Uma análise sobre os fatores político-institucionais responsáveis pela manutenção do welfare state sueco no período 1930-2000.

Vinícius Eduardo Ferrari
Doutor em Desenvolvimento Econômico, Instituto de Economia, UNICAMP.


Resumo

O objetivo deste artigo consiste em analisar os principais fatores político-institucionais que contribuíram para a manutenção do welfare state na Suécia no período 1932-2002 . O presente estudo constatou que as políticas públicas suecas conseguiram compatibilizar um sistema de serviços estatais e benefícios sociais universais com um regime previdenciário suplementar baseado nos rendimentos individuais, que foi projetado para atender os interesses das famílias de classe média. Esse desenho institucional híbrido logrou preservar o consenso político em torno da continuidade do welfare state. Sob esta perspectiva, as políticas públicas universais adotadas ao longo de sete décadas pelo Partido Social Democrata (PSD) influenciaram a cultura política da Suécia, tornando-a favorável às instituições do welfare state. Por consequência, a sociedade sueca passou a nutrir, cada vez mais, o sentimento de que, em democracias avançadas, o Estado tem o dever de prover os serviços de bem estar social.

Palavras-chaves: Suécia; instituições; welfare state.


An analysis about the political and institutional factors responsible for the preservation of the Swedish welfare state regime between 1930 to 2000.

Abstract

This paper aims to analyse the main political and institutional factors that helped to preserve the Swedish welfare state regime between 1930 to 2000. The study found that the Swedish state policies have been able to aggregate universal social security programs with a system of public pensions based upon individual earnings, that was designed to satisfy the middle-income families. This hybrid institutional arrangement has successfully built a political consensus over the preservation of the welfare state. Under this perspective, the universal public policies carried on by the Social Democrat Party for more than sixty years have given rise to a political culture favorable to the welfare state institutions. As consequence, the Swedish society has seen the provision of welfare services as a state duty in the advanced democracies.

Keywords: Sweden; institutions; welfare state.

JEL: H53.

1 - Introdução

Ao longo das últimas décadas, diversas forças políticas passaram a questionar a validade e a própria natureza das políticas sociais relacionadas ao welfare state1 europeu. Essas críticas têm apontado diversos elementos econômicos capazes de inviabilizar a manutenção das políticas de bem-estar social no futuro, tais como, o envelhecimento da população aliado à redução da taxa de natalidade, os problemas para o financiamento do sistema de previdência social, a impossibilidade de se manter uma carga tributária estatal elevada devido à globalização financeira (OFFE, 1988).

A despeito dessas críticas, na Suécia, as políticas de bem-estar social ainda contam com a simpatia da elite política do país e da grande maioria da população. Em diversas ocasiões, o Partido dos Moderados – organização de centro-direita – veio a público assegurar sua intenção de dar continuidade as instituições e as políticas sociais edificadas pelo seu grande adversário político – o Partido Social Democrata (doravante PSD) que, historicamente, tem representado a principal força política defensora do regime universalista sueco.

À luz dessas constatações, o intento primordial deste artigo consiste em analisar os principais fatores político-institucionais que contribuíram para a manutenção do welfare state sueco no período 1932-2002. Essas sete décadas se caracterizaram pela ampla hegemonia política do PSD. Os social democratas governaram a Suécia por 41 anos ininterruptos, de 1932 até 1973. Após perder as disputas eleitorais travadas em 1976 e 1979, o PSD sagrou-se novamente vitorioso nas eleições de 1982, estendendo o seu governo por mais 20 anos, até 20022.

A década de 2000 caracterizou-se pela derrocada eleitoral do PSD. O partido perdeu duas eleições consecutivas – 2006 e 2010. Em paralelo a esse acontecimento, a Suécia vivenciou nas duas últimas décadas algumas mudanças na pirâmide etária que forçaram reformas previdenciárias. Diante desse cenário, alguns autores mais céticos levantaram a hipótese de que as pressões políticas e distributivas recentes poderiam provocar uma retração do welfare state. A ideia central desse artigo vai no sentido oposto desse argumento. Defende-se a proposição de que as políticas públicas universais adotadas pelo PSD durante várias décadas influenciaram a cultura política da Suécia, tornando-a favorável a continuidade do regime sueco de assistência social. Esse “consenso político” tende a blindar o sistema de proteção social frente às alternâncias de governo típicas das sociedades democráticas3. Por consequência, o recorte temporal adotado neste artigo, que se estende de 1932 até 2002, visou, justamente, cobrir esse período de institucionalização de preferências políticas pró welfare state.

