“Doença Holandesa”: aspectos teóricos e evidências empíricas para a economia brasileira

Renato Nataniel Wasques1; Jaime Graciano Trintin2.
1 - É Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual do Paraná (2009), Mestre em Economia, área de concentração: Teoria Econômica, pela Universidade Estadual de Maringá (2012) e Doutor em Economia, área de concentração: Desenvolvimento Econômico, pela Universidade Federal de Uberlândia (2018). Atua como Professor Adjunto I na Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Universitário de Rondonópolis, no curso de Ciências Econômicas. Suas pesquisas se concentram nas seguintes áreas: Economia Brasileira Contemporânea; Desenvolvimento Econômico e Pensamento Social Brasileiro. São temas de pesquisa: desindustrialização brasileira e latino-americana; doença holandesa; Estado e desenvolvimento; Estado e planejamento, com ênfase no pensamento de Celso Furtado. Sua tese de doutorado tem como tema as ideias de Celso Furtado sobre Estado e Planejamento nas economias e sociedades capitalistas, desenvolvidas e subdesenvolvidas.
2 - Possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Maringá (1984), mestrado em Economia pela Universidade Federal de Pernambuco (1988) e doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas (2000). Atualmente é professor adjunto - tide da Universidade Estadual de Maringá. Tem experiência na área de Economia, com ênfase em Economia Regional, atuando principalmente nos seguintes temas: desenvolvimento regional, desenvolvimento econômico, economia paranaense, arranjos produtivos locais e arranjos produtivos, cluster.


Resumo

Este artigo tem como objetivo verificar se a apreciação da moeda brasileira, observada na primeira década do século XXI, resultou da manifestação do fenômeno da “doença holandesa”, isto é, avaliar se essa apreciação foi consequência do aumento dos preços internacionais das commodities exportadas pelo Brasil, bem como do aumento das exportações dessas commodities, principalmente para os países populosos da Ásia.

Inicialmente, apresenta-se a literatura econômica acerca do fenômeno da “doença holandesa”. Em seguida, realiza-se uma análise do caso brasileiro buscando-se evidenciar sintomas da manifestação da “doença holandesa” ao longo dos anos 2000. As análises empreendidas neste estudo permitiram identificar vários sintomas da manifestação da “doença holandesa” na economia brasileira.

Palavras-chave: Economia Brasileira; “Doença Holandesa”; Taxa de Câmbio.


“Dutch Disease”: THEORETICAL ASPECTS AND EMPIRICAL EVIDENCE FOR THE BRAZILIAN ECONOMY


Abstract

The aim of this paper is to verify that the appreciation of Brazilian currency, as evidenced from the last quarter of 2002 resulted from the manifestation of the phenomenon of “Dutch disease”, this is to assess whether that assessment was a result of rising international commodity prices exported by Brazil, as well as increasing exports of these commodities, especially for the populous countries of Asia.

Initially, it presents the economic literature concerning the phenomenon of “Dutch disease”. Next is an analysis of the Brazilian case seeking to demonstrate symptoms of the onset of the “Dutch disease” throughout the first decade of this century. The analysis undertaken in this study allowed the identification of manifestation of symptoms of “Dutch disease” in the Brazilian economy.

Keywords: Brazilian Economy; “Dutch Disease”; Exchange Rate.

Classificação JEL: F; F14; O1; O13.


1 - Introdução

O processo de “doença holandesa” pode ser compreendido como uma apreciação crônica da taxa de câmbio provocada pela descoberta e exploração/exportação de recursos naturais. Um caso clássico de “doença holandesa” foi registrado na Holanda nos anos 1960, quando foram descobertos grandes depósitos de gás natural no Mar do Norte. As exportações dessa commodity energética resultaram em forte apreciação do Florim, a moeda holandesa. Como consequência, as exportações dos outros produtos, sobretudo produtos manufaturados, tornaram-se menos competitivas. Ademais, a “doença holandesa” também pode ser desencadeada por meio de um expressivo aumento das exportações de outras commodities (café, açúcar, petróleo, minério de ferro, cobre, entre outras) causado, principalmente, pela elevação de seus preços internacionais. Neste caso, o afluxo de divisas internacionais, oriundo das exportações dessas commodities, resultaria em forte apreciação cambial.

Ao longo do período 2003-2010, registrou-se uma forte tendência de valorização da moeda brasileira. A intensificação dessa tendência ocorrera em um contexto de ascensão dos preços internacionais das commodities exportadas pela economia brasileira e de crescimento das exportações dessas mercadorias, principalmente para os países populosos da Ásia. Inevitavelmente, vários trabalhos foram elaborados enfatizando a semelhança entre o caso brasileiro e o fenômeno ocorrido na Holanda na década de 1960. Dentre os estudos realizados, destacam-se: Bresser-Pereira (2005; 2007a; 2007b; 2010a; 2010b); Bresser-Pereira; Marconi (2010); Furtado (2008); Jank et al. (2008); Nakahodo; Jank (2006); Pereira (2010); Ribeiro; Markwald (2008).

Deste modo, o presente artigo se justifica por constituir uma contribuição adicional ao debate acerca da manifestação (ou não) do fenômeno da “doença holandesa” no Brasil ao longo da primeira década do século XXI. Assim, delimita-se o objetivo deste estudo, que consiste em investigar se a apreciação da moeda brasileira, evidenciada a partir do último trimestre de 2002, resultou da manifestação do fenômeno da “doença holandesa”, considerando o conceito desse fenômeno à luz da Teoria Econômica.

Para que o objetivo proposto fosse alcançado, empreendeu-se uma análise sistemática de dados secundários, que incluem a pesquisa bibliográfica e documental sobre o tema, complementando-se com o estudo de periódicos, entrevistas e publicações dos principais autores que trabalham o assunto. Os dados quantitativos utilizados neste trabalho não foram produzidos por uma análise dos dados primários, já que as informações quantitativas coletadas foram obtidas por intermédio de resultados de trabalhos anteriores de obtenção “na fonte”. O que se procurou fazer foi apresentar as considerações sobre esses dados, relacionar com a problemática do trabalho e complementar com interpretação e ponto de vista, a partir do conhecimento já adquirido. Recorreu-se, para obtenção desses dados, ao banco de dados disponível no site do IPEADATA (base de dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), FUNCEXDATA (base de dados da Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior), aos dados disponibilizados pelo BCB (Banco Central do Brasil) e MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior).

