PISSOLI, J.; VALÉRIO, P. da S. A transposição da língua portuguesa em textos
midiáticos sob a perspectiva enunciativa bakhtiniana. Revista Diálogos (RevDia),
“Edição comemorativa pelo Qualis B2”, v. 6, n. 2, mai.-ago., 2018.
A TRANSPOSIÇÃO DA LÍNGUA INGLESA PARA LÍNGUA PORTUGUESA
EM TEXTOS MIDIÁTICOS SOB A PERSPECTIVA ENUNCIATIVA
BAKHTINIANA
The English language transposition into Portuguese language transposition in
media texts from Bakhtin’s enunciative perspective
July Pissoli (UPF)
1
Patrícia da Silva Valério (UPF)
2
1
Mestra em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de
Passo Fundo, Brasil. july.pissoli@gmail.com
2
Professora do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UPF,
onde desenvolve estudos vinculados à linha de pesquisa “Constituição e interpretação
do texto e do discurso”. patriciav@upf.br
RESUMO: Neste artigo, que resulta de uma investigação maior realizada durante
pesquisa de mestrado, são revisitados conceitos de tradução, na perspectiva da
transposição, e da enunciação, na perspectiva bakhtiniana, para buscar entender a
influência do meio social na tradução de textos midiáticos on-line. Para tanto, analisa-
se como a informação e a cultura são (trans)portadas da língua inglesa para a língua
portuguesa em uma notícia veiculada na aba “Aprenda Inglês” do site BBC Brasil. O
trabalho sustenta-se teoricamente nos estudos da tradução de Lefevere (1992),
Derrida (1995), Jakobson (1959, 2005), Benjamin (2013) e Bezerra (2015) e na teoria
de Bakhtin e seu Círculo, sob o olhar de Bakhtin/Volochínov (2014) e Bakhtin (2015).
A análise realizada aponta para a complexidade do processo tradutório na perspectiva
enunciativa, uma vez que atuação de forças exteriores no (trans) porte da
informação e da cultura.
PALAVRAS-CHAVE: Tradução/transposição. Enunciação. Conteúdo.
Cultura. Recriação.
ABSTRACT: In this article, which is the result of a bigger investigation that was
carried out during a master research, concepts of translation are revisited, in the
perspective of transposition, and enunciation, in Bakhtin’s perspective, in order to
understand the social environment in translation of online media texts. Thus, it is
analyzed how information and culture are (trans) ported from English language to
Portuguese language in a piece of news, which is available in the tab “Learn English”
of BBC site. This study is theoretically based on the studies of translation of Lefevere
(1992), Derrida (1995), Jakobson (1959, 2005), Benjamin (2013) and Bezerra (2015)
and Bakhtin's theory and his Circle, under the watchful eye of Bakhtin / Volochínov
(2014) and Bakhtin (2015). The analysis of the text has showed a great complexity in
the translation process in the enunciative perspective, since there is some actuation
of external forces in the (trans) portation of information and culture.
KEYWORDS: Translation/transposition. Enunciation. Content. Culture. Recreation.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo é resultante de um estudo maior
3
que investigou a
tradução da língua inglesa para língua portuguesa em textos midiáticos
on-line. Sabemos que a temática da tradução não é absolutamente
original, entretanto acreditamos que o estudo desenvolvido pode
contribuir para os estudos no campo da enunciação.
Acreditamos que a teoria de Bakhtin e seu Círculo é valiosa para o
olhar enunciativo que construímos para a atividade tradutória.
Sabemos que esses filósofos da linguagem não tratam especificamente
da tradução, no entanto, seus estudos, ao apontarem para a
3
Dissertação de mestrado: A transposição da língua inglesa para língua portuguesa em
textos midiáticos sob a perspectiva enunciativa bakhtiniana (2018).
importância da relação entre locutor e interlocutor e para aspectos
relacionados à situação e à interação, mostram que o conteúdo de toda
enunciação é decorrente da sociedade onde o indivíduo se encontra
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2014) e podem, portanto, fornecer subsídios
para a compreensão do processo da significação e do sentido
produzidos na enunciação.
A pesquisa desenvolvida teve por objetivo analisar como a
informação (conteúdo) e a cultura (expressão) são (trans)portadas da
língua inglesa para a língua portuguesa em textos midiáticos on-line.
Desse modo, buscou analisar, a partir da materialidade linguística e à
luz dos conceitos enunciativos bakhtinianos, quem são os atores do
processo de tradução em textos on-line, isto é, quem ‘traduz’ para
quem.
Assim, com vistas a revelar parte da investigação realizada,
organizamos este texto em três seções. A primeira, como o objeto do
estudo são textos traduzidos, visa resgatar alguns dos principais
conceitos sobre os estudos da tradução
4
, conforme Lefevere (1992),
Derrida (1995), Jakobson (1959, 2005), Benjamin (2013) e Bezerra
(2015). A segunda destaca conceitos teóricos oriundos de estudos de
Bakhtin e seu Círculo, Bakhtin/Volochínov (2014) e Bakhtin (2015),
uma vez que esta é a perspectiva de língua adotada neste trabalho. A
terceira seção apresenta a análise de um dos textos que integram o
corpus de pesquisa. Nesta etapa, buscamos, à luz da teoria enunciativa
de Bakhtin e seu Círculo, analisar as versões, em língua inglesa e em
língua portuguesa, de uma notícia veiculada no site da BBC Brasil na
aba “Aprenda Inglês”. Por fim, são apresentadas as considerações
finais.
4
A perspectiva teórica adotada considera o texto traduzido como renovação de
sentido e opõe-se à visão essencialista de a tradução como reprodução, em sua
totalidade, da ideia do texto original.
2. A TRADUÇÃO COMO PROCESSO DE CRIAÇÃO
Sabemos que nenhuma língua pode remeter totalmente ao sentido
da outra, pois cada uma define o mundo que sua língua permite ver.
