ARAUJO, R. da C. Os delicados despropósitos de Manuel de Barros. Revista Diálogos (RevDia), “Edição comemorativa pelo Qualis B2”, v. 6, n. 2, mai.-ago., 2018.

OS DELICADOS DESPROPÓSITOS DE MANOEL DE BARROS

The delicate delops of Manoel de Barros

Rodrigo Da Costa Araujo (UFF/FAFIMA)

Sobre o autor:

Rodrigo da Costa Araujo é Mestre em Ciência da Arte (2008) pela Universidade Federal Fluminense e Doutorando em Literatura Comparada pela mesma instituição. Professor de Teoria da Literatura, Literatura infantojuvenil e Arte Educação da FAFIMA - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Macaé. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Comparada, atuando principalmente nos seguintes temas: Decadentismo, artes, semiótica e literatura, códigos e linguagens, literatura e cinema, literatura infantojuvenil. Faz parte dos grupos de pesquisa GEITES/UFES (Universidade Federal do Espírito Santo), do Grupo de Estéticas de Fim-de-Século da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Grupo Literatura e outras artes da UFF pertencentes ao Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil – CNPq. rodricoara@uol.com.br

RESUMO: Este ensaio apresenta representações metafóricas da infância na poética de Manoel de Barros além de falar das relações da obra com a ilustração, do caráter auto reflexivo da poesia, da estética do fragmentário e das encenações do sujeito lírico. Como corpus de análise para essa leitura, utilizaremos os livros Exercícios de ser criança (1999), Memórias Inventadas (2008) e Menino do mato (2010), além de outros textos do conjunto da obra do poeta pantaneiro.

PALAVRAS-CHAVE: memória - representações da infância - Manoel de Barros

ABSTRACT: This essay presents metaphorical representations of childhood in the poetry of Manoel de Barros and mention the work of relations with the illustration, character self-reflective poetry, and aesthetics of the fragmentary and the lyrical subject of scenarios. The corpus of analysis for this reading, we will use the exercises to be children's books and invented memory, and other texts of the poet's oeuvre wetland.

KEYWORDS: memory - depictions of childhood - Manoel de BarrosOuvir

O olho vê, a lembrança revê, a imaginação transvê.

 É preciso transver o mundo.

(Manoel de Barros. Livro sobre nada. 1997, p.750)

Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão [...]”.

(BARROS, Manoel. Memórias Inventadas. São Paulo. Planeta. 2008. p.11)

1. INTRODUÇÃO

Lendo ou vendo, delicadamente, o livro Exercícios de ser Criança [1999], de Manoel de Barros verifica-se uma reflexão metatextual, explorada no percurso da palavra em sua capacidade de “dizer o indizível”, de reforçar o que caracteriza a literatura como jogo de brincar e eclodir múltiplas significações. Ilustrado pela família Diniz Dumont, num trabalho inovador, com desenhos bordados, realçando a força imagética das palavras, o livro, em prosa poética, enreda o leitor em duas estórias - O menino que carregava água na peneira e A menina avoada - que relacionam o fazer poético com a infância - etapa em que o conhecimento da realidade efetiva-se pelo sensível, pelo emotivo e intuição, com predomínio do pensamento mágico, razão por que é considerada fase decisiva, para a formação do futuro leitor, a interação com obras literárias cujas temáticas abordem questões de seus interesses e necessidades.

Para explicar esse processo imaginativo da poética de Manoel de Barros, José Fernandes, em A Loucura da palavra (1987), afirma que:

[...] a imaginação comenta o trabalho da língua, das ideias e do discurso, sem se ater às imposições do racionalismo que reduz a arte ao círculo fechado das experiências pessoais, afectas unicamente às limitações impostas pela razão. À imaginação do poeta tudo é permitido; nada deve restringir a criação poética, nem mesmo o racionalismo, porque restrito aos fatos sem importância da experiência existencial (FERNANDES, 1987, pp.47-48).

Esse processo de criação literária apontado pelo crítico é explicado em virtude da fragmentação e do discurso, que, misturados em outros discursos e linguagens, ocorrem na contemporaneidade. O dilaceramento do sujeito contemporâneo e da palavra coincide com a busca de novos sentidos que se pautam na pluralidade de novas interpretações. O próprio poeta, acompanhando esse olhar, tem consciência disso e confessa: “agora a nossa realidade se desmorona [...] resta falar dos fragmentos, do homem fragmentado que, perdendo suas crenças, perdeu sua intimidade interior” (BARROS, 1992, p.308-309).