Para tanto, o presente artigo está dividido em duas seções, além da introdução e das considerações finais. Na primeira seção, busca-se apresentar a literatura econômica acerca do fenômeno da “doença holandesa”. Na segunda seção, realiza-se uma análise do caso brasileiro buscando-se evidenciar (ou não) sintomas da manifestação da “doença holandesa” ao longo da primeira década do século XXI.


2 - A literatura econômica sobre o fenômeno da “doença holandesa”

O termo “doença holandesa” surgiu pela primeira vez em um artigo publicado pela revista The Economist (1977) para refletir um fenômeno ocorrido na Holanda na década de 1960. “The term Dutch Disease refers to the adverse effects on Dutch manufacturing of the natural gas discoveries of the nineteen sixties, essentially through the subsequent appreciation of the Dutch real exchange rate” (CORDEN, 1984, p. 359). Com a descoberta de grandes reservas de gás natural, nos anos 1960, no Mar do Norte, a Holanda iniciou o processo de extração e, posteriormente, de exportação dessa commodity energética. A exportação de grandes quantidades de gás natural resultou em sobreapreciação do Florim holandês.

A “doença holandesa” constitui um fenômeno antigo. Corden (1984), afirma que a descoberta de ouro na Austrália em meados do século XIX teria desencadeado um processo de “doença holandesa” que gerou efeitos adversos sobre a indústria australiana. Bresser-Pereira (2010a) vai além ao afirmar que a “doença holandesa” existe desde a Revolução Comercial ocorrida entre os séculos XVI e XVIII. Segundo o autor, o fraco desempenho da economia espanhola a partir do século XVII estaria associado à exploração de ouro nas colônias americanas. Entretanto, esse fenômeno somente constituiria campo de interesse da Ciência Econômica na primeira metade do decênio 1980. Neste período, Corden; Neary (1982) e Corden (1984) elaboraram os primeiros trabalhos teóricos e empíricos sobre a “doença holandesa”3.

Bresser-Pereira (2007b; 2007c; 2010a) afirma que a “doença holandesa” ou “maldição dos recursos naturais”4 consiste em uma grave falha de mercado do lado da demanda. “É uma falha de mercado porque o setor produtor de bens intensivos em recursos naturais gera uma externalidade negativa sobre os demais setores da economia impedindo que esses setores se desenvolvam, não obstante usem tecnologia no estado da arte” (BRESSER-PEREIRA, 2010a, p. 124). Esta falha de mercado é classificada como sendo do lado da demanda, porque restringe o nível de novos investimentos em indústrias de bens comercializáveis e, consequentemente, restringe a demanda agregada que, por sua vez, desacelera o crescimento da economia, inviabilizando, deste modo, a geração de novos postos de trabalho.

De acordo com Bresser-Pereira (2010a), essa falha de mercado implica a coexistência de duas taxas de câmbio de equilíbrio, a saber: a taxa de câmbio de equilíbrio “corrente”, que equilibra intertemporalmente a conta corrente do balanço de pagamentos e a taxa de câmbio de equilíbrio “industrial”, que viabiliza o desenvolvimento dos setores industriais intensivos em tecnologia.

A doença holandesa ou maldição dos recursos naturais é a sobreapreciação crônica da taxa de câmbio de um país causada por este para explorar recursos naturais abundantes e baratos, cuja produção comercial é compatível com uma taxa de câmbio claramente menor do que a taxa de câmbio média que viabiliza setores econômicos de bens comercializáveis que utilizam tecnologia no estado da arte (BRESSER-PEREIRA, 2010, p. 123).

Neste aspecto, em uma economia livre de “doença holandesa”, a taxa de câmbio de equilíbrio “corrente” seria exatamente igual à taxa de câmbio de equilíbrio “industrial”. Da mesma forma, uma economia contagiada pela “doença holandesa” teria uma taxa de câmbio de equilíbrio “corrente” mais apreciada que a taxa de câmbio de equilíbrio “industrial”.

Nas palavras de Bresser-Pereira (2010):

A taxa de câmbio de equilíbrio corrente no país atingido pela doença holandesa é determinada pelo custo marginal em moeda nacional do bem que lhe dá origem (…). Esse custo é igual ao preço em moeda nacional pelo qual todos os produtores, inclusive o produtor marginal ou menos eficiente que logra exportar, aceitam para poder exportar. Quando ocorre a doença holandesa, esse preço é substancialmente menor do que o “preço necessário” – ou seja, o preço que torna economicamente viável a produção de bens comercializáveis utilizando tecnologia no estado da arte. É, portanto, um preço inferior ao necessário para que a taxa de câmbio de equilíbrio corrente se iguale à taxa de câmbio de equilíbrio industrial. Quanto menor for o custo marginal e, portanto, o preço de mercado do bem exportado em relação ao preço necessário, maior será a renda ricardiana e mais apreciada será a moeda do país (BRESSER-PEREIRA, 2010, p. 128).

Para Bresser-Pereira (2005; 2007b, 2010a), uma maneira de transformar a “maldição dos recursos naturais” em “bênção dos recursos naturais”, ou seja, uma forma de corrigir a falha de mercado consiste em adotar, via intervenção do Estado na economia, mecanismos de neutralização da “doença”. De acordo com o autor, esses mecanismos relacionam-se ao regime de câmbio flexível, porém administrado. A administração da taxa de câmbio dar-se-ia por intermédio de quatro medidas: redução da taxa de juros, controle do nível de reservas cambiais, maior regulação sobre a movimentação de capitais internacionais e instituição de um imposto sobre as vendas dos produtos responsáveis pela manifestação da “doença holandesa”.

