v. 6, n. 3, Setembro-Dezembro/2022

O discurso das crianças sobre as relações de consumo: relatos e evidências

 

Liliane de Oliveira Rezende

rezende.liliane@gmail.com

http://lattes.cnpq.br/3260622732785577

Belo Horizonte/MG

 

Caissa Veloso e Sousa

caissaveloso@yahoo.com.br

http://lattes.cnpq.br/6713072836977893

https://orcid.org/0000-0003-1844-8308

Centro Universitário Unihorizontes

Belo Horizonte/MG

 

Jefferson Rodrigues Pereira

jeffersonrodrigues@live.com

http://lattes.cnpq.br/0579526222653701

Centro Universitário Unihorizontes

Belo Horizonte/MG

 

Leonardo Benedito Oliveira Rezende

leonardorezende100@gmail.com

http://lattes.cnpq.br/9884115426041708

Centro Universitário Unihorizontes

Belo Horizonte/MG

 

 

RESUMO

O presente estudo teve como objetivo analisar o discurso de crianças, com idades entre 9 e 11 anos, acerca do comportamento de consumo. Na pesquisa, de abordagem qualitativa, foram entrevistadas 53 crianças. As entrevistas foram analisadas à luz da análise de conteúdo, considerando-se as seguintes dimensões: o consumo e suas representações simbólicas; grupo de referência e, por fim, a influência da mídia no consumo. Identificou-se que o consumo, para essas crianças, representa algo que excede as características utilitárias dos bens, podendo representar a felicidade, coisas boas. Ainda, foi possível extrair dos relatos o desejo de se parecerem com adultos que admiram, quando seus familiares, e seus ídolos, sejam do esporte, da música, da novela ou do cinema. O hábito de poupar foi identificado em crianças que recebem mesada, o que, na pesquisa, compreendem doze crianças. Todas elas afirmam poupar suas mesadas até conseguirem o montante necessário para comprar o que desejam. Deste modo, verifica-se a influência familiar na educação financeira, fazendo com que suas ações presentes sejam pensadas a partir de consequências futuras.

PALAVRAS-CHAVE: Consumo infantil; Grupos de referência; Representações simbólicas.

 

 

 

The Children's discourse on consumer relations: reports and evidence

 

 

ABSTRACT

This study aimed to analyze the speech of children, aged 9 and 11 years, about the buying behavior. In this survey, of the qualitative approach, were interviewed 53 children. The interviews were analyzed in the light of the content analysis, considering the following dimensions: consumption and their symbolic representations; reference group and, finally, the influence of the media about consumption. It was found that the consumption, for these children, is something beyond the functional characteristics of the goods and may represent happiness, good things. Still, it was possible to extract from the reports the desire to look like adults they admire, when their family members, and their idols, whether from sports, music, soap operas or movies. The habit of saving was identified in children who receive an allowance, which, in the research, comprises twelve children. All of them claim to save their allowances until they get the amount needed to buy what they want. In this way, the family influence on financial education is verified, causing their present actions to be thought from future consequences.

KEYWORDS: Child consumer; Reference groups; Symbolic representations.

 

 

Submetido: 17/05/2022

Revisões Requeridas: 27/07/2022

Aceito: 14/12/2022

Publicado: 31/12/2022

 

 

1 INTRODUÇÃO

O consumo, tanto aquele relacionado às necessidades mais tangíveis dos indivíduos quanto o que tem motivações de caráter hedônico, ou seja, que envolvem sentimentos e emoções, sempre permeou as relações sociais (Soares, 2014).        Nesse contexto, destaca-se que as relações de consumo mudaram de uma perspectiva que priorizava o valor de troca para uma perspectiva que prioriza o valor dos signos ou símbolos (Baudrillard, 1995), ou seja, esse passou a ser visto como uma forma de as pessoas pertencerem a determinados grupos ou rejeitá-los, e terem determinados comportamentos ou não (Bauman, 2007).

Dada intensificação desse fenômeno, especialmente após a Segunda Guerra Mundial (Engel et al., 2000), ressalta-se a presença, cada vez mais intensa, de relações não utilitárias no consumo, o que se reflete, por conseguinte, no consumo das crianças (Guedes, 2001).

Para Bauman (2007), tendo em vista que a criança está em processo de formação e amadurecimento psicossocial, há, por parte das organizações, a exploração de estratégias mercadológicas que estão focadas na necessidade de pertencimento, aproveitando o baixo senso crítico desse público.