Em termos práticos, o presente estudo buscará nas obras de autores institucionalistas4 escandinavos algumas evidências para compreender o apoio da sociedade sueca ao regime de welfare state. Em complemento a esta introdução, o artigo traz mais 4 seções. A Seção 1 descreve as características institucionais dos distintos regimes de welfare state presentes no países centrais, com destaque para o modelo universalista sueco. A Seção 2 discute a trajetória histórica e política da Suécia no século XX; o presente estudo optou por enfatizar a alianças políticas articuladas pelo PSD que possibilitaram a instauração e a expansão do welfare state sueco. A Seção 3 aborda as forças sociais presentes na Suécia que têm interesse na manutenção deste arranjo institucional. Por fim, o balanço conclusivo empreenderá um esforço de análise e de agregação das principais reflexões que emergiram ao longo do desenvolvimento deste artigo.


Seção 1 – Regimes de welfare state

Devemos iniciar este artigo a partir de duas perguntas básicas: o que é o welfare state? Quando um Estado pode ser considerado um welfare state? O senso comum associa o conceito de welfare state à responsabilidade estatal no sentido de garantir o bem-estar básico dos cidadãos. Ainda de acordo com este raciocínio, o nível de despesas sociais representaria um importante indicador para verificar a existência ou não de um welfare state.

Essas acepções são extremamente simplistas. Prover o bem-estar básico dos cidadãos consiste na função de todos os Estados modernos, portanto, não podemos associar o welfare state a essa função estatal. Ademais a ótica do gasto social nos conduz a resultados enganosos. De acordo com Esping-Andersen (1999), durante o governo Margaret Thatcher na Inglaterra, a despesa social inglesa se ampliou devido aos gastos com seguro. Não obstante este fato, não devemos considerar o governo Thatcher como um sinônimo de preocupação com o bem-estar social.

Neste sentido, o primeiro desafio deste artigo consiste em apresentar conceitos mais abrangentes sobre o bem-estar social. Cabe, portanto, destacar a contribuição pioneira de Marshall (1950), presente na ideia de que a cidadania social está por trás da gênese do welfare state. Quando os direitos sociais adquirem status legal semelhante aos direitos de propriedade, quando são considerados invioláveis e atrelados cidadania, o Estado passa a assumir uma nova função –garantir estes direitos sociais.

A introdução dos direitos sociais promove a desmercantilização5 dos indivíduos6. Em síntese, o “grau de desmercantilização” remete à possibilidade de um cidadão obter os benefícios da proteção social sem a necessidade de recorrer ao mercado. Um exemplo seria o provimento de um sistema de saúde público que tornasse dispensável a aquisição de um plano de saúde privado no mercado (KING, 1988, p.53).

Em paralelo ao grau de desmercantilização, Esping-Andersen (1991) emprega três critérios adicionais durante as análises a respeito das políticas sociais adotadas por países distintos: i) o caráter dos benefícios sociais públicos, se são universais7 ou se são seletivos; ii) as políticas em relação ao mercado de trabalho e o emprego; iii) as políticas em relação às mulheres e a família. Com base nestes elementos, Esping-Andersen (1991) desenvolve uma tipologia de classificação que agrupa as nações desenvolvidas em três regimes de welfare state.

O Estado de bem-estar liberal ou anglo-saxão agrupa Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália. Este regime é caracterizado pela atuação seletiva do Estado, que fornece assistência social apenas aos indivíduos comprovadamente mais pobres que não têm condições de obter serviços essenciais no mercado. O Estado de bem-estar anglo-saxão apresenta o menor grau de desmercantilização. Isto ocorre porque o regime liberal não promove a independência do mercado, antes o contrário, os “benefícios são poucos e associados ao estigma social, o sistema de ajuda força a todos […]participarem do mercado” (ESPING-ANDERSEN, 1991 p.102). Diante deste cenário de benefícios estatais limitados, os gastos privados com saúde tendem a ser muito maiores nos países anglo-saxões.

Nos regimes liberais o Estado encoraja os mercados não apenas de forma passiva –ao garantir apenas o mínimo – mas também ativamente mediante subsídios direcionados aos planos de previdência privados. A participação das pensões privadas no total das pensões é maior nos países saxões do que nas demais nações desenvolvidas, ao passo que “as políticas de emprego e treinamento são marginais; […] a gestão do desemprego num regime liberal é considerada como uma questão de ajuste dos mercados diante da flexibilidade dos salários” (ESPING-ANDERSEN, 1999, p.82).

