ALBRES, N. de A.; COSTA, M. P. P.; ADAMS, H. G. Contar um conto com encantamento: a construção de sentidos e efeitos da tradução para libras. Revista Diálogos (RevDia), Dossiê temático “Educação, Inclusão e Libras”, v. 6, n. 1, jan.-abr., 2018. [http:// periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/revdia]

CONTAR UM CONTO COM ENCANTAMENTO

A construção de sentidos e efeitos da tradução para libras

Tell a count with enchantment: the construction of senses and the effects of translation for Brazilian sign language

NEIVA DE AQUINO ALBRES (PGET - UFSC)

MAIRLA P. PIRES COSTA (Letras Libras - UFSC)

HARRISON GEROTTO ADAMS (Letras Libras - UFSC)

Sobre os autores

Neiva de Aquino Albres – doutora em educação especial pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar ( 2010- 2013 - Bolsa CNPQ). Mestrado em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS (2005 - Bolsa CAPES). Especialização em psicopedagogia pela Universidade para o Desenvolvimento da Região do Pantanal - UNIDERP (2005). Graduação em normal superior pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS (2003) e graduação em fonoaudiologia pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB (1999). Tem experiência na formação e professores de Libras e no desenvolvimento de material didático dessa língua (FENEIS/SP e Letras Libras -UFSC) e na formação de tradutores/intérpretes de Libras em cursos de graduação e especialização. Docência e coordenação pedagógica em escolas bilíngues para surdos. Consultora de projetos em linguística aplicada e na assessoria para implementação de educação bilíngue em secretarias municipais e estaduais de educação. Tem se dedicado a pesquisas no campo da análise de implementação de educação inclusiva e educação bilíngue para surdos, processos de tradução e interpretação de Libras e português e de ensino de Libras. Líder do Grupo de Pesquisa Didática e ensino de tradutores e interpretes de línguas de sinais - DETILS registrado no CNPq, coordenando a linha Currículo, tradução e formação de intérpretes. Membro do Grupo de Pesquisa em Interpretação e Tradução de Línguas de Sinais - InterTrads registrado no CNPq, coordenando a linha de pesquisa ?Tradução e interpretação em contextos Educacionais?, tendo como objetivo a investigação da atuação de tradutores e intérpretes de línguas de sinais na educação e de processos tradutórios e interpretativos que envolvem contextos educacionais, desde o espaço da sala de aula até a produção e a difusão de material educacional bilíngue multimídia. E-mail: neiva.albres@ufsc.br

Mairla P. Pires Costa – Graduação em Biblioteconomia - com habilitação em Gestão da Informação pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2012). Graduação em Licenciatura em Pedagogia pela UNIASSELVI (em andamento) e Letras Libras - Bacharelado (incompleto), Membro do Grupo de Pesquisa em Interpretação e Tradução de Línguas de Sinais - InterTrads registrado no CNPq. Bolsista voluntária do NUPILL (Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística) com foco na Biblioteca Digital de Literaturas de Língua Portuguesa (núcleo de pesquisa de excelência do CNPq, desde 2008). E-mail: mairla.libras@gmail.com

Harrison Gerotto Adams – Acadêmico do curso de Licenciatura em Letras Libras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente trabalho como Bolsista do Projeto Libras e Saúde , coordenado pelo Professor Dr. Carlos Henrique Rodrigues e também participo do Programa Voluntário em Iniciação Científica(PIBIC/CNPq), da UFSC como bolsista do projeto de pesquisa do Inventário de Libras da Grande Florianópolis , coordenado pela Profª. Dra. Ronice Müller de Quadros. E-mail: harrison_adams@live.com

RESUMO: Este artigo aborda o processo de construção de sentidos em tradução com o objetivo de mostrar o papel de leitor e de produtor de novos enunciados em atividades de tradução, ao analisar trechos de traduções realizadas com os alunos do Curso de Letras Libras, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O texto parte de uma discussão da contribuição do pensamento bakhtiniano às Ciências Humanas, no tocante ao discurso, à atividade, ao sujeito e à subjetividade. A partir da descrição de trechos da tradução e detalhando as escolhas tradutórias, evidencia-se a utilização do espaço-sub-rogado, a construção do sentido não somente pelas palavras que compõem o texto escrito, mas, também pelas ilustrações que fazem parte da obra. Concluímos, como resultado de pesquisa, que apesar do projeto enunciativo do tradutor ser diferente, garante-se o processo de construção de sentidos.