Para Silveira Netto et al., (2010, p. 132) as fronteiras entre a idade adulta e a infantil têm se tornado tênues. Entre os fatores que justificam essa chegada precoce da criança à fase adulta, ou seja, antes da idade biológica, com desejos de consumo similares ao dos adultos, podem ser elencados: “a necessidade de os pais trabalharem, a falta de orientação dos jovens, a insegurança do mercado de trabalho, o acesso ainda limitado à educação, entre outros fatores socioeconômicos e culturais”.

Considerando-se essa perspectiva, importância relativa deve ser concedida à mídia, que por meio da publicidade infantil apresenta às crianças estilos de vida, valores e culturas de consumo (Lopas, 2011). Nota-se que a publicidade utiliza elementos de comoção social promove sensações por meio da marca, levando o consumidor a um campo simbólico de realizações de desejos do indivíduo (Nascimento et al., 1998).

Destaca-se que uma das formas de socialização das crianças se dá por meio da imitação, sendo a família o grupo de referência principal (Iglesias et al., 2013). Portanto, caso os pais sejam suscetíveis aos estímulos de consumo propagados pelos meios de comunicação e grupos de referência, essas tendem a copiar seus hábitos, o que pode ser transportado para a idade adulta.

A partir das considerações apresentadas levantou-se o seguinte questionamento: “como se configura o discurso das crianças com idades entre 9 e 11 anos acerca dos seus comportamentos de consumo. Para atender ao questionamento, o presente trabalho tem como objetivo analisar o discurso de crianças, com idades entre 9 e 11 anos, residentes na Região Metropolina de Belo Horizonte, MG, acerca do comportamento de consumo.

Espera-se, a partir do presente trabalho trazer contribuições acadêmicas e sociais. A contribuição acadêmica reside no fato de que as publicações relacionadas a temática, apesar de sua importância no que tange a formação das crianças, ainda não são muito exploradas na área das ciências sociais aplicadas. Por exemplo, em uma busca na base da SPELL (Scientific Periodicals Eletronic Library), no mês de dezembro de 2022, foram localizados apenas 33 artigos relacionados, sendo a primeira publicação datada de 2001. Na perspectiva social o trabalho pode trazer evidências acerca do comportamento das crianças que possam ser observadas por educadores, constituindo, inclusive, possíveis insights relacionados a políticas públicas. 

 

2 REFERENCIAL TEÓRICO

 

Na presente seção apresenta-se o referencial teórico, organizado em três subseções. Na primeira discute-se o consumo infantil na perspectiva contemporânea, na qual evidenciam-se possíveis mudanças nos comportamentos, principalmente relacionadas aos estilos de vida modernos. Na segunda subseção discute-se a importância dos grupos de referência na formação dos hábitos de consumo infantis. Por fim, na terceira subseção foram tratados os aspectos culturais e simbólicos presentes no ato de consumir, que podem influenciar não apenas o comportamento de consumidores adultos, como também crianças que já se constituem como seres provenientes de influencias do meio no qual estão inseridas.

 

2.1 O consumo e as crianças no contexto contemporâneo

 

A conjuntura no qual a criança está inserida faz com que sua ‘realidade’ social e necessidades materiais se moldem, de forma a construir seus hábitos de consumo. Nesse aspecto, segundo Castro (1998) e Furlan e Gasparin (2004), tanto a internet quanto a mídia televisiva compreendem importantes ‘players’, pois essas ocupam parte importante do tempo do público infantil, dadas as atribuições familiares como trabalho e afazeres domésticos, o que faz com que os pais dediquem um tempo menor ao convívio com os filhos. 

Tal contexto permite que as crianças estejam mais expostas as relações de consumo promovidas pela mídia, o que pode promover, em alguma instância, um desejo de consumo que excede as necessidades, propriamente ditas (Jovchelovitch, 2005; Santos e Grossi, 2007; Cabral et al., 2015; SILVA; SILVA; 2021).

Neste sentido, Lipovetsky (2008) descreve uma corrida para o consumo, a partir da qual as novidades, por exemplo, representam uma febre para estimular as compras, sendo fonte de motivação do prazer. Verifica-se, segundo Santos (2009), uma supervalorização dos produtos, agregando a eles valores insubstituíveis. Para o autor, as campanhas publicitárias, por exemplo, apresentam os novos produtos de forma que eles transcendam o seu valor de uso, seduzindo os consumidores, oferecendo sonhos, poder e status. Portanto, seguindo o que assistem pela televisão, internet, ou mesmo influências familiares e do ambiente escolar, as crianças ‘entram no jogo do consumo’ desde pequenas (Andrade; Costa, 2010).

