LEIDENS, A.; GRAZIOLI, F. T.; MENON, M. C. A estética do medo e a recepção do suspense: uma análise de “Leviathan: as irmãs Vália, Velma e Vonda”, da obra de O Vilarejo, de Raphael Montes. Revista Diálogos (RevDia), “Edição comemorativa pelo Qualis B2”, v. 6, n. 2, mai.-ago., 2018.

A ESTÉTICA DO MEDO E A RECEPÇÃO DO SUSPENSE

Uma análise de “Leviathan: as irmãs Vália, Velma e Vonda”, da obra O Vilarejo, de Raphael Montes

The aesthetic of fear and the reception of suspense: an analysis of “Leviathan: sisters Vália, Velma and Vonda”, of the work The Village, by Raphael Montes

Alexandre Leidens (PPGL/UTFPR)1

Fabiano Tadeu Grazioli (URI/FAE)2

Maurício Cesar Menon (PPGL/UTFPR)3


Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar o conto “Leviathan: as irmãs Vália, Velma e Vonda”, da obra O vilarejo (2015), de Raphael Montes, com base em pressupostos estéticos e concepções de autores e pesquisadores da literatura de horror, estabelecendo uma ligação entre o conto e as concepções teóricas sob o vértice da recepção estética do medo, do suspense e da surpresa. A abordagem de trabalho será qualitativa, com procedimentos técnicos na forma de pesquisa bibliográfica, com inserções interpretativas dentro das perspectivas adotadas.

Palavras-chave: Estética da recepção; Horror; Literatura brasileira.

Abstract: This work aims to analyze the “Leviathan: the sisters Vália, Velma and Vonda”, from Raphael Montes' The Village (2015), based on aesthetic assumptions and conceptions of authors and researchers of horror literature, establishing a connection between the tale and the theoretical conceptions under the vertex of the aesthetic reception of fear, suspense and surprise. The work approach will be qualitative, with technical procedures in the form of bibliographic research, with interpretive insertions within the perspectives adopted.

Keywords: Reception aesthetics; Horror; Brazilian literature.

1. INTRODUÇÃO

Questões de ordem emotiva demarcam uma inquestionável influência em toda e qualquer atividade humana; no entanto, são abandonadas, na maioria das vezes, pelo seu viés subjetivo, não adequado à objetividade e à razão extemporâneas, embora claro, nos dias atuais, que sejam fundamentais para um conveniente desenvolvimento tanto intelectual quanto humano do indivíduo.

A literatura é e se constituiu, por sua natureza, como um meio de se contrapor, muitas vezes, aos olhares excessivos da razão e da objetividade. Não surpreende que o Romance Gótico, que introduziu alguns elementos fantásticos, relacionados ao sobrenatural, ao irreal, ao medo e a outros sentimentos tenha surgido em pleno Século das Luzes.

Desse momento para o atual houve muitas mudanças, com o crescimento das produções, surgiram obras que se enquadram na definição de literatura de terror ou de horror, de temáticas variadas, emaranhadas na tensão, no suspense e na surpresa, procurando causar no leitor o medo e a repulsa das mais diversas formas. Tendo em vista que o medo é uma emoção primitiva que acompanha o homem em toda a sua evolução e com ele carrega uma gama considerável de emoções semelhantes, pode-se considerar que ele vai ao encontro da literatura de muitas maneiras e nela obtém solo fértil para o seu despertar e sua faina.

Muitos têm se ocupado dessa vertente da literatura, dentre eles, estudiosos, pesquisadores e os próprios autores que teorizam sobre o tema. Utilizando alguns pressupostos teóricos provindos das concepções de autores e pesquisadores, ancorado, ainda, em estudos que abordam a questão da Estética da Recepção, com elo direto ou não à literatura de horror, este trabalho pretende fazer uma análise, sob o vértice da recepção estética, do medo, do suspense e da surpresa do conto “Leviathan: as irmãs Vália, Velma e Vonda”, da obra O vilarejo (2015), de Raphael Montes. A abordagem será qualitativa, com procedimentos técnicos na forma de pesquisa bibliográfica, realizando inserções interpretativas no que tange à análise da leitura sempre que necessário.

2. A ESTÉTICA DO MEDO E A RECEPÇÃO DO SUSPENSE

Uma das vertentes literárias que captura com mais intensidade a atenção do leitor é a que privilegia, de uma forma ou outra, alguns efeitos na sua recepção, tendo eles sido, não poucas vezes, compilados no sentimento de medo e em algumas variantes que com ele mantêm relações. São nessas determinadas especificidades emotivas e nos seus efeitos, bem como na sua recepção que surgem ligações entre obra e leitor, ultrapassando a simples leitura direcionada e vertical que não só fazem o sujeito ser mais ativo no processo de leitura, como também um leitor mais efetivo e constante.

Muitas são as teorias plausíveis quando se observam os estudos correntes ou históricos ligados à literatura fantástica, de horror ou de terror, que se utilizam do insólito, do incomum, do não crível, do sobrenatural, da perversidade e da subversão frente aos costumes sociais, entre outras possibilidades, para causar sensações como o medo, a angústia, a revolta, a repulsa entre outros. No entanto, quanto mais efeitos causa, maior é a chance do fomento da curiosidade perante o fato narrado, sendo assim bastante difícil o abandono da leitura, mesmo ela mexendo com aspectos e temas que, muitas vezes, são de tratamento complicado ao leitor. Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que repugna, se torna interessante.

O homem, historicamente, tem uma relação bastante próxima com o medo, sendo-lhe um algo inerente, que se apresenta nas mais diferentes formas e nos mais variados graus. Está tanto para um constructo biológico, quanto para um sistema convencional ou social. Além de inerente, o medo é também tido, não poucas vezes, como uma emoção. Segundo Delumeau (1996, p. 23), “No sentido estrito e estreito do termo, o medo (individual) é uma emoção-choque, frequentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente que ameaça, cremos, nós, nossa conservação.”

