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Relendo Bakhtin, v.7, n. 3, out.
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FIDELIDADE OU RUPTURA: CONTRIBUIÇÕES DE BAKHTIN AO PROCESSO
DE ADAPTAÇÃO LITERÁRIA
Fidelity or rupture: bakhtin contributions to the literary adaptation process
LUCIANA LACERDA DE CARVALHO
1
RESUMO: As adaptações literárias para
televisão e cinema sempre sofreram
preconceito ao serem comparadas com
as obras que lhes deram origem. Mas
seriam essas comparações necessárias?
Este artigo tem por objetivo trazer as
contribuições de Mikhail Bakhtin, no que
se refere à questão da originalidade e
fidelidade, que podem contribuir com o
debate sobre o tema em questão.
PALAVRAS-CHAVE: Bakhtin.
Adaptação. Literatura.
ABSTRACT: Literary adaptations for
television and cinema have always
suffered prejudice when compared with
the works that gave them origin. But are
these comparisons necessary? This
article aims to bring the contributions of
Mikhail Bakhtin, regarding the issue of
originality and fidelity, that can contribute
to the debate on the subject in question.
KEYWORDS: Bakhtin. Adaptation.
Literature.
CARVALHO, L. L. de. Fidelidade ou ruptura: contribuições de Bakhtin
ao processo de adaptação literária. In. Revista Diálogos, v. 7, n. 3, out.-dez.,
2019.
1
Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Montes Claros. Mestra em Ciências
Humanas pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, na linha de Linguagem,
Filosofia e Cultura. lula.moc@gmail.com
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INTRODUÇÃO
O surgimento do cinema e seu desenvolvimento como suporte narrativo
audiovisual trouxeram a realidade dos filmes baseados ou totalmente adaptados
de textos literários importantes. Contudo, a adaptação literária tem sido combatida
pelos críticos, com uma concepção extremamente tradicionalista, que os leva a
analisar a adaptação, utilizando, como parâmetro único, a fidelidade à sua fonte.
Diante desse fato, as produções cinematográficas têm sido consideradas
inferiores aos textos literários, por preconceitos enraizados, não havendo,
conforme Robert Stam (2006), uma linguagem alternativa para os estudos das
adaptações.
Muitos foram os teóricos que influenciaram e influenciam no estudo desse
campo. Neste artigo, abordaremos o pensamento de Mikhail Bakhtin (1985-1975)
quanto a questões de originalidade, dialogismo, que podem ser muito bem
aplicadas ao assunto em tela.
Em primeiro lugar, trataremos das relações entre o cinema e a literatura e
as questões que envolvem esse relacionamento; em seguida, faremos a
exposição do pensamento de Bakhtin, quanto ao dialogismo, ao autor e à
carnavalização, e como esses conceitos contribuiram, indiretamente, para o
estudo da adaptação literária.
1. LITERATURA E CINEMA: UMA RELAÇÃO DE AMOR E ÓDIO
Em 1895, quando o cinema apareceu, não se tinha em vista, nos primeiros
anos, que a literatura fosse ter alguma aproximação com a nova arte. Como
escreveu Carlos Gerbase (2009): “Afinal, os primeiros trabalhos dos irmãos
Lumière, na França, e de Thomas Edison, nos Estados Unidos, não passavam, de
‘vistas animadas’, o que hoje talvez chamaríamos de ‘documentários encenados
para a câmera’.” (p. 21).
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Contudo, por volta de 1910, com o público saturado do tipo de projeção até
então feita, houve a necessidade, por parte dos produtores, de encontrar quem
produzisse roteiros, narrativas ficcionais.
Em 1929, com o surgimento do cinema “falado”, acontece o
abandono definitivo das técnicas de mímica (de origem circense) e
a valorização dos diretores de teatro e dos atores e atrizes que
sabem utilizar dramaticamente sua voz. E, a partir dessa
valorização da palavra e do diálogo, ocorre a grande e definitiva
aproximação entre a literatura e o cinema. É importante lembrar
que essa aproximação não se dá com a literatura como um todo, e
sim com o gênero literário que dominava a Europa e os Estados
Unidos no começo do século XX: o romance burguês, com todas
as suas qualidades, e também com todos os seus defeitos.
(GERBASE, 2009, p. 22).
O século XX foi marcado pela adaptação de grandes obras, de autores
como Shakespeare, Edgar Allan Poe, Arthur Conan Doyle e Julio Verne. E, à
medida do crescimento do cinema, grande também foi o surgimento das críticas a
obras audiovisuais adaptadas de livros, principalmente, no que se refere à
fidelidade das primeiras às suas obras de partida. Por isso, por muito tempo,
obras cinematográficas desse tipo foram consideradas como inferiores à
literatura. Conforme Stam:
Com demasiada frequência, o discurso sobre a adaptação
sutilmente re-inscreve a superioridade axiomática da literatura
sobre o cinema. Uma parte excessiva do discurso, eu
argumentaria, tem focado a questão um tanto quanto subjetiva da
qualidade das adaptações, ao invés de assuntos mais
interessantes como: 1) o estatuto teórico da adaptação, e 2) o
interesse analítico das adaptações. (2006, p. 20)
Portanto, o preconceito quanto ao cinema é não por este ser
considerado uma arte nova, mas também por não ser considerado totalmente
“puro”, ou seja, uma produção original. Mas, será que um roteiro que pode ser
considerado completamente isento de influências de outras artes?