Reforçando o discurso da fragmentação, a imagem, mais do que nunca, prolifera essa mesma ideia de estilhaçamento do sujeito; ela, nesse contexto, estrutura um pensamento, formaliza uma ou mais ideias e conduz o sujeito e o leitor a uma outra realidade, ainda mais ambígua e desenhada por ela. A retórica da imagem indica sempre uma possibilidade de um sentido segundo, conotado. Para Barthes “a imagem pretende sempre dizer algo diferente do que representa no primeiro grau, isto é, no nível da denotação” (JOLY, 1996, p.83).

A palavra, por outro lado, que viabiliza a imagem, torna-se um novo objeto capaz de induzir o poeta a novos sentidos. Esses novos sentidos referenciam outras imagens que, recriadas pelo momento e pela palavra poética tornar-se-ão as imagens que cristalizam e eternizam as concepções experimentadas pelo sujeito poético. É nesse sentido que José Fernandes ressalta que: “construída sobre a liberdade do pensamento, a poesia de Manoel de Barros, além de se relacionar com estados oníricos, apresenta imagens que, dentro da estética surrealista, provêm da escrita automática. Imagens que ligam realidades que nem se tocam”. (FERNANDES, 1987, p.50).

Para José Fernandes, como visto acima, Manoel de Barros utilizará, no processo de criação visual, recursos linguísticos que se assemelham, em muitos aspectos, à composição surrealista. No entanto, o processo de escrita não é automático; o desregramento dos sentidos é alcançado após um longo trabalho de depuração. A criação poética se dá no sentido inverso, ou seja, a linguagem não é utilizada como uma construção lógica ou racional na representação do mundo. Ao aproximar-se da natureza ou de qualquer coisa, a palavra não as “re-presenta”, mas sim as “a-presenta” e, por conseguinte, a um mundo, fazendo-o existir segundo seus códigos próprios, atribuindo-lhe materialidade e significação.

Sua linguagem não representa o mundo nessas imagens insólitas, porém busca aproximar-se do que é representado, retirando da palavra o máximo de significação possível que a língua já lhe impôs, para, em seguida, ressignificá-la, produzindo novos sentidos e com eles um novo mundo, sempre mais plural. É como ele mesmo afirma no prefácio intitulado pretexto, no Livro sobre Nada: “o que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora” (BARROS, 1997.p.7).

Todos esses recursos na poesia barriana, atrelados a infância como estado primordial e potência do ser inauguram um mundo de possibilidades. Para Afonso Castro em A Poética de Manoel de Barros o poeta cosmiciza tudo e reinventa os seres, ora conferindo funções e qualidade de uns para os outros, ora integrando no poema seres de funções díspares para compor uma nova harmonia cósmica e humana devaneada a partir da proximidade do ser e da potência arquetípica da infância. Para o crítico, o autor de A Gramática Expositiva do chão (1990) reinventa o homem e o mundo, possibilitando, assim, novas relações entre eles, integrando “o firmamento, o homem, os animais e os seres numa convivência feliz” (CASTRO, 1991, p.177).

Isso pode ser percebido em Exercícios de ser criança. Na primeira história, um personagem-menino “que carregava água na peneira” dialoga com a mãe que compara essa atitude com o mesmo que “roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos”, “o mesmo que catar espinhos na água”, “o mesmo que criar peixes no bolso”, em resumo, se para o narrador, “o menino era ligado em despropósito”, para a personagem/mãe cabe a constatação: “meu filho você vai ser poeta. Você vai carregar água na peneira a vida toda”. Assim, aquele menino “cismado e esquisito”, “quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos”, “gostava mais do vazio do que do cheio”, “falava que os vazios são maiores e até infinitos”, “foi capaz de modificar uma tarde botando uma chuva nela”, “até fez uma pedra dar flor!” e descobriu que escrever era tudo isso, e mais: era “fazer peraltagens com as palavras”.