O segundo tipo de Estado de bem-estar é o conservador-corporativo, presente nos países da Europa continental – Alemanha, Itália, França e Áustria. Este regime apresenta um grau de desmercantilização superior aos países anglo-saxões. Isso ocorre, sobretudo, devido ao elevado montante de pensões públicas e a, consequente, participação residual da previdência privada nestes regimes. No entanto, mesmo neste caso, o grau de desmercantilização é limitado uma vez que o provimento destes mecanismos de proteção social atende somente quem contribui para a obtenção desses benefícios. Desse modo, faz-se necessária a inclusão do indivíduo no mercado de trabalho, para que o mesmo possa contribuir e receber os benefícios previdenciários.

Em contraste com os vultosos recursos gastos com pensões, as demais despesas públicas, tais como saúde e educação, são bem mais modestas. Por consequência, neste regime a presença dos planos de saúde privados é bem mais forte do que a previdência privada (ESPING-ANDERSEN,1999).

O terceiro regime de welfare state caracterizado pelo autor é o social-democrata universalista, predominante nos países escandinavos, em especial na Suécia. Este regime apresenta o maior grau de desmercantilização, uma vez que o Estado disponibiliza diversos benefícios e serviços públicos (tais como pensões, saúde, educação, treinamento e outras políticas de emprego). Estes gastos são considerados como direitos sociais atrelados à cidadania, independentes da posição no mercado. Por consequência a presença da iniciativa privada nos segmentos de previdência e saúde é apenas marginal.

Conforme assinala Esping-Andersen (1991), o financiamento deste vasto sistema universalista exige uma elevada carga tributária e uma ativa política estatal vinculada a promoção do emprego8. Desta forma, o Estado encontra-se ao mesmo tempo comprometido com a garantia do pleno emprego e inteiramente dependente de sua concretização. O welfare state universalista gera enormes custos que precisam ser amortizados. “A melhor forma de conseguir isso é, obviamente, com o maior número de pessoas trabalhando (pagando os impostos) e com o mínimo possível vivendo de transferência social” (ESPING-ANDERSEN,1991, p.110).

Ainda de acordo com ESPING-ANDERSEN (1991) as políticas suecas de promoção do emprego também abarcam as mulheres. Do lado da oferta, foram elaborados vários incentivos para potencializar o ingresso feminino no mercado de trabalho. Do lado da demanda, o crescimento do emprego público a partir da década de 60 propiciou novas oportunidades às mulheres.

Em termos práticos, o welfare state sueco é composto por três pilares projetados para garantir a manutenção geral de níveis elevados de renda: i) fornecimento público de serviços universais tais como assistência à saúde, educação básica, assistência às crianças e aos idosos, subsídios habitacionais e regulação pública do mercado imobiliário; ii) sistema universal de pensões e abonos às famílias que possuem filhos que possui um teto básico; iii) a existência de um segundo sistema de previdência social e de um sistema de seguro social – ambos públicos e obrigatórios - cujos benefícios refletem os rendimentos dos cidadãos no mercado de trabalho (ROTHSTEIN, 1990).


Seção 2: A construção do welfare state sueco

Muitos acadêmicos têm demonstrado imensa admiração pela capacidade do welfare state sueco em conciliar o crescimento econômico com a justiça social. Não são raros os estudos que sucumbiram à tentação do “suecocentrismo” , isto é, a tendência de definir a Suécia como um paradigma para a mobilização da classe trabalhadora e para a adoção de políticas públicas que deveria ser amplamente reproduzido em outros países (RUIN, 1990).

Conforme ressalta Rothstein (1998) esses estudos tendem a ignorar uma dimensão crucial - o modelo sueco de políticas de bem estar social reflete algumas características históricas específicas, impossíveis de serem reproduzidas em outras realidades sociais. À luz dessa perspectiva de path-dependency9, Rothstein (1990) e Ruin (1990) elencam algumas características singulares da Suécia e também alguns acontecimentos históricos que se revelaram crucias para a consolidação do wellfare state neste país: i) a natureza universalista do sindicalismo sueco; ii) as coalizões políticas forjadas pelo PSD; iii) a ausência da Suécia na Segundo Guerra Mundial.

De acordo com Ruin (1990), o sindicalismo sueco sempre apresentou uma vinculação muito íntima com o PSD. A década de 1930 representou um primeiro “momento crítico” para as relações partido-sindicato e para a construção do welfare state. Segundo Rothstein (1990, p.327), com a chegada ao poder em 1932, o PSD “criou as instituições do mercado de trabalho e as políticas que desde então” garantem a força do sindicalismo sueco. Dentre estas medidas, cabe destacar a criação do programa de seguro-desemprego denominado ghent system. Neste modelo, os fundos de seguro desemprego são administrados pelos sindicatos; consequentemente para os trabalhadores suecos obterem este benefício, eles necessitam participar destas organizações. Desta forma, o ghent system estimula a sindicalização dos trabalhadores e consequentemente fortalece o movimento sindical10.

