SOUZA, K. M. de; FERNANDES, L. A.; XAVIER, V. R. D. Do léxico erótico-obsceno: cotejo lexicográfico entre variantes na língua portuguesa e na libras. Revista Diálogos (RevDia), Dossiê temático “Educação, Inclusão e Libras, v. 6, n. 1, jan.-abr., 2018. [http:// periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/revdia]
DO LÉXICO ERÓTICO-OBSCENO
Cotejo lexicográfico entre variantes na língua portuguesa e na libras
KÁSSIA MARIA DE SOUSA
LEANDRO ANDRADE FERNANDES
VANESSA REGINA DUARTE XAVIER
Sobre os autores
Kássia Maria de Sousa – Possui graduação em Letras Português e Inglês pela Universidade Federal de Goiás (UFG) - Regional Catalão (RC), mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL) na (UFG-RC), e Tradutora e Intérprete de Libras na mesma instituição. Tem experiência no ensino de Libras como L2 e Terminologia e Terminografia da Libras. E-mail: kassiamariana2008@hotmail.com
Leandro Andrade Fernandes – Possui graduação em Letras:Libras pela Universidade Federal de Goiás (UFG) (2014) – Regional Goiânia (RG), mestrando em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Goiás (UFG) - Regional Catalão (RC), bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás - FAPEG, e professor auxiliar de Libras na Universidade Federal do Tocantins - UFT. Tem experiência em ensino de Linguísticas da Libras, com ênfase em Lexicografia e Escrita de Sinais – ELiS. E-mail: leandroandrade.letras@gmail.com
Vanessa Regina Duarte Xavier – Possui graduação em Letras Português pela Universidade Federal de Goiás (UFG) - Regional Catalão (RC) (2007) e doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo (2012). Atualmente, é professora da Unidade Acadêmica Especial de Letras e Linguística da UFG/RC, atuando no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (PPGEL) desta instituição. É pós-doutora pelo Programa Nacional de Pós-doutorado (PNPD), pela UFG/RC (PPGEL). Tem experiência na área de Linguística e Filologia, com ênfase em Lexicologia e coordena o projeto Estudos do Léxico em Perspectiva. E-mail: vrdxavier@gmail.com
RESUMO: Estudos relacionados ao léxico erótico-obsceno no âmbito da língua portuguesa têm alcançado assaz desenvolvimento, especialmente com Orsi (2013), Orsi e Zavaglia (2012) etc. Em contrapartida, desconhecemos trabalhos desta natureza na Libras; por este motivo, este trabalho é um pontapé inicial para que se realizem incursões mais aprofundadas sobre o léxico tabu na Libras. A fim de realizar o confronto entre o seu registro lexicográfico nas duas línguas, efetuamos o cotejo entre lexemas relacionados aos órgãos sexuais masculino e feminino e ao ato sexual nos dicionários de Ferreira (2004), Houaiss, Villar e Franco (2007), Capovilla, Raphael e Mauricio (2013) e Brandão (2011).
PALAVRAS-CHAVE: Libras. Língua portuguesa. Léxico erótico-obsceno.
ABSTRACT: Studies related to the erotic-obscene lexicon within the portuguese language have achieved great development, especially with Orsi (2013), Orsi and Zavaglia (2012) etc. On the other hand, we do not know of such works in Libras; for this reason, this work is an initial kick-off for deep incursions on the tabu lexicon in Libras. In order to make a comparison between his lexicographic record in both languages, we compare lexemes related to the male and female sexual organs and the sexual act in the dictionaries of Ferreira (2004), Houaiss, Villar e Franco (2007), Capovilla, Raphael e Mauricio (2013) and Brandão (2011).
KEYWORDS: Libras. Portuguese language. Erotic-obscene lexicon.
1. INTRODUÇÃO
A língua é um conjunto de signos organizados sistematicamente, fruto da memória social e coletiva, construída historicamente sob a forma de possibilidades combinatórias que resultam em um repositório das práticas e suas representações simbólicas. Nesse sentido, a Língua Brasileira de Sinais (Libras) é um sistema linguístico organizado e disponível para a comunidade surda brasileira. Sua origem é a Língua de sinais francesa (LSF), que foi trazida ao Brasil em meados dos anos oitenta, e a partir de então sofreu as influências culturais brasileiras até se tornar uma língua de sinais própria do Brasil.
