Do caos ao cosmos: a metamorfose do aprender. Revista Diálogos (RevDia), “Educação, inclusão e Libras, v. 6, n. 1, jan.-abr., 2018. [http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/revdia]

DO CAOS AO COSMOS

A metamorfose do aprender

From chaos to cosmos: the metamorphosis of learning

DANIEL FELIPE JACOBI

ADILSON CRISTIANO HABOWSKI

ELAINE CONTE


Sobre os autores

Daniel Felipe Jacobi – Universidade La Salle – UNILASALLE, Canoas/RS. Grupo de pesquisa: Núcleo de Estudos sobre Tecnologias na Educação - NETE/CNPq. Agência financiadora: CNPq e FAPERGS. E-mail: danielfjacobi@hotmail.com

Adilson Cristiano Habowski – Universidade La Salle – UNILASALLE, Canoas/RS. Bolsista FAPERGS – PROBIC. Integrante do grupo de pesquisa NETE/CNPq. Agência financiadora: CNPq e FAPERGS. E-mail: adilsonhabowski@hotmail.com

Elaine Conte – Universidade La Salle - UNILASALLE. Líder do Núcleo de Estudos sobre Tecnologias na Educação - NETE/ CNPq. Agência financiadora: CNPq e FAPERGS. E-mail: elaine.conte@unilasalle.edu.br

RESUMO: O presente artigo tem por finalidade analisar a obra cinematográfica Cisne Negro, em sua linguagem simbólica, que nos traz concepções estéticas e visões de mundo, de cultura, de ser humano, bem como de questões que nos levam a pensar na inter-relação entre o caos e a força cósmica, possibilitando aprender a partir de nossas limitações e deficiências. Trata-se de uma abordagem hermenêutica que interpreta e compreende o conjunto do filme em suas contradições como uma possibilidade de estabelecer um contraponto entre o cosmos e o caos. Nesse sentido, apresentamos questões subjacentes ao filme que refletem alguns problemas projetados na contemporaneidade e na própria metamorfose do aprender, que vão desde o sacrifício das pessoas em função de um modelo ou um padrão desumano de perfeição, até o extremo da destruição e estranhamento de si pela constituição humana imperfeita e inacabada, o que pressupõe a necessidade de uma aprendizagem evolutiva e solidária.

PALAVRAS-CHAVE: Cisne Negro; Caos; Cosmos; Metamorfose do Aprender.

ABSTRACT: The purpose of this article is to analyze the cinematographic work Cisne Negro, in its symbolic language, which brings us aesthetic conceptions and visions of the world, culture, and human being, as well as questions that lead us to think about the interrelation between Chaos and cosmic force, making it possible to learn from our limitations and deficiencies. It is a hermeneutic approach that interprets and understands the whole of the film in its contradictions as a possibility of establishing a counterpoint between the cosmos and chaos. In this sense, we present questions underlying the film that reflect some problems projected in contemporaneity and in the very metamorphosis of learning, ranging from the sacrifice of the people according to a model or an inhuman pattern of perfection, to the extreme of the destruction and estrangement of oneself By the imperfect and unfinished human constitution, which presupposes the need for evolutionary and solidary learning.

KEYWORDS: Black Swan; Chaos; Cosmos; Metamorphosis of Learning.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS


Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugna-la-íamos, se a tivéssemos.

O perfeito é desumano, porque o humano é imperfeito” (PESSOA, 1982, p. 287).


Constantemente, o ser humano está ressignificando sua vida a partir da realidade e das diferentes expressões de mundos. Por isso, analisamos a obra cinematográfica o Cisne Negro (2012), inspirada na composição de Tchaikovsky, para compreender o protagonismo, criação e expressão dos personagens, que superam a ingenuidade e a dependência para dar início a uma transformação e descoberta da condição humana. Assim, o filme traz em sua história alguns pontos de relevância em sua conjuntura artística que merecem ser debatidos e repensados em relação ao aprender na vida em sociedade. Na busca pela perfeição, o sujeito (personagem Nina) submete-se a uma exigência desumana, que leva a perda das características humanas de ser em obra, imperfeito, inacabado e falível. Diante desses pressupostos existenciais somos indagados: qual é a relação entre a ruptura do cisne branco para o cisne negro com a transição e rompimento humano do mundo caótico para o mundo do cosmos?