Ao longo da década 1930, os distintos sindicatos presentes na Suécia não apresentaram uma orientação corporativista. Pelo contrário, durante toda a história sueca, “os sindicatos deliberadamente evitaram diferenças de salários e agiram no sentido de minimizar os diferenciais entre indústrias e diferentes regiões do país” (KING, 1988, p.68). Esse comportamento sindical contribuiu para criação de uma solidariedade salarial entre os diversos grupos sociais existentes na Suécia11.

Em 1938, os sindicatos suecos firmaram um importante acordo com a Associação Patronal Sueca. Neste acordo, os sindicatos abandonaram as propostas de socialização das propriedades industriais e também se prontificaram a garantir a qualidade da força de trabalho; em troca, a indústria se comprometeu a conceder salários elevados.

De acordo com Esping-Andersen (1991) a orientação coletivista do movimento operário sueco representa, sobretudo, uma consequência da ascensão dos sindicatos ao poder na década de 1930 mediante seu braço político, o PSD. A necessidade de construção de governos de coalizão exigiu a adoção de propostas de caráter mais universalista. A lideranças do PSD demonstraram aguçada percepção política: os social-democratas tinham plena consciência que um partido sindicalista sozinho jamais disporia de maioria parlamentar para implementar políticas sociais importantes12. O que importa destacar é que o PSD como partido de governo, “conseguiu em diversas áreas pôr-se de acordo com um ou mais partidos de oposição […] justamente àquelas áreas que representaram passos importantes da Suécia em direção a um amplo e avançado welfare state” (RUIN,1990, p.217).

Uma primeira aliança fundamental para o desenvolvimento do welfare state foi o acordo “verde-vermelho”. Nas primeiras fases da industrialização, as classes rurais, representadas, sobretudo, pelo Partido Agrário consistiam na maior parcela do eleitorado. A oportunidade para o estabelecimento de uma aliança com este partido surgiu a partir da crise dos anos 30. Neste período, os camponeses obtinham preços baixos e o desemprego industrial era abundante. Em 1932, o PSD e o Partido Agrário estabeleceram um programa conjunto anticrise que conciliava políticas de pleno emprego com subsídios e proteção aos preços agrícolas. À luz deste acordo foram posteriormente estabelecidos diversos programas de política social que na maioria das vezes consistiam em medidas de caráter geral - todos deveriam ser beneficiados independente da classe econômica (ESPING-ANDERSEN, 1991, p.113).

As dificuldades dos anos 30 foram sucedidas por um longo período de crescimento econômico. Segundo RUIN (1990), a Suécia livrou-se da Segunda Guerra Mundial e, por consequência, os produtos suecos eram necessários para a reconstrução europeia. Ademais, o surgimento de importantes inovações na esfera industrial e a exploração dos recursos naturais presentes no país também contribuíram para prosperidade da sociedade sueca no pós Segunda Guerra.

Este período de pujança econômica teve um duplo efeito sobre o welfare state. Um primeiro efeito diz respeito à ampliação da arrecadação tributária estatal passível de ser convertida em novos benefícios e serviços públicos. O segundo ponto diz respeito às relações entre o Estado e a classe média. Na Suécia, assim como em todo continente europeu, o período de crescimento do pós Segunda Guerra alçou as classes médias à posição de força vital para a constituição de maiorias políticas. Este fato lançou um duro desafio ao welfare state sueco: como atender as demandas mais luxuosas deste grupo ascendente sem sacrificar o universalismo.

Na década de 1950, os sistemas de pensão inglês e sueco eram praticamente idênticos; ambos forneciam benefícios universais, porém num montante insuficiente para garantir o conforto material. Diante desta situação, o governo inglês “congelou” as transferências públicas e estimulou, mediante extensos subsídios fiscais, as classes médias a buscarem pensões suplementares no mercado privado. Essa orientação política tem gerado um profundo dualismo de classe: a classe média possui no mercado uma alternativa frente ao Estado, ao passo que as camadas mais pobres necessitam contar com a ajuda estatal. Não por acaso, a classe média britânica tem, historicamente, imposto fortes entraves à expansão do welfare state na Inglaterra.

