PLANOS E ESTRATÉGIAS PARA O DESENVOLVIMENTO URBANO: UM RECORTE PARA A AMAZÔNIA LEGAL

Tiago Soares Barcelos1; Gleice Kelly Gonçalves da Costa2; Silvana de Souza Silva3.
1 - Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Doutorando em Geografia Humana - USP (DINTER). ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6416-1642
2 - Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. Doutorando em Geografia Humana - USP (DINTER).
3 - Instituto Federal do Pará - IFPA. Doutorando em Geografia Humana - USP (DINTER).


Resumo

O presente trabalho buscou realizar uma análise histórica-teórica contemplando as origens dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PDNs) aos Planos Nacionais de Desenvolvimento Urbano (PNDUs), demonstrando como estas estratégias consolidaram o Estatuto das Cidades e Planos Diretores Urbanos. O recorte geográfico utilizado é a Amazônia Legal, dado a sua alta complexidade. Apresenta os municípios que estão dentro dos conformes dos planos diretores urbanos, como aprofundando na dinâmica regional amazônica e suas transformações estruturais.

Palavras-chave: Geografia Econômica; Economia Regional; Estatuto das Cidades; Geografia Urbana; Amazônia Legal.


Abstract

The present work sought to carry out a historical-theoretical analysis contemplating the origins of the National Development Plans (PDNs) to the National Plans of Urban Development (PNDUs), demonstrating how these strategies consolidated the Statute of Cities and Urban Master Plans. The geographic cut used is the Legal Amazon, given its high complexity. It presents the municipalities that are within the conforming of the urban master plans, as deepening in the Amazon regional dynamics and its structural transformations.

Keywords: Economic Geography; Regional Economy; Status of Cities; Urban Geography; Cool Amazon.


Résumé

Le présent travail visait à effectuer une analyse historico-théorique en considérant les origines des plans de développement nationaux (PDN) aux plans nationaux de développement urbain (PNDU), en montrant comment ces stratégies consolidaient le statut des villes et les plans directeurs urbains. Le découpage géographique utilisé est le Legal Amazon, compte tenu de sa grande complexité. Il présente les municipalités qui se conforment aux plans d’urbanisme, en approfondissant la dynamique régionale amazonienne et ses transformations structurelles.

Mots-clés: Géographie Économique; Économie Régionale; statut des villes; géographie urbaine; cool Aamazon.


1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como escopo realizar uma análise das políticas nacionais de desenvolvimento urbano (PNDU), aplicada a Amazônia legal, bem como o funcionamento, ou não, dos Planos Diretores dos municípios contidos nesta região. Para tal, buscou-se compreender a origem do diálogo do PNDU em plano nacional, para que se possa analisar as políticas estruturais no Amazonas.

Este artigo foi dividido em quatro blocos, onde o primeiro consiste nesta introdução. O segundo consiste em realizar um panorama das perspectivas e evoluções no sentido econômico e evolutivo dos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PDNs) aos Planos Nacionais de Desenvolvimento Urbano (PNDUs), com o recorte histórico compreendido de 1972 a 1989. É válido ressaltar que apesar do III PND e o PND-NR terem ficado apenas no campo de “planos”, estes estão incorporados na análise devido sua importância na maior abertura para o diálogo do Urbano.

O terceiro bloco tem como objetivo captar os avanços ocorridos a posteriori do PND-NR, com o surgimento do Estatuto das Cidades e o Plano Diretor Urbano. Com um capitulo destinado as questões Urbanas na constituição de 1988, que aponta diretrizes para o ordenamento urbano, visou analisar sua aplicabilidade dentro da Amazônia Legal.

Por fim, no quarto bloco será discutido as políticas estruturais na Amazônia Legal, buscando compreender os Planos de Desenvolvimento do Amazonas, analisando as estratégias do Estado em diversos períodos históricos e os impactos nas “diversas Amazônias” deste espaço de fundamental importância ecossistêmica.


2 - DOS PLANOS NACIONAIS DE DESENVOLVIMENTO (PNDs) AOS PLANOS NACIONAIS DE DESENVOLVIMENTO URBANO (PNUDs): PERSPECTIVAS E EVOLUÇÕES

O Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND4 1972-74) foi concebida na ditadura militar, capitaneada pelo general Emílio Garrastastazu Médici. Esse plano é uma extensão do Programa de Metas e Bases de Ação, e teve um papel decisivo na retomada do crescimento econômico e o seu eventual “milagre”. Isso se deu devido a flexibilização político-econômico, pois a métrica aplicada anteriormente provinha do Octávio Bulhões, Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen, que continuaram as ideias econômicas do Eugênio Gudin, onde possui como pilar a estabilidade monetária. Souza (2008, p. 68), coloca que para estes economistas “ a inflação seria produto do excesso de moeda, que, por sua vez, resultaria do excesso de gasto público, de investimento privado e de salários, o que seria expressão do conflito distributivo”.

Demonstra-se então intolerância com qualquer nível de inflação, onde optam por não ter crescimento, se não houver estabilidade monetária. Diante disso, e com a capacidade ociosa se estabilizando, e o crescimento industrial perdendo o folego tornou-se necessário uma nova orientação política e econômica. Essa orientação foi chefiada pelo Antônio Delfim Neto, e esse implementou o I PND, que aceitava um crescimento econômico a certos níveis de inflação, após ajustes das contas públicas efetuado pelo PAEG e salários rigidamente controlados (Larcerda, et al, 2013). Souza (2008) destaca que esse momento a pressão inflacionária era predominantemente de custos, onde foi estimulado a demanda com uma política monetária expansiva, flexibilizando a política anterior. O I PND foi elaborado em um clima favorável de crescimento e estabeleceu como principal pólo gerador de desenvolvimento nacional a região dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, partindo do princípio de que “essa região seria capaz de assegurar a expansão das indústrias, como o aporte cientifico e tecnológico nacional decorrente de um sistema de educacional avançado” (Furtado, 2012). Esse plano, como se observou posteriormente, acentuou as desigualdades regionais, ocasionando também problemas urbanos nos Estados polos.