PALAVRAS-CHAVE: Tradução. Sentido. Libras.

ABSTRACT: This article discusses the senses construction process of translation in order to show the role of player and producer of new enunciation in translation activities, analyzing stretches of translations carried out with Libras Language undergraduate students at Federal University of Santa Catarina (UFSC). The text starting from a discussion of the Bakhtin’s contribution to the Human Sciences, with regard to discourse, the activity, the subject and subjectivity. From the description of the translation sections and detailing the translational choices, highlights the use of space-subrogated, the construction of meaning not only by words of the written text, but also the illustrations that are part of the work. We conclude, as a result of research, that despite the translator’s declarative enunciation be different, ensures the process the construction of senses.

KEYWORDS: Translation. Sense. Libras Language

1. INTRODUÇÃO

Traduções para língua brasileira de sinais – Libras vem gradativamente sendo publicadas no Brasil na medida em que os usuários da Libras estão presentes em diversos espaços e requerem materiais didáticos, acadêmicos ou literários em Libras (ALBRES, 2012, 2014a). Bem como em função das políticas de acessibilidade mediante a luta pelos direitos linguísticos (BRITO, 2013), que garantem o direito ao acesso à cultura e educação por meio de sua língua. Os textos produzidos para língua sinalizada são produzidos basicamente em formato midiático, sendo que esse tipo de texto requer do tradutor a utilização de estratégias específicas, diferentes daquelas utilizadas em traduções de línguas orais produzidas apenas em formato escrito.

Neste artigo, dedicamo-nos à análise da tradução de língua portuguesa escrita para língua Brasileira de Sinais– Libras refletindo sobre seu papel no multiletramento do público surdo e na leitura de texto multimodal, a fim de promover uma interação entre as diferentes linguagens e satisfazer o leitor de livro infanto-juvenil.

O conto para crianças envolve um universo de fantasia com narrador, personagens, ponto de vista e enredo. No processo de tradução é preciso que os tradutores desenvolvam sua leitura e construam sentidos sobre o texto refletindo sobre os modos de enunciar esse texto (SOBRAL, 2008).

É importante destacar que tanto professores quanto tradutores que trabalham com literatura infanto-juvenil destinam seu trabalho a alunos da educação básica. Estes alunos apresentam diferentes níveis de aquisição de língua de sinais, não sendo possível complanar esse conhecimento que “[...] por sua vez, depende de fatores que vão além da escolarização do surdo, como o contato e a qualidade da interação que a criança teve e tem com essas línguas” (FIGUEIREDO e GUARINELLO, 2013, p. 179). Dessa forma, os tradutores trabalham para um público em potencial.

Com o desenvolvimento deste trabalho de análise, objetiva-se contribuir com a compreensão do processo tradutório do par linguístico português-libras, colaborando com os tradutores e/ou contadores de histórias, pois é fundamental para as pessoas surdas terem acesso a textos que estejam condizentes com a estrutura linguística da Libras, enriquecida por elementos próprios das línguas de sinais e que, por ventura, contribuem para a aquisição de linguagem destes leitores.

As indagações levantadas neste trabalho envolvem a análise da tradução em relação a: que informações o tradutor se apropriou para fazer as escolhas tradutórias?; que elementos linguísticos próprios da língua brasileira de sinais utilizou para realizar a tradução?; o gênero literário influenciou na execução da tradução, determinando os sinais selecionados na produção em libras?; a especificação do público-alvo instigou/motivou o tradutor quanto ao vocabulário usado ao efetuar a enunciação na língua de sinais?.

