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A METODOLOGIA PARA CIÊNCIAS HUMANAS DO CÍRCULO DE BAKHTIN
GISELE DE FREITAS PAULA OLIVEIRA
1
RESUMO: Este artigo objetiva
aprofundar o conhecimento sobre a
metodologia para Ciências
Humanas proposta pelo Círculo de
Bakhtin e particularmente exposta
no texto Metodologia das Ciências
Humanas, publicado em Estética da
Criação Verbal (2003). Sendo o
objeto de pesquisa das Ciências
humanas expressivo e falante, o
grupo russo de filósofos da
linguagem assumem que a melhor
maneira de compreendê-lo é por
meio da dialogia, de uma interação
interessada, ética, responsiva e
responsável entre o pesquisador e
seu objeto de pesquisa.
PALAVRAS-CHAVE: Metodologia.
Ciências Humanas. Dialogia.
ABSTRACT: This article aims at
expanding the knowledge of
methodologies for the Human
Sciences as the Bakhtin Circle
proposed and especially exposed in
Methodology to Human Science,
published in “Aesthetics of Verbal
Creation” (2003). Since the object of
study of the Human Sciences is
expressive and talkative, the
Russian language philosophy group
assumed that the best way to
undertand it was through dialogia, a
responsible, responsive, ethical and
interested interaction between the
researcher and his object of study.
KEY-WORDS: Methodology.
Human Cience, Dialogia.
OLIVEIRA, G. de F. P. A metodologia para as ciências humanas do círculo de
Bakhtin. In. Revista Diálogos, v. 7, n. 3, out.-dez., 2019.
1
Colégio Militar de Belo Horizonte. Mestre em linguística pela UFES. Doutoranda em linguística
pela UFES. Professora de Português do Colégio Militar de Belo Horizonte (CMBH).
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CONTEXTUALIZANDO O DIÁLOGO
O modelo epistemológico para o fazer científico proposto por Galilieu para
as ciências em geral, em termos bem simplificados, baseava-se na repetibilidade
e quantificação. Optando por esse paradigma, não há espaço para se falar do que
é individual e irrepetível, não há lugar para se falar de enunciação, por exemplo.
Ocorre que certos objetos de estudos que não atendem ao lema
escolástico individuum est ineffabile e, como tais, não podem ser compreendidos
sob a égide do “rigor científico” que socialmente ganhou mais prestígio e é
considerado mais elevado: o modelo racionalista.
Assim, para compreender o objeto de estudo das ciências humanas, O
Círculo de Bakhtin, em Metodologia das ciências humanas, texto publicado na
obra Estética da Criação Verbal (2003) que é uma compilação de diversos textos
escritos por Bakhtin sendo muitos deles inacabados, dedica parte de seus
esforços para aprofundar os conhecimentos a respeito da metodologia para as
ciências humanas e, embora o próprio texto não nomeie dessa forma,
compreendemos que a dialogia é tanto uma concepção epistemológica quanto
metodológica proposta no artigo para a pesquisa em ciências humanas.
Com o intuito de revisitar os conceitos trabalhados no texto mencionado,
organizamos esse artigo da seguinte maneira: na primeira parte falamos sobre as
especificidades do objeto de estudo das ciências humanas e sua relação com o
pesquisador, na segunda, discorremos sobre a materialidade para a compreensão
do sujeito falante e o ato ético de pesquisa, por fim, fazemos algumas
considerações que dão um acabamento provisório a esse texto.
1. O OBJETO DE PESQUISA DAS CIÊNCIAS HUMANAS E O PESQUISADOR
Compreender a natureza do objeto de estudo de uma ciência é um
importante passo para a construção de um percurso metodológico que conta
de compreendê-lo. Assim, é preciso estar ciente se se está diante de um objeto
mudo ou diante de um ser expressivo e falante.
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As Ciências Naturais e as Ciências Exatas, ao desenvolverem seus
estudos, estão diante de uma coisa muda, à qual se observa, descreve, pergunta
e a resposta não vem de outro a não ser do próprio pesquisador. É por isso que
elas falam sobre ou do objeto, não com o objeto. Partindo apenas de uma
consciência, essas ciências se colocam em monologismo com seu objeto e, por
isso, a explicação torna-se o centro de suas pesquisas.