Não surpreende que o medo foi tradicionalmente utilizado como mecanismo de controle, como meio de se manter a subserviência, a submissão e a gerência do manejo e do desenvolvimento social e intelectual das sociedades. Exemplos não pouco conhecidos são os da Igreja e do Estado. O medo está presente e visível tanto na história como na essência do homem, logo causaria espanto se a literatura, assim como outras manifestações artísticas, não se utilizasse dele para fomentar efeitos estéticos e sentimentais nas suas mais diversas formas de realização.

Lovecraft (2007) afirma existir o medo cósmico que, em sua concepção, é primitivo, bem como suscetível a crenças sobre realidades obscuras e desconhecidas, que estão desligadas do “natural” e são diferentes da literatura que aborda o medo físico. O mesmo autor afirma, de forma contundente, ser de tempos remotos a relação entre medo e homem:


A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o tipo de medo mais antigo e mais poderoso é o medo do desconhecido. Poucos psicólogos contestarão esses fatos e sua reconhecida verdade deve estabelecer, para todos os tempos, a autenticidade e dignidade da ficção fantástica de horror como forma literária. (LOVECRAFT, 2007, p. 13).



Não apenas o autor focaliza o elo entre o ser humano e o medo, como também justifica a literatura fantástica de horror. Ela se liga invariavelmente a fatores psicológicos, colocando o leitor diante de suas angústias e seus receios, que geralmente são ancorados na falta de conhecimento sobre determinados assuntos. O medo provém de algo que se ignora, de tal maneira que há, também, uma concepção que beira ao senso comum de que o medo do desconhecido é universal e elementar entre os seres humanos. Dentro dessa perspectiva, o medo da morte, seu mistério, sua insolubilidade e sua irredutibilidade aparentam ser os mais partilhados, de modo que esse medo, provindo da consciência da morte, é tido como o cerne da produção narrativa de horror.

Na esfera da literatura é possível encontrar algumas obras fundamentais, sejam fantásticas, com elementos sobrenaturais, sejam estranhas, a ponto de causar o medo sobretudo na construção da expectativa do leitor a partir da contingência narrativa a que se propõe. Em A outra volta do parafuso, de Henry James (1983), conhecido pelo seu teor fantástico, constrói-se uma expectativa sobre a existência ou não de algo sobrenatural na narrativa em vários momentos. O leitor fica apreensivo e neste estado, de certa maneira, dialoga com o medo em vários momentos, na expectativa de saber o que pode se revelar e acontecer na narrativa. A obra explora de variadas formas e não desfaz essa tensão e essa apreensão do leitor, de modo que não na dúvida em si, mas na criação dela é que há a determinação e a quebra do horizonte de expectativa do leitor.

Dentre as possibilidades de avaliação crítica das obras fantásticas ou de horror, Lovecraft (2007) afirma que o conto sobrenatural deve ser julgado pela intensidade emocional que provoca. Uma vez que se tenha a perspectiva de que o medo é uma emoção-choque e a possibilidade de seu surgimento seja múltipla, dependendo tanto das características narrativas, quanto do teor psicológico do leitor ou outras instâncias afetivas que o influenciam, essa concepção não pode ser ignorada. O medo e seus sentimentos afins podem surgir também do que Todorov (1975) elenca como Estranho, sem que existam elementos sobrenaturais ou desconhecidos, mas que aflijam de uma maneira contundente o socialmente aceito, personificando-se aquém do panorama concebível para uma determinada realidade.

Entretanto, na análise de uma obra com base no efeito emotivo que causa, o quesito narrativo é importante, pois o texto sugere uma determinada recepção em um conflito específico ou em algum ponto da narrativa; todavia é o leitor quem vai se sentir incomodado de diferentes formas e com diferentes intensidades, ainda que sua medição lhe seja também alheia. É bastante particular o sentimento de medo, de horror ou de asco que o texto pode provocar, posto que o sujeito faz a leitura sozinho, também sozinho combate essas emoções.

Nessa recepção, a incerteza e o perigo são aliados, o desconhecido é visto como uma possibilidade de risco ou de algo que seja de uma forma ou outra malévolo (LOVECRAFT, 2007). Todos esses artifícios são utilizados para excitar o leitor na construção gradativa de uma expectativa sobre o texto. O leitor, não raro, espera que a narrativa lhe tire de sua segurança e lhe coloque em outro patamar em relação aos seus sentimentos, expectativas e à sua recepção futura. A narrativa de horror, então, atua decisivamente como uma produtora de efeitos.

Levantando alguns pressupostos teóricos da Estética da Recepção, certamente haverá pontos que serão convergentes com essa perspectiva, sobretudo quando se fala em efeito estético e na busca por uma sobreposição do aceito e conhecido, a partir da surpresa provinda do texto, sempre no intuito da quebra e do alargamento do horizonte de expectativas do leitor. Esse horizonte é construído a partir das vivências e das leituras anteriores, não sem considerar todo o meio social do qual o sujeito provém, supondo, assim, um enquadramento dos seus horizontes históricos. A obra literária, atuando como mediadora entre o mundo e o leitor, precisa que os dois dialoguem e, para isso acontecer, as perspectivas da obra e do leitor devem ser fundidas, pelo menos em um plano inicial.

Zilberman (1982), em trabalho sobre o cenário de ligação entre obra e leitor, elencou-as como: social: que depende da posição social do indivíduo dentro da hierarquia da sociedade; intelectual, que tem conexão com a sua visão de mundo, que provém do término da sua educação formal, bem como do seu lugar na sociedade; ideológica: que tem conexão com alguns valores circulantes na sociedade em que vive e não consegue se desligar; linguística: que tem conexão com o padrão expressivo, que pode estar de acordo ou não com o padrão prestigiado socialmente, tem relação com a educação e com o espaço social ocupado; literária: que tem conexão com as leituras já realizadas, e também com as preferências artísticas frente ao que é oferecido pelos meios de comunicação, tem ligações com a educação; e, por fim, afetiva: que pode influenciar qualquer uma das anteriores em qualquer momento.