2. CONCEITUANDO A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NA TRADUÇÃO

Diferentes abordagens da tradução contribuíram para a construção do conceito sobre a tradução e seus problemas. Os estudos desenvolvidos são tomados a partir de uma diversidade de referenciais teóricos e concepções de língua. Contudo, a tradução pode ser, genericamente, compreendida como “um processo interpretativo e comunicativo que consiste na reformulação de um texto com os meios de outra língua e que se desenvolve em um contexto social e com uma finalidade determinada” (HURTADO ALBIR, 2001, p.41 apud HURTADO ALBIR, 2005, p.27).

A concepção do que é tradução foi mudando com o decorrer dos estudos, sobrepondo-se diferentes concepções, algumas bastante divergentes. Segundo Souza, “o modo de conceituar tradução varia, de acordo com a polissemia do termo e com as diferentes perspectivas dos teóricos da tradução” (SOUZA, 1998, p. 51).

Sinteticamente, a fim de delimitar o campo dos estudos da tradução, podemos classificar o desenvolvimento da área baseada em: a) Vertente pré-linguísticas (estudos literários comparados), b) Vertente linguístico-científica, c) vertente descritiva, início dos Estudos da tradução d) Vertente pós-estruturalista (pós-colonialista, desconstrutivista, transgressoras).

A Vertente pré-linguística precede a formação dos estudos da tradução como um campo disciplinar. Engloba concepções sobre o ofício dos tradutores pautados nas relações sociais do século XIX. O tradutor é visto como um ‘tradutor-servo’. Então, o “trabalho do tradutor envolvia a abnegação e a repressão de seus próprios impulsos criadores” (BASSNETT, 2003, p. 22-23). A tradução era estuda no campo da literatura como uma ramificação dos textos literários traduzidos e suas especificidades, partindo sempre da comparação do texto de partida e do texto de chegada da tradução. Os trabalhos nesta vertente eram prescritivos. A Vertente linguístico-científica representada inicialmente por Eugene Nida (1964) defende que a tradução deve concentrar-se em manter a essência do texto fonte, porém preocupando-se em efetuar a comunicação entre quem enuncia e quem recebe o resultado. (OFIR, 2000; BASSNETT, 2003; SILVA 2011). Por sua vez, a vertente descritiva dos Estudos da tradução impulsiona a criação dos Estudos da Tradução como campo disciplinar independente da linguística. Avança-se no conceito de tradução para além de repassar ou transmitir uma mensagem, envolve culturas distintas, aspectos históricos. Assim os estudos da tradução perpassam por três fases, a fase de tradução descritiva (que explica como as traduções são feitas), fase teórica (que estuda como podem ser explicadas as traduções) e, por fim, a fase da tradução aplicada (que se vale do resultado das outras traduções para criticar, ensinar e criar gramáticas que “automatizam” o tradutor) (OFIR, 2000; BASSNETT, 2003).

Bassnet (2003) indica que houve uma virada cultural nos Estudos de Tradução, em que aspectos da história e cultura são valorizados, distanciando-se do discurso da linguística dominante em direção a um movimento mais cultural, envolvendo temas como crítica feminista e capital cultural.

No que diz respeito à vertente pós-estruturalista (pós-colonialista, desconstrutivista, transgressoras) a tradução é concebida como uma leitura possível dentre as margens da linguagem, vai de encontro ao status intocável que era conferido ao texto fonte na abordagem linguística. Atribui ao tradutor um papel singular envolvido da subjetividade, sendo ele o autor do texto traduzido (BASSNETT, 2003).

Pautando-nos em abordagem contemporânea e filiados aos estudos dialógicos da linguagem, compreendemos que o tradutor trabalhar com textos/discursos. Essas explicações envolvem a concepção de língua, de cultura e de tradução.

A teoria enunciativo-discursiva é profícua como base para analisar o fenômeno dialógico da tradução, pois nessa perspectiva, o tradutor não relata o discurso de um autor inicial, mas fala em seu nome, desenvolve o seu trabalho e faz as suas escolhas de forma única, singular e irrepetível (SOBRAL, 2008).