Na verdade, ao comparar as grandes questões da criação literária
com os dilemas dos realizadores cinematográficos, encontraremos
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muitos pontos em comum. Se procurarmos diferenças, também as
encontraremos, é claro. Mas a influência da literatura sobre o
cinema é inegável e pode ser facilmente comprovada no terreno
das adaptações. (GERBASE, 2009, p. 22)
Com o estruturalismo e o pós-estruturalismo, muitas teorias vieram
impactar nesse preconceito enraizado contra o cinema (STAM, 2006), e Mikhail
Bakhtin teve papel relevante nessa desmitificação da superioridade da literatura
sobre a arte audiovisual, mesmo que indiretamente, em alguns casos, conforme
abordaremos a seguir.
2. BAKHTIN E CONCEITOS QUE DEFENDEM A ADAPTAÇÃO
CINEMATOGRÁFICA
2.1 O Dialogismo
Mikhail Bakhtin é reconhecido pela sua gigantesca contribuição para os
estudos da linguagem, da literatura, da linguística, o que faz o autor José Luiz
Fiorin (2008) falar sobre o “aparecimento de diversos Bakhtins” (p. 15).
Certamente que os estudos relativos à sétima arte também se beneficiaram de
suas teorias, mas deve-se deixar claro que, em seus trabalhos, o teórico russo
não utilizou referências a essa forma de arte, de forma que toda afirmação ou
citação do autor, que sejam utilizadas para referendar a adaptação
cinematográfica, devem ser feitas com bastante zelo, a fim de que não haja
conceitos erroneamente aplicados ao tema.
Stam, como estudioso do cinema e da linguagem audiovisual, relacionou
Bakhtin em sua defesa da adaptação da literatura para o cinema. Em um de seus
ensaios, ele afirma:
A teoria da intertextualidade de Kristeva (enraizada e traduzindo
literalmente o “dialogismo” de Bakhtin) e a teoria da
“intertextualidade”de Genette, similarmente, enfatizam a
interminável permutação de textualidades, ao invés da “fidelidade”
de um texto posterior a um modelo anterior, e desta forma
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também causam impacto em nosso pensamento sobre adaptação.
(STAM, 2006, p. 21)
Apesar de realçar as teorias da intertextualidade de Kristeva e Genette,
a citação de uma tradução literal do dialogismo de teórico russo, que poderia ser
aplicada à ideia de adaptação. Conforme o próprio Bakhtin, “a orientação
dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso” (1988). Isso quer
dizer, que, na língua, as relações dialógicas não se limitam a diálogos face a face;
ou seja, no processo comunicativo, independentemente de sua dimensão, seus
enunciados serão, necessariamente, dialógicos. Quem enuncia necessita levar
em conta o discurso de outrem: todo discurso é atravessado pelo discurso do
outro (FIORIN, 2008). O dialogismo é, portanto, a relação de sentidos entre
enunciados.
Mas, como aplicar o dialogismo na questão da adaptação? Podemos
inferir, das palavras de Stam, que o dialogismo faz cair por terra a questão do que
seja “original” ou “cópia”, pois “O ‘original’ sempre se revela parcialmente
‘copiado’ de algo anterior; A Odisséia remonta à história oral anônima, Don
Quixote remonta aos romances de cavalaria, Robinson Crusoé remonta ao
jornalismo de viagem, e assim segue ad infinitum” (STAM, 2006, p. 22). Portanto,
partindo desse pressuposto, segundo Stam, tem-se a desconstrução de quem
seria mais importante: a fonte ou sua adaptação, que o conceito de dialogismo
não se resume a enunciados, mas abarca também os textos.
O enunciado não é manifestado apenas verbalmente, o que
significa que, para Bakhtin, o texto não é exclusivamente verbal,
pois é qualquer conjunto coerente de signos, seja qual for sua
forma de expressão (pictórica, gestual, etc.)
Se uma distinção entre discurso e texto, poderíamos dizer que
relações dialógicas entre enunciados e entre textos. (FIORIN,
2008, p. 52)
2.2 O problema do autor
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“O autor é o agente da unidade tensamente ativa do todo acabado, do todo
da personagem e do todo da obra, e este é transgrediente a cada elemento
particular desta.” (BAKHTIN, 2003). Ao fazer essa afirmação, Bakhtin coloca o
autor em posição privilegiada, pelo que chamou de “excedente de visão”, ou seja,
o autor teria essa prerrogativa de domínio do todo da obra, incluindo presente,
passado e futuro.