Esses são alguns elementos que facilitam o diálogo entre leitor e obra. A partir disso, os horizontes históricos se unem na leitura. Quando o leitor é surpreendido e algo que está lendo o faz sentir medo, outros sentimentos afins ou um grande estranhamento, por vezes, há a desconstrução do que imaginava ou acreditava para aquela obra. Quando uma obra que não trabalha com aspectos sobrenaturais coloca-o frente a frente com algumas ações de personagens que ultrapassam o que lhe é tido como aceito socialmente, por meio de assassinatos, mutilações, mortes, incestos, infanticídios, entre muitos outros, o leitor tende a sentir emoções como o medo, o horror, o asco, o terror e suas variações. Nesse ponto está o movimento estético da obra, na sua recepção. Também, quando isso acontece, o horizonte de expectativas do leitor aumenta, cresce, se alarga, sendo-lhe possível, em uma próxima leitura, o diálogo sem tamanho sentimento e surpresa com ações semelhantes, além de estar preparado para novas leituras, mais profundas e mais complexas, que lhe serão da mesma forma surpreendentes.

O horizonte de expectativa de uma obra, que assim se pode reconstruir, torna possível determinar seu caráter artístico a partir do modo e do grau segundo o qual ela produz seu efeito sobre um suposto público. Denominando-se distância estética aquela que medeia entre o horizonte de expectativa preexistente e a aparição de uma obra nova – cuja acolhida, dando-se por intermédio da negação de experiências conhecidas ou da conscientização de outras, jamais expressas, pode ter por consequência uma “mudança de horizonte” -, tal distância estética deixa-se objetivar historicamente no espectro das reações do público e do juízo da crítica (sucesso espontâneo, rejeição ou choque, casos isolados de aprovação, compreensão gradual ou tardia). (JAUSS, 1994, p. 31).

De fato, se observada a distância estética citada pelo autor, será possível visualizar uma ligação entre as consequências estéticas da literatura de horror com alguns pressupostos da Estética da Recepção. As duas têm seus objetivos bastante claros e buscam que o leitor seja não apenas surpreendido, mas que tenha seu horizonte de expectativa aumentado e alargado cada vez mais. Isso ocorre, grosso modo, a partir do estranhamento, pelo cunho da observação de algo que foge ao esperado e da percepção de que as coisas como o leitor as conhece estão se desestruturando.

Obras literárias que desafiam a compreensão, por se afastarem do que é esperado e admissível pelo leitor, frequentemente o repelem, ao exigirem um esforço de interação demasiado conflitivo com seu sistema de referências vitais. Todavia, a obra emancipatória perdura mais no tempo do que a conformadora, devendo haver uma justificação para o investimento de energias psíquicas na comunicação que estabelece com o sujeito. (AGUIAR; BORDINI, 1993, p. 84).

As autoras, no excerto acima, além de fazerem um resumo bastante coerente do que a Estética da Recepção pode proporcionar aos leitores, ainda evocam o conceito de emancipação, bastante relevante também no contexto da literatura de horror. Um leitor acostumado a tais obras, com o passar do tempo saberá conduzir-se com mais destreza, escolhendo leituras mais coerentes com sua capacidade e se tornando autônomo no processo de recepção da leitura. Essa característica será tanto maior quanto maiores e mais amplas forem as suas leituras, sem distinção única de gênero.

Deveras, muitas das visões sugeridas pelas obras literárias de horror causam repulsa em um nível tão alto que levam inclusive a um mal estar que pode afetar de forma leve fisicamente o próprio leitor, além de dialogar constantemente com uma indignação moral que a ele pode ser considerada inerente. Importante ressaltar que a literatura de horror tem como resposta básica a retração dos sentidos do leitor, ao passo que a literatura de terror tem como resposta básica a expansão dos sentidos, de maneira que os dois conseguem operar de modo significativo sobre as percepções do leitor quanto à leitura. Dessa forma, mais que alargar o horizonte de expectativas do leitor, por meio dessa percepção estética, o horror aparece como uma percepção mista, que subverte a concepção da normalidade e chega ao que parece errado fisicamente, também causado por quesitos como a monstruosidade, a anormalidade ou os eventos sobrenaturais. Não querendo abordá-los mais diretamente, mas citando-os como essenciais em toda essa perspectiva de estudo, parece importante fazer uma ponte entre o sobrenatural e o anormal em um âmbito físico e social. Villiers de L’Isle Adam (DOMINGOS, 2010), fala em conte cruel, com o qual intitula a literatura que lança mão de provações, frustrações e horrores físicos inimagináveis, criando assim um termo específico para abordar esse nicho restrito da literatura de horror físico e não sobrenatural nem fantástica.

Por fim, dentre as inúmeras maneiras de se justificar não apenas essa literatura, mas toda a que aborda o sobrenatural e causa os sentimentos de medo, a perspectiva de King (2007, p. 24) parece congruente em um ponto de vista relacionado à realidade:

Nós inventamos horrores para nos ajudar a suportar horrores verdadeiros. Contando com a infinita criatividade do ser humano, nos apoderamos dos elementos mais polêmicos e destrutivos e tentamos transformá-los em ferramentas para desmantelar esses mesmos elementos.

A segurança da leitura, a garantia de que nada de físico vai acontecer e de que todo o mal, o assustador, o repulsivo está dentro das páginas do livro que pode ser fechado a qualquer momento, dependendo apenas da sua vontade, dá ao leitor um prazer ou um sentimento diferente do que sente quando vive algo, não menos importante nem menos valioso; esse prazer que se alia ao controle dessa particular vivência é chamado deleite, fundamental não apenas para a superação dos seus sentimentos de medo e para o seu efeito estético, como também para um alargamento do seu horizonte de expectativas frente à obra e à vida. Ainda que aqui se faça alusão à Estética da Recepção frente à leitura da literatura de horror, este é um breve diálogo que demanda produções ainda mais profundas para uma discussão mais profícua.