As questões sociais do milagre econômico é sempre o ponto chave para a suas contradições, todavia, pressões urbanas se originaram desse período, sendo tratado no PND II. Ressalta-se ainda, conforme Serrano (2013) que em 1940, cerca de 30% da população eram considerados como urbanos e por volta de 1970 esse montante já passava da casa dos 60%, algo em torno de 78 milhões de pessoas.

Furtado (2012) ainda complementa essa análise com o relatório do Instituto de Planejamento Econômico e Social (IPEA), órgão vinculado à Secretaria de Planejamento (SEPLAN) que expressou:

Como demonstrou o ‘milagre’ dos anos 68/73, a preocupação exclusiva com a maximização do crescimento de renda, fundada sobre um padrão de demanda elástica, longe de resolver, pelos supostos mecanismos automáticos de mercado, agravou tanto os problemas do subemprego e da pobreza como os desequilíbrios regionais (FURTADO, 2012, p.199).

O PND II (1975-79)5, provida pelo governo Geisel, vem como uma resposta Nacional a crise da dependência, devido ao esgotamento do modelo econômico então vigente, possibilitando duas alternativas de ação econômica ao governo brasileiro. Baer (2009) demonstra que de um lado, o governo poderia ter seguido o caminho do chamado “ajuste econômico” ou “ajuste estrutural”. O outro lado seria seguir o exemplo de 1930, devido as condições criadas pela crise de 1929, onde o objetivo não era cortar as importações e sim promover o avanço do processo de substituição pelo modelo de industrialização por substituição de importações (ISI), enfrentando com desenvolvimento e não recessão a conjuntura da época. Esse mesmo autor ressalta que o projeto possuía dois componentes básicos:

[…] no nível político, pregavam a ‘distensão lenta, gradual e segura’, que, procurara manter um regime autoritário, mas abria maiores canais de participação para o empresariado nacional; e no nível econômico, elaborando o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), que visava enfrentar a crise da dependência a partir do fortalecimento da economia nacional, tendo como eixo a substituição de importações em setores básicos da economia (BAER, 2009, p. 125).

Nessa nova abordagem conjuntural cria-se a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), que para Serrano (2013) foi o momento em que se constata que a população brasileira passa de sua maioria rural, para um contexto majoritariamente urbano. Além disso, segundo os cadernos produzidos pelo Ministério das Cidades (2014), foi uma das mais aceleradas urbanizações do mundo, sem que houvesse uma implementação de políticas públicas para a inserção digna das massas que abandonaram e continuam abandonando o meio rural brasileiro.

Destarte, a primeira tentativa de consolidação de políticas públicas urbanas ocorreu no II PND, em 1973, que criou as diretrizes para uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, que apesar de diversas falhas, iniciou o processo dos planos diretores dentro das cidades brasileiras. A base teórica, conforme apontado por Serrano (2013) a primeira proposta do PNDU, que vigorou de 1975 à 1979, foi proposta por Jorge Guilherme Francisconi e Maria Adélia de Souza6. O objetivo conforme Serrano (2013, p. 187), era “promover o pleno desenvolvimento econômico do país, fortalecendo a economia interna a fim de minimizar os impactos da crise mundial do petróleo”.

Larceda, et al (2013, p. 119) abre a política central, complementando que em vez de optar por um ajuste recessivo, o II PND propunha uma transformação estrutural, onde “as prioridades recairiam sobre o setor energético, por meio do aumento da prospecção de petróleo e da produção de energia elétrica e nuclear; sobre os setores siderúrgico e petroquímico; e sobre a indústria de bens de capital”.

Por fim, na linha do Giambiagli (2011), foi um ousado plano de investimentos públicos e privados, dos quais o setor privado possuiria políticas específicas, a serem implementados entre 1974-79, onde se propunha a “cobrir a área de fronteira entre o subdesenvolvimento e o desenvolvimento”. Dessa forma, Serrano (2013) destaca que, na década de 1970, 80% do PIB nacional era provido pelas cidades brasileiras, sendo indispensáveis ao crescimento econômico, uma vez que a preocupação central do II PND caminha na métrica do crescimento. As estratégias apontadas, estavam relacionadas as seguintes questões:

Solucionar a expansão desenfreada e desordenada das metrópoles e as suas consequências negativas; responder à carência das cidades por infraestrutura adequada para o desenvolvimento das atividades econômico-produtivas; diminuir a carência de equipamentos sociais nas regiões metropolitanas e nas cidades com potencial econômico (SERRANO, 2013, p. 187).

Tal modelo começa a apresentar dilemas devido a necessidade de uma política de controle de inflação, que em 1974 encerrou o ano em 35% (IGP) e a necessidade de superação da restrição externa. Existia portanto desequilíbrios externos complexos. Para Giambiagi (2011, p. 82) “a manutenção de um ritmo acelerado que, se sabia, ampliaria o desequilíbrio externo, trazia consigo a ameaça de descontrole inflacionário – seja pelo excesso de demanda, ou pela eventual necessidade de correções cambiais”.

Diante do exposto, e com necessidades estruturais, em 1979 foi elaborado o III PND (1980-85), em que o segundo choque do petróleo iniciava, elevando a taxa de juros dos países industrializados, tornando o cenário externo ainda mais complexo. Nesse contexto Simonsen renúncia e é substituído por Delfim Neto, que dá o diagnostico inicial atrelado ao estrangulamento externo que afetava a economia. Esse estrangulamento se dá devido ao excesso generalizado da demanda e um desajuste de preços relativos que distorciam a distribuição dessa demanda entre diversos setores (Giambiagi, 2011).

O III PND para o Furtado (2013) foi bem mais flexível do que o anterior, onde não quantificou os seus principais objetivos e deu ênfase a três grandes setores – energético, agrícola e exportador. Diferente do PND antecessor, este visava o desenvolvimento do país, não apenas no crescimento econômico. Foi incluído questões relacionadas às transformações na esfera social, visando aumentar os níveis de bem-estar da população brasileira, tendendo a um real programa de desenvolvimento nacional (Serrano, 2013). Sendo assim, o discurso desse PND, era que:

[…] o Estado voltou sua atenção para a redução das desigualdades regionais. Essas desigualdades, diagnosticadas como de renda, de infraestrutura e de condições sociais regionais e intra-regionais, eram demasiadamente elevadas e não poderiam ser ignoradas na promoção de um desenvolvimento mais efetivo do país (SERRANO, 2013, p. 188).