Num segundo momento, e, em outra narrativa, uma menina, juntamente com o irmão, “pregava no caixote duas rodas de lata de goiabada, “a gente ia viajar”, isto é, “imitava estar viajando” de carro, “puxado por dois bois”, numa tarde em que “as cigarras derretiam ... com seus cantos”, rumo à cidade porque o irmão tinha uma namorada, “isso ele contava”, mas na travessia de “um rio inventado”, “o carro afundou e os bois morreram afogados”, porém chegavam sempre “no fim do quintal”. O poeta pantaneiro, nessa delicada obra, combina imagens relacionadas ao pensamento mágico e, levemente transgressor, em ações situadas no âmbito do insólito, comunicando uma realidade através de comparações, desenhos e alegorias, mostrando que literatura é representação, linguagem imagística que, como nenhuma outra, tem o poder de concretizar o abstrato, criando um universo lúdico, ao mesmo tempo em que veicula elementos questionadores sobre o mundo, a memória infantil e sobre o próprio homem. Tais recursos conferem à obra unidade semântica que relembram, semioticamente, o mundo infantil carregado de expressividade.

Impregnado de questionamentos, brincadeiras, adivinhas, imagens e outras manifestações do brincar-jogar, comuns as crianças de todos os tempos, - mas esquecidos atualmente por muitos - encontramos várias manifestações da lírica no universo infantil. A oralidade, as ilustrações carregadas de aviões, anjos, pipas, barcos, peixes, pescaria, violão remontam, ludicamente, o universo da infância como signos entoados pelas próprias crianças e por seus pais.

A prosa poética deve ser entendida aqui não somente como ponto de vista estético, mas, sobretudo, como função lúdica e estratégia memorialística da infância. Nesse sentido, as palavras/imagens são tocadas como objetos, como algo corpóreo que participa do mesmo universo dos brinquedos da criança.

Esse mesmo tempo - volta à infância - acontece e está presente em diversos poemas das diferentes épocas da composição de Manoel de Barros. A infância, na poesia manoelina surge, segundo Afonso de Castro (1991) como expressão do lúdico no acontecer da vida, como origem do ser, ou ainda, como explicação da experiência da infância do poeta, especificamente, retratando tipos, situações, vivências arquetípicas recorrentes como matrizes de seus devaneios poéticos. Manoel de Barros tem poemas que retratam a infância como tempo/lugar ideal da inocência, como estado primordial da existência a partir do qual se originam todas as possibilidades; a infância considerada como fase inocente da vida seria a origem originante de todos os sonhos e idealidades da vida e do universo.

Por isso não é de se estranhar na poética de Manoel de Barros que nas relações entre homem, mundo e linguagem a infância emerge como estado potencial de todas as invenções. Essas mesmas imagens, também, podem ser percebidas no livro Memórias Inventadas onde, o poeta, ao falar de si e de suas errâncias, não apresenta propriamente relatos de sua vida como acontecimentos reais que descrevem os fatos. “[...] eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e, comunhão com ela. Era o menino e as árvores” (BARROS, 2008, p.11). Essas memórias de infância apresentam-se de maneira fragmentada e à deriva, sem que obedeçam a um movimento ou a limites de tempo e espaço. Apresentam-se, metaforicamente, como flashes memorialísticos, fragmentos de lembranças livres, soltos, inventados.

Molhada pelo líquido viscoso e ambíguo da prosa poética e escorregadia de Guimarães Rosa (1908-1967), a poesia barriana mergulha o leitor - nada inocente - no chão infantil das palavras, na metalinguagem que reforça, insistentemente, - como também fez Clarice Lispector (1920- 1977) -, a paixão pelas palavras. E, por isso mesmo, diz em tom encantador em Menino do Mato: “Penso nos rios infantis que ainda procuram declives/ para correr” (2010, p.29) ou, ainda, “Escrever o que não acontece é tarefa de poesia” (2010, p.31).

Tudo de alguma forma, em Menino do Mato reforça o “absurdo divino das imagens”, sobretudo as imagens que vêm do chão da infância, do idioma e do “menino do mato” - “Eu queria mesmo que as minhas palavras/ fizessem parte do chão como os lagartos/ fazem” (p.65). Na escritura leve e vislumbrante, as imagens da infância assumem o delírio da palavra e a carga semântica de passagens significativas, apesar de não representarem isso tudo em significantes. Dividido em duas partes - a primeira “Menino do mato” - e a segunda parte “Cadernos de aprendiz” – o livro é uma longa narrativa.

Menino do Mato é uma narração lírica que divaga para o particular e o minúsculo, sem desprezar o desejo de universalidade. Feito poema-rio que deságua - metáfora significativa para se pensar o livro como um todo - segue por noventa e seis páginas enlaçando o estilo memorialístico ao desenho da infância que, reforçado pela epígrafe inicial e as paisagens que cita, privilegia o traço delicado, informe e provisório da figura, marca de um texto rasurado e em processo.