No caso do conto “Leviathan: as irmãs Vália, Velma e Vonda”, são perceptíveis algumas das questões discutidas até aqui no que se refere à Estética da Recepção, observando a obra literária como propulsora da expansão do horizonte de expectativas do leitor, sobretudo pelo motivo da obra em questão deter uma narrativa onde se evidenciam aspectos como a surpresa e o horror.

3. A INVEJA, A SURPRESA E O HORROR EM “LEVIATHAN: AS IRMÃS VÁLIA, VELMA E VONDA”

O jovem escritor Raphael Montes constrói uma literatura policial com fortes ingredientes e elementos do horror. Na obra O Vilarejo, surpreende os leitores a cada página, utilizando artifícios como o suspense, o terror e o horror físico para manter não só a sua atenção, mas apavorá-lo frente ao contexto macabro e o ambiente de estranheza e incompreensão. Bastante concisa, sua narrativa se subtrai ao essencial, de maneira que não existem descrições assoberbadas em nenhum dos contos do livro. Os elementos escolhidos para integrar a narrativa contribuem e confluem para a criação de um ambiente de mistério e suspense, transformando a construção desse ambiente em algo tão importante quanto os próprios fatos narrados. Também essencial para esse constructo são as ilustrações, na edição aqui referenciada, realizadas por Marcelo Damm que, de alguma forma, dialogam com o texto escrito. A todo contexto narrativo estão adicionadas algumas gravuras não menos assustadoras, que não só adentram ao imaginário do leitor, como também o surpreendem, dando mais ênfase ao quesito amedrontador e inquietante do texto.

Encontrado em O castelo de Otranto, de Horace Walpole (1764) e em O nome da Rosa, de Umberto Eco (1983), o recurso do antigo manuscrito também é utilizado por Montes, no prefácio da obra. Nesse caso, o autor afirma ter tido contato com três antigos cadernos manuscritos por intermédio de um amigo livreiro que, ao adquirir uma biblioteca, os encontrou entre seus volumes. O narrador, a fim de assegurar o distanciamento temporal com o manuscrito, tem o cuidado de enaltecer a deterioração dos cadernos, bem como a ornamentação e a forma da escrita:

Os manuscritos de Elfrida Pimminstoffer vinham numa tinta velha e desbotada, com uma caligrafia feminina hesitante, falha, que ganhava firmeza ao longo das páginas. As folhas estavam malconservadas e o texto havia sido escrito em uma língua estrangeira que, a princípio, me pareceu russo ou polonês. (MONTES, 2015, p. 7-8).

Em seguida, há a descoberta de que estão escritos em cimério, língua morta do ramo botno-úgrico. Essa introdução contribui para a ambientação, enaltecendo sua antiguidade e sua singularidade. A distância entre o narrador e aqueles escritos diminui com um encontro que teve com Uzzi-Tuzii, do departamento de línguas botno-úgricas da Universidade Degli Studi di Udine. Referência direta ao anedótico Uzzi-Tuzii da obra Se um viajante numa noite de inverno (CALVINO, 2003), também tradutor de cimério. O professor, que se nega a traduzir os textos, dá a ele um dicionário cimério-italiano, com o qual o traduz e é essa a forma como se apresenta: o tradutor. A aclimatação, posto que o narrador se coloca como tradutor, se dá também na escrita em primeira pessoa, que se encontra apenas no prefácio e no posfácio da obra, indicando uma inserção que se assemelha às notas do tradutor.

Entretanto, não apenas disso se compõe seu prefácio. Introduzindo já as temáticas de cada conto, o autor descobre, em cada um dos cadernos, o nome de Peter Binsfeld. Esse teólogo alemão foi quem classificou os demônios em 1589 como os sete reis do inferno, alocados entre os sete pecados capitais, da seguinte forma: “Asmodeus (luxúria), Belzebu (gula), Mammon (ganância), Belphegor (preguiça), Satan (ira), Leviathan (inveja) e Lúcifer (soberba).”. (MONTES, 2015, p. 8). Cada capítulo da obra está ligado a um desses demônios, figurando e exteriorizando, de uma forma ou outra, os pecados dos personagens.

Todos os contos tratam de um mesmo vilarejo desconhecido; não há, como o próprio narrador diz, a necessidade da leitura ordenada, embora dialoguem em algum ponto da narrativa. Não obstante, uma vez que a leitura sem ordenação é possível e não reprimida pelo próprio narrador, crê-se que uma análise em separado de apenas um dos contos seja também possível e não disperse e nem diminua a concepção da obra como um todo. Para que a análise não ficasse em um patamar superficial, foi preciso fazer um recorte. Assim, foi selecionado o conto “Leviathan: as irmãs Vália, Velma e Vonda” para uma observação um pouco mais profunda.

O referido conto faz alusão clara à inveja, que, nesse caso, é vista em um âmbito familiar. As três irmãs gostam de ir até o descampado aos domingos, um local perto da estação ferroviária onde Velma e Vonda, junto com sua amiga Jekaterina, escrevem contos sobre os habitantes da vila, enquando Vália passa o tempo com seu namorado Krieger, um ferreiro tido como um bom rapaz pelo vilarejo. A divisão que fazem na escrita dos contos é a de que Velma escreva seu início, deixando Vonda continuar e, Jekaterina, por sua vez, os termina. Essa distribuição não agrada Vonda, que a utiliza secretamente em seus pensamentos para se depreciar e se comparar com a irmã. “Até em criar histórias sua irmã é melhor, e por isso fica com os começos, a parte que realmente importa.” (MONTES, 2015, p. 23). Vonda é o cerne do conto, é nela que está concentrada toda a narrativa e é ela a responsável por surpreender o leitor no seu final, ainda que se possa observar, em uma leitura mais atenta, algumas características pertinentes, que levam à conclusão ou pelo menos à suspeita de que ela enfrente algum problema psicológico.