“o objeto de estudo das ciências humanas é o ser expressivo e falante”
(BAKHTIN, 2003, p. 395), ou seja, é um ser que enuncia e que se constitui sujeito
ao semiotizar e simbolizar. Não é um ser que externa os sentidos formados
exclusivamente em seu interior, mas, ao dizer sobre si, sobre o mundo, sobre o
outro, mostra que não é apenas falado. Ao contrário, conforme Amorim (2004, p.
19) é um objeto falado, objeto a ser falado e objeto falante. Aqui nos vemos
diante de uma outra ordem, a qual a relação sujeito-objeto é substituída pela
relação entre sujeitos (FREITAS, 2003, p. 24) e, consequentemente, a sua
compreensão só pode ser dialógica.
A esse respeito, Bakhtin declara que:
As ciências exatas são uma forma monológica do saber: o
intelecto contempla uma coisa e emite enunciado sobre ela.
um sujeito: o cognoscente (contemplador) e o falante
(enunciador). A ele se contrapõe a coisa muda. Qualquer
objeto do saber (incluindo o homem) pode ser percebido e
conhecido como coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser
percebido e estudado como coisa porque, como sujeito e
permanecendo sujeito, não pode tornar-se mudo;
consequentemente o conhecimento que se tem dele pode ser
dialógico. (BAKHTIN, 2003, p. 400)
Por isso, fazer Ciências Humanas é sempre o encontro de duas
consciências que, em uma interação dialógica, pesquisador e seu outro produzem
e negociam sentidos e, ambos, atravessados por diversas vozes e valorações
sociais, estabelecem um diálogo no qual a tensão se torna inevitável, afinal, cada
um se constitui um centro de valor. Além disso, “considerar a pessoa investigada
como sujeito implica compreendê-la como possuidora de uma voz reveladora da
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capacidade de construir um conhecimento sobre a sua realidade que a torna co-
participante do processo de pesquisa” (FREITAS, 2003, p.29).
Dialogia e alteridade, portanto, são noções que devem ser compreendidas
juntas. Alteridade não apenas no sentido do outro como consciência existente fora
de mim, não somente como um diferente do meu eu, mas alteridade que também
engloba o que é estranho e o que é familiar a mim. Dessa forma,
[...].qualquer pesquisa que envolva um encontro entre pessoas,
que buscam produzir conhecimento sobre uma dada realidade, se
em um contexto marcado por um processo de alteridade
mútua, em que o pesquisador e seus outros negociam modos
como cada um define, por assim dizer, suas experiências na
busca de dar sentido à vida. (SOUSA E ALBURQUEQUE, 2012,
p.116)
Isso implica dizer que o pesquisador não é distante nem neutro em relação
ao seu objeto de pesquisa, ou melhor, ao sujeito cognoscente com o qual
interage. Isso se dá porque o modo como o pesquisador compreende não está
desconectado do seu modo de avaliar.
Ao buscar compreender esse outro que está fora de si, o pesquisador se
vale da visão que tem dele a qual ele não consegue ter de si mesmo, pois possui
uma posição exotópica que ele jamais terá.
Esse excedente da minha visão, do meu conhecimento, da minha
posse excedente sempre presente em face de qualquer outro
indivíduo é condicionado pela singularidade e pela
insubstituibilidade do meu lugar no mundo: porque nesse
momento e nesse lugar, em que sou único a estar situado em
dado conjunto de circunstâncias, todos os outros estão fora de
mim. (BAKHTIN, 2003, p. 21)
Esse olhar exotópico faz com que o pesquisador consiga adentrar e
interagir no horizonte do sujeito cognoscível e colocar-se em seu lugar, mas, ao
retornar à sua posição de pesquisador, pode conhecer e compreendê-lo de uma
maneira que ele mesmo jamais poderá, afinal, desse lugar exotópico é possível
revelar sobre ele aquilo que ele mesmo não pode ver.
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Eu devo entrar em empatia com esse indivíduo, ver
axiologicamente o mundo de dentro dele tal como ele o vê,
colocar-me no lugar dele, e, depois de ter retornado ao meu lugar,
completar o horizonte dele com o excedente de visão que desse
meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um
ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão,
do meu conhecimento e do meu sentimento. (BAKHTIN, 2003, p.