Trindade (2002) afirma que a criança é um público distinto do adulto, por ainda estar em formação. Contudo, devido às influências externas recebidas dos pais e das comunicações diversas, é um público que atinge cada vez mais rapidamente a maturidade, distinguindo e separando as informações recebidas.

Para Furlan e Gasparin (2004) considerando-se que a criança é um indivíduo em processo de formação psicológica é comum que direcione todos os seus interesses ao consumo de determinados bens que são propagados na mídia. Nesse aspecto, a maioria dos produtos infantis estampam personagens da indústria do entretenimento e utilizam embalagens com cores fortes, fazendo com que a criança só se sinta satisfeita ao possuir o bem, que frequentemente se caracteriza na forma de seu super-herói favorito, determinado brinquedo eletrônico, a boneca da moda ou outro atributo de desejo (Furlan; Gasparin, 2004; Linn, 2006; Santos; Grossi, 2007; PAIVA; SOUZA, 2021). Ainda, deve-se considerar que, na atualidade, as crianças estão expostas a diversos meios publicitários sofisticados, relacionados as tecnologias de comunicação e que repercutem diretamente nos desejos de consumo das crianças (FANCHIN; SANTOS, 2021; SILVA; SILVA; CRUZ, 2021).

Nesse sentido, determinados grupos são mais importantes na formação dos hábitos de consumo infantis, o que são chamados de grupos de referência, conforme abordado na seção seguinte.

2.2 Grupos de referência infantis

 

Segundo Moschis e Moore (1979), a família é o mais importante grupo de referência, no que tange às escolhas do consumidor. Contudo, a publicidade é a principal fonte de ideias, principalmente as que passam na televisão (Gunter; Furnham, 1998).

Nesse contexto, Bourdieu (2003) e Pasdiora e Brei (2014) afirmam que os grupos de referência primários são fortes fontes de influência no comportamento do consumidor infantil. Os autores destacam que as crianças absorvem todo o tipo de informação que está em seu entorno, sofrendo, portanto, influência de outros grupos de referência, tais como artistas e celebridades, por exemplo.

Depois da família, Schiffman e Kanuk (2000) afirmam que os grupos de referência comparativa são os de maior importância. Esses são formados pelos vizinhos, amigos e colegas e influenciam as atitudes e comportamentos específicos do consumidor. Para Hansen e Hansen (2005), 44% das crianças geralmente procuram informações sobre determinados produtos com os grupos mais próximos como amigos e familiares, incluindo-se os colegas de escola.

Nesse aspecto, há um desejo de se parecerem com pessoas que admiram o, que para Furlan e Gasparin (2004), compreende a uma exposição precoce aos hábitos adultos. Entre as formas de manifestação desse fenômeno o autor descreve o uso de roupas semelhantes a dos adultos, os gestuais e a fala, o que os transformam em cópias desses adultos.

Ainda segundo Santos et al. (2008), desde criança, os indivíduos vão seguindo modas, conhecendo marcas, absorvendo valores propostos, aderindo à ideia de que só se é cidadão quem consome dentro dos padrões estabelecidos.

Neste mesmo sentido, o processo de socialização da criança produz um consumo de caráter sedutor e apelativo, encurta o caminho em que ela é criança, permite que ela se torne reconhecida para os outros, promovendo a identificação dessas crianças com os adultos, na busca da construção de suas próprias identidades (Castro, 1998).

2.3 O consumo e suas perspectivas cultural e simbólica

 

Baudrillard (1995), na sociedade contemporânea compra-se um modo de vida, não um produto específico, o que segundo Pinto (2009), são argumentos que fazem algum sentido, uma vez que as estratégias de marketing estão, cada vez mais, voltadas para oferecer “estilos de vida” atraentes, conduzindo o consumidor a uma construção “sólida” de sua identidade social no interior de um universo carregado de significados, assumindo, assim, dois sentidos distintos.

Pinto (2009) relata que existem poucos objetos neutros, ou seja, puramente utilitários, sendo a maioria deles carregada de significados sociais. Portanto, os bens não devem ser entendidos exclusivamente pela funcionalidade que possuem, uma vez que esta está imbuída em um contexto cultural (Sahlins, 2003). Portanto, o prazer em consumir vai além dos benefícios funcionais dos produtos, estando relacionado à emoção, à imagem ou ao símbolo que é atribuído ao bem consumido (Silva; Vasconcelos, 2012; Torres; Pereira; Santos, 2012).