Vália tem um apreço especial pelas gêmeas Velma e Vonda, pois perderam o pai na guerra e a ela coube um pouco mais de responsabilidade no cuidado das irmãs mais novas. As gêmeas são muito parecidas; entretanto, Vonda tem uma mancha vermelha no rosto que é combatida com maquiagem, fazendo da distinção entre as duas uma tarefa complicada. A semelhança é tanta que inclusive a caligrafia é idêntica (MONTES, 2015). Há uma diferença nas suas posturas, Vonda é tímida, retraída, pouco fala, ao passo que Velma é mais agressiva, toma partido em quaisquer discussões. Não há estritamente uma comparação partindo de Vonda, nesse caso; entretanto, a característica da sua timidez desperta interesse, sobretudo com o decorrer do conto. Observando os próprios nomes das gêmeas, é possível perceber que a própria fonética que envolve os nomes Velma e Vonda dão algumas pistas sobre o que esperar de cada personagem. O autor utiliza um recurso poético relacionado aos sons das letras “o” e “e” para diferenciá-las, tendo em vista que a letra “o” é bastante usual na poesia ao serem focalizados temas mais obscuros, melancólicos e tristes, ao passo que a letra “e” é mais encontrada quando abordam temas mais claros, abertos e, de certa forma, felizes.

Vonda constantemente se compara à irmã mais velha, que com a sua idade, há quatro anos, começou a namorar Krieger e se autodeprecia, pois não tem e nem cogita ter um namorado. “Ninguém no vilarejo é interessante o suficiente… Só o Krieger… Galante como um príncipe, forte e...” (MONTES, 2015, p. 23). Embora venere Krieger, nesse ponto da narrativa condena seus pensamentos e tenta afastá-los.

No decorrer da narrativa, Velma convence Vonda a escrever um texto sobre Krieger dizendo poder fazer de Krieger seu namorado na história e ela demonstra uma certa angústia ao perceber que não terá defesas e deverá continuar a história que a irmã começou, envolvendo-a em um triângulo amoroso com Krieger.

Vonda não presta mais atenção. Krieger segurando suas mãos, afagando seu corpo tal como faz com a irmã… Só a imagem já lhe causa calafrios, uma palpitação estranha. Krieger poderia sair com quem quisesse no vilarejo, mas escolheu sua irmã mais velha. Não tem por que ele se arrepender. Vália é linda. Azar de Vonda ter nascido depois, afinal. (MONTES, 2015, p. 23).

Percebe-se, nesse excerto, não apenas algumas consequências dos sentimentos que nutre pelo namorado de sua irmã, mas também a insistente comparação com a irmã e a depreciação, que aparece seguidamente na narrativa, ao se considerar a menos inteligente e interessante das três, com uma visão característica infantil. Além disso, a sugestão feita por Velma faz com que Vonda reflita sobre a condição em que está perante Krieger e continue se comparando com as irmãs e se autodepreciando:

Ainda que Krieger tivesse sua idade, ele não iria namorá-la. Preferiria Velma, que é mais interessante e bonita. A mancha vermelha no rosto, mesmo que digam ser pequena, incomoda Vonda. Toda manhã, ela se maqueia bastante para esconder a mancha e ficar praticamente idêntica à irmã. Mas não adianta. Não se trata apenas de beleza. Velma é mais inteligente, sagaz, dona de si. Vonda é apenas uma menina boba. Uma menina boba que não consegue fazer nada direito. (MONTES, 2015, p. 23).

Além da clara autodepreciação que aparece a todo momento, o comportamento tímido de Vonda corrobora, inclusive, para que as irmãs estejam mais em evidência do que ela em vários momentos, uma vez que Velma é bastante desafiadora e se inclui nas discussões e Vália, quatro anos mais velha, responsabiliza-se por ela.

Embora no decorrer da história que estão a escrever rechace a ideia de tirar o namorado da irmã, Vonda se acostuma lentamente com a ideia. O próprio narrador deixa alguns modeladores, sugerindo uma breve propensão para um descortinamento do que lhes era impossível. “Tudo ali é ficção, não? A graça é justamente distorcer a realidade! Um triângulo amoroso que choca todo um vilarejo tradicional, perdido num vale cercado de montanhas de gelo.” (MONTES, 2015, p. 24).

A menina Vonda não quer ficar só e esquecida, pelo menos não na ficção. Nas nuances do texto ou nas pistas deixadas durante toda a narração pelo narrador onisciente e também pelas ações da personagem, é possível dizer que ela demonstra em demasia dois medos: o medo da solidão e o medo da falta de apoio ou desaprovação do restante das pessoas. Os dois medos, juntos com a autodepreciação e com a comparação insistente que mantém sobretudo com suas duas irmãs, Velma e Vália, são o cerne de todas as suas ações e se consubstanciam na inveja, que parte dela para irmã gêmea e para a irmã mais velha. À Vonda está ligada uma grande audácia, percebida, primeiramente, na criação do texto sobre Krieger, nos devaneios referentes a essa produção, que ultrapassam, pela primeira vez, os seus sentimentos de inferioridade em relação às irmãs e a colocam como dona da situação, admitindo serem elas um entrave para o seu objetivo de ter Krieger para si.

É a dona da história. Precisa se livrar do problema que as outras representam: Velma, idêntica a ela, porém mais atraente; Vália, mais velha e em busca de um namorado, torcendo contra a relação das duas com Krieger. Como enfrentar tudo isso? Não pode ser tão difícil… Na ficção, tudo é possível. (MONTES, 2015, p. 24).