Observa-se então uma evolução na PNDU, onde o III PND7 em seu capítulo V trata das políticas setoriais, regionais e urbanas. Conforme já mencionado no que trata das políticas setoriais, foi dado ênfase nos setores energéticos, agrícolas e exportações. Abre-se o campo social que beneficiam diretamente a expansão e melhoria da educação e cultura, da saúde e saneamento, previdência social, habitação popular e desenvolvimento comunitário, dentro de uma percepção progressista.

Conforme Steinberger (1998) os objetivos dessa política urbano-regional eram:

[…] a ampliação da infraestrutura econômica e social adequada às cidades; a promoção da ocupação ordenada do solo urbano; a atuação sobre as carências das áreas periféricas das metrópoles; e o estimulo à radicação da população no campo, gerando aí mais oportunidades de emprego (STEINBERGER, 1998, p. 32).

Serrano (2013) fecha esse período demonstrando que de acordo com o III PND, seria necessário controlar a urbanização acelerada e estimular atividades econômicas no campo para diminuir o fluxo migratório destinado às cidades.

Após a ditadura, o governo Sarney empossado em março 1985, em seu primeiro ano da Nova República, prosseguiu a política de ajustamento das contas externas, adotada pelo governo anterior, e concentrou maiores esforços para a retomada do crescimento econômico e maiores investimentos nas áreas sociais (Furtado, 2012). Conforme Serrano (2013) o I PND-NR8 (1986-89) tinha como princípios a minimização dos gastos públicos estatais e a priorização dos investimentos ao setor privado, além de resgatar as questões urbanas e regionais. Esse mesmo autor salienta que:

Acreditava-se que o aumento do nível de emprego, baseado na ampliação dos investimentos privados, poderia facilitar o alcance de um dos seus principais objetivos: a erradicação dos níveis intoleráveis de pobreza da população (FURTADO, 2013, p. 189).

Dessa forma, Serrado (2013) demonstra que o PND-NR optou por aplicar uma política de desenvolvimento regional, onde se teria como eixo estruturante uma política urbana, com o objetivo de diminuir as desigualdades regionais e otimizar o bem-estar da população. Para tal, foram propostas ações de caráter intra e interurbano, onde as primeiras estavam voltadas para as carências das áreas periféricas das regiões e a segunda direcionavam-se à distribuição dos investimentos conforme o seu papel desempenhado, observando prioridades e estratégias específicas em cada macrorregião brasileira.

No final dos anos 80, o Estado brasileiro freou os avanços em diversas políticas públicas, devido ao retorno da inflação que foi explorada no início desse diálogo. Todavia, os estudos seguiram, conseguindo incluir na Constituição Federal de 1988 um capitulo específico de políticas urbanas9, sendo aprovado em 2001 o Estatuto da Cidade10 (Serrano, 2013).


3. ESTATUTO DAS CIDADES E PLANO DIRETOR URBANO: TRAJETÓRIA E ATUAÇÃO NA AMAZÔNIA LEGAL

Na trajetória da política Urbana no Brasil, verifica-se que após os Planos de Desenvolvimento Urbano, na década de 1980 ações relevantes integraram os debates sobre a Política Urbana no Brasil. Nesse período, destacou-se a expressividade assumida pelo conjunto de reivindicações populares e a aprovação da Constituinte de 1988.

Abordando os processos que compuseram a trajetória para a composição do texto da Constituição Federal, Saule Júnior e Uzzo (2009, p. 262), salientam a mobilização popular em torno da participação, consubstanciada pelos mais de 12 milhões de assinaturas, referentes aos encaminhamentos das emendas populares. Além disso, constituíram avanços do período.

[…] a afirmação e o efetivo estabelecimento da autonomia municipal e a ampliação da participação da população na gestão das cidades, tanto com os mecanismos institucionais diretos como plebiscito, referendo, iniciativa popular e consultas públicas quanto com outras formas de participação direta como os conselhos, as conferências, os Fóruns, as audiências públicas […] (SAULE JÚNIOR E UZZO, 2009, p. 262).

Nesse contexto, verifica-se que a referida Constituição, destinou um capítulo orientado para a Política Urbana, composto pelo artigo 182 que apontava diretrizes para o ordenamento urbano, inseridas na busca pelo alcance de cenários marcados pelo estabelecimento das funções sociais da cidade, com vistas a possibilitar o bem estar dos habitantes. O artigo supramencionado destaca ainda a relevância assumida pela função social da propriedade urbana, além de orientações para as práticas que envolvem as desapropriações de imóveis urbanos.

O texto é composto pelos apontamentos sobre os Instrumentos orientados para a exigência de usos ao solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, por intermédio do parcelamento ou edificação compulsórios; Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana progressivo no tempo e ainda seções voltadas para a desapropriação. Complementando o conjunto de Instrumentos, o artigo 182 imprime relevância ao papel do Plano Diretor Urbano, com parágrafos que versam sobre a relevância deste como o elemento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Soma-se o artigo 183 que apresenta orientações para a propriedade da terra urbana para agentes que a detém por um período de cinco anos. (BRASIL, 1988).

Embora apresentando subsídios para a abordagem da Política Urbana, a Constituinte supracitada, atribuiu a regulamentação dessas diretrizes aos planos diretores. Nesse sentido, destaca-se o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), que realizou acompanhamento junto ao Congresso Nacional, durante doze anos. Assim, constata-se que o FNRU atuou exigindo a consolidação dos objetivos previamente pensados, culminando na promulgação da Lei do Estatuto das Cidades (SAULE JÚNIOR E UZZO, 2009).

