Propriedade intelectual e inovações tecnológicas na indústria de sementes: discussões sobre os conflitos judiciais entre a Monsanto e os agricultores brasileiros.

Vinícius Eduardo Ferrari1; Marina Natsumi Pacheco2.
1 - Docente e pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Puc-Campinas), Centro de Economia e Administração, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Sustentabilidade. E-mail: vinicius.ferrari@puc-campinas.edu.br
2 - Aluna de Iniciação Científica da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Bolsista FAPIC/Reitoria. E-mail: natsumipacheco@gmail.com


Resumo

A agricultura brasileira foi palco de inúmeras inovações nas últimas décadas. Dentre esses avanços, os organismos geneticamente modificados (OGMs) tem contribuído fortemente para os ganhos de produtividade no campo. No entanto, a relevância do Brasil no cultivo de OGMs contrasta com a sua dependência tecnológica. As principais biotecnologias de plantas foram patenteadas por empresas estrangeiras, o que implica na exigência de royalties pelo seu uso. Contudo, os agricultores brasileiros têm questionando na Justiça a validade das patentes da Monsanto, a principal fornecedora de OGMs. O principal objetivo deste artigo consiste em analisar as estratégias adotadas pela empresa para assegurar o seu direito à cobrança de royalties no Brasil. O estudo constatou que os OGMs são produtos complexos que mobilizam várias tecnologias protegidas por mais de uma patente. Consequentemente, por mais que os sojicultores consigam derrubar as patentes de genes questionadas na Justiça, ainda assim terão de pagar royalties sobre as demais ferramentas biotecnológicas que contribuíram para o desenvolvimento das sementes transgênicas. Assim, a Monsanto criou cercas de patentes praticamente invioláveis para proteger os seus principais produtos comercializados no Brasil.

Palavras-chave: Organismos Geneticamente Modificados; Patentes; Royalties.


Abstract

Several innovations have been adopted in the Brazilian agriculture during the last decades. Among these technological advances, the genetically modified organisms (GMOs) have strongly contributed to boost the productivity of the agricultural practices. The Brazilian relevant position in GMOs crop cultivation contrasts to country technological dependency. Some few foreign companies have patented the most important plant biotechnologies, claiming royalties for their usage. However, the Brazilian farmers have complained in courts about the validity of the patents belonging to the biggest GMOs supplier, Monsanto. This paper aims to examine the Monsanto’s strategies to guarantee its rights to collect royalties in Brazil. We find out that the GMOs are complex products which require several technologies protected by a pool of patents. As a result, even if the agricultures would able to nullify the genetic patents that give raise to the lawsuits, they would still need to pay the royalties concerning the biotechnological tools used to develop transgenic seeds. Therefore, Monsanto have created strong patent fences to protect its products that are very hard to be dismantled.

Keywords: Genetically Modified Organisms; Patents; Royalties.


I - Introdução

A agricultura tem sido palco de inúmeras inovações tecnológicas que contribuíram para ampliar os ganhos de produtividade no campo. Dentre esses avanços tecnológicos, os organismos geneticamente modificados (OGMs), popularmente denominados de sementes transgênicas, ocupam um papel de destaque na agricultura moderna. Uma semente transgênica é uma planta que teve seu genótipo alterado em laboratório via técnicas de engenharia genética. Tal manipulação consiste na inserção de genes de outras espécies a fim de codificar novas funcionalidades úteis para a prática agrícola, como, por exemplo, a tolerância a herbicidas e/ou a resistência contra pragas (QAIM, 2009).

James (2016) ressalta a difusão dos OGMs; de acordo com o autor, a área mundial dedicada ao cultivo das sementes transgênicas passou de 1,7 milhões de hectares em 1996 para 185,1 milhões de hectares em 2016. Assim, em 20 anos, 2 bilhões de hectares de culturas transgênicas foram cultivados comercialmente, contribuindo com alimentos para bilhões de pessoas. Não por acaso, Carlson (2009) constata que os OGMs geraram ganhos econômicos em torno de 65 bilhões de dólares aos agricultores nos EUA e outros 65 bilhões de dólares no restante do mundo, somente em 2008.

