ZANATTA, D. L.;
BURLAMAQUE, F. V. A
noiva fantasma,
de Yangsze Choo e a formação do jovem leitor.
Revista
Diálogos (RevDia),
“Edição comemorativa pelo Qualis B2”, v. 6, n. 2, mai.-ago.,
2018.
A
NOIVA FANTASMA, DE
YANGSZE CHOO E A FORMAÇÃO DO JOVEM LEITOR
The
ghost bride, by
Yangsze Choo and the formation of the young reader
Deisi Luzia
Zanatta (UPF)
Fabiane Verardi
Burlamaque (UPF)
RESUMO:
O
presente artigo tem por norteamento central realizar uma possível
análise da obra A
noiva fantasma,
de Yangsze Choo, com o objetivo de refletir sobre a transgressão
psicológica da protagonista e como isso pode influenciar na formação
dos leitores contemporâneos. Justifica-se o presente trabalho pela
relevância de dar maior visibilidade à literatura chinesa e à
primeira obra publicada no Brasil da referida escritora. Esta
pesquisa tem caráter bibliográfico e possui como sustentação
teórica os estudos de Diana Corso e Mário Corso (2011), Michèle
Petit (2008, 2009), Jorge Larossa (2003), Judith Langer (2005) e
Regina Zilberman (1989). A narrativa, que se passa em 1893, versa
sobre a história de Li Lan, uma jovem que recebeu da família uma
educação tradicional, mas por viver sem perspectivas após a
falência do pai, recebe uma proposta capaz de mudar sua vida:
tornar-se uma noiva fantasma. Concluímos, que o enredo do romance
não somente mostra a tradição sobre os casamentos fantasmas da
cultura asiática, mas também, a condição humana a respeito das
mudanças drásticas que resultam na transgressão psicológica e na
renovação que cada indivíduo precisa ultrapassar ao tomar
determinadas decisões.
PALAVRAS-CHAVE:
A
noiva fantasma.
Protagonista.
Transgressão. Leitor.
ABSTRACT:
This
article is
aimed at establishing a
possible perform analysis of the work The
ghost bride,
by Yangsze Choo, with the aim of reflecting on the psychological
transgression of the protagonist and how this can influence in the
formation of the contemporary readers . It justified this study the
relevance of raising the profile of Chinese Literature and the first
work published in Brazil of that writer. This research has
bibliographic and has as theoretical studies anchored in Corso &
Corso (2011), Michèle Petit (2008, 2009), Jorge Larossa (2003)
Judith A. Languer (2005) and Regina Zilberman (1989). The story,
which takes place in 1893, deals with the story of Li Lan, a young
woman who received the family a traditional education, but to live
without prospects after his father's bankruptcy, receives a proposal
able to change your life: behave a ghost bride. We conclude that the
plot of novel not only shows the tradition of ghosts marriages of
Asian culture, but also the human condition about the drastic changes
that result in psychological transgression and renewal that each
individual must overcome to make some decisions.
KEYWORDS:
The
ghost bride.
Protagonist. Transgression.
Reader.
1. INTRODUÇÃO
A literatura
juvenil contemporânea vem ganhando novas proporções em nosso meio.
O surgimento de obras com temáticas que discutem a relação do ser
humano consigo, com o outro e com o mundo se destacam e tendem a se
instalar nas mãos dos jovens leitores. Diante disso, pensamos que a
leitura da literatura pode vir a auxiliar as pessoas a superarem
qualquer tipo de adversidade. Dentre a produção que está ganhando
espaço e direcionada ao público juvenil se insere a obra A
noiva fantasma,
da escritora Yangsze Choo.
Yangsze Choo é
descendente de malaios, formou-se na Universidade de Harvard e ocupou
vários cargos corporativos. Em 2015, lançou o livro A
noiva fantasma,
pela DarkSide Books. A literatura chinesa é pouco conhecida e
difundida entre nós – o que nos inspirou a analisar a primeira
obra de tal escritora publicada no Brasil.
Assim, neste
artigo, se objetiva analisar o percurso psicológico da protagonista
que, para não se submeter a um casamento de interesses, ultrapassa
as barreiras da vida e da morte, a fim de fazer suas próprias
escolhas. Entendemos que os acontecimentos que ocorrem na vida da
personagem principal podem contribuir para que os leitores
contemporâneos venham a se identificar com o texto.