Em contrapartida, na Suécia, os social-democratas foram capazes de estabelecer uma aliança com as classes médias mediante a incorporação destes grupos num novo tipo de welfare state. Três pressupostos alicerçaram esta nova aliança: i) o crescimento do emprego público que teve forte impacto tanto na constituição da classe média quanto na lealdade deste grupo em relação ao Estado; ii) a ampliação de serviços públicos cujo grau qualidade atendia inclusive os gostos mais refinados; iii) a reforma do sistema de pensões. A previdência foi estatizada e concomitantemente foi engendrado um sistema de pensões suplementar atrelado aos rendimentos no mercado de trabalho, destinado a atender as exigências mais luxuosas das classes médias. O êxito dessa aliança política possibilitou que o PSD se mantivesse no poder por aproximadamente 40 anos, ou seja, de 1932 até 1973 (KING, 1988).

Essas comparações entre Inglaterra e Suécia revelam que: a) pequenas mudanças nos arranjos institucionais podem causar grandes implicações nos estágios posteriores; b) certos cursos de ação estabelecidos são quase impossíveis de serem revertidos. Neste sentido, as políticas públicas tem influência sobre as preferências políticas e, num segundo momento, esse suporte político tende a reforçar a continuidade de tais políticas (ROTHSTEIN, 1998). No caso específico das políticas de bem-estar social, num primeiro estágio, a orientação do relacionamento existente entre o Estado e as classe médias tende a moldar as instituições políticas que deram origem aos três regimes de welfare state descritos na Seção I. No estágio seguinte, estas instituições promovem:

[…] a institucionalização das preferências de classe e do comportamento político. Nos regimes corporativos, a previdência social que promovia distinções hierárquicas de status cimentou a lealdade da classe média a um tipo peculiar de welfare state. Nos regimes liberais, as classes médias casaram-se institucionalmente com o mercado. E, na Escandinávia, os êxitos da social democracia durante as décadas anteriores ligaram-se estreitamente à instituição de um welfare state de classe média que beneficia tanto sua clientela tradicional na classe trabalhadora quanto a nova camada dos white-collar. Os social democratas escandinavos […] foram capazes de edificar um welfare state com traços de luxo suficiente para satisfazer as necessidades de um público mais diferenciado (ESPING-ANDERSEN, 1991, p.115-116).

Nesta perspectiva institucionalista histórica, as alianças políticas estabelecidas no passado representam o fator determinante para a manutenção ou não dos regimes de welfare state no futuro:

[… os regimes] social democratas [como na Escandinávia] ou corporativistas (como na Alemanha) forjam lealdades por parte da classe média. Os welfare states residuais, liberais, como os EUA e a Inglaterra, dependem da lealdade de uma camada social numericamente pequena e muitas vezes politicamente residual. Neste sentido, as coalizões de classe em que se baseiam os três tipos de regime do welfare state não explicam apenas a sua evolução passada, mas também suas perspectivas futuras (ESPING-ANDERSEN: 1991,115-116).


Seção III: Um sistema justo gera o seu próprio suporte.

MERKEL (2002) reconhece que as instituições do welfare state necessitam cumprir uma “lógica de justiça” para alcançarem os objetivos sociais propostos. Caso esta lógica seja deixada de lado, os cidadãos dificilmente aceitarão colaborar com os custos monetários das medidas coletivas. Neste sentido, o apoio político às políticas universais depende de três critérios de justiça social: (1) os membros da sociedade devem considerar que os programas sociais são justos; (2) os cidadãos precisam acreditar que os demais indivíduos também vão contribuir de forma solidária e seguir os regulamentos de forma que não surgirão free-riders; (3) os atores sociais necessitam acreditar que a implementação das medidas ocorrerá de acordo com as normas de justiça, sem ações discriminatórias e/ou fraudulentas.

No tocante a primeira condição, Merkel (2002) e Rothstein (1998) recorrem aos dois princípios centrais presentes na Teoria da Justiça de John Rawls13 para analisar o grau de justiça geral das políticas sociais implementadas por países distintos. Nesta visão, as políticas assistencialistas de caráter seletivo levados a cabo por EUA e Inglaterra geram um profundo estigma social. Os estratos atendidos pela assistência social sofrem profunda discriminação. Este fato fere o primeiro princípio léxico de Rawls (1971) segundo o qual o Estado deve tratar todos os cidadãos com igual preocupação e respeito. Ademais, esse arranjo institucional engendra um profundo dualismo de classe. Os segmentos mais dependentes dos Estado lutarão pela ampliação do sistema. Por sua vez os setores excluídos do sistema exercerão forte pressão política visando conter os gastos sociais e também promoverão intensos questionamentos a respeito da validade do welfare state.