Assim, trazemos, nesta seção, conceitos de tradução de autores que
assumem explicitamente o processo de tradução como ato de
construção.
Walter Benjamin (2013) argumenta no sentido da possibilidade da
traduzibilidade, no entanto não da equivalência:
[...] para compreender a autêntica relação existente entre
original e tradução cabe fazer um exame, cujo propósito é
absolutamente análogo ao dos argumentos com os quais a
crítica epistemológica deve comprovar a impossibilidade
de uma teoria da cópia ou da reprodução do objeto. Se
com isto se demonstra não ser possível haver objetividade
(nem mesmo a pretensão a ela) no processo do
conhecimento, caso este consista apenas de cópias do
real, então pode-se também comprovar não ser possível
existir uma tradução, caso esta, em sua essência última,
ambicione alcançar alguma semelhança com o original.
(BENJAMIN,2013, p. 107).
Para Benjamin (2013), a tradução é uma espécie de renovação,
recriação do texto, e o transferência de reprodução de sentido. Além
do mais, de acordo com ele, a verdadeira tradução é transparente, faz
com que a pura língua que é inevitavelmente fortalecida pelo seu
próprio meio recaia ainda mais sobre o original (BENJAMIN, 2013).
Outro autor que fez da tradução objeto de reflexão é Jacques
Derrida (1995), cujos estudos questionam a visão estruturalista e
formalista da língua:
Não tradução, nem sistema de tradução, a não ser que
um código permanente permita substituir ou transportar
os significantes conservando o mesmo significado,
sempre presente apesar da ausência-deste ou daquele
significante determinado. (DERRIDA, 1995, p. 197).
Derrida (1995) recusa qualquer possibilidade de equivalência na
tradução, pois cada signo linguístico constitui um significante e um
significado, que revelam total singularidade. Assim, o tradutor, ao fazer
uso de outros significantes, assume um novo texto.
O tradutor e crítico literário Paulo Bezerra (2015) levanta outra
questão relevante acerca da compreensão e da distância do intérprete.
Conforme o autor, é um grande desafio para o tradutor a tentativa de
manter o tempo, o espaço e a cultura paralelos ao original. Sua tese
encontra abrigo nos postulados teóricos de Bakhtin (2015, p. 365) para
quem “a grande causa para a compreensão é a distância do indivíduo
que compreende no tempo, no espaço, na cultura em relação àquilo
que ele pretende compreender de forma criativa”. Ou seja, tempo,
espaço e cultura são aspectos de extrema relevância na transposição de
uma língua à outra e, certamente, são elementos fundamentais para
entender a transposição de um texto ao outro como uma constante
recriação.
O estudioso belga André Lefevere (1992) apresenta a noção de
tradução como uma recriação, isso é, como a produção da singularidade
de um ato. Nesse sentido, é relevante considerar que não há como
tratar de tradução sem tratar de enunciação, pois tanto o texto de
partida quanto o de chegada sempre estarão ancorados nas condições
de determinadas sociedades e épocas, ou seja, não como considerar
uma tradução como mera repetição de signos em outra língua, ela tem
de ser percebida, ao contrário, como renovação de signos em outra
língua.
Outro autor cujos estudos tomam por objeto a tradução é Roman
Jakobson (2005, p. 65), para quem a tradução é uma forma de discurso
indireto: o tradutor recodifica e transmite uma mensagem recebida de
outra fonte. Assim, a tradução envolve duas mensagens equivalentes
em dois códigos diferentes. Jakobson (2005) explicita a
impossibilidade de uma equivalência completa, pois, ao tratar de
códigos divergentes, não há como tratar do mesmo sentido.
No artigo Aspectos Linguísticos da Tradução, Jakobson (2005)
apresenta três maneiras de interpretar um signo verbal. A primeira é a
tradução intralingual ou reformulação, que consiste na interpretação
dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua; a
segunda é a tradução interlingual, ou tradução propriamente dita, que
consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra
língua; e a terceira é a tradução intersemiótica ou transmutação, que
equivale à interpretação dos signos verbais por meio de sistema de
signos não verbais.
Na tradução intralingual, fica claro que, ao utilizar uma palavra
no lugar de outra, não se obtém a equivalência completa. Essa
insatisfação quanto à equivalência também ocorre no nível da tradução
interlingual. Jakobson (2005, p. 65) afirma que “não comumente
equivalência completa entre as unidades de código, ao passo que as
mensagens podem servir como interpretações adequadas das unidades
de código ou mensagens estrangeiras”. Progressivamente, uma
demasiada preocupação quanto à interpretação criativa que o tradutor
faz do original.
Na linguística, a equivalência na diferença é o problema principal
da linguagem. Conforme Jakobson (1959, p. 234), “a prática e a teoria
da tradução abundam em problemas complexos, de quando em quando,
fazem-se tentativas de cortar o górdio, proclamando o dogma da
impossibilidade da tradução”. Nota-se que, em nenhuma das três
maneiras de tradução propostas por Jakobson uma equivalência
completa de determinado sentido em outra língua. Isso acontece em
razão de que cada pessoa recebe uma formação linguística diferente
para se expressar. Além do mais, o contexto em que cada enunciação se
encontra influencia significativamente no conteúdo de cada palavra.
Por meio da prática e da teoria da tradução, fica cada vez mais
nítida a visão de Jakobson em torno da intraduzibilidade, isto é, da
impossibilidade de transferência do “espírito criativo” de uma língua
para outra. Essa ideia reforça ainda mais o objetivo principal desta
investigação, que é tratar a tradução como singularidade de um ato,
como atividade única.
Com base nessas leituras, podemos afirmar que os estudos acerca
da tradução têm evoluído significativamente para a construção de um
novo conceito de tradução, a tradução como recriação, conceito que,
acreditamos, encontra abrigo na enunciação. Nesse sentido, na próxima
seção, pretendemos resgatar o que Bakhtin e seu Círculo propõem
acerca da enunciação, para que, posteriormente, seja possível explicitar
de que modo a informação e a cultura são (trans)portadas de um língua
à outra.