Levando em
consideração que é pela linguagem que a literatura e a cultura se
manifestam, neste trabalho conduzimos uma análise da narrativa,
dialogando com a teoria de Diana e Mário Corso (2011), Jorge Larossa
(2003), Michèle Petit (2008, 2009), Judith Langer (2005) e Regina
Zilberman (1989). É por meio da leitura literária que o leitor
re(ordena) a percepção que possui do mundo, ampliando seus
horizontes de expectativas. É o que se observa na obra a partir da
protagonista Li Lan, que, ao tomar conhecimento da condição que
está prestes a se submeter, luta com todas as forças para alterar o
rumo de seu destino.
2.
A FORMAÇÃO
DO JOVEM LEITOR: ANALISANDO A NOIVA FANTASMA
A
“Noiva fantasma” (2015) é o primeiro romance de Yangsze Choo
publicado no Brasil. A obra é composta por quarenta capítulos
ambientados em 1893, na Península Malaia, em que se observa além da
cultura, uma crítica visceral e contundente à sociedade chinesa. O
enredo da história se passa na cidade de Malaca, na Malásia, e tem
início com um diálogo entre Li Lan – a
protagonista e também narradora da história, uma bela jovem
solteira de 18 anos
e seu pai, um
homem que se tornara recluso da sociedade após ter perdido a esposa
em um surto de malária.
Sem
dinheiro devido à falência, o pai da personagem principal passa
dias enegrecidos por conta do uso de ópio
e sobre uma proposta de casamento que recebera para sua filha: o
de se tornar uma noiva fantasma. A partir disso, a protagonista
enfrenta uma perseguição por parte do noivo fantasma, tudo porque
ela se apaixona pelo primo de seu pretendente. Inesperadamente, um
certo dia, Li Lan adentra no mundo dos mortos e, ao lado do amigo, Er
Lang, passa por uma série de obstáculos para despistar Lim Tian
Ching e regressar ao mundo dos vivos para ter o direito de fazer suas
próprias escolhas.
Percebemos
que a inserção de personagens que buscam por elas mesmas superar os
percalços encontrados no caminho são cada vez mais constantes na
literatura destinada aos jovens. Isso representa uma característica
muito importante para os leitores (as) contemporâneos: o seu caráter
emancipatório e um auxílio em sintetizar seus desejos, angústias,
medos, sofrimentos, curiosidades, alegrias e tristezas orientando-os
a dar significado a coisas e fatos, ao mesmo tempo, na sua relação
com o outro.
Muitas
destas histórias “denominadas juvenis apresentam marcas formais e
temáticas diversificadas, apropriadas à faixa etária de seus
leitores e inerentes ao contexto sociocultural em que transitam
autores e receptores” (MARTHA, 2014, p. 12-13), tem sido alvo de
análises devido à complexidade de seus temas. Nesse sentido, se
debruçar sobre a obra de Choo é importante não só para
compreender a essência do “eu” humano por meio das
características representadas nas personagens, mas também porque a
cultura chinesa e malaia acerca da vida e da morte percorre a obra do
início ao fim. Isso faz com que a história de Li Lan não navegue
somente na terra dos mortos, mas também pelos lugares mais secretos
e delicados do nosso coração. Logo, conforme Diana e Mário Corso:
A
experiência artística nos coloca em sintonia com a fantasia alheia,
ela amplia os horizontes aos quais podemos chegar com o uso da
própria imaginação e abre a possibilidade de questionar a
realidade, tanto a pessoal como a coletiva (CORSO; CORSO, 2011 p.48).
O
início da narrativa já é representativo de tais questões, pois
apresenta o modo como o pai conta à filha da proposta que recebera
da família Lim. As percepções da narradora e protagonista ganham
as páginas da obra e, de certa forma, levam o leitor a questionar a
situação em que se encontra Li Lan:
“Uma
noiva fantasma, Li Lan.”
Prendi
a respiração enquanto virava uma página. Era difícil dizer quando
meu pai estava brincando. Às vezes eu não tinha certeza se ele
mesmo sabia. Ele fazia pouco caso de assuntos sérios, como nosso
orçamento minguante, dizendo que não se importava em vestir uma
camiseta puída nesse calor. Mas às vezes, quando o ópio o envolvia
com seu abraço nebuloso, ele ficava quieto e distraído (CHOO, 2015,
p. 9).
Se
num espaço marcado pela desesperança no qual os adultos enfrentam
crises para lidar com os problemas, o que pensar e dizer sobre uma
adolescente? Logo, é a partir desse momento que a protagonista
começa a despertar sua curiosidade para a família Lim, de quem
partiu a proposta. Sempre estivera circunscrita ao lar, ao lado da
ama e do pai, no entanto, a partir da situação econômica familiar,
a protagonista não nutria esperanças de realizar um bom casamento.