Em uma perspectiva enunciativo-discursiva, estão presentes as questões relacionadas ao sentido em diferenciação ao significado, proposto principalmente por Bakhtin, como reflexão que transpassa a ato tradutório. Segundo Ponzio,

O problema do sentido [...] não se limita à relação entre a língua, como código, e o discurso ou o texto. Também não se limita às relações linguísticas entre os elementos do sistema da língua ou entre os elementos de uma única enunciação, mas ocupa-se das relações dialógicas nos atos de palavra, nos textos, nos gêneros do discurso e nas linguagens (PONZIO, 2008, p. 89).

Entende-se que, no ato tradutório estão envolvidos os sujeitos (interlocutores) e que a enunciação do tradutor dirige-se a estes sujeitos, assume-se então que a intersubjetividade está presente na relação entre tradutor e interlocutor(es), cerceando a compreensão da enunciação de todos os envolvidos (BAKHTIN, 2010).

A tradução envolve aspectos externos ao texto, envolve a leitura e construção de sentidos sobre discursos.

O discurso é uma unidade arquitetônica de produção de sentido que é parte das práticas simbólicas de sujeitos concretos e articulada dialogicamente às suas condições de produção, o que envolve seu vínculo constitutivo com outros discursos (SOBRAL, 2009, p.176).

3. METODOLOGIA DE PESQUISA

Esta pesquisa é classificada como descritiva que, segundo Gil (2002, p. 42) “tem como objetivo primordial a descrição de características de determinada população ou fenômeno [...]”. Além disto, por ter uma conotação prática e focada em um produto final, elenca variáveis e observa como estas impactam nos fenômenos estudados.

Numa abordagem qualitativa, este trabalho analisa trechos de tradução de obra de literatura infanto-juvenil no par linguístico português-libras, num viés mais prático, pois, além realizar uma análise dos aspectos relacionados às escolhas tradutórias, também apresenta um olhar desse processo, observando as relações de sentido alinhado ao gênero do texto traduzido.

Corpus do trabalho:

Os trechos selecionados para análise da tradução são produtos de atividade coletiva realizada por alunos de graduação do curso de Bacharelado em Letras Libras da Universidade Federal de Santa Catarina. Na atividade, realizou-se a tradução do livro de literatura infanto-juvenil intitulado “Vira-lata” de autoria de Michael King e publicado pela Brinque Book em 2004.

Procedimentos de pesquisa:

Primeiramente, procedemos a leitura da obra traduzida para a Libras. Depois, selecionamos os trechos que evidenciam a relação ilustração e texto para a construção de sentidos na enunciação do tradutor. Logo depois, transcrevemos a tradução, capturando a expressão dos tradutores e a registrando-a em frames de sinalização sobre o programa Word.

Apresentação dos dados:

A tradução foi apresenta inicialmente em uma tabela com três linhas: Primeira linha com a imagem da página do livro; segunda linha com o texto em português escrito; e terceira linha com o frame da sinalização (sinais em sequência), junto a cada sinal um número e a glosa1 abaixo, em seguida apresentamos o texto em escrita de sinais. Dessa forma, no processo de análise seria possível retomar um sinal ou outro fazendo referência ao número do frame e o leitor poderia visualizar a tabela e verificar a que sinal está se referindo a discussão.

Desenvolvimento do procedimento de análise:

Examinamos, a partir da perspectiva enunciativo-discursiva da linguagem (Teoria Bakhtiniana), a atividade dialógica da tradução. Ao realizar a análise, observamos aspectos linguísticos que formam o texto em língua portuguesa, em relação aqueles que são característicos da Libras. Esses aspectos envolvem principalmente a semântica das línguas, que são responsáveis por construir sentidos em cada texto. No trabalho de tradução de livro de literatura em português para Libras, que é destinado para crianças e jovens ou demais leitores interessados, estavam envolvidos na tarefa, alunos em formação, no qual foi possível comparar as escolhas tradutórias, bem como proporcionou um espaço de interação com os demais alunos.

Ao examinar os textos do livro escrito, observou-se também as ilustrações com o intuito de agregar o completo sentido da obra base para a tradução. Considerando que os tradutores leram tanto o texto quanto as ilustrações do material.