O Estatuto das Cidades, Lei nº 10.257, foi aprovado em 2001 para regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, e ganha impulso com a criação do Ministério das Cidades em 2003. O Estatuto das Cidades é integrado por um agrupamento de orientações que versam sobre temas que estão nas discussões cotidianas da vivência no espaço urbano, e se configuram como anseios dos diferentes agentes que atuam na (re)produção espacial.

No universo das preposições contidas no Estatuto das Cidades destaca-se o estabelecimento de normas públicas com interesse social regulando o uso da propriedade urbana a partir da consideração do coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos. Esse conjunto de normativas envolveria ainda a busca pelo equilíbrio ambiental, demonstrando dessa forma, que a abrangência das propostas do Estatuto das Cidades, perpassaria diferentes feições da realidade.

Realizando considerações acerca das contribuições exercidas pelo Estatuto das Cidades para a Política Urbana no Brasil, portanto:

Os princípios do Estatuto propiciam desvendar conflitos relacionados ao planejamento, à apropriação, à propriedade, à gestão e ao uso do solo nas áreas urbanas. O Estatuto não resolve nem elimina os conflitos, mas os retira da sombra, mostrando que a sociedade é desigualmente constituída. Reconhece, também, o predomínio da população urbana e a falta de acesso da maioria aos padrões de urbanidade vigentes (RODRIGUES, 2004, p. 4).

As afirmações demonstram que a busca pela promoção do alcance dos objetivos, orientados para diferentes setores seria efetivado, a partir da utilização de distintos instrumentos contidos no Estatuto das Cidades. Nesse processo, quando delimitados os planos diretores, ressalta-se que os planos devem contemplar os contextos multiescalares, versando sobre iniciativas que objetivam desde o desenvolvimento econômico e social mediado pela ordenação do território, até os planos relacionados às características que compõem a esfera municipal (BRASIL, 2001).

Porém, algumas ressalvas devem ser efetivadas quando abordados os resultados efetivos do Estatuto das Cidades, pois como observa Silva (2011, p. 23), ao avaliar os 10 anos das normas estatuárias “[…] apesar dos avanços, a Lei do Estatuto da Cidade está longe de atender às demandas sociais mais prementes. […]”. Ademais o período transcorrido, apresenta ganhos que, no entanto, ainda não expressam o atendimento das metas que compunham a conquista da agenda formulada pela sociedade civil.

Ainda conforme o autor mencionado, a cidade enquanto objeto socialmente produzido, tem uma complexidade que impõem desafios, por conseguinte a cidade que atenderia às reivindicações sociais exige características relacionadas a um compromisso dos gestores, fundamentados nos preceitos dos avanços técnicos e científicos contemplando infraestrutura, equipamentos e serviços. Nesse panorama, esses elementos devem estar orientados para a promoção de melhoria da qualidade de vida urbana.

Além disso, Rodrigues (2004) salienta que na abordagem das características que compõem as ideias contidas nas utopias, que integram as diretrizes do Estatuto das Cidades em associação com os recortes espaciais estabelecidos para atuação dos instrumentos previstos pela legislação, a busca pelo Direito à Cidade estaria restrita ao âmbito do uso do solo urbano, não contemplando outras dimensões da vida urbana.

Previstas para um cenário nacional, as orientações do Estatuto das Cidades permite inferir que este defende a observância de peculiaridades da escala local, legislando sobre as ações processadas no município. Esse recurso, apresenta-se como fundamental para que seja possível reivindicações e fiscalizações relativas a (in)aplicabilidade dos planos. No entanto, ressalta-se que as características das discussões das ações ainda podem evidenciar exemplos da pequena participação popular.

Embora constituindo instrumento que possibilitaria (re) pensar o processo de produção do urbano no Brasil, a análise crítica da atuação espacial deste, permite identificar que o Estatuto das Cidades apresenta indicações acerca da utopia do Direito à Cidade, porém o planejamento que estaria relacionado a complexidade das ações desenvolvidas pelos agentes na cidade, constituiria uma virtualidade (RODRIGUES, 2004).

Na abordagem das diretrizes do Estatuto das Cidades como ações integradas às peculiaridades da Amazônia Legal, destacam-se as observações de Gouvêa, Ávila, Ribeiro (2009), ao salientarem que é importante observar que a análise da dinâmica urbana na Amazônia, retoma a relevância do reconhecimento do papel exercido pelo processo de ocupação rural e urbano da Região. Este apresenta resquícios das características que compuseram as ações voltadas para o processo de ocupação e apropriação da terra no Brasil. Dessa forma, a complexidade da estrutura fundiária na Amazônia, influencia as dificuldades envolvidas no acesso à terra na região, assim como regulamentações instituídas pelas orientações do Estatuto das Cidades.

Assim, constata-se que diversos conflitos que se desenvolvem no rural, relacionados a irregularidades da situação dos imóveis na Amazônia, têm oferecido também implicâncias para a dinâmica urbana.

Partindo dessa realidade, é possível inferir que as ações empreendidas na Amazônia Legal devem estar orientadas para a promoção de intervenções na questão da terra. E quando pensando o urbano, destaca-se o conjunto de discussões orientadas para a promoção da legalidade de moradias no âmbito da Amazônia Legal, como subsídio à garantia das famílias ao seu direito Constitucional à moradia digna, assegurando políticas de desenvolvimento urbano sustentável, cujos princípios foram estabelecidos nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal e no Estatuto das Cidades (GOUVÊA, ÁVILA, RIBEIRO, 2009).

Integrando os Instrumentos presentes no Estatuto das Cidades, sobressaem-se as características do Plano Diretor que deveria ser aprovado através de Lei para municípios com mais de 20.000 habitantes; àqueles que compõem regiões metropolitanas; que correspondam à área com interesse turístico; áreas que recebem influência de empreendimentos que oferecem riscos de impactos ambientais e municípios com áreas que tem possibilidades de deslizamentos, inundações, dinâmicas geológicas ou hidrológicas com grandes proporções (BRASIL, 2001).

A apreciação das atribuições colocadas como componentes dos planos diretores, demonstra a importância conferida a esse instrumento, conforme previsto na Lei. No entanto, torna-se fundamental o aprofundamento do entendimento, a partir do desenvolvimento de análises que apresentem os conflitos e estratégias que estão presentes, como integrantes dos objetivos propostos e práticas efetivadas.