Segundo Bresser-Pereira (2007b), economias que sofrem de “doença holandesa” deveriam conduzir a quarta medida, isto é, estabelecer um imposto sobre as vendas de produtos que causam a falha de mercado. “O efeito desejado do imposto é microeconômico: ele desloca a curva de oferta do bem para cima de forma a trazer seu custo marginal, aproximadamente, para o nível dos demais bens ou, em outras palavras, corrigindo a taxa de câmbio de equilíbrio corrente para torná-la igual à de equilíbrio industrial” (BRESSER-PEREIRA, 2010a, p. 132). Neste sentido, a alíquota do imposto deveria ser equivalente à diferença percentual entre a taxa de câmbio de equilíbrio “corrente” e a taxa de câmbio de equilíbrio “industrial”.

A respeito dos recursos advindos do imposto supramencionado, Bresser-Pereira (2007b) defende que os mesmos deveriam constituir um fundo internacional de ativos financeiros. Esse fundo seria criado para evitar a internalização dos recursos e, inevitavelmente, a reapreciação cambial.


3 - A hipótese de “doença holandesa” no Brasil: mito ou realidade?

A principal questão que se coloca no debate acerca do fenômeno da “doença holandesa” refere-se à apreciação cambial resultante da entrada de dólares no país por conta do expressivo aumento das exportações de commodities. Tendo essa questão como base, objetiva-se, na presente seção, identificar possíveis sintomas da “doença holandesa” no Brasil.

Inicialmente, vale a pena salientar, conforme Nassif (2006) e Jank et al. (2008), que a apreciação cambial pode exercer tanto impactos positivos como negativos sobre o desempenho do comércio exterior de um determinado país. Por um lado, a valorização cambial tende a afetar negativamente o comércio exterior ao reduzir a rentabilidade das commodities e demais produtos exportados e, além disso, ao aumentar os preços de exportação, com consequente perda de competitividade, sobretudo entre os produtos manufaturados, isto é, produtos de maior valor agregado. Por outro lado, a apreciação cambial também poderia reduzir os custos de aquisição de máquinas e equipamentos importados, contribuindo, assim, para a modernização do parque industrial doméstico e, por conseguinte, para o aumento de seu potencial competitivo. Além disso, a apreciação cambial também poderia contribuir para o controle da inflação por meio do barateamento dos produtos importados ante os preços dos bens produzidos internamente. “De acordo com o Banco Central, entre 2003 e 2006 a apreciação cambial contribuiu, em média, 1 p. p. para desinflar a economia. São inegáveis os impactos da desinflação sobre a trajetória dos juros, os ganhos reais de renda e a redução do custo de capital para as empresas” (BARROS; PEREIRA, 2008, p. 313).

Após evidenciar, sumariamente, os efeitos positivos e negativos da apreciação cambial, apresenta-se por intermédio do Gráfico 1 a evolução do Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real no período 2000-2010 (periodização mensal). Ressalta-se que movimentos ascendentes do Índice indicam depreciação cambial e movimentos descendentes apontam apreciação da moeda doméstica. Observa-se, em uma primeira análise, elevada volatilidade do Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real ao longo dos anos 2000 e, além do mais, identifica-se uma acentuada tendência de valorização da moeda brasileira a partir de 2003.

No primeiro triênio da década de 2000, período anterior à trajetória de forte apreciação do Real, o Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real apresentou elevada volatilidade. Ao longo do ano 2000, registrou-se apreciação cambial no primeiro trimestre. Neste interregno, o Real valorizou-se cerca de 3,8%. Esse movimento, conforme o Relatório Anual do Boletim do Banco Central do Brasil (2000) resultou do restabelecimento da confiança dos agentes econômicos na retomada do crescimento da economia brasileira, bem como da ausência de pressões externas sobre a taxa de câmbio. No segundo trimestre, diante das expectativas de que o Federal Reserve (FED) elevaria as taxas de juros norte-americanas com a finalidade de desaquecer a economia e eliminar as pressões inflacionárias e, além disso, diante de uma conjuntura de ascensão dos preços internacionais do petróleo, a moeda brasileira sofreu uma depreciação de cerca de dois pontos percentuais. Após uma rápida valorização nos meses de agosto e setembro, o Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real seguiu uma tendência de desvalorização no último trimestre de 2000. Essa desvalorização, segundo o Relatório Anual do Boletim do Banco Central do Brasil (2000), foi consequência das incertezas quanto ao desempenho da economia norte-americana e das instabilidades política e econômica observadas na Argentina. Esses fatores teriam provocado fugas de capitais da economia brasileira.

Gráfico 1 - Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real (Jan. 2000-Dez. 2010).

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do IPEADATA.
Nota 1: Linha cinza representa a tendência polinomial de ordem seis.
Nota 2: O Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real foi corrigido pelo INPC – exportações. Índice 2005 = 100.

A tendência de desvalorização cambial iniciada nos últimos meses de 2000 persistiu até outubro de 2001. Nos dez primeiros meses de 2001 o Real depreciou-se cerca de 27,30%. Quais fatores explicariam esse movimento do Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real? De acordo com o Relatório Anual do Boletim do Banco Central do Brasil (2001), a depreciação da moeda nacional resultou de um cenário externo caracterizado pela crise argentina, pelas incertezas referentes à recuperação econômica dos Estados Unidos da América e pelos atentados terroristas ocorridos em 11 de setembro de 2001. No âmbito interno, teria contribuído para o aumento da taxa de câmbio efetiva real as expectativas relacionadas às restrições de oferta de energia elétrica, que poderiam impor restrições ao crescimento da economia brasileira.