Adotamos como fio condutor para a análise a abordagem hermenêutica, que é voltada para a compreensão de sentidos e a interpretação de (con)textos. Segundo Habermas (1994, p. 222), a postura “hermenêutica se endereça por sua mesma estrutura a garantir, dentro das tradições culturais, a autocompreensão possível dos indivíduos e dos grupos, que oriente a ação, e uma compreensão recíproca entre os indivíduos e os grupos com tradições culturais distintas”.

Com esta análise, buscamos o entendimento do filme em sua totalidade, pois consiste “em estabelecer elos entre esses elementos isolados, em compreender como eles se associam e se tornam cúmplices para fazer surgir um todo significante: reconstruir o filme ou o fragmento” (VANOYE; GOLLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 15). Nessa perspectiva, propomos uma reconstrução de sentido a partir de trechos do filme como possibilidade de elaborar novos movimentos reflexivos para recriação dessa composição artística, no sentido de tornar a própria vida uma obra, representando algo inerente à própria formação e aprendizagem humana. São nessas transições e tensões de movimento instáveis, de uma espiral que avança e retrocede, como uma forma de pensamento em ação, na ideia da metamorfose do aprender, que nos constituímos humanos e protagonistas de nossas próprias histórias.

Em busca de respostas, vemos na imagem do cisne a ambivalência de um ser que pode ser tanto subalterno quanto autônomo e perspicaz em busca de novas aprendizagens. Para desenvolver essa problemática, o artigo divide-se em três capítulos. Primeiramente, identifica a composição artística do balé dramático, o lago dos cisnes. Em seguida, constata os elementos psicológicos que ficam evidenciados do balé de Tchaikovsky ao filme Cisne Negro, na tentativa de destacar as semelhanças simbólicas que transparecem à sucessão do movimento do caos ao cosmos. Por fim, analisamos a linguagem do filme como desencadeadora de reflexões sobre o processo de desacomodação e de tensão que cada sujeito é submetido, como uma forma de metamorfoses constituidoras do aprender.

2. O LAGO DOS CISNES: DA OBRA CLÁSSICA À CINEMATOGRAFIA

Analisar uma obra fílmica é de suma importância para a formação de leitores críticos, sendo criadora da própria cultura, uma vez que o artefato pode ser identificado como um documento de análise, de performances, de ética e de estética, que representa valores, considerações e reproduções do âmbito social. Diante das complexidades e dos desafios que as obras cinematográficas nos apresentam, é possível usá-las com um olhar crítico e problematizador das dimensões que lhe são atribuídas e que estão subjacentes, a fim de enfatizar estudos que gerem processos para a (re)construção do saberes sociais. As obras fílmicas servem para o (re)conhecimento e a produção de novas ideias, envolvendo sentimentos e emoções, numa dimensão de alteridade, de se colocar no lugar do outro, provocando o debate acerca de paradoxos, revisando modos de pensar. Desta forma, “a chance de um filme se tornar um produto emancipado reside no esforço de se romper com esse nós, isto é, com o caráter coletivo a priori (inconsciente e irracional) e colocá-lo a serviço da intenção iluminista: autorreflexão crítica sobre si mesmo” (LOUREIRO, 2008, p. 145).

Benjamin (1994, p.174) entende que a democratização da produção cinematográfica é uma tendência progressista e de dimensão emancipadora, visto que a cinematografia “serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações humanas” tornando-se tarefa histórica afim de oferecer sentidos ao cinema. Com base em Benjamin, entendemos o cinema como artefato cultural da humanidade, uma vez que afeta toda a população, podendo gerar mais sensibilidade, pois as imagens cinematográficas são imensamente significativas, capazes de adentrar no mundo real e no imaginário social. Assim, problematizamos que o cinema tem um potencial ativo na produção da cultura de massa, tornando a manifestação pessoal coagida em meio à coletividade e provocando a renovação ou não das estruturas sociais. A massificação do indivíduo, destacado por Benjamin, ao referir-se ao cinema, revela o quanto essa técnica de reprodução possui a capacidade de influenciar pensamentos, identidades e ações.