A relevância deste tema se deve ao fato do Brasil se posicionar como líder mundial da exportação de diversos produtos agrícolas, especialmente de grãos. O país ocupa atualmente o segundo lugar no ranking mundial do cultivo de OGMs com 49,1 milhões de hectares cultivados, situando-se apenas atrás dos EUA (72,92 milhões de hectares). No entanto, a relevância do Brasil na produção agrícola contrasta com a sua dependência tecnológica. As biotecnologias agrícolas incorporadas às sementes transgênicas são de posse legal de empresas estrangeiras. Isto significa que os OGMs são protegidos por direitos de propriedade intelectual (DPIs), e que o país necessita realizar o pagamento de royalties pelo uso de tais sementes (DAL POZ, 2006).

Contudo, questionamentos associados à legislação que rege as condições de patenteamento de biotecnologias agrícolas têm gerado um embate entre os agricultores brasileiros e a empresa Monsanto, a principal detentora dessas patentes. Os sojicultores têm questionando na Justiça a validade das patentes da empresa, exigindo a suspensão do pagamento dos royalties sobre seu uso. Essas disputas refletem, entre outras coisas, divergências legislatórias. Enquanto os EUA – país originário da Monsanto – permitem o patenteamento de genes isolados por atividade intelectual humana e de plantas, a legislação brasileira não considera esses itens elegíveis para receber proteção patentária.

Sob esse contexto de divergências legislatórias e conflitos judiciais, definiu-se o seguinte problema de pesquisa: como as empresas estrangeiras atuantes na indústria de sementes asseguram o seu direito à cobrança de royalties no Brasil? Para responder essa questão, o presente estudo utilizou a plataforma Espacenet3 para identificar quais são as patentes da Monsanto que motivaram a disputa com os agricultores nacionais. Após a identificação das patentes que protegem os produtos Soja Roundup Ready1 (RR1) e Soja Intacta nos EUA, analisou-se quais delas foram revalidadas no Brasil, bem como o respectivo conteúdo tecnológico sob proteção. Por sua vez, os resultados apontam que a Monsanto utilizou a estratégia de criar cercas de patentes praticamente invioláveis para proteger os seus principais produtos comercializados no Brasil.

Este artigo foi estruturado da seguinte forma: na Seção 2, discute-se o processo recente de harmonização das legislações patentárias nacionais decorrente da criação da Organização Mundial de Comércio. Por sua vez, a Seção 3 discute o conflito judicial entre a Monsanto e os agricultores brasileiros; na Seção 4 é exposta a metodologia utilizada para a identificação das patentes da empresa que foram envolvidas neste conflito. Por fim, a Seção 5 descreve o conteúdo tecnológico destes documentos de propriedade intelectual ao passo que a Seção 6 conclui o artigo.


2 - O processo de harmonização das legislações patentárias nacionais.

Em um mundo no qual as inovações tecnológicas são um dos principais mecanismos geradores de vantagens competitivas, a propriedade intelectual tem ocupado lugar de destaque nas atividades de pesquisa. Assim, o direito de propriedade intelectual é um poder legalmente aplicável capaz de excluir outros indivíduos do uso de certas expressões do intelecto humano que são capazes de agregar valor às atividades econômicas, tais como, descobertas, ideias, conhecimentos, expressões artísticas (LANDES e POSNER, 2009). No caso das pesquisas científicas, os DPIs visam assegurar ganhos exclusivos ao pesquisador pelo benefício social que sua descoberta foi capaz de produzir (DAL POZ, 2006).

São reconhecidas diversas modalidades de proteção à propriedade intelectual4 , no entanto, os setores intensivos em tecnologia priorizam o patenteamento de suas invenções. Uma patente é uma forma de proteção legal, no qual o Estado concede direitos ao agente responsável pela inovação a fim de lhe assegurar propriedade e exclusividade de exploração do invento durante um tempo limitado (GRILICHES, 1998). Uma vez que a patente é um documento legal cuja validade se restringe apenas ao território do Estado outorgante do documento, surgem, naturalmente, grandes divergências entre os países sobre o escopo da proteção patentária.

