalmente, a ngua permanece congelada porque aqueles que a codificam,
possuidores que são do universalmente ratificado como correto, recusam-se a abandonar
seus castelos de conhecimento.
(5) Língua é poder, eis o xis da questão. A correção gramatical demonstra não apreço por
Camões, mas uma educação de nível, boa família e um ambiente salutar. Língua é berço. E,
no momento em que serve para demonstrar origem, também serve como fator seletivo, a
barrar todos aqueles que não comungam da mesma semântica. Quem escreve "pobrema"
não é inculto, mas provavelmente sem escolaridade e, portanto, pobre. Assim, escreveu
pobrema, leva xis vermelho da tia, não entra na universidade, não consegue o empréstimo
no banco nem que o delegado o atenda ou o médico o socorra e, opa!, quando se está
trabalhando de empregada ou jardineiro na casa de alguém que soletra problema em
alemão, com trema e tudo. Quando, na verdade, "pobrema" está mais certo do que
"problema", se entendermos a língua como construção popular. Se a voz do povo for a voz
de Deus, então todos esses dicionaristas e gramáticos estão surdos.
(6) P.S. Depois de uma pintura milagrosa, sumiu o letreiro da Redação, pelo menos o de cima
deste caderno. Mas não razão para preocupações, que colocaram pra me vigiar uma
turma de revisores que tasca aspas em tudo que está na boca, mas não no Aurélio. Depois
de lutas inglórias, caro leitor, já consigo usar um "pra" sem aspas. Quando puder dizer "tem
que" (e não "de") e "tem vezes..." (e não "há"), tem festa lá em casa.
Fonte: Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/folhatee/fm1312199910.htm
Em primeiro lugar, o título escolhido pelo colunista da Folha de S. Paulo não é
algo arbitrário, mas refrata e reflete a temática discutida ao longo do artigo. Chamou-nos a
atenção sse texto justamente pelo destaque das aspas. Entre as características abordadas
sobre esse sinal de pontuação, está a capacidade de marcar visualmente para o leitor a
polissemia de uma palavra ou expressão de acordo com o contexto, evidenciando a
responsividade enunciativa. Em uma das leituras possíveis, Ioschpe menciona um lado
negativo ao inserir no título o vocábulo aprisionam como expressão do poder coercitivo
que a norma culta tem sobre os falantes de um idioma, principalmente os profissionais que
trabalham com a escrita diária, caso dos jornalistas.
No primeiro parágrafo (1), o colunista conta suas primeiras experiências na
Redação da Folha de S. Paulo. Em seu relato, destaca-se o Programa de Qualidade do
jornal que tinha como um dos instrumentos utilizados pela empresa um letreiro que
mostrava os tipos de erros cometidos pelos colaboradores do periódico em cada edição.
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Nessa parte, vê-se a primeira incidência das aspas destacando o vocábulo trumbico. A
palavra citada está substituindo a expressão placar eletrônico que mostrava em letras
vermelhas os números de erros. Aqui, a pontuação serve para explicitar aos interlocutores
que a escolha do léxico mais informal é um ato proposital, vocábulo que pode remeter a
ideia de erro ou fracasso em determinada situação. Ressalta-se o sentido da cor no placar
eletrônico, pois o vermelho pode representar entre outras coisas, atenção, um alerta de
pare, caso dos semáforos, ressaltando aqui que nada é arbitrário ou aleatório, mas implica
uma escolha enunciativa e efeitos de sentido.
Entre as leituras possíveis, busca envergonhar os que cometeram os equívocos na
escrita, servindo de exemplo para todos aqueles que não querem passar pela mesma
situação. Como o próprio autor destaca, é uma espécie de Big Brother, no qual todos
podem saber do erro alheio. Da mesma forma que na Idade Média, em que os castigos e as
execuções eram realizados em praça pública para servir de exemplo, o placar eletrônico na
Redação do jornal, expondo os erros, mostra uma semelhança com as ações medievais
descritas por Foucault. Conforme as ideias foucaultianas discorridas no livro Vigiar e punir
(Foucault, 2007), a superexposição dos erros entre os pares mostraria a fragilidade de
quem cometeu tais inadequações gramaticais, tentando assim coibir tais desvios, fazendo
com que os jornalistas redobrassem a atenção na escrita e posterior revisão dos seus textos.