Ao observar as questões inerentes à obra fílmica, se pode olhar de diferentes formas para o mesmo fenômeno, discutindo, analisando e interpretando os conhecimentos condicionados, assumindo a postura de criticidade frente aos fatos mostrados. Essa experiência nos conduz para novas percepções de mundo, uma vez que surge como possibilidade de (re)aprender que articula racionalidade e sensibilidade, na recriação e renovação do pensar e agir no mundo. A sequência de um processo reconstrutivo do filme se estabelece ao realizar ligações e compreensões entre cada cena, para que seja possível compreender a obra em sua totalidade. Uma obra fílmica não demonstra uma sociedade, mas sim, elementos dessa sociedade, visto que os filmes são, conforme Tonetto (2006, p. 33), “um recorte da cultura e da história de um povo. As produções audiovisuais mostram os recortes culturais e territoriais que diferenciam os povos. Por meio dos filmes, pode-se perceber o imaginário de uma sociedade, de uma época, de uma concepção ou olhar”. Portanto, levando em consideração que o artefato fílmico, ao divulgar a realidade, é capaz de fazer com que os sujeitos reflitam sobre questões delicadas e repensem os modos como agem em determinadas situações.

Lendas eram comuns na Antiguidade, como as de cisnes, ao passo que foram decodificadas e modificadas ao longo dos tempos. O enredo de “O Lago dos Cisnes” gira em torno da história de uma moça que é transformada em ave (cisne) e fica aprisionada até o momento em que um verdadeiro amor irá libertá-la. Versão esta que provavelmente serviu de inspiração para o russo Pyotr Llyich Tchaikovsky1 na montagem de uma de suas composições.

O Lago dos Cisnes traz a história do príncipe Siegfried, que se apaixona por Odette, uma princesa presa em corpo de cisne. A jovem, que fora enfeitiçada pelo bruxo Rothbart, é destinada a permanecer como ave até ser resgatada por um homem que lhe jure amor eterno. Na véspera de completar seus vinte e um anos, Siegfried vê Odette no lago e, encantado com sua beleza, a convida para a festa de seu aniversário. No entanto, quem aparece no baile é o feiticeiro, como o cavaleiro do cisne negro. Rothbart está acompanhado de sua filha Odille, transformada em Odette. O príncipe nota que a doce moça, nesta noite, encontra-se inquieta e caprichosa, mas não desconfia de nada. Então, faz juras de amor a Odille. Ao descobrir a farsa, Siegfried segue para o lago, onde encontra Odette rodeada pelas outras aves-moças. Pede perdão à jovem e proclama-lhe seu amor. De repente, o casal é surpreendido por Rothbart, que provoca uma tempestade no lago. O encanto de Rothbart se desfaz, mas os dois desaparecem sob as águas. (BOGÉA, 2012, p. 3).

Sinteticamente, o filme narra a trama de uma jovem bailarina cujo nome é Nina (Natelie Portman), que após ter tido um sonho de estardançando o prólogo do Lago dos Cisnes, descobre que a companhia abre uma nova temporada deste espetáculo. Mais do que tudo, deseja fazê-lo, porém não atinge a perfeição desejada. Thomas (Vicent Cassel), o coreógrafo e dono da companhia, procura uma bailarina que interprete com excelência um misto de cisne branco (simbolizando inocência angelical) e cisne negro2 (malícia e sensualidade). Tendo em vista que essa nova temporada buscava um novo perfil de bailarina que substituísse a anterior, Nina acaba recebendo o papel, sendo reconhecida também pelas suas capacidades estético-expressivas.

Diante desse contexto surge o universo caótico da personagem enquanto um momento em que entra em conflito a perfeição e a desordem (dimensões intrínsecas do próprio ser em obra), o real e o ilusório, pois a grande rival de Nina encontra-se em si mesma. Ao buscar a emancipação e almejar a libertação em si do cisne negro, Nina percebe sua condição humana (imperfeita). Uma série de conflitos com sua mãe emerge dessa crise, passando por alucinações e por sintomas de automutilação, enclausuramento e ausência de auto-respeito.