Ela tem o seu status linguístico reconhecido graças aos diversos aspectos que a caracterizam como uma língua. A formação dos sinais é um deles, pois, da mesma maneira que acontece com o léxico das línguas orais, é resultado de uma estrutura gramatical que se articula sistematicamente. Na Libras, os sinais existem a partir da combinação de cinco parâmetros, segundo Strobel e Fernandes (1998): Configuração de Mãos (CM), Ponto de Articulação (PA), Orientação da Palma (OP), Movimento (MO) e Expressão Não Manuais e ou Facial (ENM).
Podemos dizer então que, assim como os signos verbais orais e escritos formam o léxico das línguas orais, os sinais e sua escrita constituem o léxico das línguas de sinais. Foi pensando nessa relação entre língua em modalidade oral e língua visuo-espacial que surgiu a motivação em analisar o registro lexicográfico do léxico erótico-obsceno na Língua Portuguesa (LP) e na Libras, tendo em vista que os dicionários são o repositório do léxico de uma língua.
Pretendemos, por meio deste estudo, verificar se os registros lexicográficos em Libras têm se mostrado eficazes no sentido de representar as unidades lexicais ligadas ao erótico-obsceno, tendo em vista que, assim como os ouvintes usuários da LP fazem uso dessas unidades, os surdos que utilizam a Libras também se valem, se não de todas, de algumas delas para se expressarem. Nossa hipótese em relação a esse tema é de que, conforme observamos enquanto participantes da comunidade surda e pesquisadores da área, as obras lexicográficas de Libras, talvez por serem recentes e até mesmo em menor quantidade em relação às de LP, ainda não foram capazes de realizar tais registros de maneira satisfatória.
Desse modo, destaca-se a importância deste trabalho, uma vez que acreditamos contribuir significativamente para os estudos sobre o léxico da Libras, especialmente sobre o léxico erótico-obsceno e o seu registro lexicográfico.
Para tanto, selecionamos as variantes utilizadas para as genitálias masculina e feminina, e para o ato sexual na LP, e buscamos traçar comparações entre as entradas presentes em dicionários de LP e de Libras para verificar se os lexemas dicionarizados em LP possuem seus correspondentes dicionarizados em Libras. Estes itens foram cotejados nos dicionários de Ferreira (2004), Houaiss, Villar e Franco (2007), Capovilla, Raphael e Mauricio (2013) e Brandão (2011). Esta pesquisa vincula-se ao projeto de pesquisa intitulado “Estudos do léxico em perspectiva”, coordenado pela professora Dra. Vanessa Regina Duarte Xavier, do curso de Letras da Universidade Federal de Goiás/Regional Catalão – UFG/RC.
2. LÍNGUA, LINGUAGEM E LÉXICO
Sendo o objetivo deste estudo analisar as unidades lexicais referentes ao léxico erótico-obsceno em dicionários de LP e em dicionários de Libras, faz-se pertinente discutir os principais conceitos que nos servirão de ponto de partida para tais considerações.
Iniciamos pelo conceito de linguagem, que nos permite interagir com o mundo à nossa volta. Fiorin (2013, p. 4) entende que linguagem é o elemento que torna o mundo perceptível a nós, uma vez que é por meio dela que categorizamos a realidade – e até mesmo a interpretamos –, realizamos interações diversas, exprimimos sentimentos, criamos e mantemos laços sociais. Compreendemos, a partir dessas reflexões, que a linguagem se configura como um conceito amplo, capaz de abarcar tudo aquilo que de alguma forma comunica ou expressa algo, não necessariamente de maneira verbal.
Linguagem vai muito além de um idioma, ela configura-se como uma série de outros sistemas de comunicação sobre os quais é possível discutir. A linguagem compreende as diferentes maneiras pelas quais nos comunicamos diariamente, como “linguagem corporal”, “linguagem de sinalização” e outras.