Para Baudrillard (1995) a felicidade nessa sociedade que é pautada em consumir bens precisa ser visível, portanto, sua ênfase no possuir algo. Para Bauman (2007), a sociedade consumista rejeita as opções culturais, promovendo e reforçando a escolha de estilo de vida e de uma estratégia existencial particular, o que, segundo o autor, faz parte do jogo da socialização, forçando as pessoas a se promoverem como uma mercadoria atraente e desejável para serem notadas.

No mesmo aspecto, Campos e Rech (2010) afirmam que os significados funcionais dos bens são sobrepostos pelos significados sociais e pessoais. As preferências por determinados produtos estão ligadas à autoimagem do consumidor, que acredita que o seu “eu” é constituído por sua aparência física e seus bens materiais, agregando ao consumo o aspecto simbólico, que está bem além do aspecto funcional (Soares, 2014).

Santos (2009) argumenta que as campanhas publicitárias transformam os bens supérfluos em bens vitais, abastecendo o mercado de objetos, imagens e símbolos, fazendo com que o indivíduo consuma tendo a ilusão de ser feliz. Deste modo, o consumo de um produto, via de regra, ocorre não pelo seu valor utilitário ou pelo valor de mercado, mas pela simbologia oferecida pelo bem, ou seja, no sentido de conferir status, prestígio e posição social (Lipovetsky, 2008; Soares, 2014).

Para Santos (2009, p. 4), os consumidores acabam “preenchendo uma série de carências e sonhos que são próprios do ser humano, criados a partir de condições e imposições pré-determinadas” pela cultura consumista.

Especialmente em relação ao público infantil, Trindade (2002) afirma que a cultura do consumo é adquirida pela criança em sua própria casa, por meio do contato com seus familiares, quando se inicia a socialização do consumidor. Ninguém nasce consumista, “desde criança, as pessoas vão seguindo modas, aderindo a marcas, absorvendo valores propostos” (Santos, 2009, p. 2).

Segundo Peter e Olson (1999) e Trindade (2002), é na infância que as crianças aprendem o ato de comprar, especialmente por meio de três grupos de referência: a família, os amigos e as instituições (como exemplo, os meios de comunicação e as propagandas). Tais influências podem acompanhar o indivíduo até nos comportamentos de compra futuros.

A indução ao consumo do público infantil está ligada às estratégias de vendas, que constituem um dos principais estímulos ao consumo recebidos pelas crianças (Santos; Grossi, 2007). Os autores afirmam que as propagandas seduzem os pequenos consumidores, que já reconhecem as marcas e os atributos de qualidade, levando o público infantil à imaginação, à criação de um mundo de fantasias de acordo com a sua idade. Chega-se a associar determinado produto à coragem, força, ousadia, poder, energia e status.

Desde cedo, as crianças são influenciadas por aspectos da cultura na qual estão inseridas (Trindade, 2002). Para a autora, as crianças aprendem cedo sobre o valor simbólico dos objetos, o que as posiciona socialmente e como pertencentes a determinados grupos. No mesmo sentindo, Peter e Olson (1999) afirmam que “a cultura do consumo, diariamente transmitida às crianças, estimula a compra e a posse como fonte de status”. Portanto, para Trindade (2002), a posse de determinado bem pode ser condizente com a ostentação, e a ausência deste, à inferiorização, representando um aspecto marcante da sociedade atual.

A socialização da criança, segundo Bauman (2007), ocorre de maneira distinta nos tempos atuais. Tal fato se dá devido à ausência física dos pais nos lares, por causa das excessivas jornadas de trabalho, fazendo com que o amor e o carinho sejam materializados. Sendo assim, essa recompensa, geralmente, se dá por meio de presentes e concessões dos pais, fato que estimula a formação da cultura do consumo.

Os estímulos recebidos pelas crianças muitas vezes são sedutores e apelativos, e algumas organizações associam a compra de seus produtos ao divertimento. As organizações do segmento de produtos alimentícios, por exemplo, oferecem brindes colecionáveis. No entanto, para as crianças, não é suficiente adquirir um brinquedo apenas, elas querem a coleção inteira, fazendo com que os pais cedam à insistência de seus filhos (Santos; Grossi, 2007; Silva; Vasconcelos, 2012).