23)
Exotopia significa aqui um “desdobrameno de olhares a partir de um lugar
exterior” (AMORIM, 2003, p. 14). Nesse acontecimento de aproximação e
distanciamento percebemos a incompletude do nosso ser, que sempre pode
encontrar no outro o lugar possível de uma completude, ainda que provisória.
Assim, ao adotar uma perspectiva dialógica em Ciências Humanas
defende-se que é por meio da interação que o pesquisador se aprofunda no
conhecimento de seu objeto de pesquisa, o que exige deles (pesquisador e
objeto) intensa participação e, consequentemente, no processo do
desenvolvimento da pesquisa “ambos os envolvidos são constantemente
modificados e reconstituídos, isto é, continuamente aprendem e desenvolvem-se
por meio das trocas de conhecimentos, expressões, opiniões, enfim, pela
interação da linguagem, que possibilita o conhecimento do eu e do tu” (RIBEIRO,
2013, p.112).
2. A MATERIALIDADE PARA A COMPREENSÃO DO SUJEITO FALANTE
E O ATO ÉTICO DE PESQUISA
Conforme foi dito anteriormente sobre o objeto falante, que semiotiza e
simboliza o mundo e suas experiências, cabe perguntar: por meio de que
materialidade é possível compreender esse sujeito? A resposta de Bakhtin (2003,
p. 307-308) é que apenas o texto é o ponto de partida, pois “onde não texto
não há objeto de pesquisa e pensamento”. Texto para o autor é compreendido
como enunciado concreto, ou seja, ele revela a alteridade do sujeito, e, portanto,
sua relação com outras vozes que circulam socialmente e que o constitui pois, em
dialogo constante, assume, nega e ressignifica essas vozes e os valores sociais
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entoados por elas. Nesse movimento, o sujeito se a conhecer e é conhecido,
sempre numa perspectiva de inacabamento do ser, por isso que se pode
compreender o sujeito por meio de textos. Mas, o que caracteriza o texto como
enunciado?
Bakhtin (2003, p. 274) diz que a real unidade de comunicação discursiva é
o enunciado e que esse só existe na forma de enunciações concretas de sujeitos,
portanto, é um dado real de uso da linguagem e tem um sujeito, um autor, assim,
não é uma abstração.
Ele (o enunciado) é determinado pela ideia (intenção) e pela realização
dessa intenção e as “inter-relações dinâmicas desses elementos, a luta entre
eles, que determina a índole do texto” (idem, p. 308). O limite de cada enunciado
concreto pode ser definido quando da alternância de sujeitos. Dito de outro modo:
quando um sujeito termina seu enunciado, e nesse momento surge a
possibilidade de réplica ativamente responsiva, é que se criam os limites do
enunciado nos diversos campos de atividades humanas, nesse momento, pode-
se ver também a dialogia viva e responsável. É importante ressaltar que essa
alternância de sujeito deve ser compreendida em sentido amplo, muito além da
interação face a face como em um diálogo convencional, conforme o excerto
abaixo esclarece:
Voltemos ao diálogo real. Como já dissemos, trata-se da forma
mais simples e clássica de comunicação discursiva. A alternância
dos sujeitos do discurso (falantes), que determina os limites dos
enunciados, está aqui representada com excepcional evidência.
Contudo, em outros campos da comunicação discursiva, inclusive
nos campos da comunicação cultural (científica e artística)
complexamente organizada, a natureza dos limites do enunciado
é a mesma. (BAKHTIN, 2003, p. 279)
Outra peculiaridade própria do texto como enunciado é sua conclusibilidade
- dizer tudo que se pretende dizer em determinada situação comunicativa - que se
caracteriza pelo tratamento exaustivo do objeto de sentido, o querer dizer do
locutor e as formas típicas de estruturação do gênero.
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É claro que o objeto de discurso em si é inexaurível, no entanto, quando se
torna “tema de um enunciado (por exemplo, de um trabalho científico) ele ganha
relativa conclusibilidade em determinadas condições, em certa situação problema,
em um dado material, em determinados objetivos colocados pelo autor” (idem, p.
281).
A intenção discursiva do sujeito, seu querer dizer, pode ser percebida no
todo do enunciado, desde a escolha do objeto de discurso, a relação de seu
enunciado com outros antecedentes e a forma de gênero escolhida para sua
construção. O gênero, por sua vez, é aquela forma razoavelmente estável de
produção de enunciado que nos é dada naturalmente assim como a língua
materna e, em termos práticos, nós os empregamos de forma segura e
habilidosa, mas em termos teóricos podemos desconhecer inteiramente a sua
existência” (idem, p.282).