Tais divergências passaram a ser duramente criticadas na década de 1970 pelas empresas norte-americanas, que se queixavam da existência de normas nacionais prejudiciais as tecnologias desenvolvidas pelos Estados Unidos (EUA) porque favoreciam as práticas de engenharia reversa. A controvérsia foi discutida na 8ª rodada do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT) de 1994, chamada de “Rodada Uruguai”. Nessa reunião, buscou-se harmonizar as regras de básicas de proteção aos DPIs e, como resultado, foi assinado o Acordo Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS) com o prazo de cinco anos para que as nações adequassem sua legislação às regras do Acordo. Posteriormente, com a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995, o TRIPS foi referendado por todas a nações signatárias dessa Organização (FERRARI, 2015).

O artigo número 7 do TRIPS, determina um patamar mínimo de proteção aos DPIs a ser cumprido por cada Estado membro da OMC. Uma vez respeitado esse limiar, o Acordo deixa à cargo de cada Estado a decisão sobre o limite máximo de proteção a ser concedida. Com isso, o acordo permite certa flexibilidade e exceções, sobretudo no que diz respeito ao patenteamento de tecnologias relacionadas a plantas e demais seres vivos (CHAVES et al., 2007; BARBOSA, 2003). O estabelecimento dos TRIPS acarretou grandes mudanças nas legislações patentárias dos países em desenvolvimento. Por este ser um Acordo referendado pela OMC, o seu descumprimento pode gerar penalizações comerciais ou, até mesmo, excluir o país infringente de negociações multilaterais importantes. Dessa maneira, a ameaça de perdas comerciais funcionou como um mecanismo de pressão para que os países em desenvolvimento aprovassem inúmeras modificações em suas legislações de propriedade intelectual (VIEIRA e BUAINAIN, 2004).

Nesse sentido, a maioria dos países em desenvolvimento optou por adotar a proteção patentária mínima prevista pelo TRIPS. Assim, essas nações passaram a empregar a salvaguarda prevista pelo Artigo 27.3 (b), a qual considera como não patenteáveis, os genes, as plantas e demais seres vivos. A título de ilustração, a legislação brasileira adota essas exceções. Enquanto isso, a legislação dos EUA atinge o teto máximo de proteção. O país admite, inclusive, o patenteamento de genes sob o argumento de que as sequências genéticas não são encontradas isoladas na natureza e de que tanto essa descoberta quanto a manipulação gênica derivam de esforços do intelecto humano (LANDES e POSNER, 2009).

Em complemento às controvérsias sobre o artigo 27.3 (b), o artigo 8.2 também tem gerado polêmicas. Este último discorre sobre as medidas que devem ser adotadas para prevenir abusos econômicos por parte dos titulares de DPIs. No entanto, segundo Dal Poz (2006), não estão sistematizadas regras mínimas para realizar tal disposição legal. Beneficia-se, dessa maneira, os países centrais onde as tecnologias são desenvolvidas e, não, aqueles são os usuários destas inovações. Não por acaso, diversos conflitos entre países eclodiram no âmbito da proteção à propriedade intelectual após a assinatura do TRIPS.


3 - As disputas entre a Monsanto e os agricultores brasileiros

A Monsanto é uma empresa multinacional norte-americana líder mundial da comercialização de sementes transgênicas. A empresa está presente no Brasil a mais de 50 anos e, atualmente, a filial brasileira é a segunda unidade mais importante do grupo. Entre as principais inovações obtidas pela empresa estão os produtos Soja RR1, resistente ao herbicida glifosato, e a Soja Intacta, que combina duas soluções em um único produto: tolerância ao glifosato e proteção contra lagartas do gênero Helicoverpa. Ambos os produtos são protegidos por patentes que renderam bilhões de dólares à empresa. Contudo, a forma de cobrança dos royalties acabou por colocar os sojicultores brasileiros em conflito com a Monsanto, como será exposto a seguir.