4. ANÁLISE DA TRADUÇÃO... O ENCANTO NO CONTO EM LIBRAS

O nosso objetivo foi analisar as soluções encontradas pelos tradutores do ponto de vista da reconstituição de sentidos do texto “Vira Lata”, buscando descrever as possibilidades de expressão, tecendo novos textos pela expressão corporal e construindo um enunciado encantador/atrativo e esteticamente envolvente em Libras.

Tabela 1: Esquema comparativo texto de partida e texto de chegada. Episódio 1: Cuidar do cachorro

Texto de partida – multimodal

(escrita e ilustração)

Texto de chegada – multimodal

(escrita, ilustração e Libras)

Figura 1. Visualização da página do livro



Figura 2. Visualização da tela no computador

Fonte: Produção dos autores

Fonte: KING (2005) e elaboração dos autores.

Esse episódio é composto do texto: “O que é que vou fazer com você? Ela lhe deu um biscoito e lhe preparou uma cama” concomitante a duas ilustrações como cenas na sequência. Primeiro a moça com o cachorro em seu colo lambendo-lhe a face, seguido da mesma moça ajoelhada com o cachorro a sua frente dentro de uma caixa de papelão segurando um pano que cobre parte do cachorro.

Trecho 1: O que é que vou fazer com você?

A tradução é construída de modo a explicitar o sentimento da personagem e ao mesmo tempo, a presença do vira-lata no colo da moça. A sentença em português é um discurso direto, enunciado pela menina e direcionado para o cachorro. A enunciação em língua de sinais mantem esta estrutura e a tradução é motivada pela frase em português e pela ilustração, compondo um novo texto verbo-visual.

Tabela 2: Esquema comparativo texto de partida e texto de chegada com a glosa da expressão em Libras

Material linguístico em Português

O que é que eu vou fazer com você?

Material linguístico em Libras

(fotos da sinalização)


T1 T2 T3

(a moça estava segurando o cachorro que lambia seu rosto)

T4 T5 T6

(a moça ficou pensando no que pode fazer com o cachorro vira-lata)


Material linguístico em Libras

(Escrita de Sinais)


T1 T2 T3


T4 T5 T6

Fonte: elaboração dos autores.

A frase O que é que eu vou fazer com você? é traduzida pela expressão PENSAR (T4) QUAL(T5) ao mesmo tempo que segura o cachorro em seus braços e olha diretamente para ele (cachorro vira-lata, a partir da construção de um espaço sub-rogado). Na frase, a personagem indaga a si mesma qual ação tomará com o cachorro. Este sentimento de dúvida da personagem é demonstrado pela expressão do tradutor, conforme pode ser visualizado em toda a tradução do trecho.

Figura 3: Destaque do processo de construção do espaço sub-rogado

Fonte: Elaboração dos autores.

Interessante destacar que o tradutor utiliza a mão direita para apresentar o cachorro e simultaneamente realiza a incorporação da menina. Assim, o particionamento do corpo do tradutor ocorre ao mesmo tempo em que incorpora a moça segurando o cachorro no colo enquanto a mão direita informa que o vira-lata lambe o rosto da menina. Esta parte foi motivada pela ilustração do livro e não consta na escrita registrada na página.

Na execução da tradução, observa-se uma forte interação entre elementos linguísticos da língua de sinais e elementos gestuais, seja pelo uso de sinais já convencionados, seja por escolher recursos icônicos complementados pelas expressões faciais, que denotam a emoção do personagem e que é, muitas vezes, subjetivo ao texto em português (McCLEARY, VIOTTI, 2011). O encantamento está na construção imagética da cena da moça a segurar o cachorro e de seu olhar de afeição e preocupação com o animal.

As formas textuais apontam para gêneros que as mobilizam costumeiramente e, por isso, ao escolher um gênero, evocam-se a(s) forma(s) textual(ais) típica(s) desse gênero, ou seja, as formas que uma tradição genérica tornou mais comumente mobilizadas; (SOBRAL, 2007, p. 2010).

Constatamos que o gênero narrativo e, principalmente, o literário destinado à crianças remete o tradutor às formas de enunciar de surdos nativos em processos de contação de histórias, mobilizando a construção rica da incorporação e do particionamento do corpo, assim como apontam Albres, Costa e Rossi (2015).