Apresentando considerações sobre o Plano Diretor, Souza (2006) defende que estes não precisam ser rígidos ou totalmente detalhados pretendendo a construção da cidade ideal. Os planos devem ser reflexos das metas e prioridades, fornecendo instrumentos adequados à realidade de uma cidade, entendida a partir das necessidades reais. Complementando as afirmações, Lacerda et al. (2005) defendem que o plano deve possuir interface com os outros instrumentos, orientados para o planejamento no âmbito da administração municipal, ademais as proposições devem ressaltar os limites e possibilidades para intervenções urbanas.

Nas ações para planejamento, pode-se verificar que uma reunião de propostas foi organizada ao longo dos anos, tendo em vista o atendimento das metas estabelecidas para um determinado período. Nesse cenário, torna-se relevante o desenvolvimento de observações que englobam os processos contidos, na elaboração dos planos diretores.

A origem desse instrumento é apresentada por Mont-Mor (2007), como remontando aos Estados Unidos no século XX, para a atuação em cenários marcados pela configuração dos problemas provocados pela urbanização acelerada, atuando ainda sobre os serviços com características de coletividade. Além disso, destacava-se a expansão das cidades e as consequências decorrentes das transformações, que passavam a verificar maior intensidade.

Percebe-se, que desde o início o Plano Diretor deveria estar orientado para atuar sobre características compreendidas como problemas, decorrentes do crescimento urbano, cujas implicações possuíam extensa abrangência sobre setores que não poderiam ser entendidos como homogêneos e, portanto possuiriam metas próprias. Esses estavam voltados fundamentalmente para as necessidades que se constituíam nesses novos espaços, envolvendo a ideia do aprimoramento da participação.

Nesse âmbito, Souza e Rodrigues (2004) destacam que mesmo estando orientado para a atuação nos espaços das cidades, o Plano Diretor ainda representa um instrumento cuja aplicabilidade é pouco realizada em muitos municípios. Os autores ressaltam que o primeiro plano diretor do Brasil foi representado pelo Plano Agache, elaborado em 1930 para a cidade do Rio de Janeiro, com determinações que versavam sobre a expansão urbana e o uso do solo.

Trabalhando com a Reforma Urbana no âmbito da Constituinte de 1988, Maricato (2012) observa que o Plano Diretor foi rejeitado pelas entidades que assinaram a Emenda Popular pela Reforma, na medida em que esses planos no Brasil, possuíam trajetória marcada pela aprovação dos projetos, propostos pelas elites e expulsão dos pobres de áreas valorizadas. No entanto, o Plano Diretor permaneceu no texto da Constituinte e do Estatuto das Cidades, revelando dessa forma as desigualdades na concretização das decisões.

Descrevendo uma síntese do cenário urbano brasileiro, relacionado aos contextos de elaboração e aplicação dos planos diretores, Ultramari e Rezende (2008) destacam que os planos devem considerar aspectos como o aumento da complexidade das questões urbano-ambientais e redução no quadro de servidores públicos, demandando empresas de consultoria, responsáveis pela elaboração dos planos, fato que representa dificuldades para a continuidade das ações.

Segundo os autores, durante a construção do Plano Diretor, deve ser discutido a constituição de um sistema para o acompanhamento e controle das ações previstas para implementação, no recorte temporal delimitado. Esse sistema deverá examinar também as intervenções efetivadas. O plano deveria abordar ainda, exigências voltadas para o âmbito dos municípios que possuem áreas de riscos de deslizamento e para àquelas que visam promover ampliações no perímetro urbano, pois devem obedecer a regras específicas para o ordenamento dos espaços da cidade.

Quando analisada a implementação dos planos diretores na Amazônia Legal Gouvêa, Ávila, Ribeiro (2009), apresentam dados que indicam para o ano de 2008, 91% das cidades cujo plano diretor era obrigatório, cumpriam essa exigência. Além disso, 25% das cidades com menos de 20 mil habitantes também haviam elaborado mesmo sem a obrigatoriedade prevista no Estatuto das Cidades.

Os dados indicam a possibilidade da influência exercida pela forte ação do Estado no planejamento da ocupação da Amazônia, concorrendo para a constituição de maior propensão dos municípios para criar instrumentos próprios de política e planejamento urbano (GOUVÊA, ÁVILA, RIBEIRO, 2009).

Como subsídio à implementação das diretrizes do Estatuto das Cidades, sobressai-se a promulgação da Lei nº 11.952 de 2009, que possuía um capítulo específico para a regularização fundiária em áreas urbanas imprimindo ênfase para a atuação dos Planos Diretores.

Os dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano de 2015, sobre o perfil dos municípios brasileiros, permite a realização da espacialização do Plano Diretor na Amazônia Legal (Figura 1)

Figura 1: Municípios da Amazônia Legal que elaboraram o Plano Diretor Urbano

Fonte: IBGE 2015, Philcarto (2017). Organizado por SILVA, S. S, 2017.

O levantamento realizado demonstrou que trezentos e setenta e nove municípios da Amazônia Legal elaboraram o Plano Diretor Urbano, conforme pode ser observado na leitura do Cartograma. No entanto, é importante observar que parcela significativa dos planos, são compostos pelos problemas presentes em outras regiões brasileiras. E quando pensada a Amazônia Legal é possível indicar que um dos maiores entraves à implementação de políticas e planejamento urbano está relacionado às dificuldades enfrentadas pelos municípios envolvendo aspectos humanos e materiais.

Nesta seção do artigo, discutiremos os novos elementos da dinâmica regional amazônica a partir da década de 1960, chamando atenção para uma das mudanças mais significativas, que é a urbanização, uma vez que esse fenômeno implica em acelerado crescimento da população urbana, o aparecimento de novas cidades e o crescimento das antigas, além da influência dos valores urbanos na população rural, definindo a região amazônica como uma “floresta urbanizada” (BECKER, 2003).