Os choques ocorridos na economia mundial, especialmente após os atentados de 11 de setembro de 2001, mostraram a importância da adoção do regime de taxas de câmbio flutuantes como resposta a essas situações de instabilidade financeira. A magnitude da crise internacional e os efeitos inflacionários de uma frequente depreciação da moeda brasileira exigiram que o Banco Central atuasse de modo a aliviar parte da pressão sobre a taxa de câmbio por meio da emissão de títulos indexados à taxa de câmbio, bem como de intervenções no mercado à vista (Relatório Anual do Banco Central do Brasil, 2002, p. 123-124).

A adoção dessas medidas intervencionistas impediu a continuidade da tendência de depreciação cambial. O ponto de inflexão da série ocorreu em outubro de 2001 (ver Gráfico 1). Conforme os dados do IPEADATA, a moeda brasileira apreciou-se cerca de 30,25% entre outubro de 2001 e abril de 2002. Nos seis meses seguintes, ou seja, entre os meses de maio e outubro de 2002, o Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real seguiu uma tendência ascendente. Em outubro de 2002, o Índice atingiu o maior valor da década de 2000 (154,52). Nesses seis meses, o Real desvalorizou-se cerca de 48%. “Neste contexto, a taxa de câmbio ultrapassou o patamar de R$ 3/US$ 1 no final de julho” (Relatório Anual do Banco Central do Brasil, 2002, p. 124). Como explicar essa aguda depreciação cambial?
De acordo com o Relatório Anual do Boletim do Banco Central do Brasil (2002), esse rápido aumento da taxa de câmbio efetiva real pode ser explicado pelos seguintes fatores:

A partir de outubro de 2002, o Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real seguiu uma trajetória de contínua apreciação. Entre os meses de outubro de 2002 e dezembro de 2010, o Real valorizou-se cerca de 47%. Quais fatores explicariam essa trajetória de forte apreciação cambial? A tendência de apreciação do Real seria resultado do processo de “doença holandesa”? Será verdade que o boom das exportações brasileiras esteja ocorrendo principalmente em função do aumento do preço das commodities nos mercados internacionais? Essas foram as questões que fomentaram o debate acadêmico acerca da manifestação (ou não) de um processo de “doença holandesa” no Brasil na década de 2000. Desta maneira, com o intuito de contribuir para o debate sobre essas e outras questões, procura-se trazer dados empíricos que contemplem o perfil e a dinâmica da balança comercial brasileira.

À luz do conceito do fenômeno da “doença holandesa”, apresenta-se, na sequência, uma análise das principais variáveis associadas a esse fenômeno, tendo como objetivo identificar possíveis sintomas dessa “doença” no Brasil. Desta maneira, inicialmente, evidencia-se no Gráfico 2 a evolução do Índice de Preços de Commodities Primárias (Index of Primary Commodity Prices ou IPCP). Esse indicador é publicado regularmente pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) por meio da ponderação da participação das principais commodities no total exportado mundialmente dentro desta categoria. Observa-se que o Índice cresceu ininterruptamente no período 2001-2008. No confronto 2008/2001, verifica-se um crescimento de 195%. “Essa elevação, embora beneficiasse o país cujas receitas de exportação aumentaram, significava que a doença holandesa estava se agravando, ou seja, que a diferença entre a taxa de câmbio de equilíbrio corrente e a de equilíbrio industrial aumentara (…)” (BRESSER-PEREIRA; MARCONI, 2010, p. 218). Essa tendência ascendente do indicador foi consequência do ciclo de expansão da economia internacional, especialmente da demanda das principais economias emergentes por commodities. No biênio 2008-2009, entretanto, o Índice de Preços de Commodities Primárias decresceu cerca de 30% devido aos efeitos da crise financeira global, iniciada no setor imobiliário da economia norte-americana. Contudo, o crescimento do Índice é retomado no ano de 2010.

Gráfico 2 - Índice de Preços de Commodities Primárias - IPCP (2001-2010).

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do FMI (Fundo Monetário Internacional).
Nota: 2005 = 100, em termos de dólares americanos.

É importante frisar que o significativo aumento dos preços internacionais das commodities primárias ocorreu concomitantemente à trajetória de apreciação da moeda brasileira. Seria essa variável a principal responsável pela contínua queda do Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real, verificada entre outubro de 2002 e dezembro de 2010? Para obter uma resposta será preciso analisar o desempenho do saldo comercial brasileiro de commodities e do saldo comercial segundo produtos “industriais” ao longo do período considerado.

A evolução do saldo comercial de commodities ao longo dos anos 2000 é ilustrada por intermédio do Gráfico 3. Verifica-se que o saldo comercial cresceu substancialmente no interregno 2000-2008. No confronto 2008/2000, constata-se um crescimento de 330%. Em 2010, o saldo comercial dessas mercadorias atingiu US$ 67.662 milhões, o maior valor registrado na primeira década do século XXI. Esse desempenho altamente significativo do saldo brasileiro de commodities no decênio 2000 refletiu o forte aumento dos preços internacionais dessas commodities, que, por sua vez, foi resultado, principalmente, da intensificação da demanda por commodities pelos países populosos da Ásia. Além disso, ressalta-se que o expressivo aumento do saldo comercial de commodities ocorreu paralelamente à trajetória de forte apreciação do Real, o que corrobora a hipótese de “doença holandesa” no Brasil.

Gráfico 3 - Saldo Comercial de Commodities (2000-2010) - US$ Milhões.

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do BCB. Nota 1: Para o cálculo do saldo comercial de commodities, foram considerados os seguintes produtos: Exportação – Algodão em bruto, Café em grão, Carne bovina “in natura”, Carne suína “in natura”, Carne de frango “in natura”, Farelo de soja, Soja em grão, Óleo de soja em bruto, Fumo em folhas, Minérios de alumínio, Minérios de ferro, Minérios de manganês, Açúcar em bruto, Açúcar refinado, Alumínio em bruto, Couros, Gasolina, Óleos combustíveis, Suco de laranja e Semimanufaturados de ferro e aço. Importação – Petróleo em bruto, Trigo em grãos, Hulhas, Algodão em bruto, Minérios de cobre e seus concentrados, Milho em grãos, Arroz em grãos, Soja em grãos, Carne de bovino “in natura”, Minérios de zinco, Feijão preto, Couros, Óleo de soja em bruto e Alumínio em bruto. Nota 2: O Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real é apresentado anualmente. Para obtê-lo a partir dos valores mensais, utilizou-se o conceito de média aritmética simples.