Dentre as inúmeras formas pelas quais a linguagem pode se realizar, há a linguagem verbal, que é aprendida sob a forma de uma língua. Nesse sentido, Fiorin (2013), embasado nas discussões saussureanas, pontua que a língua está dentro da linguagem e, nessa relação de pertencimento, torna-se uma parte essencial desta. Passaremos, então, às definições de língua sob a percepção de alguns linguistas.
Vimos que a linguagem não pode constituir-se como objeto de nenhuma ciência específica justamente por não pertencer a um único domínio, o que justifica seu caráter heteróclito. Porém, por outro lado, temos a língua, que pode ser vista como um todo devido à existência de regras que a mantêm coesa, o que a permite constituir-se como objeto de uma ciência, no caso a Linguística, que busca elucidar o funcionamento da linguagem humana (FIORIN, 2013). E, sendo, pois, a Libras uma das manifestações da linguagem humana, ela caracteriza-se também como objeto de estudo da Linguística.
A Libras é uma língua natural, que possui toda a complexidade dos sistemas linguísticos tanto quanto a LP ou qualquer outra língua histórica e, por isso, não pode ser analisada com base na estrutura de uma língua oral, uma vez que sua gramática é diferenciada e independente da gramática da LP, conforme aponta Strobel e Fernandes (1998). Ela possui regras próprias e não é uma mera gesticulação da língua falada, pois sua autenticidade é assegurada, dentre outros motivos, por sua capacidade de transmitir conceitos abstratos.
Saussure (2008) concebe a língua como um conjunto de signos organizados sistematicamente, formados pelo significado, que corresponde ao conceito, e pelo significante, que representa a imagem acústica a que o conceito remete, isto é, a imagem psíquica do som. De maneira mais minuciosa, o linguista a define como
um objeto bem definido no conjunto heteróclito dos fatos da linguagem. [...] ela é a parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade. (SAUSSURE, 2008, p. 22)
Desse fragmento, podemos interpretar que a língua realmente faz parte do domínio social, uma vez que os signos que estão disponíveis à nossa comunicação são convencionados mediante uma espécie de contrato tácito que só ocorre após a aceitação de um grupo. Os signos são, portanto, um sistema psíquico que se forma em nossa mente possibilitando-nos a comunicação.
Fiorin (2013) vê a língua como um sistema de signos específicos aos membros de uma comunidade, constituindo-se como um conjunto de possibilidades a serem utilizadas por seus usuários. Sobre sistema, Coseriu (1979, p. 50), de maneira similar, pondera que trata-se de “possibilidades de coordenadas que indicam os caminhos abertos e os caminhos fechados de um falar compreensível numa comunidade”. Sendo, pois, o léxico a parte aberta da língua e a gramática a fechada, Faraco (1991) certifica que o léxico sofre modificações o tempo todo.
O sistema linguístico é formado por signos ou sinais, que expressam o conhecimento de tudo que está à nossa volta. Esses itens, quando pensados em conjunto, dão origem a uma parte de grande importância da língua: o léxico. Conforme postulado por Biderman (2001), o léxico de uma língua é formado a partir do processo de nomeação e categorização dos seres e objetos, que origina os signos linguísticos, sendo estes os responsáveis pelo registro do conhecimento do universo.
O processo de nomeação se faz presente em todas as situações, pois criamos palavras ou atribuímos outros sentidos a lexemas já existentes para categorizar tudo o que, de alguma forma, se faz presente em nossa vida. É devido à necessidade de nomeação que Biderman (2001) assevera que o léxico é o único domínio da língua que se constitui como um sistema aberto, isto é, passível de mudanças e acréscimos. Nesse sentido, a autora define o léxico como “[...] o patrimônio vocabular de uma dada comunidade linguística ao longo de sua história. Para as línguas de civilização, esse patrimônio constitui-se um tesouro cultural e abstrato [...] herança de signos lexicais” (BIDERMAN, 2001, p. 14). Desse modo, o léxico da língua de sinais, assim como em qualquer outra língua, é infinito no sentido de sempre comportar novos sinais.