3.1 Soja Roundup Ready 1 (RR1)

Na safra 1995-1996, a Monsanto introduziu o produto Soja RR1 nos Estados Unidos e na Argentina. Três anos depois, em 1998, os primeiros OGMs entraram no Brasil por meio de contrabando procedente do país portenho5 . Em virtude da expansão do uso dessas sementes contrabandeadas, em 2005, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva legalizou a produção da soja transgênica no Brasil. Por sua vez, em 2012, 85% dos quase 25 milhões de hectares dedicados a soja no Brasil foram cultivados com OGMs. Apenas neste ano, a soja transgênica rendeu 24 bilhões de dólares e representou 26% das exportações agropecuárias brasileiras (PRESSE, 2012).

Após a regulação do cultivo dos OGMs no Brasil, a Monsanto começou a cobrar royalties sobre o produto Soja RR1, os quais, segundo os agricultores, correspondiam a aproximadamente 13% da receita líquida. Os sojicultores também alegavam que o contrato prevê dois tipos de cobranças: a primeira delas na compra da semente e a segunda, e mais problemática, feita na venda do produto final. Para executar essa última cobrança, os grãos passam por um teste que indica se a soja é ou não transgênica. Em algumas situações, as plantações contendo a soja convencional são polinizadas indiretamente por variedades geneticamente modificadas oriundas de plantações vizinhas. Por essas razões, alguns agricultores foram cobrados sem terem adquirido as sementes da Monsanto (MACIEL e RAUBER, 2010).

Em 2009, um grupo de sindicatos rurais ajuizou uma ação coletiva, realizando duas denúncias principais: a primeira sobre a cobrança de royalties sobre os grãos de soja em complemento aos royalties exigidos sobre as sementes. A segunda queixa sobre o período de validade da patente da tecnologia RR1, que segundo os agricultores teria expirado a dois anos. Assim, em abril de 2012, a 15º Vara Cível de Porto Alegre suspendeu, em caráter liminar, a cobrança de royalties sobre a safra de Soja RR1. A Monsanto recorreu, apresentando recursos contra a decisão de primeira instância na 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O tribunal, então, julgou o recurso procedente e a empresa conseguiu revogar a liminar que suspendia a cobrança de royalties (OLIVEIRA e LASMAR, 2015).

No entanto, a justiça gaúcha não percebeu que a patente já havia caído em domínio público dois anos antes. Por esse motivo, os sojicultores recorreram da decisão no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Em meio a estes conflitos judiciais, no início de 2013, a empresa propôs acordos individuais com os agricultores oferecendo condições favoráveis para a aquisição de novos produtos. Diante desta proposta, algumas associações de agricultores decidiram se retirar da ação coletiva movida contra a Monsanto para firmar um acordo no qual a empresa se comprometia a fornecer descontos sobre os royalties do produto Soja Intacta para as próximas quatro safras.

No entanto, muitos agricultores não aceitaram a proposta de acordo e deram continuidade ao processo. A Monsanto alegou que o prazo de vigência da patente da tecnologia RR1 deveria contar a partir da data de depósito do documento no Brasil e, não, a partir do depósito nos EUA. Nesta interpretação, a patente teria validade até 2014. O argumento foi rechaçado pelo STJ, que decidiu favoravelmente aos agricultores e reconheceu ilegalidade da cobrança de royalties (OLIVEIRA e LASMAR, 2015). Neste momento, o STJ também reconheceu o domínio público da tecnologia RR1.


3.2 Soja Intacta

A soja Intacta, lançada em 2013, também se tornou alvo de disputas entre a Monsanto e os agricultores brasileiros. Em novembro de 2017, a Aprosoja-MT impetrou uma ação na Justiça Federal pedindo a nulidade da patente referente a Soja Intacta alegando que o documento não estaria cumprindo com os requisitos de novidade previstos na Lei de Propriedade Intelectual brasileira (SANTANA, 2017). Como resultado desta ação, em julho de 2018, a 2ª Vara Federal de Cuiabá estabeleceu que os royalties pagos pelos agricultores brasileiros incidentes sobre a Soja Intacta fossem depositados em juízo pela Monsanto até o final deste processo judicial.