[...] o filme se projeta para além. Cisne Negro, enquanto obra de arte, pode facilmente passar pelo crivo de uma análise mais crítica e profunda, por um estudo meticuloso tanto psicológico quanto semiológico, e se sustenta com méritos. Ainda como obra referencial, abre caminho para as diferentes interpretações, retomadas, pontos de divergência, tal qual se consegue na releitura de um Dostoievski, de Freud, de Mozart ou de um Michelangelo. (DUARTE, 2012, p. 2).

Assim sendo, esta narrativa transcende a história de uma bailarina que deseja ser reconhecida e atingir seus objetivos. Nela, apresenta-se o processo de desenvolvimento e de autonomia, como expressões da arte em Apolíneo e Dionísio, retratando a guerra pessoal (caos), que leva a destruição do corpo e do espírito. Conflito esse claramente representado em Nina que passa por transformações para conseguir a liberdade. Esta mudança, mesmo violenta, se faz necessária para que ela possa construir sua identidade aprendente.

Nina é o exemplo perfeito da guerra entre Apolo e Dionísio, guerra esta que dilacera o corpo e o espírito: por um lado, é obsessiva com a performance a ponto de violentar-se, por outro coça-se compulsivamente. É significativo, nesse sentido, que o primeiro indício da transformação de Nina em cisne negro seja uma ferida que se abre devido ao ato compulsivo de coçar. Na medida em que a transformação evolui, observa-se que esta primeira ferida era já o início da abertura pela qual as asas do cisne negro desabrochariam. Ou seja, a coceira compulsiva revela insidiosamente um Dionísio acuado que se fortalece aos poucos. (PORTUGAL; SALGADO; BECCARI, 2014, p. 25).

Há, ainda, no transcorrer do filme, a cena em que o cisne negro começa a apresentar-se a cada instante mais vivaz, tornando-se parte do corpo e da mente de Nina, desde as opções pelas vestimentas até seus posicionamentos e atitudes ante aos fatos que ocorrem. Além do mais, todo esse processo de mudança do ser compara-se analogicamente aos personagens do universo bíblico, como observamos no entendimento que segue.

[...] mesmo que estejam situados em contextos narrativos diversos, Eva e Nina enfrentam o mesmo desafio. A tarefa de Eva é convencer Adão a comer o fruto proibido; a de Nina é convencer o diretor do balé de que tem competência para representar a faceta sedutora e maliciosa do cisne negro. Eva, assim como Nina, pode ser descrita como uma personagem que transita entre a ingenuidade e a malícia. A figura da serpente poderia ser transposta para a do diretor do balé, que a todo o momento deseja despertar em Nina o seu lado mais sensual, até mesmo apelando para a questão da sua sexualidade. (CARVALHO, 2012, p. 11).

Na busca pela perfeição, Nina ao apresentar-se já não consegue mais ser o cisne branco, pois conheceu o contraditório e abriu as portas ao cisne negro, que toma conta do seu ser e a faz vivenciar, aprender e sentir o seu personagem de forma diferente. É a partir da fusão da ficção com o real, do caos ao cosmos3, que Nina chega à perfeição que tanto buscou, encarnando o personagem cisne negro com uma extrema energia que a leva à morte.

Para tal feito, considera-se a linguagem cinematográfica, interpretando-a, a partir de dois grandes referenciais. Com base em Eliade (1992, p. 21), “o primeiro é o mundo, mais precisamente, o nosso mundo, o Cosmos. O restante já não é um Cosmos, mas uma espécie de outro mundo, um espaço estrangeiro, caótico, povoado de espectros, demônios, estranhos”. Essa apreciação embasa-se no fato de que as ideias de cosmos e caos podem ser relacionadas com nossas próprias experiências pessoais, sendo o cosmos o espaço organizado de nossas aprendizagens familiares e por nós conhecido e o caos o desorganizado, aquilo que parece estranho, desconhecido e nos interpela (simbolizado pelo outro da formação).

Ao estabelecer uma relação intertextual com o balé O Lago dos Cisnes, o filme Cisne Negro apropria-se de algumas alegorias presentes em seu texto original. Assim, podemos ver que a própria Odete apresenta semelhanças com Nina, um ser doce, encantador e suave, justificando a facilidade de Nina em interpretá-la.