Com a proposta inesperada de ser tornar uma noiva fantasma, Li Lan
decide visitar a mansão Lim e saber mais sobre essa família, a qual
queria que ela fizesse parte.
Por
meio dos dilemas que percorrem o interior da protagonista, vamos
aprendendo, aos poucos, sobre a condição das mulheres na sociedade
malaia do século XIX e sobre as crenças, valores, mitos e sistemas
filosóficos que sustentam a submissão da mulher numa sociedade
patriarcal. Chama a atenção, por exemplo, a descrição que ela faz
da sua atuação nas competições voltadas às mulheres promovidas
outrora na mansão Lim – disputas relacionadas aos afazeres
domésticos e artesanais, sendo um indício de quão projetadas eram
as atividades culturais a fim de reforçarem o papel de dona de casa
das mulheres chinesas e malaias:
Para
ela, a melhor parte da noite havia sido o fato de eu ter ganhado a
competição. Eu fora forçada a contar aquilo diversas vezes, para
seu deleite, e até a ouvira se gabando para o cozinheiro. Nunca
havia me saído bem nas artes femininas, e suspeitava que Amah se
sentia mal por causa disso. “Lendo, lendo!”, ela grunhia, e
arrancava qualquer livro que eu tivesse em mãos. “Você vai
estragar a vista, assim!” Uma vez argumentei que aquele trabalho de
costura faria a mesma coisa, mas ela nunca me ouviu (CHOO, 2015, p.
49).
Michèle
Petit (2008) afirma que a leitura tem o poder de despertar em nós
regiões que estavam até então adormecidas e é o que acontece com
a protagonista da história. Embora reclusa ao lar e com perspectivas
financeiras em decadência, Li Lan não abandona a leitura e a
capacidade simbólica que emerge dos livros, enquanto Amah gostaria
que Li Lan fosse uma especialista nas tarefas femininas.
Assim,
mesmo com todos os momentos de reclusão social vividos antes de
receber a proposta, a protagonista possui uma válvula de escape: o
mundo dos livros, o que, de certa forma, ajudou a moldar sua
personalidade, evidenciada quando precisa correr contra o tempo,
enfrentando os problemas que a cercam. A vida de Li Lan, então,
começa a mudar. Sem receber a proposta, quem sabe, jamais
conseguiria lutar contra a condição a ela destinada – por sua
condição financeira, se tornar uma noiva fantasma. Em uma visita à
mansão Lim, após várias perguntas da senhora Lim, mãe de seu
pretendente, Li Lan percorre a casa e conhece o jovem Tian Bai, primo
de Lim Tian Ching e, por ele se apaixona. Percebe-se o embaraço e,
após, a leveza da protagonista quando conversam sobre a atividade do
jovem – o conserto de relógios: “Eu realmente não deveria estar
conversando com um homem jovem, ainda que fosse um criado, mas tendo
ele voltado a se debruçar sobre a mesa, eu estava ainda mais à
vontade” (CHOO, 2015, p. 23).
Ao
saber do acontecido, Lim Tian Ching, o pretendente falecido, passa a
invadir os sonhos de Li, tornando-os pesadelos correntes. Percebe-se
que a obra rompe com alguns paradigmas da tradição chinesa, pois na
maioria das sociedades em que casar uma pessoa viva com uma morta faz
parte da cultura, o fantasma a atormentar os cônjuges vivos sempre
foi do sexo feminino. Em uma entrevista, quando questionada sobre de
onde veio a ideia para o livro, Choo enfatiza que:
As
raízes talvez possam ser rastreadas até minha tese da universidade,
quando eu quis escrever sobre opressão às mulheres – o papel
histórico dos fantasmas femininos na cultura asiática. Eu tinha
duas observações: 1) por que os fantasmas asiáticos pareciam ser
muito mais aterrorizantes que os ocidentais; e 2) por que os piores
eram sempre mulheres?
Li Lan incorpora, fielmente, uma
jovem à frente de seu tempo que quer por ela mesma fazer suas
próprias escolhas, transgredindo a tradição. Mas tal atitude
implica numa série de dificuldades impostas a ela e aos envolvidos
na proposta de casamento fantasma. A protagonista representa sua
bravura ao se envolver cada vez mais com a situação quando permite
que Lim Tian Ching invada mais seus sonhos. Porém, enuncia ao
pretendente que não quer ser uma noiva fantasma, mesmo que ele
insista: “Li Lam, sou um homem de palavras simples”, ele disse.