Segundo Cruz (2010), a criança até os oito anos ainda confunde o intervalo comercial com a programação normal da televisão; aos quatro, ela não consegue perceber a quebra entre o desenho animado e o intervalo comercial, uma vez que seu desenvolvimento cognitivo ainda não foi finalizado. Somente aos 12 anos, quando estão entrando para a adolescência, o indivíduo começa a perceber que a publicidade quer realmente vender algo (Cruz, 2010). Portanto, elas são consideradas vulneráveis às estratégias comerciais das organizações, em seus mais distintos ramos de atividade e, sendo assim, devem ser protegidas. Para elucidar a respeito dessa proteção, na seção seguinte, discorre-se sobre a publicidade ao público infantil.

 

3 METODOLOGIA

 

O presente estudo foi realizado à luz de uma abordagem qualitativa. Segundo Gil (2008), a escolha pela abordagem qualitativa oferece condições e subsídios para que a análise do problema em questão seja vista sobre uma perspectiva mais ampla, proporcionando uma interpretação mais abrangente da realidade. Quanto aos fins, o trabalho se caracteriza como descritivo. Para Collis e Hussey (2005), este tipo de abordagem busca conhecer e interpretar a realidade sem nela interferir.

Foram entrevistadas crianças, com idades entre 9 e 11 anos, residentes na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Optou-se pela delimitação desta faixa etária por esta permitir maior facilidade de comunicação e expressão dos sujeitos de pesquisa. Para a seleção das crianças utilizou-se o critério de acessibilidade para os primeiros entrevistados. À medida que as entrevistas se realizavam eram solicitadas indicações de novos entrevistados, caracterizando a técnica snowball (bola de neve).

Identificou-se a saturação dos dados quando se chegou a 23 entrevistados, contudo, optou-se por estender o número de sujeitos, o que permitiu maior detalhamento acerca do fenômeno, chegando-se ao total de 53 entrevistados. Quando se identificou que novos entrevistados não estavam acessíveis, optou-se por encerrar as entrevistas e contatos com pais e responsáveis. Para a condução das entrevistas utilizou-se um roteiro semiestruturado, contendo 23 perguntas.

As entrevistas foram realizadas na presença de pelo menos mais um adulto e houve a autorização formal dos pais ou responsáveis para sua realização. Após a coleta de dados, as entrevistas foram transcritas e organizadas para a análise, que se deu por meio da aplicação da técnica da análise de conteúdo temática à luz das proposições de Bardin (2006). As categorias de análise foram elaboradas a partir do referencial teórico e compreendeu aspectos encontrados na literatura pesquisada. Nesse ambiente os dados foram categorizados em três dimensões, a saber: o consumo e suas representações simbólicas; grupo de referência e, por fim, a influência da mídia no consumo.

 

4 RESULTADOS

4.1 Consumo e suas representações simbólicas

 

Esta dimensão significado do consumo foi desenvolvida com o intuito de analisar o que os entrevistados consideram como consumo, bem como o que o ato de consumir representa para eles. Acerca deste construto, as crianças foram questionadas sobre o que sentem ao comprar os produtos que gostam, o que sabem a respeito destes produtos, se gostam de produtos de marca, além dos aspectos representativos desses.

Nesse sentido, identificou-se que o consumo, sob a perspectiva dos entrevistados, está intrinsecamente relacionado ao ato de comprar e gastar dinheiro, o que pode ser evidenciado nos relatos de E10, E13 e E33, como exemplo, mas esteve presente no discurso de 48, dentre as 53 crianças entrevistadas.

 

Gastar dinheiro, comprar coisas novas (E10).

 

É comprar coisas, alegria! (E13).

 

Comprar ‘pra’ mim significa você chegar num lugar, tipo o shopping e sair comprando tudo. A minha mãe fala comigo que é melhor a gente esperar que a gente ganha, então eu acho assim, que nem tudo que eu vejo eu posso comprar e nem tudo que a gente compra a gente usa muito (E33).

 

Em termos dessa perspectiva hedonista, Sahlins (2003) e Pinto (2009) argumentam acerca do consumo como um meio de inserção social, desmistificando o uso dos bens adquiridos a partir de sua funcionalidade. Retomando o relato de E13 é possível uma clara percepção acerca da representação do consumo para essa criança, por exemplo, “é comprar coisas, alegria!” (grifo dos autores).

Destaca-se que, apesar da perspectiva do consumo relacionada a gastar dinheiro há crianças que associam o ato de comprar a uma necessidade, assumindo, portanto, uma característica mais utilitária e menos hedonista, ao contrário do que é destacado em parte da literatura pertinente (PINTO, 2009; SÁ, 2010). Como exemplo tem-se os relatos de E42, E43, E46 e E53.