3. A ENUNCIAÇÃO PARA PENSAR A TRADUÇÃO
Os limites deste artigo nos impedem de aprofundar o tema tal
como mereceria. Assim, antes de avançarmos, precisamos definir a
concepção de língua à qual nos vinculamos, pois esta é fundamental
para a compreensão do conceito de tradução que adotamos nesta
investigação.
Na terceira parte da obra Marxismo e Filosofia da Linguagem,
uma discussão acerca dos limites da linguística para o tratamento dos
fenômenos sintáticos. Bakhtin/Volochínov (2014) critica o pensamento
linguístico contemporâneo, o qual não considerava a enunciação na
análise das formas. É por isso que, em outros textos, Bakhtin apresenta
a metalinguística (ou translinguística) como alternativa para pensar
sobre o sentido no discurso.
Bakhtin/Volochínov (2014, p. 146) declara que o sentido de
qualquer unidade sintática dar-se-á sempre na enunciação:
[...] nenhuma das categorias linguísticas convém à
determinação do todo. Com efeito, as categorias
linguísticas, tais como são, são aplicáveis no interior
do território da enunciação. Assim, as categorias
morfológicas têm sentido no interior da enunciação;
elas deixam de ser úteis quando se trata de definir o todo.
O mesmo se com as categorias sintáticas, por exemplo
a oração: a categoria oração é meramente uma definição
da oração como uma unidade dentro de uma enunciação,
mas de nenhuma maneira como entidade global.
Para Bakhtin/Volochínov (2014), tanto a morfologia quanto a
sintaxe revelam sua importância a partir da enunciação, pois, ao
tratarem das unidades frasais isoladamente, tornam-se fúteis,
desnecessárias. Somente a enunciação abrange o pensamento completo.
Nesse sentido, é importante mencionar a ideologia e o destinatário
como elementos indissociáveis da enunciação. Nas palavras de
Bakhtin/Volochínov (2014, p. 147), “as definições linguísticas não
podem ser completamente divorciadas das definições ideológicas,
também elas não podem ser usadas para substituir uma à outra”. Disso,
pode-se inferir que a ideologia está impregnada nas formas sintáticas
da língua. Essa ideia é bem interessante para pensar a tradução e o
modo como procede o (trans)porte da forma e do conteúdo na
transposição de uma língua à outra. Quanto à natureza do signo,
Bakhtin/Volochínov (2014, p. 33) explicita que
[...] cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma
sombra da realidade, mas também um fragmento material
dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo
ideológico tem uma encarnação material, seja como som,
como massa física, como cor, como movimento do corpo
ou como outra coisa qualquer.
Assim, sentido e forma estabelecem uma relação de completude,
que é expressa pela sociedade em que se encontram. Portanto, o signo é
um fenômeno do mundo exterior, não repetível e mutável. Nesse
sentido, é satisfatório considerar que todo signo ideológico exterior
mergulha na consciência interior e a partir de então uma contínua
renovação.
Nas palavras de Bakhtin/Volochínov (2014, p. 58), o signo
ideológico nasce deste oceano de signos interiores e aí continua a
viver, pois a vida do signo exterior é constituída por um processo
sempre renovado de compreensão, de emoção, de assimilação, isto é,
por uma integração reiterada no contexto interior”. Pensamos que, no
processo tradutório, acontece um processo semelhante, pois o sujeito
que traduz assimila as unidades sígnicas que estão na língua
estrangeira a partir da consciência interior e as transpõe para a língua
materna, revelando sentidos que o produtos da coletividade, pois, no
processo de assimilação, as unidades sígnicas sofrem um processo de
transmutação ao serem recriadas pelos signos ideológicos que foram
assimilados anteriormente. Assim, uma constante renovação de
sentidos, formados de correntes ideológicas passadas e atuais, por isso
pode-se afirmar que o signo é uma unidade de valor sócio-histórico.
Por esse prisma, é de extrema importância considerar que, para o
Círculo de Bakhtin (2014), a ngua nasce e se desenvolve na sociedade.
Em Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin/Volochínov (2014, p.
111) insiste sobre a indissociabilidade do signo e da ideologia:
[...] os indivíduos não recebem a língua pronta para ser
usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal;
ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é
que sua consciência desperta e começa a operar. É apenas
no processo de aquisição de uma língua estrangeira que a
consciência constituída graças à língua materna - se
confronta com uma língua toda pronta, que lhe resta
assimilar. Os sujeitos não “adquirem” sua língua
materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro
despertar da consciência.
É a partir da sociedade e da época que os signos são constituídos
de valor, isto é, os signos são unidades de valor social. Sendo assim, são
unidades singulares, únicas. Na tradução, engana-se quem pensa que é
possível encontrar no texto traduzido signos que revelem o mesmo
valor semântico que os signos do texto original e isso acontece devido
ao caráter autêntico que o signo revela em cada sociedade e época. É
esse um dos principais aspectos que procuramos observar na análise
das notícias da BBC Brasil que constituem o corpus de análise de nossa
pesquisa.
De acordo com Bakhtin/Volochínov (2014), o signo ideológico
apresenta uma dupla materialidade. Uma refere-se ao sentido físico, ou
seja, material; a outra, ao sentido histórico-social. Vale enfatizar que,
ao desempenhar seu papel de veículo, a materialidade física se estende
como realidade histórico-social, resultando no material sígnico
(PONZIO, 2009). Assim, materialidade sígnico-ideológica e física estão
estritamente relacionadas uma à outra. Consequentemente, as unidades
sígnicas são resultados das sociedades e, portanto, são únicas. Elas
estão embebidas de correntes ideológicas que certamente influenciam
nos seus sentidos. Conforme Ponzio (2009, p. 137),
[...] a palavra concreta, e não sua abstração em nível de
dicionário, é sempre ideológica; forma-se e se modifica
em um determinado contexto de valores que estão
dialeticamente unidos às condições materiais da vida e à
divisão do trabalho. Em uma sociedade dividida em
classes, na linguagem refletem-se e são necessárias as
contradições entre correntes ideológicas diferentes e,
ainda que prevaleça a da classe dominante, esta nunca
consegue eliminar de todo as outras correntes
ideológicas.