“Você seria minha noiva?” “Não!” [...] “Eu não posso me
casar com você.” (CHOO, 2015, p. 47).
Judith
Langer (2011) assevera que é por meio da literatura que as pessoas
encontram elas mesmas, imaginam como as outras são, valorizam as
diferenças e buscam pela justiça e por uma melhor compreensão do
futuro. Tais pessoas se tornam o tipo de pensadores literatos dos
quais necessitamos para dar forma às decisões que moldam nosso
futuro. A obra em análise representa esta característica para seus
leitores, pois as personagens imersas no ambiente ficcional ganham
vida ao se deparar com determinados problemas e precisam
transgredi-los, como acontece com as pessoas do mundo real.
Li
Lan precisa adentrar no lugar de onde o pretendente falecido a
assombra, conhecer como funciona este outro mundo para não se tornar
uma noiva fantasma. Nesse sentido, a protagonista representa as
jovens mulheres contemporâneas, aquelas que primam por sua liberdade
e que desejam tomar suas próprias decisões e escolher com quem irão
se relacionar. Ao mesmo tempo, que a curiosidade a impulsiona, alguns
questionamentos surgem na mente da personagem:
Às
vezes eu me questionava se aquela imersão no mundo dos mortos não
era um início de insanidade. Testei minha memória e chequei minhas
pupilas, buscando sinais de loucura, mas eu não gostava de me olhar
no espelho por muito tempo. Havia sombras demais. A única coisa que
me consolava era o relógio de Tian Bai. [...] Na verdade, Tian Bai
era a pessoa com quem eu realmente queria falar [...] (CHOO, 2015, p.
53).
Quando
se intensificam os pesadelos com Lim Tian Ching, Li Lan ao lado de
sua ama procura uma médium, que a orienta nos atos que precisa
executar a fim de despistar o fantasma que a atormenta nos sonhos. A
médium é a personagem que, por sua experiência, representa a avó,
que aconselha a protagonista e passa a ela alguns rituais para
desviar o pretendente fantasma de sua vida. Na cultura asiática, os
familiares que ficam no plano físico queimam objetos e dinheiro para
os que estão no plano espiritual, pois acreditam que, assim, os
mortos passam habitar os mesmos lugares de quando estavam vivos,
façam e comprem as mesmas coisas, só que em outro plano. É o que a
médium aconselha Li Lan a fazer, pois de alguma forma já sabia que
a protagonista passaria por complicadas situações no mundo dos
mortos até atingir o amadurecimento.
O
divisor de águas na vida da personagem principal acontece, então,
quando toma mais do que a dose ideal do pó que a médium lhe dera. A
finalidade era dormir e esquecer os fortes pesadelos da noite
anterior, mas isso leva Li Lam ao coma no mundo dos vivos, passando a
habitar livremente o mundo dos mortos. A conversa entre o médico e
seu pai a deixa preocupada, pois seu espírito estava rondando e
precisava retornar ao corpo. A partir disso, a protagonista decide
que precisa fazer algo pelo seu corpo e sua alma, lutar contra uma
condição que a prende entre a vida e a morte:
Essa
conversa me deixou ainda mais convencida de que eu precisava fazer
algo. Qualquer coisa. A catástrofe do meu desencarne havia ofuscado
todas as demais preocupações, mas agora eu temia que essa minha
forma me transformasse em presa fácil para Lim Thian Ching e seus
esquemas (CHOO, 2015, p. 99).
A
desencarnação é o início do amadurecimento e a inserção da
protagonista no mundo dos mortos é um rito de passagem na resolução
dos problemas de sua vida. Caso permanecesse entre os vivos, o
pretendente fantasma habitaria cada vez mais seus sonhos e na
condição de moça pobre acabaria se casando com Lim Thian Ching.
Se
é a proposta de casamento fantasma que inicia uma crise existencial
na escala subjetiva do “eu” de Li Lan, entre os mortos ela
encontrará forças para compreender os outros e a si mesma. De
acordo com Petit (2009), em algum momento da vida, cada um de nós é
um “espaço em crise” e a protagonista parece estar nesse dilema.
É exatamente o que, muitas vezes, acontece com as pessoas reais,
pois em determinadas situações, precisamos abandonar a preocupação
com a existência física e refletir sobre nossa essência, tendo em
vista que grande parte dos problemas precisam ser resolvidos e
superados dentro de nós mesmos.