Diferentemente do saldo comercial de commodities, o comportamento do saldo da balança comercial de produtos “industriais” está correlacionado ao do Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real. Essa constatação pode ser observada por meio do Gráfico 4. Verifica-se que, após registrar déficit no biênio 2000-2001, a balança comercial segundo produtos “industriais” passa a registrar superávit, atingindo seu ápice em 2005, quando foi registrado um superávit comercial de US$ 33.235 milhões. A partir dessa data, porém, o saldo comercial de produtos “industriais” tornou-se decrescente, registrando déficit no triênio 2008-2010. A redução do saldo comercial desses produtos ocorreu concomitantemente à trajetória de apreciação da moeda brasileira. “Confirma-se assim a hipótese do agravamento da doença holandesa nesse período, já que, ao contrário do que acontece com as commodities em momentos como esse, o desempenho comercial dos produtos manufaturados depende fortemente de uma taxa de câmbio competitiva” (BRESSER-PEREIRA; MARCONI, 2010, p. 220).

Em síntese, a análise precedente revela que o aumento do superávit comercial de commodities e, em contrapartida, a redução do superávit comercial de produtos manufaturados ocorreu em um cenário macroeconômico caracterizado por forte apreciação da moeda brasileira. Essa constatação consiste em uma evidência de que a economia brasileira fora contagiada pela “doença holandesa” na década de 2000.

Gráfico 4 - Saldo Comercial Brasileiro (US$ Milhões) e Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real.

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do MDIC e do IPEADATA.
Nota: O Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real é apresentado anualmente. Para obtê-lo a partir dos valores mensais, utilizou-se o conceito de média aritmética simples.

Adicionalmente, afirma-se, conforme Bresser-Pereira e Marconi (2010), que um cenário típico de “doença holandesa” refere-se ao contexto no qual coexistem saldos positivos da balança comercial e apreciação da moeda doméstica. Deste modo, com a finalidade de verificar a ocorrência desse cenário na economia brasileira no decorrer da década de 2000, apresentam-se no Gráfico 5 informações relativas à balança comercial do Brasil no período 1996-2010.

Neste período, a trajetória da balança comercial brasileira divide-se claramente em três fases. A primeira se estende de 1996 a 2002, período no qual o país elimina seu déficit comercial e passa a gerar superávit de US$ 13.319 milhões (ver Gráfico 5). Em 1996-2002 as exportações cresceram cerca de 4% ao ano, em média. Esse desempenho, segundo Ribeiro e Markwald (2008) pode ser considerado decepcionante haja vista a tendência de desvalorização cambial que caracterizou o contexto macroeconômico brasileiro entre os anos 1999 e 2003.

A segunda fase, por sua vez, refere-se ao quadriênio 2003-2006. Neste período, registrou-se um crescimento acelerado das exportações, com taxa média anual de crescimento na ordem de 23%. No confronto 2006/2003, as exportações brasileiras cresceram cerca de 88%. Em 2006, as exportações alcançaram US$ 137.470 milhões. As importações brasileiras também apresentaram um comportamento ascendente a partir do ano de 2003, porém, seu desempenho, em termos de valor, foi inferior ao das exportações. Desta forma, o saldo comercial subiu para a casa dos US$ 46.120 milhões em 2006, o maior valor registrado na primeira década do século XXI. Esse bom desempenho da balança comercial brasileira ocorreu a despeito de uma taxa de câmbio apreciada. “(…) o superávit da balança comercial tem sido obtido principalmente pelo crescimento da economia mundial e ganho de espaço nos mercados em que o país detém vantagem comparativa” (NAKAHODO; JANK, 2006, p. 14). Entre 2003 e 2006 o saldo comercial e o câmbio seguiram trajetórias opostas, o que mostra indícios de manifestação da “doença holandesa” na economia brasileira.

Gráfico 5 - Balança Comercial Brasileira (1996-2010) - US$ Milhões.

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do MDIC e do BCB.
Nota: O Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real é apresentado anualmente. Para obtê-lo a partir dos valores mensais, utilizou-se o conceito de média aritmética simples.

Finalmente, a terceira fase compreende o período 2007-2010. Ao longo desses quatro anos, o crescimento das importações, em termos de valor, foi superior ao das exportações. Enquanto as importações cresceram 22,89% ao ano, em média, as exportações registraram uma taxa média anual de crescimento de 12,33%. Como consequência, no quadriênio 2007-2010, o saldo da balança comercial apresentou um comportamento cadente. “Como não houve no período diminuição da demanda externa, nem queda nos preços, essa diminuição do saldo só pode ser explicada pela sobreapreciação da taxa de câmbio que, afinal, ocorrera” (BRESSER-PEREIRA; MARCONI, 2010, p. 209). Além do mais, “quando o superávit comercial começou a diminuir isso significava que era a entrada de capitais que estava adicionalmente (em relação à doença holandesa) provocando a apreciação do câmbio” (BRESSER-PEREIRA; MARCONI, 2010, p. 207).

Ao analisar o desempenho da balança comercial brasileira após a desvalorização cambial, ocorrida em janeiro de 1999, Ribeiro e Markwald (2008) apresenta o seguinte comentário:

O desempenho da balança comercial no período de flutuação cambial apresenta um paradoxo: o período em que se registrou o maior aumento do superávit comercial e a taxa mais elevada de crescimento das exportações coincide, justamente, com a fase de valorização do câmbio real. Com efeito, do lado das importações, a taxa de câmbio agiu da forma esperada, promovendo a sua contração nos anos de desvalorização e induzindo uma forte recuperação na fase de valorização. Do lado das exportações, ao contrário, a reação parece ter sido bastante limitada durante a fase de desvalorização e vem se mostrando também muito demorada e pouco intensa na já prolongada fase de valorização (RIBEIRO; MARKWALD, 2008, p. 358).