Os aspectos que compõem a enunciação em línguas de sinais estão intrinsicamente motivados pelo sentido carregado na mensagem. Ao realizar a tradução de narrativas, sendo estas obrigatoriamente compostas por ações, requerem do tradutor que a produção em libras vá além do que é dito em português escrito.

Para que haja uma correlação de sentidos dito em português no texto de partida e ilustrações e dito em libras no texto traduzido é necessário não se prender apenas ao texto escrito. Os elementos gestuais demonstrados na ilustração complementam a mensagem dita e contribuem significativamente/substancialmente para a tradução.

Trecho 2: Ela lhe deu um biscoito e lhe preparou uma cama.

Neste trecho, a escrita corresponde à voz do narrador. Mas, o tradutor optou por incorporar a entrega do biscoito, encenando a sequência narrada, ainda que na ilustração (do livro) não seja apresentada, desenvolve o discurso direto pela voz da personagem. A ilustração apresenta apenas a segunda parte da sentença e o tradutor mantem a incorporação em toda sua enunciação.

Tabela 3: Esquema comparativo texto de partida e texto de chegada com a glosa da expressão em Libras

Material linguístico em Português

Ela lhe deu um biscoito... e lhe preparou uma cama.

Material linguístico em Libras


T7 T8 T9

(a moça dando o biscoito do cachorro (vira-lata) e o acaricia)

T10 T11 T12

(a moça pega o cachorro (vira-lata) e coloca em outra posição)

T13 T14 T15 T16

(a moça cobre o cachorro com o cobertor e coloca-o na caixa)

Material linguístico em Libras

(Escrita de Sinais)


T7 T8 T9


T10 T11 T12


T13 T14 T15 T16


Fonte: elaboração dos autores.

O texto “ela lhe deu um biscoito... e lhe preparou uma cama” da página 17 do livro foi composto de uma moça dando o biscoito para o cachorro (vira-lata) e em seguida lhe carregando para o outro lugar (movimento = mudança de posição), logo em seguida arrumando o canto do cachorro (vira-lata) e colocando o cachorro (vira-lata) naquele canto conforme a segunda imagem na figura (página 17), acariciando-o e ajeitando-o.

Em toda a tradução há uma descrição imagética da situação vivida pela personagem. O tradutor incorpora a moça, mas não o cachorro. Todo o episódio remete a ação de carregar o cachorro e arrumar para que ele estivesse confortável naquele canto, não foi desenvolvido o particionamento do corpo do tradutor neste trecho. O espaço mental sub-rogado (incorporação) é amplamente explorado por tradutores que trabalham com o gênero narrativo (literatura infanto-juvenil) (ALBRES, 2012).

Analisando o trecho “Ela lhe deu um biscoito” (T7, T8 e T9), verificamos que a ilustração do livro não apresenta a moça dando o biscoito. Contudo, no processo de construção de sentidos e do todo discursivo o tradutor, nesse trecho do vídeo, explicita a moça dando o biscoito e outros detalhes como o afago na cabeça do cachorro remetendo a um gesto de carinho.

Constatamos que no trecho T10, T11 e T12, o tradutor pega o cachorro e o carrega (movimento = mudança de posição) colocando-o em outro canto. Porém, neste trecho não teve nenhum movimento na ilustração do livro. Talvez a mudança de espaço contribua com a compreensão das crianças surdas de que o cachorro foi carregado.

Analisando o outro trecho da tradução T13, T14, T15 e T16, o tradutor mostra a moça arrumando o canto para o cachorro (vira-lata), lhe carrega, cobre com um pano e o acaricia e o arruma novamente.

A ilustração do livro só mostra a moça colocando o cobertor no cachorro (vira-lata), mas neste trecho T13, T14, T15 e T16, notamos que a tradução mostra muito detalhe com o cuidado (tratamento) para com o cachorro, lhe fazendo ficar a vontade, confortável e tranquilo.