De acordo com tal concepção, um mesmo signo pode refletir
relações de classes distintas. Isso é muito facilmente notável na
atividade tradutória, ou seja, as palavras sofrem aspirações de
correntes ideológicas, então a tradução de uma palavra não pode ser
considerada como reflexo de determinado sentido noutra língua, mas
sim reflexo da sociedade em que ela se situa, além de se mostrar como
reflexo de outras sociedades, pode-se dizer de outras vozes, acentos e
intenções sociais.
Quando alguém se apropria da palavra, esta o se encontra
impessoal e neutra, mas sim com um traço ideológico estabelecido, com
uma intenção valorativa. Nesse sentido, Ponzio (2009, p. 148) afirma
que “quando o falante a torna (a palavra) própria, nunca é uma palavra
vazia a ser ocupada com conteúdos ideológicos que existiam nela. A
palavra permanece sempre como ‘semi-alheia’”. Na transposição de um
texto da língua estrangeira à língua materna, a palavra encontra-se
com o conteúdo ideológico mais complexo ainda, pois a realidade de
duas épocas e duas culturas, que revelam visões de mundo diferentes.
Isso ocorre porque as palavras, além de designarem os objetos,
expressam a posição de cada sujeito em relação a eles.
Nessa direção, é importante mencionar o conceito de refração
5
,
que tem relação com a multiplicidade de sentidos que os signos podem
assumir. De acordo com Bakhtin/Volochínov (2014), não há como tratar
de signo sem considerar a refração, uma vez que a palavra está sempre
repleta de voz do outro, além do mais, encontra-se constantemente
numa sociedade diferente e em época divergente.
Bakhtin (2015, p. 335) declara que “as unidades da comunicação
discursiva enunciados totais o irreprodutíveis (ainda que se possa
citá-las) e são ligadas entre si por relações dialógicas”. Diante dessa
afirmação, a ideia de que o texto traduzido é uma repetição do que está
escrito em outra língua não encontra abrigo em Bakhtin, uma vez que
somente as unidades linguísticas podem ser repetíveis. Ademais, o
filósofo da linguagem enfatiza a informação de que todo ato de fala está
interligado a outros, o que dificulta ainda mais a difícil tarefa do
tradutor que esteja em busca de uma manutenção fictícia de forma e
sentido do texto original.
Assim a enunciação abrange o pensamento complexo, pois ela
implica a interação. Todo enunciado é constituído de autor, destinatário
5
Faraco (2003, p. 50) define refração como “o modo como se inscrevem nos signos a
diversidade e as contradições das experiências históricas dos grupos humanos”.
e superdestinatário. O destinatário é participante ativo de toda
enunciação, sua força varia de acordo com a composição e o estilo do
enunciado (BAKHTIN, 2015). A situação da enunciação e a identificação
dos interlocutores a quem ela se dirige determinam as dimensões e as
formas de cada enunciação. Conforme Bakhtin/Volochínov (2014, p.
129), “a situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizar-se
em uma expressão exterior definida, que se insere diretamente no
contexto não verbalizado da vida corrente, e nele se amplia pela ação,
pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situação
de enunciação”. Isto é, a enunciação depende de uma série de fatores
que são determinantes na forma e no sentido das palavras e,
consequentemente, na enunciação.
Nas palavras de Bakhtin (2015, p. 333), “todo enunciado tem
sempre um destinatário (de índole variada, graus variados de
proximidade, de concretude, de compreensibilidade, etc)”, e um
superdestinatário. Sobre essa noção, Morson e Emerson (2008, p. 151)
explicam que
[...] o superdestinatário pode ser e tem sido personificado
em “várias expressões ideológicas (Deus, verdade
absoluta, o tribunal da consciência humana imparcial, as
pessoas, o tribunal da história, a ciência, etc). Mas
embora essas expressões ideológicas sejam projetadas,
importa não confundi-las com o próprio
superdestinatário, que é, estritamente falando, um fato
constitutivo, não ideológico, mas metalinguístico, de
todos os enunciados. Culturas, subculturas e indivíduos
podem mudar a sua imagem do ouvinte idealmente
responsivo, ou podem não ter nenhuma imagem concreta
e geralmente partilhada, mas seus enunciados ainda
presumem essa “terceira parte”. Deus pode estar morto,
mas de certa forma o superdestinatário está sempre
conosco.
É importante considerar que o superdestinatário, o “grande
Outro” integra o discurso tanto quanto o destinatário. Nas palavras de
Bakhtin (2015, p. 333), “em diferentes épocas e sob diferentes
concepções de mundo, esse superdestinatário e sua compreensão
responsiva idealmente verdadeira ganham diferentes expressões
ideológicas concretas”. Assim, a enunciação, mesmo que seja
individual, sempre seum fenômeno puramente sociológico, pois ela
parte de um contexto, da voz do que gera o discurso e de outras vozes
que estão inclusas em seu discurso, sendo que tudo isso encontra-se em
uma época específica.
Ao tratar da tradução, deve-se considerar o contexto em que ela
foi escrita na sua língua de partida e no da língua de chegada, bem
como o destinatário e o superdestinatário referentes a cada uma delas e
suas épocas.
Ademais, é imprescindível mencionar o tom, pois toda enunciação
apresenta uma apreciação. E essa entoação expressiva é um dos meios
de expressão da relação emocionalmente valorativa do falante com o
objeto de sua fala. Quando uma palavra é pronunciada com entonação
expressiva, ela deixa de ser somente uma palavra, revelando-se como
um enunciado acabado, seu significado refere-se a uma determinada
realidade concreta em condições igualmente reais de comunicação
discursiva (BAKHTIN, 2015).