Pode-se ver em ambas, então, a força do arquétipo materno em sua manifestação negativa. Uma manifestação que impede a filha de se libertar dos laços maternos e ganhar sua própria independência, buscando o seu espaço próprio no mundo e fortalecendo seu ego ao criar uma identidade própria e distinta da mãe. Tanto Odete como Nina permanecem presas aos cuidados, controle e nutrição de suas mães que, ao fazerem isso, impedem o desenvolvimento de suas filhas e a passagem delas para o universo adulto. (SILVEIRA, 2012, p. 52).

De certa forma, esse trecho retrata a vida humana enquanto luta por reconhecimento e conflito social, que surge, por um lado, na influência social que se constrói com o convívio, que pode significar o refúgio familiar e o conviver solidário nos espaços públicos, mas, por outro lado, representa o individualismo e o desgarramento social, para assim dar maior importância aos interesses pessoais, mesmo que isso signifique a solidão humana. Os processos de aprender com o outro implica a saída dos espaços familiares de proteção excessiva para o crescimento na esfera coletiva, caminhando com seus próprios pés. Os personagens sofrem, assim como necessitam desse rompimento de dependência para que obtenham a liberdade e a construção de novos vínculos para o aprender evolutivo.

3. A METAMORFOSE DO APRENDER

Fazer uso da linguagem simbólica4 é essencial para a compreensão do ser, da cultura e de suas relações, como forma de renovar as dimensões pedagógicas, psicológicas e ontológicas. De fato, através dela é possível interpretar a experiência expressiva e comunicativa com o outro, uma vez que os símbolos surgem como realidade visível que nos remetem ao invisível. As questões da produção e da transmissão do conhecimento estão fortemente ligadas às práticas culturais, à formação da identidade e ao vínculo intersubjetivo dos contextos sociais. O jogo entre a linguagem simbólica da inovação e as representações de um passado distante são retomadas por Lyotard (1993, p. 70) quando afirma:

A narrativa do Iluminismo, a dialética romântica ou especulativa e a narrativa marxista, embora secularizadas, usam a mesma historicidade que a Cristandade, porque mantêm o princípio escatológico. O fim da história, ainda que sempre adiado, restabelecerá uma relação plena e completa com a lei do Outro (capital zero), tal como esta relação havia sido no começo: a lei de Deus no paraíso cristão, a lei da Natureza nos direitos naturais sonhados por Rousseau, e a sociedade sem classes, anterior à família, à propriedade e ao Estado, imaginada por Engels.

Apesar desta compreensão representar visões dialéticas do conflito humano (contraditório), que nos toca incondicionalmente através de símbolos (correlacionam conceitos e sensações), também expressa as nossas limitações e idealizações. O que é manifestado aos sentidos de forma imediata tem a capacidade de encurtar os caminhos e os percursos, mas o que nos permite ressignificar pela linguagem expressiva de mundos estabelece pontes que de outras formas permaneceriam absolutamente inacessíveis à compreensão humana. “Toda arte cria símbolos para uma dimensão da realidade que não nos é acessível de outro modo. Um quadro ou uma poesia, por exemplo, revelam traços da realidade que não podem ser captados cientificamente”. (TILLICH, 1985, p. 30).

A cada período novos símbolos surgem, novos sentidos e significados são atribuídos aos já existentes, assim como as obras de arte podem ser reinterpretadas a partir de diversas perspectivas, conhecimentos e experiências pessoais e culturais. Nessa concepção, temos inúmeros símbolos no decorrer do filme, que vão aludindo claramente a muitas questões, como a música de Tchaikovsky interligando todas as cenas e Nina representada no cartaz promocional com uma rachadura em seu rosto, simbolizando o rompimento de mundos (caótico versus cosmos) e a mudança de personalidade. A vida de Nina no apartamento de sua mãe Érica, representa claramente a situação de caos que ela se encontrava, já que sua vida não condizia com sua realidade presente, mas com um passado opressor, caótico, povoado de assombrações, demônios.