A liminar era válida apenas para os associados da Aprosoja-MT, mas em 2019 outros 10 Estados brasileiros pediram a extensão desta liminar. Somente no Mato Grosso, os depósitos equivalem a 800 milhões de reais e, se caso a liminar passar a valer para os demais Estados, o valor atingirá 2,6 bilhões de reais. Em contrapartida, a Monsanto têm defendido a validade de suas patentes, as quais, segundo a empresa, foram validadas em diversos países após análises criteriosas (SALOMÃO, 2017). Diante destes conflitos, o restante deste artigo analisará as patentes pertencentes à Monsanto que têm assegurado a proteção aos produtos Soja RR1 e Soja Intacta.


4 - Coleta de dados patentários

Para mapear as patentes da Monsanto que foram revalidadas no Brasil, o estudo se baseou inicialmente nas patentes originais que protegem às tecnologias RR1 e Intacta nos EUA, as quais foram identificadas anteriormente por Jefferson et al. (2015). Após o levantamento das patentes concedidas pelo Estado originário da invenção, buscou-se identificar quais desses documentos foram estendidos para o Brasil.

Quando um inventor faz um pedido de patente pela primeira vez, gera-se automaticamente um número prioritário, que concede ao depositante o direito exclusivo, por um ano, de requerer a proteção da tecnologia em outros países por meio de patentes de extensão. Dessa forma, uma única invenção pode ser protegida pela sua patente original e pelas suas patentes de extensão, formando o que é chamado de “família de patentes”, isto é, o conjunto de documentos de propriedade intelectual que compartilha o mesmo número prioritário (FERRARI, 2015).

Para identificar as patentes de extensão referentes às tecnologias RR1 e Intacta que foram revalidadas pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), o presente estudo acessou a plataforma Espacenet para realizar buscas patentárias baseadas no número prioritário das patentes norte-americanas descritas por Jefferson et. al. (2015). Para cada número prioritário, o Espacenet retornou todas as patentes de extensão, inclusive os documentos de propriedade intelectual brasileiros. A plataforma Espacenet também forneceu informações sobre as características tecnológicas de cada patente, o período de validade, título, etc.


5 - Descrição das patentes da Monsanto que foram revalidadas no Brasil

Nas indústrias consideradas complexas, o desenvolvimento de novos produtos exige a integração de várias tecnologias complementares (FRENKEN, 2006). Segundo Graff, Rausser e Small (2003), o desenvolvimento de uma nova semente transgênica engloba três tipos de tecnologia: 1) sequências genéticas; 2) tecnologias habilitadoras; 3) germoplasma. As sequências genéticas consistem nos fragmentos de DNA capazes de codificar novas funcionalidades agronômicas nos organismos vegetais. Enquanto isso, as tecnologias habilitadoras englobam as técnicas de engenharia genética que são utilizadas para inserir tais sequências em células vegetais, assim como, as ferramentas biotecnológicas necessárias a regular a expressão desses genes. Por fim, o germoplasma diz respeito às plantas hospedeiras que foram selecionadas para receber o material genético estrangeiro.

Devido à forte interdependência desses ativos tecnológicos, a apropriação dos ganhos econômicos provenientes da comercialização de OGMs está atrelada a estratégias empresariais que não se baseiam no patenteamento de uma única tecnologia, mas sim na construção de um pool de patentes (FERRARI, 2015). A proteção dos produtos Soja RR1, Soja RR2 e Soja Intacta™ se baseia em patentes que reivindicam tanto sequências de DNA quanto as tecnologias habilitadoras de inserção e expressão gênica6 . Ademais, vale a pena também mencionar a inexistência de patentes de germoplasma, uma vez que a legislação brasileira não permite o patenteamento de plantas. Em suma, o Quadro 1 apresenta as patentes de extensão obtidas pela Monsanto no Brasil; destacando, na coluna 4, o tipo de tecnologia por elas reivindicadas.

Quadro 1 - patentes de extensão obtidas pela Monsanto no Brasil.