Em suma, observou-se uma significativa mudança na relação entre a taxa de câmbio e o saldo da balança comercial. Ambas as séries, como esperado, seguiram trajetórias semelhantes entre os anos 1996 e 2003. Ou seja, o saldo comercial aumentava em períodos nos quais o Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real estava crescendo (desvalorização cambial) e diminuía em períodos nos quais o referido Índice estava decrescendo (valorização cambial). No triênio 2004-2006, contudo, a evolução das duas variáveis foi oposta, isto é, registrou-se aumento do saldo da balança comercial em um cenário de forte apreciação cambial. A partir de 2007, ambas as variáveis passaram novamente a oscilar na mesma direção. Como explicar a divergência entre a evolução do saldo comercial e do Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real, constatada no período 2004-2006? Essa divergência possui duas possíveis explicações. “De um lado, depois do pico de dezembro de 2002, a taxa de câmbio estava voltando para um nível de equilíbrio; de outro, a elevação da demanda internacional e dos preços das commodities exportadas pelo Brasil levou a um aumento de exportações independentemente da apreciação do Real” (BRESSER-PEREIRA; MARCONI, 2010, p. 209).

Com a finalidade de obter subsídios adicionais para aceitar ou refutar a hipótese de “doença holandesa” no Brasil, apresenta-se por intermédio da Tabela 1, a decomposição da evolução do valor exportado entre preços e quantidades no período 2000-2010. A análise da evolução dos índices de preço e quantum do total geral exportado pelo Brasil ao longo da década de 2000 permite identificar que os preços de exportação exerceram um papel crucial na evolução do valor exportado. No período considerado, o índice de preço das exportações brasileiras ficou abaixo do índice de quantum em apenas três anos (2003, 2004 e 2005).

Tabela 1 - Índices de Preço e Quantum de Exportação – Brasil (2000-2010).

AnoBásicoSemimanufaturadosManufaturadosTotal Geral
PreçoQuantumPreçoQuantumPreçoQuantumPreçoQuantum
200069,8044,7069,5062,6079,8054,4074,1054,00
200163,9059,6062,3067,8079,8055,1071,6059,10
200261,3068,7059,4077,3076,1057,9068,3064,20
200367,7077,7066,1084,8075,7070,1071,5074,30
200480,4088,1075,7090,9080,2088,3079,3088,50
200591,4094,3084,7096,6089,0097,9088,9096,80
2006100,00100,00100,00100,00100,00100,00100,00100,00
2007114,50111,80110,90100,70108,40103,20110,50105,50
2008161,80112,10138,9099,80126,0098,10139,60102,90
2009133,40115,30110,8094,80118,6075,70120,9091,80
2010174,00128,40142,90101,10128,7082,40145,70100,60

Fonte: FUNCEX/MDIC.

Ao analisar a evolução dos índices de preço e quantum das exportações brasileiras por fator agregado (Tabela 1), verifica-se que, no confronto 2010/2000, o maior crescimento ocorreu com os índices de preço e quantum das exportações de produtos básicos. Esses índices evoluíram, respectivamente, de 69,8 e 44,7 em 2000 para 174 e 128,4 em 2010. Esta constatação constitui mais uma evidência de que a economia brasileira fora contagiada pela “doença holandesa” no decorrer da década de 2000. Isso porque o crescimento dos índices de preço e quantum foi significativamente maior, entre os anos 2000 e 2010, para os produtos básicos, que poderiam gerar a “doença holandesa” no caso brasileiro, dadas suas vantagens comparativas, em comparação aos produtos semimanufaturados e, sobretudo, aos manufaturados, que, supostamente, sofreriam os impactos negativos da “doença”.

Em seguida, realça-se por meio do Gráfico 6 a relação entre o Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real e a evolução do índice de quantum das exportações brasileiras de produtos básicos e manufaturados. Em uma primeira análise, pode-se observar maior sensibilidade entre o câmbio e a quantidade exportada de bens manufaturados do que entre o câmbio e a quantidade exportada de produtos básicos. Percebe-se que, a partir de 2004, com a intensificação da tendência de apreciação do Real, o crescimento do índice de quantum das exportações de bens manufaturados se desacelera. Esse movimento estaria indicando perda de competitividade das exportações brasileiras de manufaturados. Em contrapartida, o índice de quantum das exportações de produtos básicos manteve-se em crescimento, refletindo o aquecimento da demanda externa.

Gráfico 6 - Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real e a Evolução do Índice de Quantum de Exportação de Produtos Básicos e Manufaturados no Brasil (2000-2010).

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do MDIC e do BCB.
Nota: O Índice da Taxa de Câmbio Efetiva Real é apresentado anualmente. Para obtê-lo a partir dos valores mensais, utilizou-se o conceito de média aritmética simples.

Por fim, resta analisar os efeitos da apreciação do Real sobre a composição da pauta de exportações da economia brasileira. O objetivo dessa análise consiste em verificar se a referida apreciação cambial estaria condicionando um movimento de reprimarização da pauta de exportações do Brasil. Por meio dessa análise será possível qualificar ou refutar a hipótese de “doença holandesa” no Brasil. Para tanto, são avaliados os dados estatísticos referentes à participação relativa das exportações de produtos “industriais” e produtos “não industriais”, bem como os dados referentes à participação relativa das exportações por intensidade tecnológica, segundo a taxonomia da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), e, finalmente, analisa-se também as exportações brasileiras por fator agregado.

Primeiramente, apresenta-se por meio do Gráfico 7 a composição da pauta de exportações brasileira entre produtos “industriais” e produtos “não industriais”. Os dados são da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Ao analisar a evolução da participação relativa das exportações de produtos “industriais” entre os anos 1996 e 2010, constata-se uma nítida tendência de queda. Em 1996, as exportações de produtos “industriais” representavam 83,6% do total exportado pela economia brasileira. Essa participação declinou ininterruptamente ao longo da década de 2000, atingindo, em 2010, 63,6% da pauta exportadora do Brasil. Isso significa que a participação das exportações de produtos “industriais” em relação às exportações totais declinou 20 pontos percentuais em apenas quinze anos. Ademais, ressalta-se que a tendência declinante dessa participação se acelerou a partir de 2003, coincidindo, assim, com o período de forte apreciação da moeda brasileira.