 

Trocar o dinheiro com o que vai usar, e algumas pessoas gastam dinheiro à toa com coisas que não vão precisar. [Você tem exemplos de coisas que é gastar dinheiro à toa?] Assim, você tem um telefone e tá feliz com ele, mas você quer comprar outro, porque quer comprar e não porque precisa (E42).

 

Comprar uma coisa que seja útil e que eu vou usar depois. [Me dá um exemplo.] Roupa, eu vou comprar e vou usar algum dia... Comida [Por que gosta de comprar roupas e comida?] Roupa, eu vou comprar e vou usar algum dia. A roupa, um dia, a gente vai precisar, pra gente usar. A comida, por causa que a comida a gente precisa se alimentar pra sobreviver (E43)

 

Pra mim, comprar significa quando a gente precisa muito de alguma coisa. (E46).

 

Gosto de comprar o que eu necessito. [Dê exemplos...]. Roupas novas quando as minhas estão velhas ou não me servem mais, comida... (E53).

 

Em uma segunda instância, esta dimensão buscou analisar os hábitos de consumo dos entrevistados. Quando questionados a respeito do que gostam de consumir, 26 crianças responderam peças de vestuário, como roupas e sapatos. Nesse aspecto, identificou-se que o consumo não está necessariamente relacionado a uma necessidade, apesar de as crianças tentarem demonstrar que sim.

 

Roupas [Por que você gosta de comprar roupas?] Pra me sentir bem. [E onde você compra?] Shopping (E18).

 

Eu gosto de comprar roupa e brinquedos. [Por que você gosta de comprar?] Ah, roupa porque quando eu for sair, eu posso usar uma roupa bonita, e brinquedo pra passar o tempo (E21).

 

Além do vestuário, o segmento alimentício se destacou como item que as crianças gostam de consumir, sendo que 14 crianças relataram que gostam de consumir variados tipos de comida e guloseimas.         

Confirmando o distanciamento do consumo de caráter utilitário, as crianças frequentemente também relataram que gostam de consumir brinquedos e produtos eletrônicos conforme relatos de E45, E46 e E48.

 

Eu gosto de comprar Barbie, por que eu faço coleção. [Quantas Barbie você tem?] Trinta e duas. [E você quer mais Barbie?] Sim (E45).

 

Os brinquedos, eu gosto muito, porque eu não tenho muitos brinquedos de tabuleiro, aí eu quero trazer para a escola e compartilhar com meus colegas e as roupas e sapatos eu compro para ficar bonita (E46).

 

Eu compraria uma casa, mais Monster Hight e viajaria pra Disney. [Você já tem Monster Hight?] Sim. [Quantas?] 3. [E você quer mais quantas?] Mais as pra completar a coleção. [E são quantas na coleção?] Acho que são 20 (E48).

 

Destacam-se as entrevistas de E16 e E15, quando demonstram o interesse por brinquedos como uma forma de completar a coleção. Nesse aspecto, reporta-se a Santos e Grossi (2007) quando afirmam que os estímulos recebidos pelas crianças muitas vezes são sedutores e apelativos, por parte de algumas organizações, oferecendo brindes, brinquedos colecionáveis, principalmente os do segmento alimentício. Ainda segundo os autores, só o consumo não é o suficiente, e a criança deseja a coleção inteira, fazendo com que os pais se sintam acuados com a insistência de seus filhos (Santos; Grossi, 2007).

Identificou-se, também, que o consumo assume o papel de socialização para a criança. Os entrevistados E27 e E46 demostraram que o consumo tem a função de socializá-los, seja no ambiente escolar seja em sua própria casa ao receber convidados. Tais aspectos corroboram Featherstone (1995), quando destaca que o consumo os possibilita ter distinção social e cria laços de socialização.

Outro fator importante de ser considerado nesse processo de consumo é a representação simbólica presente nas idealizações de consumo das crianças. Identificou-se que o consumo pode estar associado a um sentimento de felicidade, provavelmente proveniente da representação social desse. Doze entrevistados relataram que se sentem alegres ao consumir, e dezenove se sentem felizes.

 

Eu me sinto bonita (E30).

 

Ah, eu sinto, assim, feliz. Porque quando eu viajo, eu uso muito essas coisas. Tipo esse álbum de figurinhas, meu tio vai na banca e compra figurinhas pra mim, a minha mãe também... eu me sinto feliz quando compro (E33).