Nesse sentido, é importante destacar que a presente análise
observa as escolhas linguísticas e os tons impressos através dessas
escolhas nesse processo interacional, que é o discurso, com o objetivo
de constatar se os tons impressos nos textos transpostos são os mesmos
encontrados nos textos originais.
4. UM OLHAR PARA AS VOZES DO TRADUTOR NO TEXTO
DENMARK’S DRUG – TAKING ROOMS FOR ADDICTS
Em razão dos limites deste artigo, apresentamos apenas um dos
textos analisados: Denmark’s Drug Taking Rooms for Addicts
6
. A
escolha por este texto se deve à constatação de ser um dos que revelam
mais fortemente a voz do tradutor. Buscamos, a seguir, analisar as
construções linguísticas que revelam a intersubjetividade instituída
entre um locutor (eu) que traduz para um outro (tu) o texto da notícia
selecionada. Ademais, sabendo que as condições reais da enunciação
regem o aspecto da expressão e colaboram essencialmente para a
singularidade de cada enunciação, observamos e discutimos a
manifestação dos tons impressos do texto original e no transposto.
O texto Denmark’s drug taking rooms for addicts (traduzido pela
BBC Brasil por As salas feitas para o consumo de drogas pesadas) foi
publicado no site da BBC- Brasil, no dia 17 de janeiro de 2017.
Ao refletir sobre a (trans)posição do conteúdo e da cultural neste
texto, perguntamo-nos: a quem esse texto é endereçado? Quem traduz
esse texto para quem? Será que as construções linguísticas e os tons
impressos da transposição são os mesmos dos contidos no texto
original?
Inferimos que os destinatários da notícia Denmark’s drug taking
rooms for addicts (As salas feitas para o consumo de drogas pesadas)
são leitores supostamente interessados em aprender inglês e, assim
sendo, será que a voz desses brasileiros pode ser ouvida na tradução
realizada pela BBC Brasil?
A notícia Denmark’s drug taking rooms for addicts (As salas
feitas para o consumo de drogas pesadas) traz informações sobre as
6
Texto: Denmark’s drug taking rooms for addicts (As salas feitas para o consumo de
drogas pesadas), 17 jan. 2017. Disponível em:< http://bbc.in/2lquStC>. Acesso em: 10
jul. 2017. Esse texto foi publicado pela BBC Brasil, na aba “Aprenda Inglês”. Essa
emissora oferece semanalmente aos leitores, supostamente, interessados em aprender
a língua inglesa, um espaço com curtas notícias em inglês, as quais são transcritas em
inglês, e traduzidas/transpostas para a língua portuguesa. Ademais, em cada notícia,
são destacadas algumas palavras em inglês cujo significado em inglês é
disponibilizado. Por fim, consta ainda uma atividade de interpretação em inglês com
uso desses vocábulos previamente selecionados.
salas de consumo de drogas construídas para os dependentes de drogas
que vivem na Dinamarca. Logo no início da notícia, identificamos o
título, que merece especial atenção conforme mostra o Quadro 1.
Quadro 1. Título do texto original e tradução realizada pela BBC Brasil
ORIGINAL
TRADUÇÃO DA BBC BRASIL
Denmark’s drug-taking rooms for
addicts
As salas feitas para o consumo de
drogas pesadas
Fonte: As autoras
É interessante mencionar que a tradução do título da notícia não
cita o nome do país “Dinamarca”, como consta no título do texto
original. A ocultação dessa informação altera significativamente o
sentido do texto transposto, como explicaremos em seguida. Além
disso, convém saber que em nenhum lugar da versão do texto traduzido
consta a referência ao país “Dinamarca”, sendo esta uma informação
que precisa ser inferida pelo leitor. É bom lembrar que, no início do
texto transposto, a informação de que as salas se situam em um
bairro de Copenhagen. No entanto, nem todo leitor saberá que esta
cidade é a capital da Dinamarca, ou seja, o texto traduzido omite uma
palavra altamente relevante para o sentido da enunciação, uma vez que
remete a um país onde é permitido utilizar drogas pesadas como
heroína nas Skyen, que são salas preparadas exatamente para essa
finalidade, com a supervisão de médicos. Importante saber, embora
nem a versão do texto em inglês, nem a em português mencionem essa
informação, que nas Skyen acontecem entre 500 e 700 usos diários
7
de
drogas, o que revela uma característica social e cultural bastante
diferente da brasileira.
Dando continuidade à (trans)posição da notícia, apresentamos o
quadro 2:
7
Dez países onde o consumo de drogas é legalizado. Disponível em: <
https://lista10.org/diversos/10-paises-onde-o-consumo-de-drogas-e-legalizado/>.
Acesso em: 14 dez. 2017.
Quadro 2. Termos destacados no trecho do texto original e na tradução da BBC Brasil
ORIGINAL
TRADUÇÃO DA BBC BRASIL
This is Copenhagen's seedy red light
district a well-known area to buy
drugs.
O notório bairro Red Light de
Copenhague uma conhecida área para
se comprar drogas.
Fonte: As autoras
Focalizamos, neste segmento, a expressão red light district (em
letras minúsculas na versão em inglês e em maiúsculas na versão
traduzida). Primeiramente, cabe esclarecer que, na Dinamarca, não
um distrito com esse nome; a expressão red light district, de acordo
com o dicionário on-line da Oxford-inglês-inglês (tradução nossa)
8
diz
respeito a “uma área da cidade que contém muitas casas de
prostituição, clubes de strip-tease e outras empresas relacionadas ao
sexo”, isto é, não se trata de um bairro, muito menos “notório”, como o
texto traduzido categoriza. Descobrimos que um bairro chamado
Red Light, no entanto, o na Dinamarca, mas na Holanda, mais
precisamente, na capital Amsterdã, onde o bairro é conhecido pela
indústria do sexo
9
.