Percebemos que o texto do livro carrega uma informação e a imagem do livro carrega outra informação sendo complementares para construção de sentido do tradutor que em sua tradução constrói uma nova enunciação aprazível, detalha e encanta.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observamos que as concepções teóricas a respeito da tradução sofreram mudanças. Há as que compreendem o tradutor como coadjuvante no processo tradutório, sendo instigado a se manter tão aproximado do texto de partida que, por vezes, poderia não alcançar o proposito de atingir o público alvo da tradução.

Os estudos na área transcorreram, no qual sucederam concepções diferentes, com pontos de dedicação específicos. A concepção pós-estruturalista coloca o tradutor como ator principal, dando-lhe a posição, em certa medida, de coautor, requerendo deste profissional a construção de sentidos imbuídos nos textos e abarca aspectos históricos, culturais e linguísticos necessários para realização da tradução valorizando as relações dialógicas.

Na tradução analisada neste trabalho, planejada como atividade para formação de tradutores, constatamos que as escolhas tradutórias enfatizaram os sentidos apresentados na língua de partida, incrementadas pelas representações advindas das ilustrações, resultando em uma tradução abundante em significados e não limitado ao texto em português.

Comprova-se, dessa forma, que o tradutor não deve limitar-se a seguir unicamente o texto escrito, estando cerceado por ele. Os sentidos imagéticos que compõem os livros de literatura infanto-juvenil também constroem/contribuem para a significação do leitor e por isso, obrigatoriamente, enriquecem a tradução para a língua de sinais/LIBRAS já que por si só dizem tanto quanto o texto escrito.

Elementos linguísticos presentes nas línguas de sinais, como o particionamento do corpo do tradutor observado/identificado nesta análise enriquecem a compreensão do texto pelos leitores conhecedores de Libras, dessa maneira possibilita uma enunciação deleitante e condizente com os sentidos do livro/da obra/do texto.

Consideramos que o tradutor funciona como um modelo de leitor, já que na obra o público surdo tem acesso ao texto de partida e ao texto de chegada em Libras. Dessa forma, ocorre o multiletramento quando da leitura de texto multimodal, podendo aprender a construir sentido na interação entre as diferentes linguagens apresentadas no livro de literatura infanto-juvenil.

REFERÊNCIAS

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AGUIAR, O. B. Abordagens Teóricas da Tradução. Goiânia: Editora UFG, 2000.

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 10. ed. São Paulo: HUCITEC, 1986.

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BRITO, F. B. de. O movimento social surdo e a campanha pela oficialização da língua brasileira de sinais. Orientação Rosângela Gavioli Prieto. Tese de doutorado em Educação do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2013. 275 p.

FIGUEIREDO, L. C.; GUARINELLO, A. C. Literatura infantil e a multimodalidade no contexto de surdez: uma proposta de atuação. In: Revista Educação Especial, Santa Maria. v. 26, n. 45, p. 175-193, jan./abr. 2013.

HURTADO ALBIR, A. A aquisição da competência tradutória: aspectos teóricos e didáticos. In: ALVES, F., MAGALHÃES, C., PAGANO, A. Competência em Tradução: cognição e discurso. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p.19-58.

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McCLEARY, L.; VIOTTI, E.; LEITE, T. de A. Descrição das línguas sinalizadas: a questão da transcrição dos dados. Revista Alfa: São Paulo, 2010.

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SOUZA, J. P. Teorias da tradução: uma visão integrada. Rev. de Letras, v. 1/2, n. 20, jan/dez. 1998. Disponível em: <http://www.revistadeletras.ufc.br/rl20Art09.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2015.

1 Glosa é a palavra-chave para denominar sinais da Libras em um processo de transcrição em que se atribui palavras em português para registrar os sinais utilizados pelo sujeito de pesquisa em Libras. Segundo McCleary; Viotti; Leite (2010) no sistema de glosas uma palavra em língua oral é grafada em maiúsculo como representação do sinal manual com sentido equivalente. Todavia, nossos dados são em sua maioria compostos por sequência gestual e pantomímica, para esta parte dos dados optamos por registra-la utilizando um texto descritivo/narrativo.