PEDERSEN, S. A.; TORTELLA, J. C. B. Onde estão os coelhos pretos no livro “A menina
bonita do laço de fita”? Revista Diálogos (RevDia), “Edição comemorativa pelo
Qualis B2”, v. 6, n. 2, mai.-ago., 2018.
ONDE ESTÃO OS COELHOS PRETOS NO LIVRO “MENINA BONITA DO
LAÇO DE FITA”?
Simone Alves Pedersen (UNESP)
1
Jussara Cristina Barbosa Tortella (PUC)
2
1
Doutoranda em Educação. UNESP campus de Rio Claro. s.pedersen@uol.com.br
2
Doutora em Educação. Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
jussaratortela@gmail.com
RESUMO: A fusão de dois autores em uma mesma obra: o autor do
texto e o autor de imagem, pode ser conflituosa. Nesse artigo,
discutimos a relação imagética e textual no livro Menina bonita do
laço de fita” de Ana Maria Machado, um dos livros mais adotados pelas
escolas do Brasil, sob o prisma da teoria Social Cognitiva. A mãe da
menina é desenhada como uma mulher sensual, contrastando com as
mães brancas em livros infantis. Apesar do coelho procurar uma coelha
preta para se casar no texto, as ilustrações não mostram coelhos
pretos.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura infantojuvenil. Teoria Sócio Cognitiva.
Modelação.
ABSTRACT: The fusion of two authors in the same work: the author of
the text and the author of the image, can be conflicting. In this article,
we discuss the imaginary and textual relationship in Ana Maria
Machado's book, "The Beautiful Girl with Ribbon Tie", one of the books
most adopted by Brazilian schools, under the prism of sociocognitive
theory. The girl's mother is drawn as a sensual woman, contrasting
with white mothers in children's books. Although the rabbit looks for a
black rabbit to marry in the text, the illustrations do not show black
rabbits.
KEYWORDS: Children’s literature. Social Cognitive Theory. Modeling.
1. A LITERATURA INFANTOJUVENIL
Era uma vez uma menina linda, linda.
Os olhos dela pareciam duas azeitonas pretas, daquelas bem brilhantes.
Os cabelos eram enroladinhos e bem negros, feitos fiapos da noite.
A pele era escura e lustrosa, que nem pelo de pantera-negra quando pula na
chuva.
(MACHADO, 1996, p.3)
A literatura infantil tem sido estudada em diferentes esferas
educacionais, demonstrando ser um gatilho para discussões críticas,
desde a mais tenra idade. Quem com dificuldade não se interessa por
literatura e não apreende o conteúdo dos livros literários, paradidáticos
e didáticos. Ao mesmo tempo, a literatura infantil oferece material de
leitura agradável e multidisciplinar, que permite à criança enquanto
aluno e pessoa , entre tantos outros benefícios, exercitar a
dialogicidade e reflexão.
Solé (1998) destaca a importância da atuação dos docentes para a
melhoria da aprendizagem da leitura e do papel da leitura para a
transformação dos conhecimentos. Para a autora, ler não é uma tarefa
apenas para aprender (conteúdo), mas também para pensar, e a
decodificação, apenas, não basta; afirma ainda, que a fluência leitora
necessita de exercício contínuo e que o leitor precisa aprender a
interpretar textos com graus de dificuldade cada vez mais altos.
Interpretar um texto ilustrado passa pela interpretação das
imagens. O discurso que as imagens carregam, assim como o discurso
no texto, nem sempre são aspectos considerados por professores em
sala de aula. O livro infantil é selecionado pelo colorido, pela capa, pelo
tema, mas nem sempre são lidos antes de serem ofertados aos alunos.
Também não é sempre que o livro infantil é analisado com rigor, antes
de ser lido para crianças. Muitas vezes o livro é considerado um
brinquedo.
Em direção oposta a esta, Pedersen e Tortella (2016) ressaltam
que a escola é uma ponte entre as crianças e a Literatura infanto-
juvenil, uma ferramenta de fácil acesso aos professores. A questão
reside na formação dos professores em relação ao livro infantil, aos
critérios de seleção, a avaliação desses livros, que podem trazer
discursos embutidos que nem sempre são identificáveis pelo título ou
pela capa. O professor precisa ler o livro antes de escolhê-lo quando
busca formar alunos capazes de refletir, ponderar, ter opiniões
próprias.
Anjos e Vieira (2015) discutem, em pesquisa que
desenvolveram sobre a formação docente e a literatura infantil e suas
contribuições para o desenvolvimento de leitores na Educação Infantil,
que os programas de formação além da discussão sobre alfabetização e
letramento necessitam considerar as reais necessidades contextuais do
professor em sala de aula e a implicação dessas nas práticas
pedagógicas.
A literatura infantil e juvenil tem sido usada para leitura de
fruição, para leitura de conteúdo pedagógico, para discussão de
temática moralizante, como material paradidático e didático.