Uma outra característica do texto como enunciado concreto é seu
direcionamento. A interação verbal sempre se dá entre sujeitos, entre um eu e um
outro, portanto, ao construir seu enunciado, o locutor tem em mente um
destinatário, o qual leva em consideração na construção do enunciado, afinal, o
outro não é um ser passivo e calado, ao contrário, é ativo e repleto de respostas.
“É como se todo o enunciado se construísse ao encontro dessa resposta”
(BAKHTIN, 2003, p.301).
É importante relembrar também que o enunciado não se relaciona apenas
com o futuro, com as possíveis respostas, mas se relaciona tamm com
enunciados ditos. Como o objeto de discurso de qualquer texto foi falado e
valorado socialmente, ou seja, várias vozes o atravessam, ao construir seu
enunciado o sujeito dialoga com essas vozes e se posiciona, construindo assim
seu enunciado numa relação entre passado e futuro. Todos esses aspectos nos
mostram que mesmo se baseando em um sistema da linguagem que meios
para a repetição e reprodução, o texto como enunciado é um evento único,
irrepetível e singular.
Sumarizando, em Bakhtin (2003, p. 297) encontramos:
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Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros
enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de
comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de
tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um
determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” em
sentido amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles,
subentende-os como conhecidos, de certo modo os leva em
conta. Porque o enunciado ocupa uma posição definida em uma
dada esfera da comunicação [...]. É impossível alguém definir sua
posição sem correlacioná-la com outras posições. Por isso, cada
enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros
enunciados de dada esfera da comunicação discursiva.
Assim, para compreender o enunciado como um elo é necessário
relembrar que “é impossível uma compreensão sem avaliação” (BAKHTIN, 2003,
p.378). O que significa dizer que a compreensão é uma resposta ativa e
responsável em relação ao meu outro e que sua compreensão não deve se limitar
ao tempo presente porque “tudo o que pertence apenas ao presente morre
juntamente com ele” (idem, p. 263). Por isso, para compreender os enunciados
concretos é necessário ir além do presente, e também não se limitar ao passado
ou futuro imediatos, é no grande tempo que Bakhtin a possibilidade de
compreender a historicidade dos sentidos que são discursivamente construídos,
materializados e compartilhados. A compreensão também requer distanciamento,
pois “a distância é a alavanca mais poderosa da compreensão” (BAKHTIN, 2003,
p. 366). Esse distanciamento permite confronto de sentidos e revela, mais uma
vez, a importância da exotopia, que significa também não calar a voz do sujeito
que compreende. Assim, compreender no ato de pesquisa
implica em uma tomada de posição do sujeito cognoscente sobre
o dizer do cognoscível, apontando para uma visão não ingênua do
que seja dialogar com os dados, no caso, os enunciados que vão
se tornar objeto de análise. (OLIVEIRA, 2012, p.278)
Quando essa interação entre o pesquisador e seu outro se realiza, com o
sujeito cognoscível dando-se a conhecer e sendo conhecido, cria-se um elo
mútuo de compromisso ético à medida que ele se sente responsável pela
construção da compreensão de seu outro, e o outro, por sua vez, se mostra para
o pesquisador e também o modifica com seu olhar. Nesse movimento,
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percebemos três momentos de tomada de consciência do sujeito: o outro para
mim, eu para o outro e eu para mim mesmo. Essa interdependência entre eu e o
outro, revela que nenhum ser tem sua existência em si mesmo de maneira
soberana, ao contrário, como interdependentes que somos, sempre buscamos no
outro a completude que falta em nós.
Além desse momento de encontro entre o pesquisador e seu outro, a
pesquisa também é constituída de uma segunda situação: o momento da escrita
do texto de pesquisa. Esse momento é quando se forma ao conteúdo até
então pesquisado e o pesquisador colocará sua voz, seus posicionamentos, suas
avaliações como resposta ao diálogo posto. A escrita do texto de pesquisa,
portanto, se constitui um ato. Isso pode ser mais bem compreendido quando
voltamos Para uma filosofia do Ato Responsável (BAKHTIN, 2010).