 

Bom, eu sinto mais felicidade porque eu vou poder usar uma coisa melhor, porque eu vou poder estar melhor pra conversar com as pessoas, porque meu telefone tem vez que desliga sozinho e tem vez que liga sozinho também (E42).

 

Quando perguntados se gostam de produtos de marca, 34 crianças afirmaram que sim, inclusive citam a marca e os produtos que gostam de consumir. Nesse aspecto destaca-se a influência dos pais, uma vez que as crianças parecem tender para imitá-los. Elas ainda parecem sofrer a influência tanto de amigos (que podem ser os colegas de escola) quanto da mídia, de maneira geral.

 

Amo. [Quais marcas você gostaria de comprar?] Quando a minha mãe tem dinheiro, ela compra O Boticário, né? Aí eu uso e ela também usa (E2).

 

Sim. [Quais marcas você gostaria de comprar?] Nike, Adidas, Penalty, Polo. [Polo é o quê?] É marca de blusa... Lacoste, marca de blusa também (E30).

 

Gosto. [Quais marcas você gostaria de comprar?] Conheço a Aeropostale, que tem lá nos Estados Unidos, eu compro algumas coisas lá. Umas blusas de necessidade só, pra ‘mim’ usar (E33).

 

Gosto, mas eu não uso roupas de marca, marca mesmo. [Quais marcas você gostaria de comprar?] De roupa ou de produto? [Tanto faz...] Eu gosto de três de produtos: Avon, Natura e Mary Kay. E de roupa, eu amo aquela loja Alfabeto, e não serve pra mim, mas eu gosto daquela loja Hering. [O que tem na loja Alfabeto que você gosta?] Eu acho as roupas fofas, roupas bonitas. Essa blusa mesmo eu acho que é do Alfabeto. [E da Mary Kay, Natura, Avon, o que você gosta?] Do Avon, tem tudo, na Natura, produtos. Na Avon, tem uns livros que eu gosto muito de ler, eu pergunto minha vó quanto que é, se for muito caro, eu não compro, mas se for barato, tipo 11, a maioria são 5 reais cada, eu gosto muito de ler O Diário de um Banana. Teve um dia, que estava 15 reais, eu não comprei (E37).

 

As meninas se mostraram mais interessadas em marcas de cosméticos, tais como Natura, Boticário, Mary Kay, Jequiti. Ressalta-se que a marca Jequiti, à época da pesquisa, realizava diversas incursões na mídia, por meio do canal de televisão aberta do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). Já os meninos se mostraram mais interessados em marcas de calçados e roupas, sendo a Adidas e a Nike as duas marcas mais citadas. Ressalta-se que apesar dessas marcas disponibilizarem produtos infantis, esse não é o público principal das marcas citadas, o que permite inferir de que há, realmente, a influência de adultos e outros canais no consumo dessas crianças.

Nesse aspecto, segundo Iglesias, Caldas e Lemos (2013), nos primeiros anos de vida, as crianças já possuem gostos e preferências de consumo tendendo, inclusive, a imitar aqueles de seus pais.  

Algumas crianças justificam a preferência por marcas alegando que elas apresentam maior durabilidade, o que não descarta a perspectiva de consumo hedônico apresentado pela marca. Como exemplo, têm-se os relatos de E51 e E52.

 

Sim, porque dura mais, tem uma qualidade melhor e não é só usar uma coisa duas vezes e desbotar. [Você se lembra de comprar alguma coisa que foi assim?] Eu não, mas a minha mãe já comprou coisas assim (E51).

 

Mais ou menos. [Por quê?] Porque, às vezes, você compra uma coisa e ela não é tão boa, e a marca dá uma confiança de qualidade. [Tem vontade de mostrar pra alguém?] Não (E52).

 

O uso das roupas de produtos de marca ainda pode ser associado tanto ao grupo de referência quanto aos status que esses proporcionam conforme relatos de E7 e E8.

 

Pra mim não, mas pra minha família é importante ter produtos de marca. É mais importante que qualquer coisa pra eles. [Então pra sua família é mais importante ter roupas de marca que pra você?] Não, pra mim é mais importante ficar com a minha família do que ter roupa de marca. [Mas você gosta de roupa de marca?] Sim. [Pra você isso é importante?]. Sim (E7).

                                                                   

Quando questionadas sobre o que sonhariam comprar, os itens de maior interesse foram brinquedos, telefones para jogos, casa, mansão e carro.

 

Sonho em comprar um carro. [E por que você gostaria de comprar isso?] Pra andar, dar uns rolê. [Qual carro você quer comprar?] Um Camaro (E4).