O texto da notícia em inglês não revela o nome do bairro, mas
acreditamos que se refira ao bairro de Cristiania
10
, em Copenhagen,
Dinamarca. Notamos que se a BBC Brasil oculta o nome do bairro no
texto original, na tradução, expõe um nome errado, Red Light, ou seja,
o nome de um bairro famoso em Amsterdã, e o na Dinamarca. Diante
desse “engano”, perguntamo-nos: seria esse um descuido do tradutor
8
An area of a town or city containing many brothels, strip clubs, and other sex
businesses.
9
O termo Red Light District foi usado pela primeira vez em um artigo do “The
Sentinel”, um jornal da cidade de Milwaukee (EUA), em 1894, e foi a partir daí que o
nome e a fama do lugar se popularizaram pelo mundo. Informação disponível em: <
https://catracalivre.com.br/geral/agenda/indicacao/conheca-historia-do-bairro-red-
light-district-em-amsterda/ndo>. Acesso em: 15 dez. 2017.
10
O bairro, fundado em 1971, possui cerca de mil moradores que vivem em
comunidade, como hippies. O governo tentou fechar o bairro, que recebe 500 mil
visitantes todo ano, por causa do abuso de drogas e do comportamento anárquico de
seus moradores. Disponível em:
<https://viagemeturismo.abril.com.br/atracao/christiania/>. Acesso em: 15 dez.
2017.
ou uma escolha proposital? Estaria a BBC Brasil encobrindo
informações que poderiam expor a Dinamarca a uma situação de
desvalorização, ou esse “descuido” seria fruto de um trabalho
displicente dos tradutores?
Dando continuidade à análise, apresentamos o segmento cuja
(trans)posição mais nos surpreendeu:
Quadro 3. Texto original e tradução da BBC Brasil
ORIGINAL
This is Copenhagen’s seedy red light
district
Fonte: As autoras
Ainda neste primeiro período do texto, chama-nos atenção o
vocábulo seedy, em negrito
11
. Esse termo recebe destaque na exibição
do vídeo no site da BBC Brasil e também é explicitado, pela página, seu
significado em inglês (seedy: dirty, connected with illegal or morally
wrong activity
12
). O sentido em inglês, de acordo com a nossa tradução,
remete a algo sujo, conectado com atividade ilegal ou moralmente
errada. Então, perguntamo-nos: que motivações teriam levado o
tradutor ao optar por traduzir esse termo por notório, praticamente um
sentido oposto? De acordo com o dicionário Houaiss
13
, notório significa
“que não se pode contestar, duvidar, refutar; evidente: parlamentar
com notório respeito público”. Chama a atenção a tradução de um
termo que é colocado em destaque por um significado tão improvável,
ainda que referendado pelo dicionário. Ou seja, seedy, na tradução em
português, tem seu sentido totalmente distorcido do que assume no
texto original, pois se na versão em inglês o sentido era de
desqualificação do lugar “red light district”, a versão traduzida valoriza
11
Esta é a primeira palavra destacada nessa notícia pela BBC Brasil.
12
Seedy: sujo, conectado com atividade ilegal ou moralmente errada. (Tradução
nossa).
13
Dicionário online de português Houaiss. Disponível em: <
https://www.dicio.com.br/houaiss/>. Acesso em: 17 nov. 2017.
o “bairro Red Light”. Seria esse equívoco mais um “descuido” do
tradutor ou um sentido produzido intencionalmente?
Não propomos, aos moldes da corrente do subjetivismo
individualista, criticada por Volochínov/Bakhtin, tentar adivinhar o que
estaria na mente do tradutor, porém podemos analisar a acentuação da
palavra seedy no texto. Identificamos uma reacentuação latente no
texto traduzido. Percebemos que o tom valorativo do texto original
difere muito do tom valorativo da versão do texto traduzido, na qual se
percebe uma atenuação de sentido negativo ao ocultar o nome do país
Dinamarca, afinal este é um país que se destaca pelas salas em que
drogas pesadas podem ser consumidas. Além do mais, acreditamos que
haja uma reelaboração no tom do texto original, ao traduzir red light
district, termo utilizado para se referir a um bairro onde sexo e drogas
podem ser encontradas, por bairro Red Light.
Ademais, o tom do texto transposto é distorcido do tom do texto
original quando a BBC Brasil opta por traduzir o adjetivo seedy por
notório ao se referir ao bairro que, na verdade, fica localizado em
Copenhagen. Vimos que a BBC Brasil disponibilizou o significado
equivalente a seedy em inglês, quando o termo foi sobreposto no vídeo,
então por que o traduziu por notório? Sabemos que nenhum sentido é
dado pelo dicionário, mas sim construído pelo contexto. No entanto, os
sentidos dessas duas palavras são muito diferentes. Seedy é utilizado
para referir-se a algo sujo, ilegal, enquanto notório constrói um sentido
positivo, referente a célebre, que merece respeito público.
Na sequência do texto, há outro segmento que merece reflexão.
Quadro 4. Fragmento do texto original da primeira análise e tradução da BBC Brasil
ORIGINAL
TRADUÇÃO DA BBC BRASIL
(…) 'fix rooms'… a place where addicts
can legally take class A drugs safely
under supervision and without the fear
of prosecution.
(...) ‘salas de shoot’ um lugar onde
dependentes podem tomar drogas
pesadas com segurança sob supervisão
e sem medo de problemas com a
polícia.
Fonte: As autoras
O termo prosecution
14
, de acordo com o dicionário on-line
Houaiss, significa a instituição e condução de processos legais contra
alguém no que diz respeito a uma acusação penal. Ou seja, no texto
original, without the fear of prosecution seria o correspondente a sem o
medo de processo. Isto é, os frequentadores das ‘salas de shoot’ podem
consumir drogas pesadas sob supervisão e sem medo de ter de
responder a um processo. a BBC Brasil traduziu essa construção por
sem medo de problemas com a polícia. Então temos a expressão sem
medo de processo, na versão original, e sem medo de problemas com a
polícia, na versão transposta. Que razões teriam levado o tradutor da
BBC Brasil a optar por esta tradução?