Pressupõem-se que os profissionais admitidos nas empresas jornalísticas possuem
uma boa formação escolar, passando por um processo seletivo para serem efetivados. No
entanto, dada os pormenores da língua que podem confundir até os mais letrados, os
colaboradores que trabalham em um periódico têm o tempo como fator dificultador, pois
na dinâmica do cotidiano e conforme os prazos estabelecidos, não conseguem revisar seus
textos com acuidade, ocasionando erros ou equívocos por distração, podendo até passar
pelo revisor final e serem publicados para o grande público.
Como o enunciado concreto implica observarmos outros olhares e vozes, temos
também a visão empresarial que para manter a credibilidade entre seus assinantes e
leitores, não admite em suas publicações erros de português dos mais variados tipos. Para
garantir que isso não ocorresse naquela época, vê-se que uma das estratégias usadas foi
justamente expor todos os erros que aconteciam diariamente no departamento responsável
pelo suplemento, ocasionando atitudes responsivas pelos diversos autores.
Sob o viés dialógico, é preciso compreender os diversos sujeitos que envolvem a
situação expostas por Ioschpe, bem como lembrar que o artigo tem como público-alvo os
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adolescentes, uma vez que foi publicado no caderno Folhateen. Como é de senso comum,
nesta etapa, os adolescentes estão no final do Ensino sico e início do Superior e estão
sempre atentos às questões da língua por conta das provas regulares, bem como
vestibulares e concursos. Dessa maneira, o título remetendo explicitamente para um
conteúdo gramatical específico, e pouco comum nos textos jornalísticos e acadêmicos,
pode despertar o interesse para a leitura e um eventual estudo aprofundado.
No segundo parágrafo, novamente a ocorrência das aspas, dessa vez para marcar
a expressão “Minha pátria é minha língua”. O autor remete a ideia de Paul Célan (tradutor,
poeta e ensaísta romeno radicado na França) na letra da música Língua de Caetano Veloso.
Como essa remissão, o autor justifica a ação da empresa por meio de analogia, pois se até
as pessoas mais letradas tendem a defender um bom uso da língua, quanto mais uma
empresa que tem como base a escrita em seus produtos. Nesse caso, as aspas evidenciam a
citação direta, mas, ao mesmo tempo, permitem ao interlocutor dar acabamento ao
enunciado, possibilitando efeitos de sentido. Entre as leituras possíveis, vê-se a questão da
língua como fator de identidade, pois nos constituímos como sujeitos na/pela linguagem.
Além das aspas como indício de subjetividade, outras pontuações que
constituem o parágrafo, como ponto final, vírgula, parênteses, interrogação. Destaca-se a
inserção dos parênteses como outro elemento de subjetividade, uma vez que é a escolha do
locutor, antevendo possíveis respostas de seus interlocutores, revela a bivocalidade
inerente do enunciado concreto em análise. Dessa maneira, lembramos que o trecho da
música de Caetano, entre parênteses, vem sustentar a opinião do autor por meio de outras
vozes, como as de Célan e Caetano, para ratificar a defesa de um “português correto”. Na
continuidade, Ioschpe emprega a interrogação para fazer uma pergunta retórica, em que
levanta e justifica a necessidade da empresa se salvaguardar dos erros. Em sua justificativa,
o autor, ao responder a própria pergunta, utiliza a expressão “cara-pálida”, como maneira
irônica de mostrar aos interlocutores que ele sabe muito bem do que está escrevendo no
artigo e que todos são passíveis de erros. Ademais, além da compreensão do léxico, a
utilização de alguns sinais de pontuação, como aspas, parênteses, interrogação no fio do
discurso também revelam traços de subjetividade do artigo opinativo (SILVA, 2009) e, ao
mesmo tempo, a proximidade que o autor estabelece com seu público-alvo, no caso, os
adolescentes.