Na sequência, demonstra uma certa frieza, pois a sua primeira reação ao pensar em assassinato é um riso envergonhado e o sentimento de graça por tê-lo cogitado; entretanto, focaliza apenas a ficção do texto que estão produzindo.

Assassinato, então. Mas de quem, afinal? Vália? Velma? Teria coragem de se livrar das irmãs que tanto ama? Não! Nunca! De que adiantará matar as duas irmãs para viver em paz com Krieger? E se o amor terminar em nada? E se, depois de duas mortes, a infelicidade voltar a bater à sua porta? Quem garante seu futuro com Krieger? Vália é feliz e se sente completa com ele, mas isso não significa que o mesmo acontecerá com ela. E ainda pode ocorrer o pior: se ela, incapaz e lerda, não conseguir cometer o crime perfeito, terminará trancafiada na prisão da capital, desprezada. (MONTES, 2015, p. 25).

Nesse ponto, percebe-se que não há uma divisão exata sobre onde estejam seus pensamentos, de maneira que é possível observá-los tanto dentro da história iniciada pela irmã, quanto na sua vida, onde realmente detém sentimentos por Krieger. Ademais, com esse breve trecho, há a demonstração de uma capacidade intelectual considerável, sobretudo quando a menina consegue medir as consequências dos seus atos, seja na ficção que estão escrevendo, seja na vida real, somando-se a isso um rancor e um pessimismo relativamente comum em jovens de treze anos. Os seus pensamentos, entretanto, começam, de fato, a serem misturados à realidade (MONTES, 2015), não havendo, entre eles, uma distinção definida.

Vonda apresenta mais frieza no decorrer do conto, já pressupondo outros acontecimentos, como que os vislumbrando ou planejando: “Assassinato. Vonda já consegue vislumbrar o enterro do jovem Krieger, morto de maneira inesperada… Vália, inconsolável, encontra nas gêmeas o acalanto de uma dor interior… Matar uma pessoa não é tão difícil, afinal.” (MONTES, 2015, p. 25).

Na volta para casa, perde a timidez e dá um papel a Krieger, dizendo ser de Velma e por ela assinado falsamente, convidando-o para se encontrarem no descampado às 22 horas, afirmando ser um assunto surpresa sobre Vália, sua namorada. O jovem fica bastante curioso e, por achar que se trata de uma brincadeira de criança, sequer faz perguntas. Esta noite a mãe delas vai jantar na casa de outra família, Vonda espera as duas irmãs irem dormir, pega o casaco de Velma, refaz sua maquiagem e vai esperá-lo escondida. Quando Krieger chega, ela o agride pelas costas com uma pedra na cabeça, deixando-o desmaiado. Às 22h17 consegue puxá-lo para os trilhos do trem, que passa em três minutos; no entanto, momentos antes disso, Krieger acorda e, um tanto quanto confuso e desorientado, consegue rastejar dois terços do corpo para fora dos trilhos e enxergá-la antes que suas pernas sejam decepadas. Percebe-se a audácia e a frieza de Vonda logo após tê-lo colocado nos trilhos:

Volta ao esconderijo na árvore. Sente-se animada ao ouvir o chiado do trem se aproximar. Sorri para Krieger desmaiado, prestes a ser devorado pelo comboio em alta velocidade.

Tudo acontece em segundos, Krieger abre os olhos e move o braço, dando-se conta da desgraça iminente. Seu olhar apavorado encontra o de Vonda. O trem avança. (MONTES, 2015, p. 27).

Vonda, que se preocupava em cometer um crime sem pistas, vê seu plano cair em desgraça e se depara, pela primeira vez, com os seus maiores medos em uma situação causada unicamente por ela. O pavor que a possibilidade de ser presa, de ter o ódio da família e a repulsa do vilarejo tem sua maior tensão e aparece mais fortemente nesse ponto na narrativa. No entanto, o que parece ser o ápice do conto ainda surpreende o leitor com a solução por ela encontrada.

Abre o caderno e redige uma carta breve. Volta à sala e, subindo em um banquinho, alcança a arma do pai, guardada na porta superior do armário. Ruma ao quarto da gêmea. As mãos suadas envolvem o cabo frio do revólver. Mira a têmpora esquerda de Velma – sua irmã é canhota e ela aprendeu nos livros policiais que os canhotos se matam com a mão esquerda. Fechando os olhos, atira. (MONTES, 2015, p. 29).

Neste excerto fica evidente não apenas a audácia e a frieza da personagem, como também a sua coragem e apatia. A ela se prendeu o destino trágico da irmã e da família; muito embora o final do conto seja revelador e surpreendente, principalmente pela carta de despedida forjada por Vonda:

Sei o que estou fazendo. Vália, desculpe ter tentado matar Krieger. Soube de coisas que o fazem merecer a morte. Coisas que ele fez comigo, mas vai negar até o fim que realmente tenham ocorrido. Ele é mau. Ele abusou de mim. Afaste-se dele. É sério. Peço desculpas por tudo. Não posso mais viver com isso. Vonda, você é uma ótima irmã. E uma excelente escritora também. Amo vocês e a mamãe. Adeus. (MONTES, 2015, p. 29).

Muito embora Vonda tenha sentido algum nervosismo enquanto praticava tais atos, perceptíveis inclusive nas frases curtas da carta de despedida, surpreende a sua calma, sua frieza diante do decorrido não apenas no crime, mas também posteriormente. “Vonda sorri satisfeita sempre que ouve alguém no vilarejo comentar a carta suicida. Ninguém suspeita de nada. A cada instante tem mais certeza do que o texto diz: realmente, ela é uma excelente escritora.” (MONTES, 2015, p. 29).