Com a visão pós-estruturalista, Bakhtin contextualiza o autor como uma
espécie de organizador de discursos já existentes, como vemos em Stam:
A atitude de Bakthin em relação ao autor literário como alguém
que habita “território inter-individual” sugeriu a desvalorização da
“originalidade” artística. que as palavras, incluindo as palavras
literárias, sempre vêm “da boca de outrem”, a criação artística
nunca é ex nihilo, mas sim baseada em textos antecedentes.
(STAM, 2006: p.23)
Com essa afirmação, temos uma quase mitificação da existência, de fato,
de qualquer obra totalmente original.
2.3 A paródia/carnavalização
A obra bakhtiniana também trabalha com o conceito de
paródia/carnavalização. Conforme Fiorin, o autor forma ao conceito na obra A
poética de Dostoievski, mas apura-o em A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto da obra de François Rabelais (FIORIN, 2008, p. 89).
Segundo a concepção de Bakhtin, o conceito de paródia que nos interessa,
nas palavras de Marcos de Medeiros (2005), é o “que coloca em xeque a visão de
paródia como algo inferior e rompe com a noção alto e baixo na concepção de
cultura.” “O novo tratamento da realidade, o tratamento da lenda é crítico, sendo
às vezes cínico-desmascarador”. (BAKHTIN, 2000, p.107).
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A paródia é um elemento inseparável da “sátira menipéia”
2
e de
todos os gêneros carnavalizados. A paródia é organicamente
estranha aos gêneros puros (epopéias, tragédias), sendo ao
contrário, organicamente própria dos gêneros carnavalizados.
(MEDEIROS, 2005).
Para Bakhtin, o conceito de paródia está estritamente ligado ao conceito de
carnavalização, que, para ele, o carnaval seria o “grau máximo de inversão de
um processo cultural”. (MEDEIROS, 2005).
“revogam-se, antes de tudo, o sistema hierárquico de todas as
formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta etc”
(BAKHTIN, 2000, p.123). No carnaval tudo o que é determinado
pela desigualdade social/hierárquica e por qualquer outra espécie
de desigualdade (inclusive etária) entre os homens é abolida.
(MEDEIROS, 2005).
Portanto, na concepção bakhtiniana, a paródia/carnavalização é uma
libertação de amarras, padrões, classificações, medidas, classes: tudo se iguala.
No processo adaptativo, as adaptações que se apossam desse conceito não
podem ser consideradas inferiores à obra literária que lhes deu origem. São
novas possibilidades de uma mesma matriz, uma versão invertida de um
substrato.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluindo: os conceitos de Bakhtin podem ajudar a desmistificar a cultura
ainda existente de que a obra literária supera sua adaptação cinematográfica.
Em primeiro lugar, porque os conceitos de dialogismo e da questão do
autor colocam as duas artes em de igualdade, superando o mito de que a
literatura é uma arte superior ao cinema.
2
Sátira menipeia é um gênero cômico sério da antiguidade Clássica. O Memorial do
Convento, de José Saramago, é uma obra que se enquadra nesse tipo de gênero, pois, o autor
subverte as regras tradicionais das narrativas históricas e mistura história e ficção. Considerada
um gênero sátira menipeia, nessa obra, Saramago intersecciona a tensão política e as
manifestações satíricas do burlesco, da banalidade social. In <http://www.lpeu.com.br/q/gh3im>.
Acesso em 20 fev. 2018.
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Em segundo lugar, porque o conceito de carnavalização põe por terra a
necessidade de que a obra adaptada seja totalmente fiel à literária; pelo contrário,
estimula a liberdade, presente na maioria das adaptações.
Portanto, mesmo não escrevendo diretamente sobre o assunto, Bakhtin
acaba por influenciar nos estudos relativos ao processo adaptativo, do literário ao
cinematográfico, trazendo elementos que podem comprovar a independência de
ambas as artes, mesmo possuindo essa relação de proximidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra.
Rio de Janeiro: Forense/Universitária, 2000.
______. O autor e a personagem na atividade estética. In: ______.Estética da
criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.
GERBASE, C. O que o cinema aprendeu com Edgar Allan Poe. (E o que a
literatura ainda aprende com o cinema). Letras de Hoje. V. 44, Porto Alegre,
2009. Disponível em br/teo/ojs/index.php/fale/article/view/6024>. Acesso em 10
out. 2017.
MEDEIROS, M. de. Paródia/carnavalização e função poética em a invenção do
Brasil. Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 2, n. 13, p. 1-14, jul/dez 2005,
STAM, R. Teoria e Prática da Adaptação: da fidelidade à intertextualidade. Ilha do
Desterro, nº 51, jul-dez, p 19-53. Florianópolis: UFSC, 2006.