Com base nos estudos do crítico alemão, teórico literário e
tradutor Johann Jakob Bodmer, especialmente tendo por base um
extrato de seu trabalho Ninety-fourth Letter, publicado em 1746, o
espírito da língua e seu peculiar poder de discurso são utilizados em
diferentes maneiras para expressar os pensamentos, além do mais,
ambos representam a beleza de qualquer língua. Assim, as diferentes
nações, países e ocupações determinam características que diferem de
uma língua à outra (LEFEVERE, 1992).
Nesse sentido, as qualidades atribuídas às coisas variam de
acordo com a nação. Nas palavras de Bodmer (1992, p.126, tradução
nossa),
[...] conceitos como fogo, água, um rei, são os mesmos em
todo lugar e todo mundo irá logo entender em sua própria
língua o que são as chamas do amor, as águas da tristeza,
ou o rei das flores. Mesmo se a imagem é muito estranha,
o claro conceito das duas palavras que tem sido
combinado não pode fracassar em determinar o sentido
preciso do todo. É somente que as qualidades são
produzidas de uma maneira diferente e que a maneira em
14
Prosecution: The institution and conducting of legal proceedings against someone in
respect of a criminal charge.
que elas são representadas, que é comumente chamada de
poder do discurso, não é completamente a mesma
15
.
Dessa maneira, acreditamos que o poder do discurso esteja
relacionado à visão de mundo, àquilo que Volochínov/Bakhtin (2014)
nomeia horizonte interior da ideologia do cotidiano que, via enunciação,
transforma as palavras em expressões concretas situadas socialmente.
A maneira como cada língua permite a visualização das coisas,
portanto, influencia diretamente no sentido dos textos.
Desse modo, é relevante afirmar que o sentido é definido em
situações concretas de uso, não nos dicionários. Palavras que muitas
vezes o encontradas como sinônimos em dicionários não podem ser
consideradas como tal, uma vez que os aspectos culturais inerentes às
palavras não podem ser completamente transpostos de uma língua para
a outra.
Acreditamos que esta transposição realizada pela BBC Brasil,
drogas versus problemas com a polícia, esteja estritamente relacionada
à maneira como problema do consumo de drogas é enfrentado no
Brasil. Quando o combate às drogas iniciou nesse país, ainda na época
da ditadura
16
, a polícia, sob comando do governo, tratava os usuários e
traficantes com muita violência, o que fez com que, culturalmente, o
uso de drogas fosse entendido como um problema com a polícia, que
deveria ser tratado com repressão. Infelizmente, essa prática é ainda
15
No original: Concepts such as fire, water, a king, are the same everywhere and
everyone will soon understand in his own language what the flames of love are, the
waters of sorrow, or the king of flowers. Even if the image is very strange the clear
concept of the two words that have been combined cannot fail to determine the
precise meaning of the whole. It is just that the qualities are adduced in a different
way and that the manner in which they are represented, which is commonly called
the power of speech, is not completely the same.
16
Nesse período, consumidores, mesmo os de classe média e ricos, passaram a ser
presos nas infernais cadeias e ter suas vidas destruídas. Posteriormente, decisões
judiciais preparam legislações que passaram a diferenciar o usuário do traficante,
abrindo, assim, uma brecha para impedir longas penas. Disponível
em:<http://www.tribunadaimprensasindical.com/2015/02/as-drogas-e-ditadura-
militar.html>. Acesso: 17 jan. 2018.
comum, especialmente quando os consumidores pertencem a classes
sociais menos privilegiadas.
O que chama ainda mais atenção na presente análise é a seleção
desse texto para ser disponibilizado no site da BBC Brasil e traduzido.
Por que os jornalistas da BBC Brasil escolheram justamente esse e não
outro texto? Sabe-se que para aprender uma língua estrangeira é
fundamental relacionar as palavras aos seus mais variados contextos
reais de uso, então por que a BBC Brasil escolheu a notícia sobre salas
de consumo de drogas na Dinamarca e não uma notícia referente à
situação brasileira da época, por exemplo? Não seria o Brasil, na época,
pauta de alguma notícia na BBC de Londres? A opção por uma escolha
temática mais familiar aos brasileiros não seria mais interessante a
alguém supostamente interessado em aprender língua inglesa através
de notícias?
Vimos com Bakhtin (2015, p. 283) que “aprender a falar significa
aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciados e não
por orações isoladas e, evidentemente, não por palavras isoladas)”. Ou
seja, os enunciados chegam às pessoas em formas estreitamente
vinculadas a determinados contextos. Notamos que a BBC Brasil
possibilita que seu público-alvo tenha acesso às palavras destacadas
por meio de uma situação real de uso, isto é, em um contexto real. No
entanto, a temática da notícia escolhida salas destinadas ao consumo
de drogas em além de distante da realidade do público leitor na BBC
Brasil, causa mesmo estranheza, especialmente nesses últimos meses
em que o combate ao tráfico tem sido pauta frequente na mídia do
Brasil.
O mais intrigante é que quinze dias antes de essa notícia ser
divulgada pela BBC Brasil, no segundo dia de janeiro de 2017, a BBC
na Inglaterra havia divulgado a seguinte notícia referente ao Brasil:
Dozens die in Brazil Prison Riot (Dezenas morrem em motim em prisão
brasileira - tradução nossa). A notícia destacava as 133 mortes
ocorridas em presídios no Brasil, o que havia desencadeado uma crise
no sistema prisional. As mortes foram consequência de um motim
resultante de guerra entre facções criminosas que disputavam o
controle das atividades ilícitas entre facções. Nos primeiros dias do ano
de 2017, na região norte do país, organizações criminosas teriam
rendido policiais militares e agentes penitenciários e executado
internos ligados a facções rivais.