Diante dessa atitude da mãe e da ausência de uma figura masculina que lhe desse a convivência com seu animus e a ajudasse a se libertar dessa invasão materna, Nina acabou não fortalecendo um ego que fosse capaz de libertá-la de tal controle na hora de ir para a vida adulta, e também fez com que sucumbisse à manifestação do inconsciente por não ter um ego forte que pudesse dialogar com as imagens vindas dele. Assim, Nina identificou como real ao invés de simbólica, muitas imagens e manifestações do inconsciente. (SILVEIRA, 2012, p. 40).

Assim como Nina, todo e qualquer sujeito que se encontra em um ambiente caótico, desorganizado, necessita reorganizá-lo em meio a expressões de diferentes mundos, transformando-os mais precisamente em “nosso mundo” (ELIADE, 1992, p. 21). Nessa acepção, pode-se constatar um processo de aprendizagem, de transição e ressignificação de mundo.

Situar-se” num lugar, organizá-lo, habitá-lo – são ações que pressupõem uma escolha existencial: a escolha do Universo que se está pronto a assumir ao “criá-lo”. Ora, esse “Universo” é sempre a réplica do Universo exemplar criado e habitado pelos deuses: participa, portanto, da santidade da obra dos deuses. (ELIADE, 1992, p. 23).

Assim, na metamorfose desse processo de aprender passamos por mutações estranhas, que envolvem questões intelectuais, corporais e sociais, tal como as manifestações graduais do cisne negro. “Afinal, as aves não têm a sua época de muda?” (LUZ, 2011, p. 187). Trata-se não apenas de um trocar de pele, de figurino, mas também de uma mudança de identidade, superando a dependência familiar, adquirindo liberdade e então habitando mundos (cosmos). Se entendermos as asas como algo que dá liberdade ao pássaro, podemos entender que Nina busca a liberdade, visando novas relações e a superação da menoridade (do policiamento).

Um território desconhecido, estrangeiro, desocupado (no sentido, muitas vezes, de desocupado pelos “nossos”) ainda faz parte da modalidade fluida e larvar do “Caos”. Ocupando-o e, sobretudo, instalando-se, o homem transforma o simbolicamente em Cosmos mediante uma repetição ritual da cosmogonia. (ELIADE, 1992, p. 22).

A força transformadora é retratada em forma de tatuagem, como sinal de que está assumindo sua vida, construindo seu próprio mundo, esforçando-se no projetar-se do aprender, como expressão do próprio cosmos.

A tatuagem nas costas de Lilly são, de forma espelhada, dois ramos de Lírios (Lily, em inglês) e que, ao mesmo tempo, dão a impressão de duas asas, negras e abertas, tal quais as asas do personagem mítico e simbólico que a própria personagem assume, ou seja, o Cisne Negro. O Lírio é reencontrado no quarto da mãe de Nina, nos temas do papel de parede do apartamento e, por vezes, nos ramalhetes enviados a Nina pelo coreógrafo (Leroy), seus parabéns pela conquista, e naqueles levados ao hospital para a bailaria despojada (castrada), Beth, em condolências pela sua derrocada. Símbolo antigo, o lírio tem seu valor também organizado pela questão do espelho, da inversão e do paradoxo, pois insinua ao mesmo tempo a castidade e a brancura, quanto a sexualidade e fertilidade. Os opostos, mais uma vez, se encontram no mesmo objeto, fundamento do fenômeno simbólico, explicativo das pulsões conflitantes de vida e de morte oponentes e mescladas no mesmo sujeito. (DUARTE, 2012, p. 9).

Durante todo o processo de busca pela construção de mundo, revela-se a necessária morte do cisne branco para que o cisne negro ecloda. Ou seja, brota a questão da finitude humana (morte) para que a nova vida possa surgir como reinvenção, ineditismo e mudança. Igualmente, a sua luta para a emancipação e para o (re)conhecimento de si mesma em seu camarim, representa o colapso da fronteira psicológica que separa as suas identidades (cisne branco e negro). Ao quebrar o espelho (sua própria representação), Nina se torna o cisne negro definitivamente, libertando sua personalidade adulta e rompendo com os medos, as máscaras e os condicionamentos históricos. Na dança que é algo suave, que expressa sentimentos, emoções, sensações vemos o rito da renovação da vida que instaura o ápice de toda a trama. No centro do palco, o cisne negro mostra-se imponente, sensual, seguro, enquanto o cisne branco frágil, destruído, de maneira que no ato final, no desenlace, revela-se a implantação do cosmos, que através do rito de liberdade o cisne branco e tudo o que ele representava cai do alto retratando a sua morte, e a obtenção da perfeição que tanto se tentou alcançar.