Essa obra, que segundo Ponzio (2016) é um ensaio de filosofia moral, é
um texto inacabado de Bakhtin que trás um conceito que permeia toda a sua
teoria: o ato responsável.
Para o filósofo russo, o sujeito, ao se perceber único e reconhecer que
ocupa um lugar que é seu, não pode ficar indiferente a essa unicidade. Ele é
constrangido a posicionar-se e a responder por seus posicionamentos: não
álibi para sua existência. A realização de sua singularidade se na ação
individual e não indiferente, no agir em relação ao que não é eu, em relação ao
outro.
Sobral (2005, p. 22) declara que a proposta de Bakthin é
conceber um sujeito que, sendo um eu-para-si, condição de
formação da identidade subjetiva, é também um eu-para-o-outro,
condição de inserção dessa identidade no plano relacional
responsável/responsivo, que lhe dá sentido.
me torno eu entre outros eus. Mas o sujeito, ainda que se
defina a partir do outro, ao mesmo tempo o define, é “outro” do
outro: eis o não acabamento constitutivo do Ser, tão rico de
ressonâncias filosóficas, discursivas e outras.
Essa contraposição entre o eu e o outro mostra cada um como um universo
de valores, pois segundo Faraco “o mesmo mundo relacionado comigo ou
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com o outro, recebe valorações diferentes, é determinado por diferentes quadros
axiológicos” (FARACO, 2003, p. 23). Em outros termos, no mundo da vida, a cada
momento, somos impelidos a tomar atitudes axiológicas, precisamos nos
posicionar em relação aos valores que circulam em nossa sociedade, e a
contraposição de valores entre o eu e o outro é que orienta os atos do sujeito,
inclusive seus enunciados. É nesse jogo que emerge a unicidade do sujeito, pois
jamais encontraremos duas ou mais pessoas que se relacionam de maneira
igualmente idêntica com os valores sociais.
Essa noção de ato responsável e responsivo, particularmente agora
falando sobre fazer pesquisa em Ciências Humanas, é um tanto desafiador, pois
pesquisar é um evento único e significa agir sobre os outros, afinal, o objeto de
pesquisa é um objeto falante e a ação de pesquisa não é unidericional, mas
interação entre sujeitos, o que trás a tona a ética na pesquisa. Ética que deve ser
pensada na responsabilidade e responsividade do pesquisador, tanto no
momento que está com seu outro quanto na consolidação de sua escrita. Não
álibi para o pesquisador quando ele pensa e assina seu ato de pensar.
Por isso, podemos entender a singularidade do ato de pensar do
pesquisador como um claro exemplo da interpenetração do mundo da vida e
mundo da cultura. De modo mais claro: ao pesquisar o mundo da vida (das ações
e experiências realmente vividas, responsivas e responsáveis) a interação entre o
pesquisador e o seu outro constitui um evento único e irrepetível, no entanto,
quando o sentido e o conteúdo desse evento precisam tomar forma e ser
objetivado e registrado em texto, temos a experiência com o mundo da cultura.
Vemos aqui também uma dupla contribuição da pesquisa como “pensamento
sobre o mundo” e “pensamento no mundo”, no primeiro percebemos a intenção
de abarcar o mundo através da definição de conceitos e, no segundo, notamos
um agir, uma forma de participar no mundo que acaba por transformar, incorporar
novos conceitos, compreensões e maneiras de agir. Ou seja, a pesquisa é um o
ato estético inserido no mundo ético.
Na perspectiva do Círculo de Bakhtin, especialmente na obra Para uma
filosofia do ato responsável, a discussão se quando Bakhtin volta-se para o
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mundo da cultura (em que são produzidos conhecimentos e artes) a ele
contemporâneo e propõe uma filosofia primeira que consiga compreender o ser
enquanto ser, ou seja, o ser em sua existência. Nesse olhar, o autor percebe que
o campo da ciência, da filosofia, da ética e estética são carregados de teoricismo.
Isto é, a produção de conhecimento realiza-se descolada do ser e
de sua existência concreta nos eventos do mundo da vida,
gerando dessa forma conhecimentos que remetem, de um lado,
para verdades generalizantes, de outro, por apostar em valores
abstratamente construídos, apontam para um dever absoluto.