Vale mencionar ainda que, apenas dois dias antes da notícia sobre
as salas para consumo de drogas divulgada pela BBC Brasil, o jornal
britânico The Guardian, concorrente da BBC na Inglaterra, publicara a
seguinte notícia referente ao Brasil: At least 30 inmates killed in Brazil
prison riot as gang war death toll rises (Pelo menos 30 prisioneiros
foram mortos em motim em prisão brasileira e número de mortes de
guerra de gangues cresce - tradução nossa). Abaixo dessa manchete, as
seguintes informações: Drug gang invaded Alcaçus prison where rivals
were on Saturday (Gangue de drogas invadiu a prisão Alcaçus onde
rivais estavam no sábado - tradução nossa) e About 140 people have died
in violence since beginning of the year (Cerca de 140 pessoas morreram
em violência desde o início do ano - tradução nossa).
Como é possível perceber, o Brasil era pauta de notícias
internacionais na época, assim não teria sido difícil escolher um texto
com um tema mais próximo da realidade brasileira. De acordo com os
Parâmetros Curriculares Nacionais (2013), é fundamental, num
processo de ensino e aprendizagem de uma língua estrangeira, a
identificação do contexto de uso em que a língua está inserida, pois
esta é determinada por sua natureza sociointeracional. Além disso, é
importante considerar que a construção do significado é social, quem
usa a linguagem o faz de algum lugar determinado social e
historicamente. Desta forma, os significados construídos no mundo
social refletem os embates discursivos, sendo que estes são
caracterizados pela confrontação entre discursos que veiculam
percepções, crenças, visões de mundo, ideologias diferentes, etc.
Diante disso, questiona-se: por qual razão a BBC Brasil teria
optado por selecionar e traduzir o texto Denmark’s drug taking rooms
for addicts, cuja temática é tão distante do contexto brasileiro de
repressão às drogas, considerando que poderia ter selecionado e
disponibilizado um texto com temática atual da época, por exemplo,
uma notícia sobre a questão da segurança carcerária no Brasil, que
esse foi o tema dos textos em destaque na impressa britânica no mesmo
período?
Vimos que um tema relevante e familiar à realidade dos
brasileiros, público-alvo da BBC Brasil, ainda que tenha sido abordado
pela BBC News e The Guardian, na Inglaterra, é completamente
ignorado pela BBC Brasil na aba “Aprenda Inglês”. Assim, pensamos:
será que a seleção da BBC Brasil por uma notícia de temática tão
distante da realidade brasileira para supostamente ensinar inglês ao
público brasileiro não revelaria um propósito específico por meio da
aba “Aprenda Inglês”? Será que essa escolha revela um ponto de vista
de quem seleciona aquilo que pensa ser o ponto de vista do
interlocutor, pretenso, interessado em aprender inglês?
Analisamos, na dissertação A transposição da língua inglesa para
língua portuguesa de textos midiáticos sob a perspectiva enunciativa
bakhtiniana, quatro notícias veiculadas ao longo de seis meses nos
quais acompanhamos a disponibilização de textos na aba “Aprenda
Inglês” da BBC Brasil. Nesse mesmo período, verificamos que,
curiosamente, a maior parte das notícias selecionadas e traduzidas
eram de temáticas, senão distantes, pouco próximas da realidade
brasileira.
Assim, pensamos que o objetivo da BBC Brasil, por meio da aba
“Aprenda Inglês”, está muito distante da finalidade a que supostamente
se propõe, pois parece ter objetivo de direcionar o olhar dos brasileiros
a acontecimentos que o façam parte de seu cotidiano, desviando a
atenção da realidade brasileira, veiculando notícias que seguem num
âmbito de curiosidade.
A falta de envolvimento da BBC Brasil com as transposições leva à
hipótese de que essa emissora, através da aba “Aprenda Inglês”, talvez
esteja mais preocupada em distrair os leitores brasileiros do que em
contribuir para o conhecimento da língua inglesa do público
interessado. E considerando que o locutor sempre implica um
interlocutor, a BBC Brasil conhece seu público-leitor, o que leva a crer
que o leitor-brasileiro, supostamente interessado em aprender inglês,
queira realmente se distrair, não se envolver com as temáticas que
denunciam a situação política e social em que vive.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto, os estudiosos da tradução pesquisados conceituam
essa prática como uma recriação e compreendem que a palavra é sócio-
histórica, ou seja, que seu sentido varia de acordo com o meio social e,
ainda, que a época é aspecto determinante nesse processo de renovação
de sentido. Nesse âmbito, o sentido construído no texto-fonte nunca
poderá ser totalmente transposto para o texto de chegada, pois a
sociedade e época intrínsecas ao texto de partida são distintas o que faz
de cada texto um ato irrepetível.
O conteúdo ou seja, a informação está enraizado na forma de
expressão (cultura), assim, não há como tratá-los separadamente. Além
disso, o posicionamento valorativo do tradutor sua voz e as outras
vozes ancoradas na situação sócio-histórica regem a construção da
enunciação, o que implica dizer que toda tradução pode ser considerada
uma recriação, pois tanto o conteúdo quanto a forma de expressão
estão em constante evolução.
O texto disponibilizado pela BBC Brasil, Denmark’s drug taking
rooms for addicts, com o intuito de ensinar a língua inglesa, além de
focalizar um tema muito distante da realidade dos brasileiros,
apresenta falta de comprometimento com o conteúdo informacional da
notícia, que algumas transposições em língua portuguesa são
bastante modificadas da versão em ngua inglesa. Assim, acreditamos
que a aba “Aprenda Inglês” da BBC Brasil, ao colocar o leitor brasileiro
interessado em aprender língua inglesa em contato com textos de
temáticas totalmente distantes de sua cultura, acaba distraindo sua
atenção das notícias que expõem a realidade brasileira.
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