O autor das imagens, o ilustrador, tem um caminho diferente. Ele
é contratado pela editora ou pelo autor diretamente. O texto pronto lhe
é mostrado e ele então inicia a produção das imagens. Alguns artistas
gostam de compartilhar o processo com o autor do texto e pedem
orientações/sugestões, enquanto outros produzem individualmente e
não gostam de receber opiniões durante seu processo de criação. Alguns
editores pedem a remessa de imagens para avaliação antes de terminá-
las, outros confiam nas escolhas do ilustrador que entrega o material
todo de uma única vez.
Nesse movimento, podem surgir divergências entre os dois
autores. Algumas em tempo hábil de saná-las, outras que o oferecem
possibilidade de mudanças. Artistas têm concepções diferentes sobre
suas produções, e podem ou não aceitar que o autor do texto oriente
sua criação artística, para que o haja limitação criativa. Outros
artistas produzem para determinado cliente e procuram atender ao que
esse espera.
O que nos leva a ponderar sobre o que é arte. Se a arte pode ou
não ser direcionada. Se a arte é somente a criação livre, no caso da
literatura infantojuvenil que apresenta uma história, pode a
ilustração contar outra história? Se o artista descreve em desenhos a
história textualizada, está ele limitando sua capacidade artística?
Outra questão é sobre a liberdade artística versus conteúdo. Pode
a ilustração, em nome da arte e da livre criatividade, apresentar
informações incorretas?
Um elefante andando pela cidade de São Paulo é perfeitamente
cabível em uma narrativa criativa. Se, por outro lado, colocamos um
elefante em um livro infantil que descreve os animais que vivem na
Floresta Amazônica, pode levar ao aluno menos atento acreditar que
existem elefantes em nosso país. O objetivo do livro é que deve ditar as
regras em relação à escolha. Ficção ou livro informativo, paradidático,
didático, cada gênero tem suas possibilidades/limitações. O papel do
mediador é sempre levantar o questionamento quando a imagem e o
texto o se encontrarem de forma natural e perfeita. O que não se
pode é levar para a escola um livro para crianças que em sua narrativa
traga informações distorcidas.
Concordamos com o renomado matemático Laurent Laforgue, que
prega uma urgente reforma educacional global, quando ele afirma que
os conhecimentos literários são de imensa importância. Pois dominar a
própria língua, ler grandes autores e filósofos, é indispensável para o
desenvolvimento do espírito crítico e da própria formação do indivíduo.
Não se trata de censurar, de adotar apenas livros moralizantes
(para isso temos as fábulas) ou que sejam politicamente corretos. Por
outro lado, não faz sentido levar para a sala de aula livros que
promovam o preconceito, desvalores e desarmonia.
Autores de textos e de imagens o pessoas e estão sujeitos a
acertar e errar. Nem tudo que é publicado é material de qualidade
literária e imagética. Por vezes, os custos determinam as escolhas. E
nem sempre a Arte é o fator preponderante na escolha de qual livro
será produzido, quando e em que condições isso ocorrerá.
Portanto, esse texto procura compreender como e o que as
crianças aprendem ao entrar em contato com um livro e suas
ilustrações, a partir das explicações do conceito de modelação da teoria
social cognitiva. Pretende, ainda, alertar docentes e pais que não se
pode escolher um livro infantil de forma inocente, sem considerar o
discurso que ele traz. Não é porque um livro trata de homofobia que o
autor estava capacitado a tratar desse tema com o respeito que merece.
Não é porque um autor escreve um livro com um protagonista portador
de alguma deficiência que o livro é bom. O mesmo se estende ao
ilustrador. Nem todo artista é sensível ao ponto de ser capaz de ilustrar
temáticas polêmicas ou poéticas.
2. A APRENDIZAGEM POR MODELOS, SEGUNDO A TEORIA SOCIAL
COGNITIVA
Azzi (2010) explica que segundo o prisma da teoria sociocognitiva
de Albert Bandura, o processo de modelação possibilita que as pessoas
adquiram padrões de comportamentos culturais. Nesses padrões de
comportamentos estão as crenças e os valores que elas acrescentam no
decorrer de suas vivências e experiências, interagindo com o ambiente.
Costa afirma que a modelação é um conceito também pertencente
ao senso comum. Pessoas discutem, por exemplo, o fato de a TV
apresentar modelos de conduta contrários à moral e aos bons costumes,
cenas de violência, de crimes, maus exemplos de como lidar com os
idosos, corrupção, etc.
O que parece ser apenas um comportamento copiado, é, segundo a
Teoria Social Cognitiva, um aprendizado. Aprendemos de forma direta
ou forma vicária. Na experiência direta aprendemos o que executamos.
Na experiência vicária observamos outros comportamentos que
podem ser pessoais, por meios de comunicação ou leitura e
ampliamos nosso repertório de condutas que aprovamos ou
desaprovamos.
Bandura trabalhou com modelos reais, pesquisou a efetividade de
modelos simbólicos mediados por filme (modelos humanos mais que
animais). Sugeriram os estudos um efeito eliciador e facilitador de
resposta aprendida desinibindo respostas pela extinção ou contra
condicionamento da ansiedade. Ou seja, um livro ou filme pode
desinibir comportamentos que a criança aprendeu e não havia
reproduzido ainda. Ou ensinar novos comportamentos.