(OLIVEIRA, 2012, p. 269)
Essas verdades generalizantes, ou “istina”, do ponto de vista da filosofia
primeira do Círculo, na verdade, não passam de uma ilusão do teoricismo,
possível somente por meio da abstração. Porque todo e qualquer valor se
torna valor se assumido por um sujeito, por meio da ação singular daquele que o
reconhece, determina e participa (cf. Ponzio, 2010). Ao invés de “istina”, o que
podemos ver no mundo da cultura é “pravda”: verdade sempre transitória e a se
construir, assim como os sujeitos a elabora. Esse novo olhar, desmorona a
arrogância científica daquelas epistemologias que defendem a verdade única e
abstraem a produção de conhecimento da vida realmente vivida.
Nesse ponto, é relevante ressaltar que Bakhtin não é contra a elaboração
de construtos teóricos, ele próprio foi um grande pensador. Sua crítica se ao
modo como esses conhecimentos eram elaborados e disseminados.
Normalmente marcados por um tom inquisidor e autoritário que, em nome da
cientificidade, apagava o sujeito elaborador de conhecimento e colocava as
verdades generalizantes como existentes em si mesmas e acessíveis somente
por meio da abstração. O Círculo propõe uma nova visão de produção de
conhecimento, na qual, o sujeito é parte integrante.
A dimensão do ato ético, para o Círculo, relaciona-se com a vida, com os
acontecimentos cotidianos e a responsabilidade social entre os quais todo sujeito
está inserido e transita tomando atitudes axiológicas que são de sua
responsabilidade e responsividade. O ético, portanto, é inerente ao humano e se
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relaciona com uma tomada de posição diante da vida. No entanto, para o Círculo,
o mundo ético não se separa do mundo estético, pois os atos estéticos (sejam
eles religiosos, jurídicos, científicos ou outros) se relacionam ativamente com a
vida realmente vivida e o sujeito, socialmente constituído e constituinte, lida com o
conteúdo-sentido dessas esferas de forma ativa, emotiva-volitiva. Em outros
termos: o mundo da cultura, nos seus mais diversos campos de criação ideológica
faz parte da vida, portanto, não é autônomo em relação à própria vida. O
teoricismo, portanto, se torna ineficaz porque jamais conseguirá explicar a vida
como um todo, além de abstrair o sujeito do mundo da cultura amarga herança
do positivismo.
Trazendo essa reflexão epistemológica para a discussão aqui travada,
compreender a pesquisa como um ato estético inserido no mundo ético é assumir
o ato de pesquisar como um ato de criação responsável e, por isso, emotivo-
volitivo do pesquisador. A escolha de uma teoria, de um objeto de análise, de uma
metodologia, de uma forma de composição para registrar suas análises e
descobertas, enfim, o todo do fazer cienfico, nos mostra que o conhecimento
não está fora do sujeito que o produz, ao contrário, é intrínseco a ele e, como ato
responsável, humaniza o humano, revela suas vontades e emoções e mostra que
não somos seres que produzem em série. É na singularidade da pesquisa,
portanto, que a interpenetração do mundo estético no mundo ético pode ser
percebida.
Em suma: para o Círculo o ato estético diz respeito ao o ato de criação e o
campo teórico/cientifico é concebido como estético também porque é um campo
da criação ideológica. Se assim não fosse, Bakhtin não trataria de Estética da
Criação Verbal, falaria apenas da estética da criação literária (como
tradicionalmente se concebe).
3. ACABAMENTO PROVISÓRIO
Rompendo a hegemonia do pensamento racionalista, os pensadores do
Círculo de Bakhtin pensam em uma metodologia que conta de compreender
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questões que são inerentes ao objeto falante das Ciências Humanas, tais como
alteridade, subjetividade e valoração. Essa perspectiva voz aos sujeitos
envolvidos na pesquisa (sujeito cognoscível e sujeito cognoscente) e ambos são
ouvidos na interação dialógica que se instaura entre eles a fim de compreender a
realidade. Incluindo o mundo teórico na vida singularmente vivida, a metodologia
dialógica proposta pelos pensadores russos pode ser utilizada para produção de
conhecimento nas diversas e complexas áreas de vivência humana. Em todos os
casos, o mundo estético sempre estará inserido no mundo ético e, para os
sujeitos envolvidos nesse processo, não há álibi para sua existência.
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