No início do terceiro parágrafo (3), o colunista lança um questionamento sobre a
própria noção de “erro” e de quem ou o que determina o certo e o errado. Para tanto,
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utiliza-se da interrogação, dos parênteses e da barra para dar o tom desse enunciado. No
caso específico desse excerto, o autor insere uma pergunta direta para expor sua apreciação
a respeito dos vocábulos ingênuos e pragmáticos. Aqui, o uso da interrogação entre
parênteses também evidencia a bivocalidade do enunciado ao fazer uma pergunta no texto
que o próprio autor sabe a resposta, chamando a atenção dos sujeitos ao destacar o
questionamento do restante do período. Nota-se ainda a presença das barras clivando a
expressão os ingênuos e/ou pragmáticos, permitindo a dupla leitura e os efeitos de sentido
a partir da proposta temática e a produtividade da pontuação no fio do discurso.
No quarto parágrafo (4), a regularidade argumentativa transparece na construção
linguística, pois o autor inicia fazendo duas perguntas que será respondida ao longo do
parágrafo. O autor justifica o motivo da escrita não ser uma mera transposição da língua
falada. Apesar do colunista trabalhar com a escrita em seu cotidiano, ele não é um
especialista que se graduou em Letras ou alguma especialização na área, por isso, os
enunciados utilizados são frutos de possíveis pesquisas realizadas em materiais de
especialistas. Ioschpe atribui uma razão da escrita ser diferente da oralidade por questões
de facilidade. Para tanto, entre a sua estratégia de argumentação está a comparação por
analogia: Nesse caso, estabelecem-se as regras no começo da partida, e as trocam, “de
facto”, já não estiver dando mais para jogar.
Percebe-se a utilização das aspas para destacar a expressão “de facto”. O emprego
dessa pontuação não é arbitrário, mas revela ao leitor que o uso dessa forma mudou ao
longo do tempo no Brasil, possibilitando uma dupla leitura do enunciado. Desde o novo
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, a expressão com pronúncias diferentes nos
países que falam português é aceita as duas versões. Nesse sentido, Portugal continua
falando e escrevendo “de facto”, enquanto que no Brasil, ao longo do tempo, houve uma
mudança linguística, em que a letra “c” no meio da palavra caiu em desuso, tanto na fala
quanto na escrita. Como segunda justificativa, o autor assevera a questão econômica como
fator para que a escrita não seja uma mera reprodução da fala. Em último, mais uma vez
observamos a utilização de uma analogia, uma vez que compara a escrita como um lago
(por ser algo perene), e a fala como um rio (por estar em constante mudança).
No quinto parágrafo (5), chamou-nos a atenção o emprego da exclamação e,
principalmente, três utilizações das aspas. Nesse caso, esse último sinal de pontuação
destacou as palavras “problema” e “probrema” como maneira de ilustrar a diferença que
existe entre quem sabe ler e escrever de maneira correta e quem não se adequa ao padrão
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imposto pela norma culta, sofrendo assim consequências socioeconômicas conforme
podemos ler no artigo. A respeito da exclamação, o enunciador acaba inserindo no meio do
período a expressão opa!, que explicita um tom enfático ao enunciado, chamando a
atenção do interlocutor para aquilo que está sendo afirmado.