Diferentemente da participação relativa das exportações de produtos “industriais”, a participação das exportações de produtos “não industriais” nas exportações totais da economia brasileira seguiu uma tendência ascendente ao longo do período 1996-2010. Neste interregno, a participação relativa dos produtos “não industriais” aumentou 20 pontos percentuais. Salienta-se que a elevação da participação relativa das exportações dos produtos “não industriais” se acelerou ao longo da segunda metade da década de 2000, isto é, concomitantemente à trajetória de apreciação do Real.

Gráfico 7 - Participação dos Produtos “Industriais” e “Não Industriais” na Pauta de Exportações da Economia Brasileira (1996-2010) - Em %.

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Secex/MDIC.

Este é um cenário típico de “doença holandesa”. Isso porque a apreciação cambial, provocada, entre outros fatores, pelo expressivo aumento das exportações de commodities ou produtos básicos, produtos de reduzido valor agregado, faz com que as exportações de bens industrializados percam competitividade. Consequentemente, observa-se uma elevação da participação de produtos de reduzido valor agregado na pauta de exportações, isto é, verifica-se um processo de empobrecimento ou de reprimarização da pauta exportadora do país.

O retrato das mudanças ocorridas na composição da pauta de exportações brasileira a partir de 1996 e, especificamente, após a instituição do câmbio flutuante, em janeiro de 1999, pode ser complementado com base na discriminação das vendas externas de produtos industrializados segundo seu grau de intensidade tecnológica (Gráfico 8). Observa-se que a participação conjunta das exportações de produtos da indústria de alta e média-alta tecnologia em relação às exportações totais de produtos “industriais” diminuiu cerca de 4,5 pontos percentuais no confronto 2010/1996. Quando se analisa isoladamente a participação relativa das indústrias de alta e média-alta tecnologias, verifica-se um aumento da participação das exportações de produtos da indústria de alta intensidade tecnológica nas exportações totais de produtos “industriais” e uma redução dessa participação para as exportações de produtos da indústria de média-alta intensidade tecnológica.

A participação relativa das exportações da indústria de alta tecnologia aumentou continuamente no quinquênio 1996-2000. Em 1996, 4,3% das exportações totais de produtos “industriais” eram referentes aos produtos da indústria de alta intensidade tecnológica. Em 2000, essa proporção aumentou para 12,4%, ou seja, um aumento de cerca de oito pontos percentuais. Ao longo dos anos 2000, a participação das exportações da indústria de alta intensidade tecnológica nas exportações totais de produtos “industriais” diminuiu, atingindo 4,6% em 2010, ainda assim um valor superior ao registrado em 1996. Contribuíram para esse desempenho o crescimento dos subsetores Aeronáutica e aeroespacial e Equipamentos de rádio, TV e comunicação.

A participação das exportações de produtos da indústria de média-alta tecnologia nas exportações totais de produtos “industriais” decresceu cerca de cinco pontos percentuais entre os anos 1996 e 2010, ou seja, passou de 22,8% em 1996 para 18% em 2010. Neste segmento, destacam-se os seguintes subsetores industriais: Veículos automotores, reboques e semirreboques, com participação relativa média de 9,2% ao ano no período 1996-2010; Produtos químicos, excluindo farmacêuticos, cuja participação relativa média atingiu 5,3% ao ano no período considerado e, por fim, Máquinas e equipamentos mecânicos, com participação relativa média na ordem de 5,7% ao ano no mesmo período.

No que se refere à participação conjunta das exportações de produtos das indústrias de média-baixa e baixa tecnologias nas exportações totais de produtos “industriais”, observa-se uma redução de 15,5 pontos percentuais no confronto 2010/1996. Ressalta-se que a participação relativa desses segmentos industriais é predominante na pauta exportadora de produtos “industriais”. A participação relativa média das exportações de produtos das indústrias de média-baixa e baixa tecnologias atingiu 48,4% ao ano no período 1996-2010. Nestes segmentos, destacam-se os subsetores Produtos metálicos e Alimentos, bebidas e tabaco. Por fim, vale à pena enfatizar que a participação relativa das exportações da indústria de baixa tecnologia foi superior, em todos os anos considerados, em comparação com a participação relativa das exportações das demais indústrias.

Gráfico 8 - Participação Relativa das Exportações Brasileiras por Intensidade Tecnológica (1996-2010) - Em %.

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da Secex/MDIC.

Em resumo, a análise da composição da pauta de exportações brasileira segundo a intensidade tecnológica permitiu constatar que, ao longo do período 1996-2010, a participação das exportações de produtos “industriais” em relação às exportações totais da economia brasileira sofreu uma significativa redução. Em contrapartida, verificou-se um aumento da participação das exportações de produtos “não industriais” na pauta de exportações. Essas mudanças configurariam um processo de reprimarização da referida pauta ou, em outras palavras, a economia brasileira estaria se especializando na produção de bens de reduzido valor agregado. Ademais, a análise anterior também permitiu identificar que, dentro da categoria de produtos “industriais”, predomina-se a participação das exportações de produtos das indústrias de média-baixa e baixa tecnologias. Esse cenário contribui para a qualificação da hipótese de “doença holandesa” no Brasil.