Essa última frase pode sugerir outras acepções dentro do texto e da obra como um todo. Algumas características dadas às gêmeas, logo no início do conto são olhos verdes, cabelos loiros e cacheados. As mesmas são encontradas na imagem final da obra, uma foto da própria Elfrida Pimminstoffer, sugerida como a escritora dos contos sobre o vilarejo. A imagem é, de fato, perturbadora, a idosa aparece com uma mancha vermelha no rosto, cabelos, embora curtos, aparentemente cacheados e loiros, olhos verdes sem nenhuma expressão, olhando diretamente para o leitor. As rugas dão uma sensação de incômodo ao serem observadas. As duas, Elfrida e Vonda, compartilham as características acima mencionadas e, além dessas, gostam de escrever contos sobre as pessoas do vilarejo. Astutamente, o autor dá ao leitor a dúvida, será Elfrida a já idosa Vonda? O próprio tempo verbal da última frase pode sugerir que ela foi quem escreveu tal conto. Cabe, assim, a cada leitor a resposta a essa essencialmente característica literária da obra.

Caso o leitor tencione considerar Vonda como pseudônimo de Elfrida, poderá imergir em uma reflexão bastante perturbadora e desalentadora, pois, uma vez que considerado o conto como um relato de histórias passadas reais, sem que existam possibilidades quaisquer para sua confirmação ou negação, o leitor se depararia, de fato, com a própria assassina da irmã gêmea descrevendo os fatos em uma narrativa na qual o faz em terceira pessoa. Ademais, é possível pensar que há, nessa hipótese, uma tentativa, por parte da já velha autora, de não deixar que a sua história e, considerando os demais contos, a história do vilarejo em que passou a infância se perca ou, ainda, é possível crer que a autora possa estar querendo demonstrar através da literatura a audácia e o crime que cometeu quando menina, sabendo que não há, hoje, possibilidade alguma de punição.

Elfrida, como escritora ou como personagem carrega a essência e a identidade do vilarejo, suas lutas, seus devaneios, seus problemas, suas alegrias e suas mazelas, dela é transmitida e por ela é contada toda a história remanescente daquele extinto povo, que, não mais existiria, não fossem pelos seus escritos. Sendo assim, além do sentimento de surpresa ou espanto do leitor ao ver a imagem de Elfrida Pimminstoffer, terá também muito o que pensar, partindo das características já explicitadas pelo conto. Para uma melhor observação de sua imagem, reproduziu-se, a seguir:



















Figura 1: Elfrida Pimminstoffer

Fonte: Montes (2015, p. 93)

No decorrer do conto, muitas características estão envoltas ao que se coloca como seu tema central: a inveja. A inveja que desencadeia uma série de impensáveis atos. Não obstante, para sua construção, o conto ultrapassa uma simples trama que apresenta um conflito baseado na inveja, ele é mais profundo e bem elaborado, tendo nuances bastante significativas que envolvem seus personagens e que ficam escondidas, sob uma certa bruma em uma primeira leitura ou em leituras desatentas. Como dito, há algumas relações desse conto com alguns outros da mesma obra, sobretudo quando é citado o nome da senhora Helga (MONTES, 2015, p. 22), e com a aparição de um velho curvado que sai de um trem enquanto as gêmeas brincam no descampado (MONTES, 2015, p. 24); contudo, como são apenas breves citações e não interferem na trama do conto como um todo, crê-se constituir alusão desnecessária.

Vonda é a caracterização do medo e é sujeito ativo na concretização do suspense e da surpresa no conto. Entretanto, se em demasiada curiosidade forem observadas algumas características aqui elencadas mais precisamente, muito provavelmente se chegaria à conclusão de que essa personagem apresenta traços bastante fortes, como a comparação excessiva com suas irmãs, a autodepreciação, o medo absurdo e insensato da solidão e da desaprovação frente ao meio social em que vive e, embora demonstre algum nervosismo, não o faz quanto ao arrependimento e ao remorso sobre suas ações, fazendo de tudo para ser considerada inocente. Algumas dessas características são consideradas sintomas da chamada psicopatia infantil ou transtorno de conduta, como por exemplo, a não tolerância à frustração, a ausência de culpa ou remorso, a preocupação com os próprios interesses, a tendência a culpabilizar outras pessoas e a violação de regras sociais (BORDIN; OFFORD, 2000). Não objetivando julgar a personagem ou relativizar seus atos dentro da narrativa, mas como desvelo e possível leitura frente aos pressupostos elencados, acredita-se que seja, no mínimo, interessante que essas leituras possam ser realizadas.

De fato, se observado o efeito provocado pela recepção do conto, certamente ficará explícito não só o medo da personagem, que se dilui no medo da solidão e da não aceitação, mas também o medo e sobretudo a expectativa e o suspense que podem ser experimentados pelo leitor no decorrer da trama. As emoções sentidas pela personagem Vonda, principalmente no final do conto, quando decide assassinar Krieger e colocar seu plano em ação, é muito provável que também as sinta o leitor, acompanhando-a passo a passo, até o final da narrativa, provavelmente se surpreendendo e sentindo uma certa incompreensão. Esse sentimento se acentua pela frieza da personagem na arquitetura e no influxo do crime. Uma vez que a narrativa do conto não é conformadora e desconstrói uma visão romantizada da pré-adolescente, pode-se considerar que o seu efeito é bastante desalentador frente ao leitor.

No que se refere aos pressupostos elencados anteriormente sobre a Estética da Recepção, a menos que o leitor esteja acostumado a ler contos dessa natureza, seu horizonte de expectativas, por meio do estranhamento e da surpresa, sofrerá um aumento e um alargamento. Recuperando alguns excertos de Jauss (1994), pode-se imaginar uma distância estética bastante evidente entre o leitor e o narrado no conto, entre a realidade do leitor e o cotidiano da família e sobretudo entre o leitor e a personagem Vonda. Essa distância tende a ficar mais evidente a cada passo dado por ela na concretização do seu plano para matar o namorado da irmã. Além disso, tende a aumentar o horizonte de expectativas do leitor na medida em que o surpreende e o faz refletir ou ter alguma reação de apreensão no momento da recepção do texto.