Nesta mesma perspectiva, Esping-Andersen (1991) ressalta que o modelo de previdência social alemão foi projetado para reforçar as divisões entre os assalariados. Neste modelo, os funcionários pertencentes aos sindicatos mais fracos tendem a receber benefícios mais modestos em relação aos membros dos sindicatos que gozam de maior prestígio. A vigência deste arcabouço institucional tende a gerar profunda animosidade entre os trabalhadores e também entre as diferentes associações sindicais. Ademais, a existência de privilégios diferenciados para os funcionários públicos representa um campo fértil para a proliferação das proposições liberais que defendem o Estado-mínimo e a consequente redução das políticas de welfare state.

Em contrapartida, as políticas universais suecas, estendidas a todos os cidadãos, não produzem estigma social nem animosidade entre as classes trabalhadoras; desta forma, essas medidas tendem a ser consideradas mais justas pela população (MERKEL, 2002).

O segundo critério de justiça social - a crença na justa distribuição dos custos - estabelece que o regime de welfare state universalista somente funcionará eficientemente se os cidadãos acreditarem que os outros indivíduos também assumirão honestamente os custos de manutenção do sistema, e que não existirão grandes grupos que se beneficiaram de forma ilícita das políticas sociais. Em termos práticos, o sistema tributário deve ser elaborado de forma a fortalecer a crença dos atores sociais na abrangência e na justiça do sistemas de arrecadação de impostos e de transferências públicas. Para Rothstein (1998, p.150), o sistema tributário sueco, que compatibiliza uma taxa única de imposto de renda com transferências pecuniárias equivalentes para todos os indivíduos, atende melhor esta condição que os sistemas de imposto de renda progressivos, o quais tendem a gerar insatisfações nos segmentos sociais sujeitos às maiores alíquotas do imposto de renda.

O terceiro critério de justiça relaciona-se à confiança dos cidadãos na capacidade estatal frente a implementação de políticas públicas. Segundo King (1988), os programas de natureza seletiva que conduzem testes de pobreza apresentam maior desconfiança dos contribuintes. Por exemplo, a maioria da população pode concordar com os princípios gerais das políticas assistencialistas, porém, os constantes relatórios de fraudes, abuso burocrático de poder, ineficiência, podem consolidar a percepção de que os objetivos gerias dos programas sociais jamais serão atingidos e que as políticas públicas desperdiçam recursos valiosos. Em contraste, a simplicidade dos programas universais suecos, a possibilidade de organizá-los com base em direitos específicos, tendem a dissipar o temor de fraudes.

O autores abordados nesta seção advogam que as políticas públicas universais adotadas na Suécia superaram o duplo desafio lançado por RAWLS (1971, p. 116) – o desafio de serem justas e de encorajarem a virtude da justiça nos cidadãos que nelas tomam parte. Sob esta perspectiva as instituições sociais consideradas como justas engendram nos atores sociais “a morally defensive behavior” (ROTHSTEIN: 1998, 138) que se manifesta através da luta popular pela manutenção destas instituições14.

Neste mesmo sentido, Merkel (2002, p.72) ressalta que a combinação de elevados “investimentos em educação, uma ativa política de emprego, e generosas transferências sociais aliadas a institucionalização de deveres e medidas agressivas contra o “free-riding” social e fiscal fazem da Suécia um modelo de justiça e inclusão social”. Diante destes resultados sociais sólidos e justos, a população sueca apresenta um elevado grau de satisfação em relação ao welfare state. Por sua vez, Esping-Andersern (1999) ressalta que a elevada carga tributária sueca não tende a minar esse sentimento de contentamento.

As teorias liberais advogam que as reações violentas contra o welfare state tendem a se intensificar quando a tributação e os gastos sociais tornam-se grandes demais. No entanto, de acordo com Esping-Andersern (1999), a experiência sueca demonstra justamente o contrário: as manifestações contrárias ao welfare state foram menores quando as despesas sociais se expandiram. A Tabela 1 fornece algumas pistas chaves sobre os sentimentos da sociedade sueca frente à carga tributária e à abrangência dos gastos públicos vigentes no país.

Tabela 1 - Despesas das famílias de classe média suecas e norte-americanas com serviços de bem-estar e com impostos em porcentagem do gasto familiar total em 1999.

Gastos Suécia EUA
Saúde, educação e previdência privada 2,7% 18,8%
Creches 1,7% 10,4%
Total 4,4% 29,2%
Impostos 36,8% 10,4%
Total + Impostos 41,2% 39,6%

Fonte: ESPING-ANDERSEN (1999, p.177).