Trindade Jr. (2016) analisa o processo de urbanização recente da Amazônia e destaca, entre outros dados, o número de cidades e vilas segundo as classes populacionais de tamanho de 1991 a 1960 conforme quadro abaixo:

Quadro 1 - Amazônia Legal: número de cidades e vilas segundo as classes populacionais de tamanho (1991-1960).

CLASSES POPULACIONAIS DE TAMANHO 1991 1980 1970 1960
cidades vilas totais cidades vilas totais cidades vilas totais cidades vilas totais
\(< 5.000\) - - - 69 12 81 113 8 121 117 8 125
5.000 – 9.999 106 2 108 66 2 68 41 - 41 23 1 24
10.000 – 19.999 80 2 82 44 4 48 19 1 20 9 - 9
20.000 – 49.999 54 1 55 21 2 23 7 1 8 3 1 -
50.000 – 99.999 13 1 14 5 1 6 3 - 3 - - -
100.000 – 199.999 5 1 6 4 - 4 - - - 2 - 2
200.000 – 499.999 3 1 4 1 - 1 2 - 2 1 - 1
500.000 – 999.999 2 - 2 2 - 2 1 - 1 - - -
1.000.000 E MAIS 1 - 1 - - - - - - - - -
TOTAIS 264 8 272 212 21 233 186 10 196 155 10 165

Fonte: Sinopses dos Censos Demográficos 1991/1980/1970/1960 – IBGE apud Ribeiro (1994, p.11).
Retirada de: Trindade Jr (2016).

Os dados do quadro 01 revelam a multiplicação do número de cidades, sobretudo um maior crescimento do período de 1970 e 1980, coincidindo com os períodos já destacados de elaboração e implementação de políticas públicas no cenário nacional e que repercutiram na região amazônica.

Esse crescimento do número de cidades e vilas é acompanhado do crescimento populacional urbano, uma vez que, em 1970, a população urbana representava 35,5% da população total; em 1980, 44,6%; em 1990, 61%; e em 2000, 69,07% (BECKER, 2003). A figura 02 da página seguinte revela a continuidade desse processo, destacando a população residente nos municípios da Amazônia Legal e a situação de domicílio, com a população urbana superior à população rural.

Figura 2 - População residente na Amazônia Legal e situação de domicílio.

Fonte: IBGE (2010).

Esse quadro de urbanização recente é uma das transformações estruturais verificadas na região amazônica, sendo associadas às demais, como conectividade, por meio das redes que se implantaram na região, industrialização (Zona Franca de Manaus e a exploração mineral), e outras (BECKER, 2003).

Tais mudanças estruturais só podem ser compreendidas dentro de um quadro ligado ao ordenamento do território que associa fronteira e urbanização, sendo o núcleo urbano a base logística da ordenação territorial da fronteira (BECKER, 2003).

Neste caso, no contexto amazônico, de maneira mais intensa a partir da década de 1960, essas mudanças estruturais estiveram ligadas aos planos regionais de desenvolvimento, como parte da atividade planejadora do Estado (nacional), resultando em programas especiais aplicados de modo geral no combate às desigualdades ou disparidades regionais, como analisado na primeira seção.

Essa maneira de conceber as políticas territoriais11, como políticas nacionais, segundo Costa (2015), teve seu desenvolvimento no Brasil entre 1930 e 1980, em que o Estado assumiu abertamente o desafio do desenvolvimento nacional e, ao mesmo tempo, a construção da unidade nacional.

Costa (2015) destaca que alguns projetos nacionais puderam concretizar-se, como a industrialização – e a urbanização a ela associada – a modernização do campo e, no limite, um macroprocesso de integração nacional, tanto em relação à formação de um mercado nacional, quanto especificamente territorial.

Becker (1990) associa as tentativas de integração da Amazônia ao território nacional ao conceito de fronteira como um espaço não plenamente estruturado. Neste caso, a fronteira é a outra face do espaço urbanizado. Sua integração é a integração ao espaço urbanizado e se efetua através do urbano.

A fronteira é definida em relação a um espaço estruturado, e sua potencialidade alternativa é circunscrita a limites impostos pela formação social em que se situa. A expansão da fronteira amazônica só pode, pois, ser compreendida a partir da inserção do Brasil neste final do século XX, no contexto da nova escala da relação capital-trabalho articulada aos interesses do capital industrial e financeiro, e referenciada à produção de um espaço planetário, em que os Estados nacionais conservaram suas funções de controle, hierarquização e regulação, tendo como base o espaço (BECKER, 1990, p. 132).

A partir da necessidade de integração da fronteira amazônica, o Estado estabeleceu um modelo de desenvolvimento, destacando o crescimento econômico, promovendo a industrialização concentrada na Amazônia e induzindo a desestruturação/reestruturação espacial e alterações nas dinâmicas físico-sociais presentes nesta região (COELHO, et al, 2003).

Em 1971 foi lançado o Plano de Desenvolvimento da Amazônia, um desdobramento do Plano Nacional de Desenvolvimento, em que se reprisaram algumas diretrizes do Plano de Integração Nacional no que se refere à necessidade de integração e complementaridade das economias da Amazônia e do Nordeste. O Plano tinha como estratégia promover o progresso de novas áreas e a ocupação de espaços vazios (COELHO, et al, 2003).

Este autor coloca que a construção da rodovia Transamazônica e a implantação de núcleos de colonização no seu traçado resultam dessa política. Essa rodovia impulsionou processos de reestruturação espacial, de mudanças demográficas e econômicas na Amazônia brasileira. Como visto na primeira seção, o governo federal, com o II PND, queria manter elevadas as taxas de crescimento econômico, que estavam mostrando sinais de fadiga, dirigindo suas ações no sentido de dinamizar a produção e isso requeria financiamento.

Nesse contexto, são abandonadas as iniciativas de colonização dirigida e o governo passa a fomentar projetos que implicassem o investimento de grandes quantidades de capitais com desprezo às estruturas camponesas como força social capazes de dinamizar a economia regional, papel atribuído à grande empresa (COELHO, et al, 2003).