Os três efeitos da exposição a um modelo são: aprender novos
comportamentos, inibir ou desinibir respostas aprendidas hibernadas e
instigar respostas similares.
Os processos envolvidos na aprendizagem por meio de modelos
são: atenção, retenção, reprodução motora e reforço e motivação.
Quanto mais atenção, maior probabilidade de aprendizagem do
comportamento observado. Quando tratamos de literatura infantil,
temos uma grande possibilidade de a criança prestar atenção.
Sem foco, sem prestar atenção, naturalmente não observaremos o
modelo de forma aprofundada. É necessário que a observação seja
memorizada, retida. Há necessidade de habilidades para reprodução. Se
o comportamento for sancionado negativamente, raramente será
ativada enquanto incentivos positivos favorecem.
O reforço afeta o nível de aprendizagem observacional ao
controlar a que as pessoas se tornam atentas e quanto elas codificam e
praticam o que viram. O reforço externo é um facilitador, não condição
necessária para a aprendizagem. As consequências do comportamento
afetam a decisão de reproduzi-lo ou não.
O modelo pode favorecer ou enfraquecer inibições de respostas
que os observadores previamente aprenderam (BANDURA, 1969). A
influência de modelos pode servir como estímulos desinibidores,
eliciadores de respostas, instigadores de emoções e como professores.
O comportamento aprendido não será necessariamente
reproduzido exatamente como foi visto. Somos frutos de uma tríade
recíproca, na qual segundo Bandura, nosso comportamento afeta o meio
e nossas crenças, reciprocamente. Um comportamento aprendido pode
ser reproduzido com variações adicionadas pelo nosso repertório
individual.
Essa equação faz com que nunca sejamos réplicas idênticas de
nossos modelos. Ao mesmo tempo que aprendemos quase tudo em
nossas vidas por meio de modelação, mesmo que seja ao observar o que
alguém informa por meio de comportamentos, palavras ou gestos.
A modelação es presente nos comerciais de TV quando nos
instiga a ter novas necessidades. Nas leituras e filmes. Nas conversas
sobre o passado. Nas conversas sobre o futuro. O tempo todo estamos
sob o processo da modelação.
Para Zimmerman e Schunk (2001) a modelação envolve mudanças
que resultam da observação de modelos, sendo essas mudanças nas
dimensões não cognitivas, como também afetivas e
comportamentais. Essa aprendizagem pode ser incidental, mas também
pode ser programada, mediante o contato com livros e programas de
televisão, filmes, peças de teatro, entre outros.
As atribuições do modelo, atributos do observador e valor
fundamental do que foi modelo afetam o poder do modelo. O
observador compara suas características com a do modelo e julga se as
consequências são negativas ou positivas quando decidi se adotará ou
não aquelas condutas. Se for um modelo de prestígio, de sucesso ou que
tenha envolvimento afetivo com a criança, ela prestará mais atenção.
Nesse ponto, os livros infantis são potentes modelos simbólicos.
A modelação não pode ser interrompida. Agora vou ser modelo.
Agora não vou mais ser modelo, posso ser eu mesmo. Somos modelos o
tempo todo. É uma grande responsabilidade. A criança amplia seu
repertório comportamental com cada detalhe que observa. E nesse
repertório incluem-se as histórias infantis que oferecemos a elas.
3. O LIVRO MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA” DE ANA MARIA
MACHADO
Ah, quando eu casar
quero ter uma filha
pretinha e linda
que nem ela…
(MACHADO, 1996, p. 3)
Lançado em 1996, o livro “Menina bonita do laço de fita” da
escritora Ana Maria Machado, recebeu inúmeros prêmios e foi
distribuído para escolas de todo o país. O livro trouxe a discussão sobre
o racismo para o universo infantil, com uma menina protagonista,
pequena, preta, bonita. As professoras logo descobriram o livro e
passaram a adotá-lo como pretexto para discutir a questão do
preconceito racial com seus alunos. A autora é escritora, professora,
jornalista e pintora, publicou mais de cem livros e vendeu mais de
vinte milhões de livros. Nascida em 1941, Machado acompanhou a
evolução do mercado editorial brasileiro, desde o seu quase início.
O livro começa Ainda por cima, a mãe gostava de fazer
trancinhas no cabelo dela e enfeitar com laço de fita colorido. Ela ficava
parecendo uma princesa das Terras da África, ou uma fada do Reino do
Luar” (p.4). e na sequência apresenta o personagem coelho branco, de
olhos vermelhos e orelhas cor-de-rosa. Do lado da casa dela morava
um coelho que achava a menina a pessoa mais linda que ele vira na
vida. Queria ter uma filha linda e pretinha como ela” (p.7). Assim, a
história se desenrola com o coelho perguntando à menina como fazer
para ter uma filha pretinha e linda que nem ela. E com uma prosa
poética e também momentos engraçados, o livro tem agradado adultos
e crianças por décadas.
O livro foi publicado em 1996. O PNBE (Plano Escolar da
Biblioteca Nacional) surgiu em 1997, e demorou alguns anos até
chamar a atenção das editoras com suas compras de dezenas de