Acontece que, como nos apresenta Han (2017) na obra A sociedade do cansaço, ao competirmos conosco mesmos e obedecendo às ambições e a pressão de desempenho e pela busca incessante da perfeição humana, acabamos nos tornando depressivos através do imperativo de obedecer a nós mesmos, recaindo na expressão patológica do próprio fracasso e carência de vínculos, característica da crescente fragmentação e atomização coletiva. Contrariando as ideias de um esgotamento de uma autoridade exterior, agora o imperativo consiste em obedecer a nós mesmos. As pessoas que buscam essa perfeição extrema, encontram-se em autoacusação destrutiva e autoagressão que o leva ao adoecimento coletivo, refletindo uma espécie de (des)humanidade que está em guerra consigo mesma. Trata-se, portanto, de uma sociedade enraizada, naquilo que foi considerado o mais elevado padrão de sucesso que é a questão da competência, na forma de uma cotidiana liberdade coercitiva de contato com o mundo.

Han (2017) também destaca que com a queda da instância dominadora, como apresentado em Foucault e que não leva à liberdade, mas agora a liberdade e a coação coincidam, em nome de uma maximização do desempenho, de modo que “o explorador é ao mesmo tempo explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. Essa autorreferencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em violência”. (HAN, 2017, p. 30). A coerção pela perfeição força o sujeito a produzir cada vez mais, vivendo num constante espírito de ausência e de culpa, sem jamais alcançar o repouso da gratidão, pois está concorrendo consigo mesmo até sucumbir no esgotamento ou sofrer um colapso psíquico, podendo ser manifestado através de diversas doenças. Desta forma, “o sujeito do desempenho se realiza na morte. Realizar-se e autodestruir-se, aqui, coincidem”. (HAN, 2017, p. 86).

É importante frisar que na linguagem simbólica da relação eu-mundo constroem-se visões pautadas pela ideia do conforto, na medida em que se manifesta o culto ao caos como estilo de vida, levando a vida para o terreno da mediocridade e da falta de sensibilidade no tocante ao reconhecimento do outro e às formas de expressão. Nessa lógica metamórfica de construção, vemos a educação como elemento imprescindível, uma vez que a metamorfose do aprender consiste em transformação de si com o outro. Para Assman (2000, p. 7), é notório que,

a espécie humana alcançou hoje uma fase evolutiva inédita na qual os aspectos cognitivo e relacional da convivialidade humana se metamorfoseiam com rapidez nunca antes experimentada. Isso se deve em parte à função mediadora, quase onipresente, dessas novas tecnologias. Junto às oportunidades enormes de incremento da sociabilidade humana, surgem também novos riscos de discriminação e desumanização.

Uma gama de elementos sociais hoje nos leva e nos impulsiona ao amadurecimento de nossas identidades. Portanto, através da educação podemos visar à emancipação coletiva, realizando o processo de passagem do mundo caótico para o cosmos, na tentativa de promover aprendizagens evolutivas e sociais. Como na obra do Cisne Negro, no processo de autonomia e descoberta de Nina, somos nós questionados a respeito de nosso esforço à emancipação. Por isso, torna-se notável a importância da educação em nossa sociedade, uma vez que ela é um potencial emancipador ativo. Ambrosini (2012, p. 388) atesta que,

pensar a educação como formadora do ser humano, tanto no âmbito do conhecimento quanto da ética, implica também no reconhecimento da finitude humana, no seu condicionamento e inacabamento. A partir da constatação de que o ser humano está historicamente em construção, pode-se dizer que ele é um projeto inacabado, e este seu inacabamento reforça sua não conformação com determinado condicionamento histórico.