Com essa política, o governo federal criou o Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais na Amazônia – Polamazônia, com o objetivo de implantar diversos polos de desenvolvimento na Amazônia brasileira, com destaque para a produção mineral. Isso implicou em concentração espacial de capitais com a política de incentivos fiscais direcionada para áreas geográficas selecionadas, concentrando nelas suas ações de construção de infraestrutura, com a finalidade de proporcionar investimentos massivos e espacialmente concentrados (COELHO, et al, 2003).

Dessa maneira, compreendemos que o Estado foi o ator que teve papel determinante, produzindo seu próprio espaço (o espaço global), integrando e rompendo o espaço amazônico anterior. Esse espaço global possibilita a conexão dos fluxos e estoques, associados ao crescimento das forças produtivas e à urbanização (formação de unidades de produção e consumo). É através da mediação dos núcleos urbanos que o Estado na Amazônia realiza a gestão e a produção do espaço global.

É assim que, desde o início, o projeto de ocupação da fronteira amazônica previu a urbanização, através seja das várias políticas governamentais para integração do território, seja da política urbana de polos de crescimento (Polamazônia), seja da de “urbanismo rural”, considerado necessário, segundo o discurso oficial, para atrair a população, por oferecer condições de vida similares às áreas de origem dos fluxos migratórios. Daí verificar-se na fronteira a urbanização em suas múltiplas formas, desde o crescimento explosivo de cidades velhas e novas à multiplicação de núcleos e povoados fortemente instáveis (BECKER, 1990, p. 134).

Becker (1990) identifica quatro movimentos na década de 1970-1980 quanto ao crescimento urbano: a expansão-consolidação dos centros regionais, sub-regionais e locais, que constituem a base de operações produtivas de frentes impulsionadas por iniciativa do Estado, ao longo das rodovias Belém-Brasília, Transamazônica e Cuiabá-Porto Velho (PND-NR); a expansão-concentração nas capitais estaduais; a reprodução de pequenos núcleos dispersos – povoados e vilas – vinculados à mobilidade do trabalho que, finda a frente de trabalho se retraem ou se extinguem, logo reaparecendo junto a novas frentes; a retração dos núcleos antigos, que ficaram à margem da nova circulação.

Ribeiro (2001) analisa esses movimentos a partir das mudanças verificadas na rede urbana amazônica a partir da década de 1960. O autor problematiza a gradativa transformação, na Amazônia, de uma rede urbana dendrítica - orientada precipuamente pelos cursos fluviais, e tendo como característica a forte dependência das pequenas cidades a um centro imediato – em uma rede urbana complexa, na qual, inspirado em Corrêa (1997), o autor caracteriza como aquela em que existem várias ligações possíveis entre um mesmo par de nós.

A distribuição dos núcleos urbanos e a complexidade funcional dos centros apontam para profundas transformações na rede urbana amazônica pós-1960 com a criação de novos nós, novas hierarquias e especializações, redirecionando os diversos fluxos de pessoas, mercadorias, bens, serviços e informações, agora voltados para uma dinâmica, cujo comando é nacional e mundial. Desta forma, acirrou-se a diferenciação urbana através da complexidade funcional das cidades.

Essa diferenciação urbana deve ser pensada em um quadro de diferenciações intra-regionais, que Becker define como as “diversas Amazônias”. São elas: a Amazônia Oriental; a Amazônia Central e a Amazônia Ocidental. A primeira, uma área já densamente ocupada, onde estão concentradas as estradas e a maioria das cidades e centros regionais. A segunda, comandada por Belém, abriga grandes massas florestais, terras indígenas e unidades de conservação. Já a última, comandada por Manaus, é a área mais preservada porque à margem das estradas e com baixas densidades demográficas. Para essas diferentes áreas, a autora identifica a necessidade de políticas públicas diferenciadas, fortalecendo as cidades por serem a base logística de sua implementação.


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo buscou compreender as políticas urbanas no contexto da Amazônia Legal. Para isso, se fez necessário a compreensão das políticas territoriais nacionais desde a década de 1960 e a associação dessas à cidade e ao urbano, do II PND até a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano mais recente, destacados nas duas primeiras seções.

Ficou evidente, no âmbito de todas essas políticas, a crescente importância estratégica da cidade e do urbano para o desenvolvimento nacional e para o desenvolvimento da Amazônia Legal em particular.

Com a política mais recente, regulamentada no Estatuto das Cidades em 2001, resta o desafio de lidar com a “urbanodiversidade” (TRINDADE JR., 2010) amazônica, e que talvez possa ser tratada no território nacional de uma maneira geral. O atributo da “diversidade” torna-se de suma importância para a compreensão dos elementos da dinâmica urbana amazônica. Neste caso, a mesma dá-se sobre a forma e o conteúdo, ou seja, sobre a cidade e o urbano. Os diferentes níveis de cidades (metrópoles, cidades médias e cidades pequenas) assumem conteúdos contraditórios, revelando suas relações em diferentes escalas espaciais e requerendo políticas públicas diferenciadas.

Entendemos o avanço dessa política, sobretudo quando estabelece a necessidade da elaboração de um Plano Diretor municipal para todas as cidades, ou ao menos aquelas que possuem mais de 20.000 (vinte mil) habitantes. Com tal exigência, e embora esse instrumento siga as diretrizes nacionais, identificamos uma maior aproximação da realidade local, consolidando a aproximação entre governo e sociedade civil, sobretudo com os instrumentos da democratização da gestão urbana (conselhos municipais, fundos municipais, gestão orçamentária participativa, audiências e consultas públicas, conferências municipais, iniciativa popular de projetos de lei, referendo popular e plebiscito), o que pode facilitar a consideração dessa “urbanodiversidade”.

No entanto, a criação de um sistema de planejamento municipal, constituído por órgãos municipais administrativos que abranjam também a área rural e sejam capazes de articular interfaces com as questões regionais, pode potencializar o amadurecimento dessa política (STEINBERGER, 2013).


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil . Brasília, 5 out. 1988.

______. Lei nº 10.257, de 10 de junho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 10 jun. 2001a. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm>. Acesso em: 13 maio 2017.