O parágrafo (6) é destacado pela abreviatura P.S. que normalmente é utilizado nas
cartas como um Post Scriptum, expressão latina para pós-escrito, algo para acrescentar ao
que foi escrito. Nesta parte final, o autor relata que houve uma reforma na repartição do
jornal, e, com a pintura do local, o letreiro luminoso que expunha os erros foi retirado, pelo
menos com relação ao departamento em que trabalhava. Neste enunciado, -se o emprego
das aspas por cinco vezes para destacar vocábulos ou expressões. Com o sumiço do
letreiro, a empresa contratou revisores como uma espécie de “vigias da língua”, colocando
aspas em todas as produções escritas coloquiais que desviem da norma padrão. No último
período, o colunista relata que depois de muito tentar, os revisores começaram a deixar ele
usar a construção “pra” em vez de “para” sem o destaque das aspas, indicando que até eles
tinham a noção que de tanto usar na oralidade e na escrita, essa construção começou a ser
aceita em lugares mais formais, como os jornais. A respeito das outras aspas, ele utiliza na
seguinte afirmação: Quando puder dizer “tem que” (e não “de”) e “tem vezes...” (e não
“há”), tem festas em casa. Ao observarmos as últimas incidências das aspas, o emprego
dessa pontuação ratifica a escolha estilística do colunista e, em consequência, a
subjetividade presente no fio do discurso, sendo necessário sempre uma leitura atenta e
minuciosa para todos os detalhes e seus possíveis efeitos de sentido.
4. PALAVRAS FINAIS
Tendo como foco a análise do artigo opinativo e a subjetividade inerente a esse tipo
de texto, por meio da perspectiva dialógica do discurso, foi possível perceber índices da
subjetividade a partir das escolhas lexicais, bem como o tipo de pontuação presente na
materialidade linguística, revelando a complexa atividade de construção de sentidos do
texto. Considerando o artigo opinativo como um enunciado concreto, por meio da nossa
análise, foi possível averiguar também o acabamento enunciativo pelo imbricamento entre
os sinais de pontuação e os signos linguísticos. A escolha da pontuação não é algo
arbitrário, mas pressupõe um plano enunciativo do enunciador e as possíveis respostas.
Ademais, verificou-se que, além das regras prescritas existentes nos manuais
gramaticais, como revela alguns artigos contemporâneos, a pontuação é um índice de
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subjetividade e está ligada ao estilo do autor, que pode, dentro de um certo limite
gramatical, escolher a pontuação que irá contribuir para a constituição de sentidos do seu
projeto enunciativo. De uma maneira mais específica, as aspas são ainda pouco discutidas
dentro das pesquisas linguísticas, sendo necessária a ampliação de discussões acadêmicas
que tenham como foco a relação dos sinais de pontução com o material verbal, ampliando
ainda mais esse assunto.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. aos cuidados de Valdemir
Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
______. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo
Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016.
BARROS, D. L. P. de. Dialogismo, Polifonia e Enunciação. In: BARROS, D. L. P. de;
FIORIN, J. L. (Org.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: em torno de Bakhtin. São
Paulo: Edusp, 1994.
FOLHA DE S. PAULO. Manual Geral de Redação. 2. ed. rev. aum. São Paulo: Folha de
S. Paulo, 1987.
GURPILHARES, M. S.S. A influência do oral da pontuação. In: CASTRO, S. T. R. de.
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ANALYSIS OF OBJECTIVE ARTICLE BY THE DIALOGICAL VIES: THE
MEANDERS OF THE PUNCTUATION
ABSTRACT: This paper discusses the punctuation in article, with emphasis on the use of
quotation marks. From the theoretical perspective, we are anchored in the Dialogical
Analysis of Discourse. In methodological terms, we organized in two stages: a) we
approached the question of the punctuation and different researches that thematized the
subjective relation of the punctuation in the constitution of the senses; b) we analyzed an
article published in Folha de S. Paulo. In our considerations, we observed that the
punctuation marks play a relevant role when combined with the linguistic signs,
corroborating the effects of meaning thread of the discourse.
KEYWORDS: punctuation; utterance; dialogical analysis discourse.