Patentes Originais: EUA Patentes Derivadas: BR Título da Patente Brasileira Classificação Produto
US4940835; US5188642 BR1100007 Glyphosate-resistant plants Sequência Nucleica Soja RR1
US5015580 BR8706531 Plant-cell transformation by accelerated particles coated with DNA and apparatus therefor Inserção Gênica Soja RR1
US5310667 BR9007550 Glyphosate-tolerant 5-enolpyruvyl-3-phosphoshikimate synthases Sequência Nucleica Soja RR1
US5034322; US5352605; US5530196 BR1101069 Chimeric genes suitable for expression in plant cells Expressão Gênica Soja RR1
US5196525; US5322938; US5424200 BR1101045 Sequência de dna para intensificar a eficácia da transcrição Expressão Gênica Soja RR1
US6384301 BR0007815 Soybean agrobacterium transformation method Inserção Gênica Soja RR2
US6660911 BR0016460 NOVEL PLANT EXPRESSION CONSTRUCTS Expressão Gênica Soja RR2
US7632985 BRPI0610654 A METHOD FOR DISEASE CONTROL IN MON89788 SOYBEAN Sequência Nucleica Soja Intacta™
US8049071 BRPI0820373 Soybean plant and seed corresponding to transgenic event MON87701 and methods for detection thereof Sequência Nucleica Soja Intacta™

Fonte: Epacenet.

Os documentos US4940835, US5188642, US5310667 e US7632985 protegem as sequências genéticas que conferem a tolerância ao herbicida glifosato às variedades de soja. Por exemplo, a patente US4940835 obtida no início dos anos 90 protege o processo de obtenção de genes quiméricos7 por meio da junção de fragmentos de gene de origem bacteriológica com promotores8 de DNA. Nas décadas seguintes, os cientistas da Monsanto aprimoraram esses genes quiméricos, o que possibilitou a obtenção de novas sequências nucleicas capazes de ampliar a resistência contra o glifosato. Ferrari (2015, p.114) descreve o papel dessas sequências de DNA:

[…] a aplicação do herbicida glifosato inibia a síntese da proteína 5-enolpyruvylshikimate-3-phosphate (EPSPS) necessária para o crescimento vegetal, o que acabava matando as plantas […] A inserção do gene mutante em células vegetais tenderia a ampliar a síntese da EPSPS em plantas […de modo que] os efeitos prejudiciais da aplicação do glifosato sobre o crescimento vegetal tenderiam a ser reduzidos.

Em síntese, as patentes US5188642, US5310667 reivindicam direitos de propriedade sobre as sequências genéticas que deram origem ao produto Soja RR1 ao passo que a patente US7632985 protege os fragmentos de DNA incorporados aos produtos Soja RR2 e Soja Intacta. Este último produto também é protegido pela patente US8049071, a qual reivindica uma sequência de DNA capaz de codificar a resistência contra insetos em plantas. Em paralelo a essas cinco patentes, a proteção dos OGMs comercializados pela Monsanto no Brasil também se apoiou em outros dois tipos de tecnologias habilitadoras.

A patente número US6384301assegura a proteção sobre os métodos de inserção gênica por meio de agrobacterium. Conforme ressaltam Vieira e Buainain (2014, p.402) tais bactérias de solo “se associam com algumas espécies de plantas, transferindo a elas alguns de seus genes de forma espontânea. Os cientistas utilizam este artifício e substituem alguns genes da bactéria pelos genes de interesse, que serão integrados naturalmente no genoma das plantas”. Por sua vez, os documentos número US5034322, US5352605, US5530196, US5196525, US5322938, US5424200 e US6660911 reivindicam ferramentas biotecnológicas capazes de regular a expressão desses genes dentro da planta hospedeira.

A título de ilustração, a patente US5352605 reivindica o direito de utilização do trecho do DNA do vírus mosaico da couve-flor correspondente ao promotor 35S na construção de genes quiméricos. O promotor 35S tem a função de instruir a planta a iniciar o processo de expressão gênica logo após a transferência do material genético externo. Por esta razão, o produto Soja RR1 foi desenvolvido por meio da inserção em células vegetais de genes quiméricos que contém cópias do promotor 35S. A revalidação da patente US5352605 gerou a patente de extensão n° BR1101069, que contribuiu, até 2013, para assegurar à Monsanto o direito à cobrança de royalties sobre as sementes transgênicas de soja comercializadas no território brasileiro (FERRARI, 2015).