O que Assman (2000) conceitua como metamorfose do aprender, vemos que é um processo espiral de nossa construção identitária, que lança luz e sustenta uma educação crítica e questionadora dos problemas vitais. Ao traçar uma passagem ou um campo de forças do senso comum (ingênuo e fragmentado do mecanicismo e das velocidades infinitas da realidade virtual) ao conhecimento filosófico (complexo do dinamismo crítico-reflexivo) também podemos realizar o enfrentamento do contexto caótico para o cosmos, como um conjunto complexo de conexões horizontais, de relações e integrações de aprendizagens evolutivas e diferenciadas. Isso certamente não é um percurso fácil, já que requer o enfrentamento das confusões e tensões que habitam os processos de (re) conhecer, além de muito trabalho, esforço, dedicação e persistência dos sujeitos, para não recaírem no caos.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No cisne vemos a metamorfose do aprender na dinâmica da vida, repleta de fragilidades e limitações, mas, simultaneamente, também a audácia, o desejo e a vontade de saber enquanto uma arte que vê na própria limitação e inacabamento algo estimulante. Desde Odete até Nina, tem-se a característica da interdependência com o vínculo materno que pode aniquilar os processos de liberdade e até mesmo a tomada de posição e autonomia. Neste cisne dependente, há uma acomodação, uma despretensão por si mesmo, de forma que se permanece na infância (in fans - sem fala), etapa da vida que somos tutoriados e subordinados ao outro. Pode-se viver eternamente sob a égide do conhecimento familiar, todavia, a vida clama por autonomia e torna-se necessário ir além desses vínculos autoexplicativos, para que com independência e estabelecendo a comunicação com a voz do outro, possamos aprender com o diferente e construir metamorfoses em meio a situações caóticas, como um processo de renovação das próprias aprendizagens no (re)conhecimento do outro.

REFERÊNCIAS

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ASSMAN, H. A metamorfose do aprender na sociedade da informação. Ci. Inf. Brasília, v. 29, n. 2, p. 7-15, maio/ago. 2000. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ci/v29n2/a02v29n2.pdf> Acesso em: 08 jun. 2016.

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1 Piotr Ilitch Tchaikovsky foi um autor de grande consideração, mas teve sua carreira conturbada pelas escolhas pessoais que fez, devido ao fato de ter uma orientação homossexual e em relação ao martírio por sua relação incestuosa com um de seus sobrinhos. Ante a isso, a obra O Lago dos Cisnes é um balé dramático dirigido em quatro atos, que retrata conflitos íntimos que fazem parte da complexidade própria de todo e qualquer ser humano.

2 O termo “Cisne Negro” revela uma tendência contra-hegemônica (descontentamento em relação à vida) e, ao mesmo tempo, um sentido de rebeldia e risco, que pode conduzir à escuridão, à morte infeliz, trazendo apologias de um mundo obscuro e caótico da condição humana. A arte cinematográfica não é o caos, mas luta com o caos para torná-lo sensível, através dos personagens e das diversas formas de comunicação, estabelecendo relações. O filme surgiu com a associação da trama do balé O Lago dos Cisnes e da novela O duplo (2011), de Fiódor Dostoivéski (1846). Filme: Cisne Negro (Black Swan). Direção: Darren Aronofsky. Elenco: Natalie Portman, Mila Kunis, Vicent Cassel. Música: Tchaikovsky. Ano: 2010. (107 min.). Baseado no balé Lago dos Cisnes.

3 Cosmos (caosmos) pode ser entendido como um caos composto (imprevisto) ou uma ordem para enfrentar e lutar contra o caos (ação estranha, variável, notadamente turbulenta e de efeitos flutuantes como abismos indiferenciados). Por isso, é preciso traçar planos de referência (preconcebidos e com intencionalidades pedagógicas) para nos proteger do próprio caos e da contradição humana.

4 “Símbolo é o meio de acesso às realidades pessoais, misteriosas e inacessíveis a uma observação direta e imediata. [...] No símbolo, a pessoa se expressa. No símbolo, a pessoa é conhecida. [...] Toda a cultura é uma produção de símbolos através dos quais os homens se expressam, se comunicam e se trocam a riqueza interior” (IGÍGORAS, 1983, p. 468).