Conforme afirma Esping-Anderesen (1999, p.177), o pacote de despesas em relação aos serviços de bem-estar consome aproximadamente 40% da renda familiar tanto para as famílias suecas quanto para as famílias norte-americanas de classe média. As famílias dos EUA pagam poucos impostos, porém são forçadas a adquirirem os serviços no mercado. Na Suécia ocorre o processo oposto: o imposto de renda é elevado, no entanto os principais serviços de bem-estar são subsidiados pelo Estado.

À luz destas constatações, Esping-Anderesen (1999) conclui que as críticas ao regime universalista sueco pautadas nos argumentos que consideram a elevada carga tributária um entrave ao apoio popular e um risco para a continuidade do welfare state não se sustentam, uma vez que as despesas das famílias suecas com os serviços de bem estar é semelhante as despesas das famílias americanas (muda-se apenas o direcionamento das despesas, não o montante dos gastos). Antes o contrário, a percepção dos suecos frente ao nivelamento dos custos associados aos serviços de bem-estar, aliada à consciência que o regime sueco não apresenta os efeitos excludentes do modelo norte-americano15, tendem, em conjunto, a fortalecer a crença na justiça do regime universalista e a gerar uma solidariedade em torno da continuidade do welfare state na Suécia.


Considerações finais

Convém neste momento sintetizar as reflexões que emergiram ao longo do desenvolvimento deste artigo sobre os fatores políticos e institucionais responsáveis pela manutenção do welfare state na Suécia. O leitor deve ter em mente que o PSD ocupou o governo da Suécia por aproximadamente 70 anos (de 1932 a 2002 com exceção dos períodos 1976-1982 e 1991-1993). As alianças políticas forjadas pelo governo social democrata contribuíram para a difusão de uma ideologia de apoio ao modelo universalista sueco. Sob esta perspectiva, as políticas públicas universais longevas influenciaram a cultura política sueca, tornando-a favorável à noção e aos elementos do welfare state. Dessa maneira, a sociedade sueca passou a nutrir, cada vez mais, o sentimento de que, em democracias avançadas, o Estado tem o dever de prover os serviços de bem estar social.

As políticas públicas suecas lograram compatibilizar um sistema de serviços estatais e benefícios sociais universais com um regime previdenciário suplementar baseado nos rendimentos individuais, que foi projetado para atender os interesses das famílias de classe média. Esse desenho institucional híbrido tem contribuído, historicamente, para preservar o consenso político em torno da continuidade do welfare state. Dessa maneira, as forças sociais interessadas na manutenção deste arranjo institucional englobam os fortes sindicatos suecos, a classe média e também os funcionários públicos atuantes nos serviços estatais de saúde e educação, que correspondem a aproximadamente 25% da força de trabalho sueca16.

O argumentos críticos que consideram a elevada carga tributária um entrave para a continuidade das políticas públicas universais não parecem ter afetado o apoio da sociedade sueca ao welfare state. Isto se deve à consciência da população que as despesas em relação aos serviços de bem-estar consomem parcelas equivalentes da renda familiar tanto para as famílias suecas quanto para as famílias anglo-saxãs, e que as diferenças entre países se dão no direcionamento das despesas, não no montante dos gastos. Nesta visão, os países anglo-saxões pagam poucos impostos, porém são forçados a adquirir os serviços no mercado, ao passo que na Suécia o imposto de renda é elevado, no entanto os principais serviços de bem-estar são subsidiados pelo Estado. Ademais, a percepção que o modelo universalista não apresenta os efeitos excludentes sobre a população pobre, típicos dos regimes baseados no livre mercado, tende a fortalecer a crença na justiça social das políticas públicas universais e a reforçar a solidariedade em torno da continuidade do welfare state sueco. Não por acaso, Esping-Anderesen (1991, p.109-110) ressalta que:

Ocorreram mudanças radicais de governo nas últimas décadas. Todos os países escandinavos experimentaram governos de direita por períodos prolongados […] A alteração política pode muito bem ter causado retrocessos num programa aqui ou alguma reestruturação de políticas acolá, mas não existe um só caso de transformação do regime de welfare state (ESPING-ANDERSEN: 1999,172).


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ROTHSTEIN, Bo Just Institutions Matter the moral and political logic of the universal welfare state. Edinburgh: Cambridge University Press, 1998.

RUIN, Olof. O desenvolvimento do modelo sueco. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 24, p. 211–226, set. 1991.

ZIMMERMANN, Clóvis Roberto; SILVA, Marina da Cruz. The principle of decommodification in the social politics. Caderno CRH, v. 22, n. 56, p. 345–358, ago. 2009.