O léxico configura-se, então, como uma forma de representação da cultura de um povo. Paula (2007, p. 94) alega que a relação mais estreita entre língua e cultura se dá no plano do léxico. Em consonância com esta afirmação, Ferreira (2008), também pontua que as palavras constituem o ponto de encontro entre a língua e a cultura.
Pensando no léxico como ponto de relação entre língua e cultura, nos ocorre investigar como o léxico erótico-obsceno utilizado pelos falantes da LP se realiza em forma de sinais utilizados pelos surdos usuários da Libras, e para além disso, como esses registros são feitos nas obras de referências de ambas as línguas. Essa pesquisa detém-se, então, no âmbito dos estudos lexicográficos, pois busca analisar o processo de dicionarização do léxico erótico-obsceno tanto na LP, quanto na Libras. Para dar embasamento às discussões aqui propostas, faremos breves considerações sobre a Lexicologia e Lexicografia enquanto constituintes das Ciências do Léxico.
3. LEXICOLOGIA E LEXICOGRAFIA
Barbosa (1992), com o objetivo de delimitar a identidade científica das ciências do léxico, esclarece que elas atuam de maneira cooperativa, estabelecendo um processo de complementação recíproca uma para com a outra. Os seus objetos muito se assemelham porque todas tratam do léxico, porém cada uma com sua especificidade científica.
A Lexicologia é vista como a área da Linguística que estuda o vocabulário de uma língua. Krieger e Finatto (2004) a consideram como o estudo científico do léxico, o qual consiste nas palavras disponíveis aos usuários de uma determinada língua, cabendo análises de sua estrutura, formação e etimologia. Biderman (1984) define lexicologia como uma ciência que procura estudar o léxico enquanto sistema. Já a disciplina Lexicografia é vista como a ciência responsável por registrar os vocábulos utilizados pela comunidade de falantes, isto é, a arte ou técnica de compor dicionários. Estes são instrumentos de consulta, e por isso, funcionam como “tesouro de uma língua”.
Biderman (2001) considera o profissional que lida com essa prática, o dicionarista, como um porta voz da comunidade linguística. Para esta autora (2001: p.18), o dicionário é “[...] uma descrição do vocabulário da língua em questão”. Entendemos, portanto, que o dicionário tem o objetivo de registrar as unidades próprias do léxico geral de uma língua.
4. O LÉXICO ERÓTICO-OBSCENO
O presente artigo faz um recorte do léxico, optando pelo de vertente erótico-obscena. O corpus é formado pelas variantes das genitálias masculina e feminina, bem como do ato sexual. Orsi e Zavaglia (2012) ponderam que tais lexemas enquadram-se no chamado léxico tabu, uma vez que trata-se de nomes atribuídos às zonas erógenas e sexuais, sendo denominado também como léxico proibido. A esse respeito, Marinho (2009: apud ORSI; ZAVAGLIA, 2012, p. 158) concebe os tabus linguísticos como tudo aquilo “que não pode ser usado, feito ou pronunciado, por crença, respeito ou pudor”.
Ressalta-se que as variantes podem ser percebidas de acordo com o gênero, a idade, a profissão, a religião e outros. E apesar do preconceito que gira em torno deste grupo de lexemas, muitas vezes em razão do pudor, respeito e até mesmo do politicamente correto, tão arraigado no contexto atual, eles são utilizados constantemente pelos falantes de diferentes línguas.
Conforme alude Orsi (2007, p. 21), apesar de alguns desses itens lexicais serem percebidos socialmente como vulgares e/ou impróprios em determinadas situações de interação, percepção esta que surgiu na Idade Média, em especial durante a Inquisição, e que ainda ecoa nos dias de hoje através da transmissão pelos membros de uma comunidade, eles nem sempre foram concebidos assim. Os gregos e romanos entendiam o sexo com algo “normal”, ou seja, o assunto estava presente na sociedade sem moralidade ou vergonha.