BAER, Werner. A economia brasileira. 3° edição. São Paulo: Nobel, 2009.

BECKER, B. Amazônia: mudanças estruturais e urbanização. In: GONÇALVES, M. F.; BRANDÃO, C. A.; GALVÃO, A. C. (Orgs.). Regiões e cidades, cidades nas regiões: o desafio urbano-regional. São Paulo: UNESP, 2003. p. 651-656.

BECKER, B. Fronteira e urbanização repensadas. In: BECKER, B. K., MACHADO, L. O., MIRANDA, M. Fronteira amazônica: questões sobre a gestão do território. Brasília: UnB, 1990. p. 131-144.

Cadernos MCidades de Desenvolvimento Urbano: Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Brasília: Ministério das Cidades, 2004.

COELHO, M. C. et al. Estratégias de modernização na Amazônia e a (re)estruturação de municípios: o caso da implantação de empresas minero-metalúrgicas e de energia elétrica. In: GONÇALVES, M. F.; BRANDÃO, C. A.; GALVÃO, A. C. (Orgs.). Regiões e cidades, cidades nas regiões: o desafio urbano-regional. São Paulo: UNESP, 2003. p. 657-694.

COSTA, W. M. Políticas territoriais. In: GIOVANNI, G. Di; NOGUEIRA, M. A. Dicionário de políticas públicas. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2015. p. 794-797.

FURTADO, Milton Braga. Síntese da economia brasileira. 7° edição. Rio de Janeiro: LTC, 2012.

GIAMBIAGI, Fábio (org); et al. Economia brasileira contemporânea: 1945-2010. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.

GIOVANNI, G.; NOGUEIRA, M. A. (Orgs.). Dicionário de políticas públicas. 2. ed. São Paulo: Editora da Unesp; Fundap, 2015.

GOUVÊA , Denise de Campos, ÁVILA, Paulo Coelho, RIBEIRO, Sandra Bernades. A regularização fundiária urbana na Amazônia Legal. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais. v. 11, n 2, novembro, 2009.

LACERDA, Antônio Corrêa de (org); et al. Economia brasileira. 5° edição. São Paulo: Saraiva, 2013.

LACERDA, Norma; MARINHO, Geraldo; BAHIA, Clara; QUEIROZ, Paulo e PECCHIO, Rubén. Planos diretores municipais: aspectos legais e conceituais. Revista brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 7, n. 1, 2005.

MARICATO, Ermínia. O impasse da política urbana no Brasil.2. ed. Petrópoles, RJ: Vozes, 2012.

MONTE-MÓR, Roberto L. de M. Planejamento urbano no Brasil: emergência e consolidação. Revista Etc, espaço, tempo e crítica. v.1, n. 1(4), junho, p. 71-96, 2007.

RIBEIRO, M. A. A rede urbana amazônica: da rede dendrítica à configuração de uma rede complexa. In: SPOSITO, M. E. B (Org.) Urbanização e cidades: perspectivas geográficas. Presidente Prudente: UNESP, 2001. p. 369-389.

RODRIGUES, Arlete Moysés. Estatuto da Cidade: função social da cidade e da propriedade. Alguns aspectos sobre população urbana e espaço. Cadernos Metrópole, n. 12, pp. 9-25, 2º sem. 2004.

SAULE JÚNIOR, Nelson; UZZO, Karina. A trajetória da reforma urbana no Brasil. p. 259-269, 2009. Disponível em: <http://www.redbcm.com.br/arquivos/bibliografia/a%20trajectoria%20n%20saule%20k%20uzzo.pdf. >. Acesso em: 01 jun. 2017.

SILVA, José. B. Os Dez anos de Estatuto da Cidade. Brasília: Senado Federal, 2011.

SOUZA, Marcelo L. de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

SOUZA, Marcelo L. de; RODRIGUES, Glauco B. Planejamento urbano e ativismos sociais. São Paulo: UNESP, 2004.

SOUZA, Nilson Araujo de. Economia brasileira contemporânea: de Getúlio a Lula. 2° edição. São Paulo: Atlas, 2008.

STEINBERGER, Marilia (org); SERRANO, Agnes de França, et al. Território, Estado e políticas públicas espaciais. Brasília: Ler Editora, 2013.

STEINBERGER, Marilia. Por uma política urbana-regional. Sociedade e Estado, vol. XIII n.1, jan-jul 1998.

TRINDADE JR., S. C. Formação metropolitana de Belém (1960-1997). Belém: Paka-Tatu, 2016.

TRINDADE JR., S. C. Diferenciação territorial e urbanodiversidade: elementos para pensar uma agenda urbana em nível nacional. Cidades, Presidente Prudente, Grupo de Estudos Urbanos, v. 7, n. 12, p. 49-77, jul-dez. 2010.

ULTRAMARI, Clovis; REZENDE, Denis A. Planejamento estratégico e Planos Diretores Municipais: referenciais e bases de aplicação. Revista de Administração Contemporânea. Curitiba, v.12, n.3, p. 1-15, 2008.


Notas de Rodapé

  1. BRASIL. Presidência da República. I Plano Nacional de Desenvolvimento (1972-74). Brasília, 1971.
  2. Lei n° 6.151/1974 - Dispõe sobre o Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), para o período de 1975 a 1979.
  3. Jorge Guilherme Francisconi e Maria Adélia A. de Souza. Política nacional de desenvolvimento urbano: estudos e proposições alternativas. Brasília: IPEA, 1976 (Série Estudos para Planejamento, 15).
  4. BRASIL. Presidência da República. Projeto do III Plano Nacional de Desenvolvimento (1980-85). Brasília, 1981.
  5. BRASIL. Presidência da República. I Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República (1986-89). Brasília, 1985.
  6. Artigo 182 e 183 da Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 5 de outubro de 1988.
  7. Lei 10.257/2001 - Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.
  8. Pode-se definir política territorial como a modalidade de política pública formulada e aplicada com o objetivo explícito de promover mudanças na estrutura – ou na configuração – territorial de um país, região, província, Estado e município, ou mesmo em escalas que extrapolam o espaço nacional (COSTA, 2015, p. 794).