Langer
(2011) defende a tese de que a literatura propicia vivências na
nossa vida e que
a
“experiência subjetiva” acontece quando olhamos para dentro de
nós mesmos na busca por significados e compreensões, quando
trazemos novas experiências e idéias ainda mais para perto de nós
mesmos, de modo que possamos “vê-las” de uma perspectiva interna
[...]. Passamos a construir sentido e obtemos compreensão através
da interiorização [...] (LANGER, 2011, p. 18).
De
certa maneira, nesse caminho a percorrer, é Lim Thian Ching quem
apresenta à Li Lan os problemas que, agora, habitam sua vida. A
trajetória da protagonista na Malaca fantasmagórica vai além de
lutar contra os medos que invadem seus sonhos e vão até a realidade
de seus dias. Além de encontrar e contar com o apoio de sua mãe, Li
Lam conhece Er Lang, uma espécie de “oficial do além”, um ser
que transita entre os vivos e os mortos.
A
jornada subjetiva da personagem se intensifica quando ela se dá
conta de que o sistema do mundo dos mortos é similar ao dos vivos: é
uma sociedade em que há casas, ruas, mansões, rios, pássaros e
claro, as pessoas que outrora habitavam o mundo de cima, tudo
semelhante ao lugar onde Li residia antes de abandonar seu corpo
físico, mas sem saber como lidar com sua nova forma, vaga entre os
dois mundos.
Petit
(2008) afirma que a maioria dos jovens tem grande dificuldade de
encontrar um lugar neste mundo, não só por razões econômicas, mas
também afetivas, sociais, sexuais e existenciais. A protagonista só
passa por determinadas experiências a partir do momento em que sai
da casa do pai e passa a habitar a casa da família Lim e,
consequentemente, a sociedade. A proposta de casamento fantasma não
mostra somente a cultura asiática, mas também a possibilidade de a
protagonista passar por alguns percalços, ultrapassá-los e atingir
o amadurecimento - fora das paredes do lar.
Neste
percurso, o encontro entre a protagonista e sua mãe evidencia que
aquela está em fase de transição, pois após passar pelos
conselhos da médium, que representa a avó, a personagem principal
da obra necessita do convívio com a mãe, para concretizar o amor
que as une e pelos conselhos maternos para seguir adiante em sua
trajetória.
O
encontro com a mãe preenche o abismo físico que se formou entre as
duas devido à morte precoce da senhora Lan. Contar com o aconchego e
com a ajuda da mãe, sabendo que sua escolha faria com que jamais a
visse novamente, mostra que a protagonista está atingindo a
emancipação, uma vez que o desaparecimento da mãe das páginas do
livro evidencia que Li está apta a enfrentar seus monstros e fazer
suas próprias escolhas.
Assim,
é na Planície dos Mortos que a protagonista descobre os segredos
que rondam sua família e a família Lim. Os acontecimentos
encobertos a fazem descobrir que, em tempos de riqueza, era prometida
a Tian Bai, o verdadeiro herdeiro dos Lim. Mas com a falência do
pai, o jovem que Li ama é prometido a uma moça rica; à
protagonista sobraria a proposta de casamento fantasma se não
decidisse lutar com todas suas forças. As novas informações fazem
com que Er Lang a ajude ganhar tempo para não ser designada às
Cortes do Inferno, uma espécie de tribunal que decide se os seres em
transição merecem voltar ao corpo físico ou habitar o lugar
fantasma dos mortos eternamente.
Para
descobrir se Lim Tian Ching foi realmente assassinado por Tian Bai,
Li Lan entra na casa de seu pretendente mesmo temendo ser descoberta
e correndo o risco de nunca mais regressar a seu corpo físico.
Inicialmente, a protagonista se oferece para trabalhar como serviçal
na mansão, mas ao descobrir que haverá uma festa, logo decide
servir no salão e, mesmo com medo de ser pega de surpresa, enfrenta
esse sentimento como evidenciam seus pensamentos:
Disse
a mim mesma que não importava. Eles não me notariam, escondida no
fundo da sala e vestindo um uniforme discreto. Ainda assim, minhas
mãos tremiam enquanto eu fazia o trabalho. Não pensei que fossem as
mesmas criaturas que eu vira de guarda na minha casa. Aqueles eram
soldados rasos, enquanto esses dois tinham um aspecto de alto
escalão. Rezava para que eles não me vissem, nem de relance (CHOO,
2015, p.210).
Mas,
inesperadamente, no meio do salão, se depara com Mestre Awyoung, um
senhor idoso que encontrara no início de sua jornada no submundo,
mas que mentira sobre suas atividades no local. Consequentemente, Li
Lan foi levada e trancada em um quarto e interrogada. Mas o momento
de tensão acontece quando, após ser capturada novamente, acorda com
alguém alisando seus cabelos e num momento de horror, grita aos se
deparar com Lim Tian Ching. Nesse estágio, a protagonista enfrenta o
ser que desde então mudou completamente a sua vida.