  1. O presente estudo optou por utilizar a expressão inglês “welfare state” em detrimento do termo em português Estado do Bem Estar Social.
  2. A única exceção consiste no período 1991-1993, no qual o PSD esteve na oposição.
  3. Ademais, o leitor deve ter em mente que o PSD venceu as últimas eleições suecas ocorridas em 2014.
  4. Os teóricos do neo-institucionalismo histórico definem o termo “instituição” como o conjunto de procedimentos, convenções e normas oficiais que norteiam a organização da sociedade. O ponto central destas análises, consiste na concepção de que a organização institucional da comunidade política assume um papel central e determinante na estruturação do comportamento coletivo. Dessa maneira, a presença de arranjos institucionais distintos tende a engendrar comportamentos políticos e econômicos específicos a cada país (HALL e TAYLOR, 2003).
  5. O termo “decommodification” utilizado no livro de Esping-Andersen (1990) é de difícil tradução. Alguns tradutores optaram por utilizar a palavra “desmercadorização” , como em Esping-Andersen (1991). De acordo com Zimmermann e Silva (2009), o termo decommodification” advém da palavra ‘Dekommodifizierung’ utilizada por Karl Marx. Os autores consideram a palavra “desmercantilização” um termo mais fidedigno em relação à tradução da obra de Marx no Brasil. Diante dessas constatações, o presente estudo optou por utilizar a tradução desmercantilização em detrimento da palavra desmercadorização.
  6. “Quando os mercados se tornaram universais e hegemônicos é que o bem estar dos indivíduos passou a depender inteiramente das relações monetárias; […isso] significou a mercantilização das pessoas. A introdução dos direitos modernos implica um afrouxamento do status de pura mercadoria. A desmercadorização [ver nota de rodapé n°5] ocorre quando a prestação de um serviço é vista como uma questão de direito ou quando uma pessoa pode manter-se sem depender do mercado”. (ESPING-ANDERSEN, 1991, p.102).
  7. O benefícios universais dizem respeito às transferências públicas atreladas aos direitos de cidadania, que independem do nível de renda dos beneficiários. Por sua vez, o nível de universalismo consiste na “média percentual da população entre 16 e 64 anos elegível para os programas de auxílio doença, seguro-desemprego e benefícios previdenciários” (ESPING-ANDERSEN, 1990, p.73).
  8. Para mais informações sobre a política de emprego sueca, ver ROTHSTEIN (1990, p.337).
  9. O conceito de path dependency envolve uma concepção particular do desenvolvimento histórico, a qual reconhece uma causalidade social dependente da trajetória percorrida. Desta forma, as forças sociais que estão por trás do surgimento das instituições não produzem em todo lugar os mesmos resultados uma vez que essas forças são modificadas pelas propriedades de cada contexto local. Neste caso, as políticas adotadas no passado condicionam as políticas posteriores uma vez que as políticas iniciais encorajaram as forças sociais a se organizarem segundo certas orientações de preferências herdadas do passado. Reconhece-se, no entanto a existência das situações críticas, “ou seja, os momentos nos quais mudanças institucionais importantes se produzem, criando desse modo”bifurcações" que conduzem o desenvolvimento por um novo trajeto” (HALL e TAYLOR, 2003).
  10. Conforme demonstra Rothstein (1990, p.336), no ano de 1985, 86% dos trabalhadores suecos eram filiados a algum sindicato. O país possuía na época a maior taxa de sindicalização do mundo.
  11. No que tange a construção do welfare state universalista, a orientação do movimento sindical importou bem mais do que a força do movimento sindical. Conforme assinala KING (1988, p.60), os EUA também apresentaram forte sindicalismo. Os sindicatos americanos tiveram profundo sucesso em negociar com as empresas “medidas de bem estar para si” mesmos.
  12. Para mais informações a respeito das estratégias políticas da social democracia ver PRZEWORSKI (1991).
  13. O primeiro princípio (principle of equal concern and respect) estabelece que cada indivíduo possui o direito a mais extensa liberdade. Este princípio remete à igualdade na distribuição das liberdades e dos direitos políticos. O segundo princípio estabelece que a desigualdade na distribuição de recursos materiais somente pode ser aceita se todos os indivíduos (inclusive as camadas mais pobres) tiverem suas situações melhoradas (RAWLS, 1971).
  14. Nas palavras de Rawls (1971, p.116): “um sistema justo gera o seu próprio suporte”.
  15. “ Cerca de 40 milhões de norte-americanos não possuem nenhum tipo de plano de saúde” (ESPING-ANDERSEN: 1999,176).
  16. Esping-Andersen (1990, p.158).