Em complemento ao promotor 35S, as patentes US5196525, US5322938 e US5424200 protegem, por sua vez, as ferramentas biotecnológicas que regulam os processos de transcrição9 do DNA e tradução do RNA, assegurando a síntese da proteína que gerará a nova função agronômica de interesse na planta hospedeira.

Em síntese, os OGMs são produtos complexos que mobilizam várias tecnologias e, por conseguinte, são alvos de mais de uma patente. Por mais que os sojicultores consigam derrubar as patentes referentes às sequências nucleicas questionadas na Justiça, ainda assim terão de pagar os royalties sobre as tecnologias habilitadoras que contribuíram para o desenvolvimento das sementes transgênicas. Assim, a Monsanto utilizou a estratégia de criar cercas de patentes praticamente invioláveis para proteger a comercialização dos produtos Soja RR1 e Soja Intacta™ no Brasil e no mundo.


6 - Considerações finais

O Acordo TRIPS foi um avanço importante quanto a uniformização das legislações patentárias nacionais. De certa forma, ele contribuiu para a coordenação dos processos inovativos entre os países, provendo um ambiente menos incerto para a criação, difusão e apropriação de tecnologias. A despeito disso, no que tange a indústria de sementes, a harmonização engendrou um quadro de assimetria entre as nações quanto a apropriação de biotecnologias vegetais em favor das grandes multinacionais agroquímicas, em especial a Monsanto (DAL POZ et.al., 2004).

Como ressaltado na Seção 2, o TRIPS estabelece um patamar mínimo de proteção aos DPIs que deve ser cumprido por todos os signatários OMC. No entanto, o teto máximo de proteção é deixado à critério de decisão dos próprios países, prevendo certa flexibilidade e exceções ao patenteamento de tecnologias ligadas a plantas e outros seres vivos (CHAVES et al., 2007; BARBOSA, 2003). O Brasil, por exemplo, proíbe as patentes de germoplasma. Este aspecto do Acordo parece restringir a liberdade de ação das multinacionais sementeiras atuantes no território nacional.

No entanto, essa primeira impressão foi desfeita ao longo desse artigo. Ao assegurar direitos de propriedade sobre as principais técnicas de engenharia genética utilizadas no desenvolvimento de sementes transgênicas, o TRIPS abriu espaço para que a Monsanto estender as patentes de tecnologias habilitadoras para os demais países membros da OMC. Sendo assim, o acordo criou condições institucionais para obrigar estes Estados a reconhecerem as patentes sobre os métodos de inserção e expressão gênica. Assim, com o respaldo dos TRIPS, a Monsanto conseguiu assegurar o seu direito a cobrança de royalties sobre sementes transgênicas.


Referências

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Zaid, A.; Hughes H. G.; Porceddu E; Nicholas F. W. Glossary of Biotechnology and Genetic Engineering. Rome: FAO Research and Technology Paper, 1999.


  1. Disponível no sítio worldwide.espacenet.com
  2. As modalidades de proteção aos DPIs incluem: patentes, marcas, denominações de origem, desenhos industriais, e direitos autorais (VIEIRA e BUAINAIN, 2004).
  3. Por esse motivo as primeiras sementes transgênicas cultivadas no Brasil foram jocosamente denominadas de “Soja Maradona”.
  4. Expressão gênica: “[…] o processo pelo qual um gene produz RNA e proteína e, portanto, exerce seus efeitos sobre o fenótipo de um organismo” (Zaid et al. 1999, p.103).
  5. Gene quimérico: “um gene semissintético, consistindo na sequência codificadora de um organismo, fundido ao promotor e outras sequências derivadas de um gene diferente. A maioria dos genes usados na transformação [de plantas] é quimérico” (Zaid et al. 1999, p.46).
  6. Promotor: “uma sequência reguladora de DNA que inicia a expressão de um gene” (Zaid et al. 1999, p.189).
  7. Transcrição: “Especificar, após a decodificação por transcrição e tradução, a sequência de aminoácidos em uma proteína” (Zaid et al. 1999, p.81).