O
embate entre ambos representa que Li Lan está madura para enfrentar
seus medos como evidenciam as seguintes passagens do texto: “Não
encoste em mim ! Você não tem o direito de me tocar!” “Como
pode dizer isso? Você foi prometida para mim.” “Eu não prometi
nada.” (CHOO, 2015, p. 244). É nesse momento que Li Lan tira todas
as suas dúvidas acerca do assassino de Lim Tian Ching e ,como
suspeitava, não fora Tian Bai o autor do crime.
A
etapa de transgressão se direciona para o ápice quando, invocado
pela personagem principal, Er Lang surge novamente e a ajuda a fugir
do cativeiro na mansão Lim. Porém, a fuga da Planície dos Mortos
para o mundo dos vivos não é fácil, uma vez que as bestas voadoras
os perseguem até a passagem pelo túnel:
Com gritos agudos e
lamentosos, lançaram-se sobre nós como criaturas esfomeadas. Não
havia nada além de asas coriáceas, olhos penetrantes e bichos
afiados feito lâminas. Não eram como nenhuma ave que eu já havia
visto, com suas garras como foices. Um bico raspou meu rosto enquanto
eu me encolhia atrás de Er Lang, usando seu corpo instintivamente
como escudo [...].
Os pássaros o
cercaram, com rasantes e ataques ferozes. A princípio, pensei que Er
Lang estivesse em vantagem, porque muitas aves tombaram dos céus.
Mas estavam em muitas. Eu mal podia vê-lo, por entre as formas
negras que o atacavam, cortando-o impiedosamente até que gotas de um
sangue negro escorressem pelo corpo escamado (CHOO, 2015, p.
262-263).
Após
passar por esse estágio, a protagonista se questiona o que faria em
Malaca sem Er Lang, uma vez que achava que ele tivesse padecido na
Planície dos Mortos. Tal assertiva mostra que nasce um sentimento de
Li Lan para com o ser que a ajudou nessa trajetória: “Ainda
naquele momento eu queria voltar, procurar seu corpo, mesmo que fosse
loucura. E se ele estivesse ferido, largado em algum lugar? Essa
ideia me perturbava tanto que eu mal podia respirar” (CHOO, 2015,
p. 265). Contudo, além da preocupação com seu amigo, Li Lan
precisava reencontrar o caminho de casa na Malaca dos vivos. Esse
outro caminho a percorrer evidencia que a personagem principal
precisa aliar a emancipação subjetiva ao corpo físico, ou seja,
uma vez resolvidos os problemas existenciais, a forma física é
necessária para a concretização do ato.
Ao
habitar novamente seu corpo físico, Li Lam reflete sobre todas as
etapas que ultrapassou. A jovem, que outrora estivera apaixonada por
Tian Bai, não vê mais nele a possibilidade para um relacionamento
como mostram seus pensamentos que invadem as páginas do livro: “Nada
me satisfazia como antes, nem mesmo Tian Bai. Ele vinha me visitar
quase todos os dias, agradável e charmoso como sempre. Mas eu já
não era a mesma garota que se impressionara por suas viagens e
experiências no mundo” (CHOO, 2015, p. 310). De acordo com Silva,
“transgredir limites é ação de teor iniciático, constitui um
passo adiante no processo de maturação psicológica do
transgressor” (SILVA, 2008, p. 61) e tal enunciado se percebe no
texto analisado, uma vez que a protagonista perdeu a ingenuidade,
justamente porque viveu as dificuldades que a sociedade lhe impôs e
ao conduzir seu pretendente fantasma a outro redimensionamento,
ultrapassou barreiras, adquiriu vivências.
De
acordo com Langer (2011), a literatura exerce um papel fundamental na
vida, mesmo que o sujeito, muitas vezes, não se dê conta, pois
estabelece o cenário para que exploremos tanto a nós mesmos como
aos outros, para que definamos e redefinamos a nós mesmos e aos
outros, para que saibamos quem podemos vir a ser e como o mundo pode
vir a ser.
Logo,
a obra de Choo é uma produção literária importante, porque
apresenta muitas das características das (os) jovens do mundo atual,
a saber: seres humanos, que, embora tenham medos, frustrações,
angústias, tristezas também possuem sonhos, desejos e força para
se firmar na sociedade, encarando e ultrapassando os problemas da
vida e fazendo por eles mesmos suas próprias escolhas.