Manoel de Barros, com isso, capta a poética fragmentária com sensação de inacabada, vislumbrada na Modernidade por Baudelaire e, que, sem dúvida nenhuma ressoa com as Artes Plásticas, o gênero da improvisação, os croquis, a aquarela e a água-forte. Poesia e pintura, desde a capa, - paratexto de abertura da obra -, passam a ser referenciais entre a alusão e o experimentalismo, o inacabado e o sensível.

O sujeito narrativo, - condutor que enuncia o discurso em Menino do Mato -, é um adulto que lembra do menino que foi, e, esse “menino do mato” , apresenta-se como aquele que busca o novo, o ainda não-dito, extrapolando para a liberdade. Nesse livro, o difícil caminho do menino é, também, o mesmo do poeta diante da criação, por isso infância e poesia se alimentam de devaneios. “A gente gostava das palavras quando elas perturbam o sentido normal das ideias”, diz o narrador astuto, na sua metalinguagem.

Esse menino, como muitos outros citados na poética barriana, presente em cada cena ou palavras do livro, ecoa do título que nomeia a obra, - Menino do Mato -, e se contextualiza no universo distante dos centros urbanos e, portanto, as referências e os interesses dele dizem respeito a elementos da natureza, o que instiga os sentidos e amplia a percepção: “Nosso conhecimento não era de estudar em livros”./ “A gente queria o arpejo. O canto. O gorjeio das palavras” (2010, p.11).

Como se estivesse voltando a um filme em pequenos flashes, e vendo-se menino, esse narrador confessa em tom metalinguístico: “A gente gostava bem das vadiações com as palavras do que das prisões gramaticais” (2010, p.12). A segunda parte do livro - escorre e fragmenta cada vez mais o discurso - assume desníveis em relação à primeira. O narrador adulto, valendo-se de falar de si pela mediação da infância e pela forma estética, recompõe certo autorretrato. Essa postura, extremamente fragmentária, feito anotações em um caderno escolar, capta o efêmero e o fugidio do instante ou o detalhe significativo do close da cena.

Pincela-se, assim, o contorno do quadro pelo toque distorcido de expressividade e subjetividade, estilhaços de uma poética da fragmentação e do desvario. Uma profusão de imagens partidas da memória infantil que irá permitir a Manoel de Barros contemplar-se duplamente nos desenhos da capa – expressões delicadas de sua figurativa ambiguidade. Desenho e palavra, poesia e pintura rupestre, de certa forma, confirmam que: “Ele sabia que as coisas inúteis e os homens inúteis se guardam no abandono. Os homens no seu próprio abandono. E as coisas inúteis ficam para a poesia” (2010, p. 91).

Sua escritura poética apresenta-se, assim, calcada no trabalho com o uso dos significantes os quais extrapolam os lugares comuns ao serem trabalhados de maneira tal que se ajustam ao texto, sempre que o poeta deseja extrair dele a essência de seu significado semântico ou metafórico. Nesse sentido, o Manoel-poeta, nesse livro, ao eleger o Pantanal como o espaço em que se constitui fazendo comunhão “[...] de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago em minhas “raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas” (BARROS, 2008, p.11).

2. A ENCENAÇÃO DO POÉTICO

Essa brincadeira com as palavras também podem ser percebidas/sugeridas em vários desenhos que o próprio poeta fez quando tinha vinte anos.

Figura 01. Desenho desenvolvido pelo poeta Manoel de Barros.

Fonte: BARROS apud Espíndola (2006, p.100)

Figura 02. Desenho desenvolvido pelo poeta Manoel de Barros.

Fonte: BARROS apud Espíndola (2006, p.90)

Figura 03. Desenho desenvolvido pelo poeta Manoel de Barros.


Fonte: BARROS apud Espíndola (2006, p.93)

Figura 04. Desenho desenvolvido pelo poeta Manoel de Barros.

Fonte: BARROS apud Espíndola (2006, p.95)

Quanto a esses desenhos, assemelham-se as discussões sobre a infância quando ele mesmo afirma em entrevista a Pedro Espíndola:

Sempre achei que as minhas palavras teriam que atingir o grau de brinquedo para que fossem sérias. Acho que os bonecos têm o peso da infância. A infância não conhece a técnica. Os desenhos dos bonecos podem ser comparados, não desarrazoadamente, com desenhos de crianças. Porque em ambos temos a mesma visão pré-lógica, o mesmo deleite do olho inocente” (BARROS, Manoel, 2006, p.53).