A recepção estética do conto é bastante incômoda, tendo em vista as ações nele narradas, sobretudo se comparadas às perspectivas e provisões iniciais do leitor. É essa uma das funções e das características mais importantes desse gênero, que não só o surpreendem, mas também dão literariedade ao texto, principalmente quando o leitor consegue fazer algumas ligações e conectar pontos que podem passar despercebidos, como a própria relação da fotografia com as descrições da personagem, posto que há uma distância considerável no espaço físico da obra entre o capítulo em questão e a fotografia. Causa surpresa ao leitor a coragem da personagem, que realmente comete o crime pensado anteriormente, como também a sua audácia em matar a própria irmã, de maneira a simular um suicídio e se isentar completamente dos fatos. Esse é, talvez, o ponto de maior surpresa ao leitor que, se presume, passa pelas linhas do texto procurando saber se o planejado acontecerá se perguntando, terá ela coragem para tanto?

Posteriormente, entra em uma certa profusão de sentimentos que da surpresa se transformam e curiosidade quando o plano para a morte de Krieger não se concretiza e ele a enxerga, a personagem quase entra em desespero, procurando uma saída para não sofrer as consequências de seus atos. O leitor não só acompanha, de certa forma, a partir da recepção do texto, as emoções da personagem, como lhe é transmitido um certo mal-estar e uma aversão bastante incômoda com a forma encontrada por Vonda para se abster das responsabilidades. Das pistas do texto à estética do medo, do suspense à surpresa, da linguagem à ação, disso é feita a literariedade do conto “Leviathan: as irmãs Vália, Velma e Vonda”.

4. CONCLUSÃO

A produção literária nacional ligada ao horror e ao medo é singular e tem em Raphael Montes um nome bastante imponente e promissor, não apenas pela sua pouca idade, mas principalmente pela produção literária de qualidade que apresenta. Na obra analisada, foi possível observarem-se alguns aspectos ligados ao medo, bem como ao suspense e à surpresa, não só no conto, mas também sob a perspectiva da recepção da leitura pelo leitor. De fato, estudos que focalizem a questão estética na recepção de obras do gênero ainda são poucos e, além disso, buscam uma fundamentação teórica mais elaborada e abrangente.

Além disso, a literatura, indiferentemente de seu gênero, deve ser debatida e analisada no combate à racionalidade e à objetividade excessiva da contemporaneidade, pois a literatura constitui-se na formação de uma possibilidade maior de interação entre o ser humano e sua essência; é onde podem aparecer conectadas em um só meio as maiores virtudes e as maiores mazelas do homem. É pela literatura e não fora dela que o homem consegue enxergar o mundo à sua volta sem que haja refreamentos por motivos quaisquer, é na literatura que está a capacidade e a possibilidade do homem de retratar o histórico com ironia, de reescrever o que está comumente posto e aceito sob um viés diferente, eloquente e questionador.

A literatura pode levar ser humano a refletir não apenas sobre os aspectos intrínsecos a ela, mas traz a reflexão sobre a própria vida, sobre o meio, sobre costumes, percepções etc. É sobretudo com base na literatura que há a possibilidade da formação de um ser mais humano e mais atento ao cenário geralmente trágico da existência. A literatura é onde se calçam as nuances da existência e, para isso, traça uma relação bastante profícua com o extraordinário, com o incomum em diálogo com sua época.

REFERÊNCIAS

AGUIAR, V. T. de; BORDINI, M. da G. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

BORDIN, I. A. S; OFFORD, D. R. Transtorno da conduta e comportamento anti-social. Revista brasileira de psiquiatria, São Paulo, SP, v. 2, n. 22, p. 12-15, abr/jun. 2000

CALVINO, Í. Se um viajante numa noite de inverno. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

DELUMEAU, J. História do medo do Ocidente: 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

DOMINGOS, N. Sobre Villiers de L’isle-adam e seus contos cruéis. Lettres Françaises. Araraquara, SP, v. 2, n. 11, p. 173-198, jul/dez. 2010.

ECO, U. O nome da Rosa. Tradução Aurora Bernardini; Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.

JAMES, H. A outra volta do parafuso. Trad. Leônidas Gontijo de Carvalho; Breno Silveira. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

JAUSS, H. R. A história da literatura como provocação à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

KING, S. Dança macabra: o fenômeno do horror no cinema, na literatura e na televisão dissecado pelo mestre do gênero. Tradução Louisa Ibañez. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

LOVECRAFT, H. P. O Horror sobrenatural em Literatura. Tradução Celso M. Paciornik. São Paulo: Iluminuras, 2007.

TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria C. C. Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.

ZILBERMAN, R. Literatura infantil: livro, leitura, leitor. In ZILBERMAN, R. (Org.). A produção cultural para a criança. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982.



1 Mestrando em Letras no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus de Pato Branco/PR. Graduado em Letras/Língua Portuguesa, pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, campus de Erechim/RS. leidens.ale@gmail.com

2 Doutorando em Letras no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo/RS. Possui Mestrado em Letras (Estudos Literários) cursado na mesma instituição e programa, Especialização em Metodologia do Ensino de Literatura pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões e Graduação em Letras - Português / Espanhol e respectivas Literaturas pela mesma universidade. É professor da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, da Faculdade Anglicana de Erechim e do Colégio Franciscano São José. tadeugraz@yahoo.com.br

3 Doutor em Letras pela Universidade Estadual de Londrina/PR. Realizou pós-doutorado pela Universidade Federal do Paraná. Professor do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Tecnológica Federal do Paraná e Membro de corpo editorial do periódico Diálogo e Interação. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira. Atuando principalmente nos seguintes temas: gêneros, gótico, história, imagem, medo e representação. mauriciomenon983@gmail.com