Conforme Hans Robert Jauss (1989), a
obra de arte tem função social. No contato com o texto, o sujeito
rompe com seu individualismo e confronta-se com o outro; assim, a
obra amplia os horizontes do leitor, emancipando-o. Com isso, Jauss
(1989) divide a experiência estética em três categorias de
fruição: Poiesis, Aisthesis e Katharsis, cuja concretização
depende da participação e interação do leitor com a obra.
A Poiesis corresponde ao prazer,
sendo compreendida no sentido aristotélico de “faculdade poética”;
ela é produto da experiência do homem; é o prazer sentido pelo
criador da obra ou pelo receptor que, em contato com ela, a recria. A
Aisthesis, por sua vez, designa o prazer estético da percepção
reconhecedora e do reconhecimento perceptivo, explicado por
Aristóteles pela dupla razão do prazer ante o imitado; ela
compreende a recepção prazerosa do objeto estético.
Por
último, a Katharsis constitui o prazer provocado pelo discurso ou
pela poesia, capaz de conduzir o ouvinte e o espectador tanto à
transformação de suas convicções quanto à liberação de sua
psique. É na katharsis que se encontra a função social da arte, a
de emancipação, a qual, segundo Zilberman (1989), ao inovar,
desafia um código existente, oferecendo a seu leitor novas dimensões
existenciais. Por meio disso, libera esse leitor das presilhas
cotidianas e da dominação do sistema vigente.
Com isso, as considerações sobre a
obra e o receptor se tornam relevantes quando o assunto é a formação
de leitores, pois
O
fato revela o vínculo íntimo e umbilical que toda ação de ler
estabelece não somente com o mundo dos objetos, mas principalmente
com a linguagem. Emergindo esta da interação entre o ser humano e a
realidade, sua existência não pode ser compreendida sem o ato de
leitura, posto que é ele que está no bojo de um tal intercâmbio.
Por sua vez, assistindo-se aí o nascimento da linguagem, verifica-se
também que falar e ler a realidade implicam uma manifestação
primordialmente verbal, de modo que, dentre as possibilidades de
expressão, a língua é a que contém de maneira mais completa o
produto destes contatos primordiais com o real (ZILBERMAN, 1989, p.
18).
Entendemos, então, que a obra com
todos os seus componentes, enquanto literária, não existe até ser
ativada pelo leitor. A obra é mais do que o texto; por isso, é só
na concretização que ela se realiza. E a concretização é o
processo que determina a atividade do leitor de preenchimento das
lacunas ou vazios de um texto, caracterizando o processo de
comunicação próprio à literatura.
Os
acontecimentos que assolaram a protagonista fazendo-a enfrentar
crises existenciais podem ser constantes na vida das pessoas reais.
Um destes pontos foi o convívio com Er Lang, um ser meio humano,
meio monstro, durante sua jornada no mundo dos mortos. Em meio a este
processo, Li Lan dá-se conta que, após atingir o amadurecimento,
que este é o companheiro ideal, pois esteve a seu lado durante toda
a emancipação subjetiva:
Eu quero ver Er Lang.
Não quero esperar cinquenta anos, nem enganar Tian Bai com um amor
que ele nunca terá. Em meio à escuridão de milhares de almas, é a
mão de Er Lang que eu busco, seu pulso firme que me tirou de tantos
perigos. Um futuro incerto com ele, com todas as risadas e
discussões, é melhor do que ser deixada para trás. Tendo resistido
tanto a me tornar a noiva fantasma de Lim Tian Ching, não é nem um
pouco engraçado que eu queira abandonar minha família por um homem
que nem mesmo é humano. Quando Er Lang vier buscar sua resposta,
direi que sempre pensei nele como monstro. E que desejo ser sua noiva
(CHOO, 2015, p.337).
O
perfil de Er Lang meio humano, meio monstro evidencia o que os seres
humanos são em sua essência: pessoas duplas, nem boas nem más, que
vivenciam conflitos tanto físicos quanto existenciais. Com isso, a
leitura da obra “A noiva fantasma” pode auxiliar o leitor a
enfrentar a vida, constituir-se como pessoa, possibilitar atitudes de
libertação, como também favorecer a mobilização do ato de ler
como forma de identificação, tendo em vista que a relação
leitor-texto é de interação. De acordo com Jorge Larossa (2003),
pensar a leitura como formação, implica pensá-la como uma
atividade que tem a ver com a subjetividade do leitor, não com
aquilo que ele sabe, mas com o que ele é. Assim, “trata-se de
pensar a leitura como algo que nos forma (ou nos de-forma ou nos
trans-forma), como algo que nos constitui ou nos coloca a questão do
que somos
(LAROSSA, 2003, p. 25-26).