Contudo, apesar de serem unidades lexicais tidas com frequência como impróprias por alguns círculos sociais, é preciso reconhecer que elas estão presentes em nossa língua e fazem parte do arcabouço do léxico, sendo utilizadas em diferentes contextos: em uma briga para denegrir o adversário, em uma brincadeira entre amigos, na cama para estimular sexualmente o parceiro (a), entre outros.
Para embasar essa discussão, convém situar o que diz respeito ao erótico e o que se enquadra como obsceno, que apesar de serem, muitas vezes, concebidos como sinônimos, apresentam características e definições que os diferem. O erótico é nesta investigação compreendido como “proveniente do grego, erotikós, referindo-se ao amor sensual e à poesia amorosa, em que, contrariamente a uma sexualidade fria e muitas vezes agressiva, apontada pela pornografia, prevalecem os aspectos artísticos do sexo” (ORSI, 2007, p. 39).
Desse modo, entendemos que o erótico seja relacionado ao desejo sexual, e até mesmo ao despertar do mesmo, encaixando-se na moralidade, enquanto o obsceno traz consigo uma conotação que vai além do simples desejo sexual, situando-se no campo da imoralidade e indecência (ORSI; ZAVAGLIA, 2012, p. 158). O obsceno é visto então como os dizeres que “ultrapassam o limite da considerada boa decência e da moralidade, empregadas de forma injuriosa, despudorada ou grosseira” (ORSI, 2007, p. 52). Com esta carga semântica, estes lexemas são classificados como “formas estigmatizadas e de baixo prestígio, condenadas pelos padrões culturais, o que as transformou, com poucas exceções, em tabus linguísticos” (PRETI, 1984, p. 3).
Consideramos, portanto, que as unidades lexicais empregadas nesse contexto, podem transitar de um espaço para outro, podendo deter-se ora no âmbito do erótico e ora no obsceno, dependendo do contexto de enunciação. É devido a essa possível mobilidade entre tais esferas que a pesquisa adota o termo erótico-obsceno. Assim, o léxico erótico pertence à linguagem sexual, valorizando o belo e não é usado apenas para denegrir ou excitar sexualmente os que usufruem desta linguagem. Diferentemente, o obsceno pode ser utilizado de uma forma grosseira e desrespeitosa.
O léxico erótico-obsceno é pouco analisado nas línguas orais por ser considerado chulo ou impróprio, causando certo desconforto entre as pessoas e até mesmo entre os linguistas. Os lexemas analisados devem ser percebidos como unidades linguísticas suscetíveis de análises, dentre as quais se encontra o léxico erótico-obsceno. Na Libras, desconhece-se um estudo referente a este grupo de lexemas, razão pela qual pretende-se incitar outras pesquisas desta natureza, a fim de construir um referencial teórico a respeito. Podemos citar, a título de exemplificação, como trabalho que se alinha a esta proposta a dissertação intitulada “Proposta de modelo de enciclopédia visual bilíngue juvenil: Enciclolibras”, desenvolvida por Costa (2012), que volta-se para partes do corpo humano. No entanto, não foram encontrados trabalhos que tenham como objetivo a coleta, descrição ou análise de sinais eróticos-obscenos na referida língua.
Assim, este trabalho é um ponto inicial para levantar questões referentes ao léxico erótico-obsceno na Libras. Por ora, busca-se fazer o levantamento dos sinais relacionados às genitálias masculina e feminina e ao ato sexual, com o objetivo de realizar uma comparação entre variantes existentes na LP e na Libras, admitindo como instrumento de referência dicionários gerais de amplo uso em ambas as línguas.
5. ANÁLISE
Para constituir o corpus para as análises, selecionamos dois dicionários de LP e dois de Libras. Os escolhidos foram aqueles já consagrados como obras de referências nas línguas em questão. Os de LP foram o de Houaiss, Villar e Franco (2007) e o de Ferreira (2004), e os de Libras foram o Novo DEIT-Libras (CAPOVILLA, RAPHAEL; MAURICIO, 2013) e o Dicionário Ilustrado de Libras (BRANDÃO, 2011). Nosso objetivo é realizar o confronto entre o registro das variantes lexicais referentes às genitálias masculina, feminina e ao ato sexual na LP e na Libras.