Como informação complementar, expõe-se por meio do Gráfico 9 a evolução do saldo da balança comercial por intensidade tecnológica no período 1996-2010. Observa-se nitidamente uma tendência ao “empobrecimento” da pauta de exportações da economia brasileira. Essa tendência pode ser visualizada pela geração de crescentes superávits comerciais na indústria de baixa intensidade tecnológica, em detrimento do saldo comercial das indústrias de média-baixa, média-alta e alta tecnologias. “(…) o saldo da balança comercial, visto pela ótica da intensidade tecnológica dos setores, confirma a perda de competitividade externa do setor manufatureiro com maior conteúdo tecnológico simultaneamente à expansão das exportações de bens de menor intensidade tecnológica” (PEREIRA, 2010, p. 164). O superávit comercial dos setores de baixa intensidade tecnológica cresceu ininterruptamente entre os anos 2000 e 2008, passando de US$ 11.435 milhões, em 2000, para US$ 40.158 milhões, em 2008. Em contrapartida, o déficit comercial dos setores de alta intensidade tecnológica é crescente desde 2002, tendo-se mantido elevado em todo o período. A mais expressiva mudança ocorreu no setor de média-alta intensidade tecnológica, que, após reduzir seu déficit no período que vai de 2002 a 2004, voltou a apresentar vertiginoso crescimento de saldos negativos, alcançando mais de US$ 38 bilhões em 2010.

Em síntese, afirma-se que a partir de 2003, devido à forte apreciação cambial, os produtos tecnologicamente mais sofisticados estariam perdendo participação relativa na pauta de exportações brasileira. Neste contexto, se sobressaem atividades para as quais o Brasil possuiria vantagens comparativas estáticas, como, por exemplo, a produção de Madeira e seus produtos, papel e celulose; Alimentos, bebidas e tabaco; Têxteis, couros e calçados. Conclui-se, portanto, que a análise das mudanças ocorridas na estrutura interna das exportações de produtos “industriais” no período 1996-2010 permitiu qualificar a hipótese de que o Brasil teria retrocedido a um padrão de especialização “ricardiano rico em recursos”.

Gráfico 9 - Saldo Comercial Brasileiro por Intensidade Tec

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do MDIC.

Outra abordagem da composição da pauta de exportação refere-se à divisão entre produtos de baixo grau de elaboração (em geral commodities) e produtos industrializados. Nessa perspectiva, um fato que vem sendo destacado com preocupação diz respeito ao crescimento da participação das exportações de produtos básicos na pauta exportadora brasileira. De fato, o Gráfico 10 ilustra que, a partir de 2003, a participação desses produtos no total exportado pela economia brasileira se elevou consideravelmente: de 1992 a 2010 o percentual subiu de 24% para 44,7%, isto é, um aumento de cerca de 20 pontos percentuais.

Essa participação vem registrando um movimento ascendente desde 2000, havendo uma nítida mudança de patamar, de cerca de 25,5% no período 1992-1999 para 28,7% entre 2000-2007 e 41,3% em 2008-2010. Parte desse ganho se deu, de fato, às expensas dos produtos manufaturados. Entretanto, a redução de participação relativa desse grupo só foi mais expressiva a partir de 2005. No confronto 2010/2005, a participação dos produtos manufaturados na pauta de exportações do Brasil diminuiu cerca de 15 pontos percentuais. Os produtos semimanufaturados também sofreram uma pequena queda de participação relativa nos anos recentes, com um percentual de 13,7% em 2010, contra níveis superiores a 15% no interregno 1994-2000.

Esses números indicam que o aumento da participação dos produtos menos elaborados nas exportações do país, destacadamente dos básicos, é uma tendência firme no período de flutuação cambial e não um fenômeno passageiro, sem que seja possível detectar até o momento nenhum sinal claro de reversão dessa tendência (RIBEIRO; MARKWALD, 2008, p. 363).

Gráfico 10 - Pauta de Exportações Brasileira (1992-2010) - Participação %.

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do MDIC.

Essa constatação corrobora as informações observadas nos Gráficos 8 e 9 de que estaria em marcha no Brasil um processo de “empobrecimento” da pauta de exportações e, por conseguinte, contribui para qualificar a hipótese de manifestação do fenômeno da “doença holandesa” no decorrer dos anos 2000. Segundo Ribeiro e Markwald (2008, p. 363-364), o entendimento desse fenômeno passa pela análise de quatro fatores, sendo três de ordem estrutural e um de cunho conjuntural:


4 - Considerações Finais

Foram desenvolvidas no presente artigo análises da economia brasileira no decorrer da primeira década do século XXI. Essas análises objetivaram verificar se a apreciação da moeda brasileira, evidenciada a partir do último trimestre de 2002, resultou da manifestação do fenômeno da “doença holandesa”.

Para alcançar esse objetivo, inicialmente, desenvolveu-se uma revisão da literatura econômica acerca do fenômeno da “doença holandesa”. Em seguida, empreendeu-se uma análise com a finalidade de verificar sintomas da manifestação desse fenômeno na economia brasileira no período 2000-2010.
As análises permitiram identificar vários sintomas do fenômeno da “doença holandesa” na economia brasileira, especialmente a partir do ano de 2003. Esses sintomas permitem confirmar a hipótese de “doença holandesa” no Brasil na década de 2000. Os principais sintomas são sintetizados abaixo:


5 - Referências

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  1. Corden e Neary (1982) foram pioneiros na elaboração de modelos teóricos sobre a “doença holandesa”. Os autores construíram e testaram, por meio de métodos econométricos, modelos com os seguintes pressupostos: uma pequena economia aberta produtora de dois bens comercializáveis (energia e bens manufaturados) e um bem não comercializável (serviços). Corden (1984), por sua vez, promoveu uma consolidação da literatura econômica referente ao fenômeno da “doença holandesa”.
  2. Os termos “doença holandesa” e “maldição dos recursos naturais” são empregados por alguns autores para designar fenômenos distintos. Neste trabalho, porém, esses termos serão utilizados como sinônimos, isto é, utilizar-se-ão ambos os termos para se referir a um mesmo fenômeno. Esta estratégia está coerente com a metodologia adotada por Bresser-Pereira (2010a). Sobre os autores que distinguem os termos “doença holandesa” e “maldição dos recursos naturais”, ver, principalmente, Sachs e Warner (2001).