Então, pode-se destacar a
importância do texto literário no que se refere à formação de
leitores, tendo em vista que a literatura funciona como um portal
pelo qual podemos visualizar e compreender melhor o mundo real. De
acordo com Petit (2008), a leitura contribui assim para criar um
pouco de "jogo" no tabuleiro social, para que os jovens se
tornem um pouco mais atores de suas vidas, um pouco mais donos de
seus destinos e não somente objetos do discurso dos outros. Ajuda-os
a sair dos lugares prescritos, a se diferenciar dos rótulos
estigmatizantes que os excluem, e também das expectativas dos pais
ou dos amigos, ou mesmo do que cada um deles acreditava, até então,
que era o mais adequado para o definir.
Li
Lan enfrentou os medos em todas as suas formas, desde a exclusão
social quando circunscrita à casa do pai, à possibilidade de se
tornar uma noiva fantasma, não viver o amor e perder, mesmo que, por
um certo tempo, o seu corpo físico. Ao final, após uma longa,
aventureira, perigosa e proveitosa jornada subjetiva, a protagonista
se renova e rompe com uma tradição que se alastra pela Malásia ao
longo dos anos, embora deixe claro que as diferenças humanas,
sociais e sobrenaturais não são empecilho para a emancipação,
para o amor e para a felicidade.
3.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No
presente artigo, objetivamos analisar a trajetória psicológica da
protagonista da obra que, para não se submeter a um casamento de
interesses, ultrapassa as barreiras da vida e da morte, com a
finalidade de fazer por ela mesma suas escolhas, principalmente, com
quem se relacionar e como isso faz com que o leitor da obra se
identifique com as situações apresentadas.
Além
disso, percebemos que “A noiva fantasma”, de Yangsze Choo se
consolida como uma obra inovadora no cenário literário, justamente
porque aborda um tema tradicional nas sociedades chinesa e malaia –
o do casamento fantasma – mas, ao mesmo tempo, rompe com essa
tradição, ao engendrar uma personagem que, ao ser condicionada a
casar com uma pessoa já falecida, ultrapassa todas as barreiras
psicológicas e constitui-se como sujeito que faz suas próprias
escolhas. A obra de Choo é uma narrativa moderna na qual envolve uma
personagem comum numa situação incomum. Com isso, analisar tal obra
na atualidade se faz relevante, tanto para a fortuna crítica da
escritora como para problematizar questões presentes no enredo.
A
leitura da obra proposta neste artigo não é a única, tampouco
seria nossa intenção esgotar as várias possibilidades de reflexão
e discussão. Choo (2015) criou uma narrativa permeada de sentidos
capaz de ser alvo de diversas interpretações, com base em
diferentes abordagens teóricas.
Vale
mencionar o quão importante determinados fatores citados como a
condição e submissão da mulher na sociedade oriental no século
XIX são para a compreensão integral da obra, visto que numa
sociedade patriarcal, o destino de jovens mulheres é definido pelos
caprichos, interesses econômicos e desejos de status e elevação
social, no lugar do respeito por sua liberdade, individualidade
e personalidade.
Mesmo
que temporariamente, Li Lan se torna vítima de um sistema que já
dura gerações, o que origina a perspectiva de uma vida
infeliz, uma vez que a protagonista não se conforma e luta contra
esta condição – o que a faz amadurecer psicologicamente.
Portanto,
por meio desta análise, percebemos que a produção literária de
Yangsze Choo coloca em destaque a personalidade dos jovens
contemporâneos: pessoas comuns que são atingidas, a todo momento,
por sentimentos diversos e que precisam enfrentar com coragem
determinadas situações para, então, atingirem o amadurecimento
pleno. A jornada subjetiva a qual Li Lan foi submetida pode colaborar
para que muitos leitores busquem por sua liberdade, independência e
felicidade,
constituindo-se
como protagonistas de suas ideias, opiniões e decisões.
REFERÊNCIAS
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noiva fantasma. Trad.
Leandro Durazzo. Rio de Janeiro: Dark Side Books, 2015.
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ENTREVISTA COM YANGSZE-CHOO.
Disponível em:
http://nerdgeekfeelings.com/2015/07/12/livro-a-noiva-fantasma-entrevista-com-yangsze-choo/
Acesso em: 10. Jan. 2016.
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