As unidades lexicais consideradas no cotejo foram aquelas que julgamos serem de uso comum no dia a dia dos falantes de LP e de Libras, de modo geral. São elas: buceta, cacete, caralho, foder, meter, pau, pênis, perereca, pica, pinto, piroca, rola, sexo, transar, trepar, vagina, xana e xoxota.
No dicionário de Houaiss, Villar e Franco (2007), foi possível localizar cinco (5) variantes da genitália masculina, sendo elas: pinto, pau, cacete, rola e caralho. Para a genitália feminina, duas (2) variações foram encontradas: perereca e xoxota; e para o ato sexual localizamos quatro (4): transar, foder, meter e trepar. No dicionário de Ferreira (2004), por sua vez, encontramos quatro (4) variantes para a genitália masculina: pica, pinto, piroca e cacete, e duas (2) para a feminina: perereca e xoxota. As variações para ato sexual localizadas foram duas (2): trepar e foder. Observando os dados, percebe-se que o dicionário de Houaiss, Villar e Franco (2007) apresentou em sua nomenclatura uma maior quantidade de itens do léxico erótico-obsceno consultado do que o de Ferreira (2004).
Nos
dicionários de Libras, os dados se mostraram bastante
limitados. No dicionário Novo DEIT-Libras (CAPOVILLA; RAPHAEL;
MAURICIO, 2013), não localizamos nenhuma das variantes das
genitálias, apenas vagina
“rfgzvT”
(
),
pênis
“tgqzA”
(
)
e sexo
“/qoqzv*-äm”
(
),
sendo que o verbete trepar
“yhqooql#_-ãÂn”
(
)
não apresenta a acepção de conotação
sexual, como encontrado nos dicionários de LP. O mesmo ocorreu
com o Dicionário Ilustrado de Libras (BRANDÃO, 2011),
no qual encontramos estas mesmas unidades lexicais, estando ausentes
as variantes consideradas mais chulas ou desprestigiadas.
Considerando que o número de variantes encontradas nos dicionários de Libras foi extremamente baixo, optamos pela sua busca em alguns aplicativos de Libras que trazem dicionários. Apesar de estes mecanismos não trazerem maiores informações sobre o lexema, mas apenas o equivalente da entrada em LP, atualmente têm sido o meio ao qual as pessoas surdas têm recorrido com maior frequência para saberem os sinais correspondentes às palavras desconhecidas por eles. A utilização destes aplicativos não é restrita apenas aos surdos, tendo em vista que eles também são constantemente consultados por ouvintes aprendizes de Libras.
Para fazer as buscas das palavras constituintes do corpus deste trabalho, selecionamos os três aplicativos mais conhecidos e utilizados pela comunidade surda. São eles: ProDeaf1, HandTalk2 e VLibras3.
No
aplicativo ProDeaf,
foi possível localizar os
lexemas xoxota,
buceta
e xana.
Chamou-nos a atenção o fato de que, apesar de serem
reconhecidas pelo aplicativo, os lexemas xoxota
e buceta
aparecem com o mesmo sinal “rfgzvT”
(
),
que é o referente à vagina; já o lexema xana
é sinalizado com a mesma configuração de mão,
porém em ponto de articulação diferenciado
“rfgxvL”
(
),
sendo este no espaço ao lado do corpo e aquele na testa, o que
nos leva a compreender que diz respeito a alguma variação
do sinal. Referente à genitália masculina, encontramos
cacete,
rola, pinto
e caralho,
todos sinalizados da mesma forma, dispondo como referência o
sinal utilizado para pênis
“tgqzA”
(
).
Para o ato sexual, o aplicativo reconheceu as palavras transar,
foder
e meter,
todas sinalizadas de acordo com o sinal referente a sexo
“/qoqzv*-äm”
(
).