Segundo Ordália Almeida, ao falar de seu processo de escrita e desenho diz: “seu jeito de escrever e desenhar só me leva a pensar que todo dia é dia de reconhecer e valorizar a infância” (ALMEIDA, 2006. p.27). Signo e escrita, traço e poesia, ou ainda, desenho e poesia comungam características semelhantes. De certa forma, esses delicados desenhos dão contorno a sua poética e reforçam as metáforas da imaginação em memórias infantis. Para ele, quando fala dos bonecos em sua poética, afirma: “Teria caído em mim um surto de puerícia”.

Outro livro que reforçam esses mesmos olhares é Escrito sem verbal de ave (2011). Delicadeza, espanto, leveza, palavra e imagem poderiam ser as cinco palavras iniciais para a primeira impressão de sua leitura. Primeiramente, a delicadeza e a beleza reforçam a relação texto-imagem, visualidade e desenho na estrutura do livro composto de quatorze páginas dobradas em cruz para formarem um mosaico. Desse jogo delicado e estético não ficam de fora a cor alaranjada, o tamanho, a textura e o encanto do origami que seduzem qualquer leitor sensível. Esta estrutura dobrada e dobrável, espécie de livro-brinquedo, articula-se com a poética de Manoel de Barros principalmente no que diz respeito a uma poesia de brincadeira linguística e interação criativa.

Se por um lado o livro-objeto já é um jogo visual e criativo, a poesia, por outro,

tematiza a infância como reduto da espontaneidade, das relações da palavra com a confecção do brinquedo, como certo recurso metalinguístico e sutil de preparar surpresas ou espantos. O que este livro e o lirismo de Manoel de Barros sugerem para o leitor é o desejo de exercer a liberdade de animar a matéria sem preocupação de explicá-la. Nele o perfil do sujeito-criança personifica ou metaforiza o papel de revelar a riqueza e as variações das imagens. Este sujeito - representado na figura de Bernardo nesta obra – se resguarda no escudo da ingenuidade reforçando uma percepção inventiva que procura o tempo inteiro saciar a curiosidade.

Além do título - Escritos em verbal de ave e da epígrafe inicial “A infância/ é a camada/ fértil da vida”, de Nicolas Behr - os desenhos surreais da contracapa e os do próprio poeta confirmam o efeito de maravilhamento validado pelo sujeito-criança. Do acervo de Bernardo, intitulado “Os Desobjetos” além dos intratextos com os livros infantis O Fazedor de Amanhecer e Exercícios de ser criança percebe-se uma lista de outros treze elementos que surgem como de um baú ou memória tátil enaltecendo os objetos pequenos que podem surgir na mão ou mesmo servirem de instrumento de trabalho: “martelo”, “guindaste de levantar vento”, “o parafuso de veludo”, “presilha”, “alicate”, “peneira”, “besouro”, “água” e o “rolete”. Todos eles compõem, delicadamente, o arsenal reflexivo e poético de Bernardo.

O teor léxico e lúdico da enunciação deixa clara a brincadeira linguística, o esconder-se, expor em nu o que está “profundamente” vestido: “uma desbiografia: Bernardo morava de/ luxúria com as suas palavras”; “Bernardo sempre nos parecia que/ morava nos inícios do mundo”. A partir disso, podemos dizer que a poesia barreana é um desenho: Bernardo e os jogos infantis vão-se desnudando em um plano ótico diante do leitor-espelho e provocando reações do espaço.

A infância, nessa perspectiva, também é mediada pelo olho do emissor. São traços de paisagens, lirismos, decorações com sabor: festa das palavras, dos bichos, sensorialidade apontadas para preencher o movimento tecido da memória. Ela - a infância - também é a medida de uma vestimenta de brincadeiras que o circunda, na busca afetiva da alteridade na natureza, na obsessão metonímica e delicada que limita o olhar, no processo de contraste entre o oculto e o exibido.

Ao livro todo em aberto, com o desenho de um menino em posição de mergulho,

aparecem os fragmentos poéticos em tom claro da folha. Os vários tercetos, nesta folha maior - agora aberta para quem quiser ver/fruir– surgem em enigmas do estilo poético-aforismático, impressão digital da escrita fragmentária de Manoel de Barros. Entre o desenho, as dobraduras e o estilo à deriva dos fragmentos, a palavra passa pela transmutação da escrita para a imagem. Os balbucios, entre cintilações e desenhos, da história de Bernardo foram apagados para deixarem surgir, em tempo certo de madureza, nódulos de pensamento, tensos de sentidos, mansos de sabedoria nutritiva dos fragmentos.

A passagem da história de Bernardo a dos pensamentos/fragmentos que abrem o volume como um todo na dobradura, aos conceitos de poesia ou do ato de escrever, segue um curso natural quanto o de um menino que deságua no mar dos fragmentos. Afinal, a palavra não tem limites, ela é o próprio mar. É, também, a festa do mergulho, daquele que flui na esperança da unidade, à revelia do pensamento, da vida e da morte. No interstício entre as palavras e o mergulho, entre um e outro, surge um diferente modo de espiar a poesia e, mais ainda, a poesia como espreita - quase fricção física do mergulho e palavra, corpo e escrita, vida e poesia. É, ao mesmo tempo, exuberância, subjetividade, imagem - memória de carícia plena, inscrita no corpo- e voo, leveza, mergulho, descoberta.

Apesar de Bernardo remeter-se ao mundo da floresta (e a uma tradição literária brasileira bucólia), de fazer um “ferro de engomar gelo”, de fazer das palavras brinquedo ou de ver uma “borboleta emocionada de pedra”, de possuir singularidades e ligação com a natureza, ele, também, questiona o discurso urbano do mundo globalizado, consumista e que não respeita ambientes naturais. Esse olhar transgressor da poesia barreana é, ao mesmo tempo, performático, pois estabelece uma posição teatral diante da vida e de temas atuais, enfatizando aspectos da infância, da memória e da escrita. Vasculha o paradeiro do personagem assemelhando-o com os dos animais e das plantas com uma visão que se pretende infantil e, aparentemente, despreocupada.

Esses recursos confirmam que a poesia para Manoel de Barros é transgressão da lei, gozo do dizer, utopia da completude. A mais perfeita resolução da vingança perversa da língua contra si mesma. Isso não é segredo para ele, o que sabe, porque joga entre signos. Desse jogo, cumpre um recenseamento para sugerir a exuberância das inutilidades do mundo. Nada escapa das analogias, tudo é motivo para recriar sentidos com elementos heterogêneos e isolados.

Escritos em verbal de ave - como o próprio paratexto sugere é palavra para vôo, mergulho, errância, ócio e reflexão. De certo modo, Bernardo - o personagem desse livro lembra outro poeta que Manoel de Barros alude: Rimbaud- o poeta francês que abolia fronteiras e buscava a liberdade da poesia, do poeta e do leitor para a descoberta.

3. CONCLUSÃO

A delicadeza dos bonecos, articulados em palavras, imagens e natureza, traços infantis e simples configura, de certa forma, um imaginário pautado no chão do Pantanal, na dimensão lúdica e imaginária - encenações e inspirações poéticas e infantis, lugar metafórico para o surgimento da linguagem. Dos neologismos aos traços dos desenhos, a infância se desloca para a poesia num constante e criativo jogo de faz-de-conta. Com esse gesto, traço e letra instauram um tempo produzido pela palavra, imagem e invenção, poesia e criatividade.

Essa comunhão ou transfusão semiótica com a natureza (também presente nos desenhos e ilustrações dos livros), ou a relação direta com ela, então, revela o “chão da língua”, sempre estrangeiro, mesmo que nativo, mas nunca sem perder a delicadeza e a virgindade das palavras. “Penso que trago em mim uma pobreza ancestral que me eleva para as coisas rasteiras” (BARROS, 2003, p.123)i. E é aí, nesse lugar de materialização do significante, da desconstrução da língua e da coisificação do sujeito poético que podemos escutar, na voz, os ecos de Fernando Pessoa ou Guimarães Rosa, mas também de outros “sussurros da mata”, gorjeio de pássaros, que, desse chão de letras irradia.

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i Entrevista Em idioleto Manoelês Archaico, entrevista concedida a Lúcia Castello Branco e Luiz Henrique Barbosa em 19/11/1994. In: BARBOSA, Luiz Henrique. Palavra do chão. São Paulo; Annablume. Belo Horizonte. 2003. pp.123-128