No
aplicativo HandTalk,
foi possível localizar apenas o lexema buceta
referente ao órgão sexual feminino, sinalizado conforme
o sinal de vagina,
e para o órgão sexual masculino, apenas o lexema
caralho,
que também é sinalizado da mesma maneira que pênis.
Referente ao ato sexual, encontramos os lexemas transar,
que é representado pelo sinal de sexo,
e foder,
que é representado pelo sinal de foda
“yqlzJÀ”
(
),
comumente utilizado para designar uma situação ruim.
Já
o aplicativo VLibras
apresentou um número extremamente reduzido dos lexemas
pesquisados, reconhecendo apenas o lexema buceta,
sinalizado do mesmo modo que o lexema vagina
“rfgzvT”
(
).
Concluímos, a partir das análises dos aplicativos, que
estes reconhecem os lexemas, porém não trazem
variantes, mas apenas dão o significado para as variantes da
LP.
Os dados aqui analisados mostram que os dicionários de Libras, e de modo não muito diferente os aplicativos anteriormente mencionados, limitam-se a registrar o léxico politicamente correto, reforçando o estigma sobre variantes informais e menos prestigiadas da língua, as quais recebem sanções sociais com relativa frequência. Desse modo, posicionam-se como instrumentos normatizadores da língua que, em certa medida, autorizam ou desautorizam determinados usos ao omitir o léxico erótico-obsceno em sua nomenclatura. Procedendo desta maneira, atuam como moralizadores, exercendo a repressão do repertório lexical tido por “marginal” ou “proibido”. Faz-se necessário, pois, desmistificar o uso do léxico erótico-obsceno, que tem seu valor nas relações íntimas e afetivas, relacionando-se à expressão de aspectos subjetivos e que pode ser adequado e/ou admitido em determinadas situações de interação.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Convém esclarecer que o objetivo deste estudo não foi encontrar sinais nos dicionários de Libras que correspondessem exatamente às palavras registradas na LP, uma vez que entendemos que trata-se de duas línguas diferentes, com estruturas lexicais próprias. Entretanto, nós, enquanto participantes da comunidade surda, sabemos que, assim como os ouvintes, as pessoas surdas também fazem uso de variantes informais dos lexemas vagina, pênis e sexo, denotando o erótico-obsceno, afinal, compartilham de uma cultura que os permite utilizar esses recursos linguísticos.
Diante disso, não podemos deixar de problematizar o fato de que, assim como os dicionários de LP, os de Libras também devem ser eficazes no sentido de registrar esses itens lexicais a fim de contemplar o léxico geral dos usuários da Libras. Os dicionários de Libras, se comparados aos da LP são recentes, justificando assim, a pouca recolha de lexemas/sinais relacionados ao léxico erótico-obsceno. Contudo, pesquisas estão se desenvolvendo e este grupo de lexemas não pode e não deve ser deixado de lado, por fazer parte da sociedade, sendo necessário em determinadas situações, sejam elas de confronto ou de prazer. Por este motivo, são necessárias pesquisas que busquem estas variantes na cultura surda, pois, apesar de ser pequena a variação de sinais referentes a este grupo de lexemas, elas podem ser utilizadas em contextos informais, possibilitando mecanismos de expressão plena do sujeito surdo. Portanto, o fato de não serem catalogadas e dicionarizadas deixa uma parte importante da cultura surda oculta e desconhecida por ouvintes e utentes desta língua.
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1 O ProDeaf é um conjunto de softwares capazes de traduzir texto e voz de português para Libras com o objetivo de permitir a comunicação entre surdos e ouvintes. Disponível em <www.prodeaf.net>.
2 Hand Talk é uma plataforma que traduz simultaneamente conteúdos em português para a Língua Brasileira de Sinais e tem por objetivo a inclusão social de pessoas surdas. Disponível em <www. handtalk.me>.
3 O VLibras é fruto de uma parceria entre o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MP), por meio da Secretaria de Tecnologia da Informação (STI) e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e consiste em um conjunto de ferramentas computacionais de código aberto, responsável por traduzir conteúdos digitais (texto, áudio e vídeo) em Libras. Disponível em <www.softwarepublico.gov.br>.