 

Eu sonho em comprar ou meu pai me dar de Natal e minha mãe, um kit não de cientista, mas de experiências. [Você sabe o nome?] Kit cientifico, eu acho. [Onde você conheceu esse kit?] Na verdade, até minha prima tem, minha prima e meu primo. Eles ganharam de Natal e já tem um tempão que eu também gostava desse kit. Aí eu falei com a minha mãe e ela disse que depois da viagem, porque a gente está economizando para a viagem, ela vai comprar pra mim (E11).

 

Um telefone bom novo para mim, um carro bom para o meu pai, uma Estrada, um Jipe e para a minha mãe o carro dela já está bom mesmo. De brinquedo, eu queria uma arminha que você atira e gruda assim... o nome dela é Nurfe. [Onde você a conheceu?] Na televisão e antes de conhecer na televisão meu colega tinha comprado uma, aí ele me emprestou, perguntou se eu queria dar um tiro, tinha um laser de mira. [Você gostou?] Sim (E42).

 

Eu sonho em comprar uma mansão e morar na Disney (E44).

 

Não sei, eu acho que uma mansão (E48).

 

Outro fator importante de ser considerado nesse processo é a influência dos grupos de referência na formação de atitude de consumo dessas crianças, o que compreendeu uma das dimensões pesquisadas, conforme seção seguinte.

 

4.2 Grupos de referência

Nesta dimensão, buscou-se analisar os principais grupos de referência que exercem influência na formação de atitude de consumo das crianças entrevistadas. 

Inicialmente, destaca-se uma forte influência do grupo de referência primário, família, uma vez que 21 dos entrevistados relataram gostar de comprar produtos semelhantes aos consumidos pelo pai e pela mãe conforme proposto por Engel, Blackwell e Miniard (2000). Os autores destacam que a família é o grupo primário mais importante, dentre os grupos de referência, fazendo parte deste grupo os amigos e colegas.

Os dados coletados no presente estudo apontam uma forte influência desses grupos de referência na formação de atitude dos entrevistados, inclusive fazendo parte do grupo de associação, relatado por Engel, Blackwell e Miniard (2000), que se refere ao grupo ao qual o indivíduo deseja pertencer ou se parecer.

 

Às vezes queria ser igual à minha vó. [Por quê?] Porque eu gosto muito dela (E5).

 

Eu pareço com a minha mãe quando ela era pequena, aí eu gosto disso, tento agir igual ela (E12).

 

Tenho muita vontade de ser igual ao meu pai, ele é meu ídolo (E13).

 

Gostaria de parecer com a minha prima Letícia. [Por quê?] Porque eu tenho vários medos e ela não tem, ela é bem legal e eu não sou tanto (E46).

 

Salienta-se, ainda, que oito crianças disseram gostar de consumir produtos semelhantes ao utilizado por amigos de escola. Associando esse fato às exposições de Baudrillard (1995) infere-se que o comportamento de consumo desses entrevistados é motivado pela vontade de se assemelhar a um indivíduo ou grupo, buscando um alinhamento de comportamento e aparência com indivíduos que são vistos como ídolos.

Nesse contexto, sublinha-se que para 18 entrevistados afirmaram que o que eles mais gostam de fazer quando compram algo é mostrar para família e, principalmente, para os amigos, conforme exemplificado com alguns relatos de E1 e E51.

 

Quando posso comprar algo que sempre quis fico muito... muito... muito feliz. Quando eu compro, eu mostro direto pra minha vó, pro meu vô, para o meu irmão que mora lá na casa da minha vó, também gosto de mostrar pra minha tia, pro meu tio, pros meus primos que moram lá. [Por quê?] Porque eu me sinto feliz (E1).

 

Gosto de mostrar às vezes. [Pra quem?] Pros meus amigos. [De onde?] Aqui da escola mesmo. [Por que você quer mostrar pra eles?] Para partilhar a felicidade (E51).

 

Observa-se que os entrevistados E17 e E18, que residem em bairros periféricos, têm a vontade de mostrar os produtos comprados para os seus vizinhos, dando a entender que há um maior relacionamento com a vizinhança do que quando comparado às crianças que moram na região mais central.

As crianças foram questionadas se gostariam se parecerem com alguém. Nesse aspecto, personagens da mídia, bem como artistas e atletas famosos foram lembrados.

 

Quero ser, quando eu crescer, igual o Neymar. [Por quê?] Porque ele joga muito bem, todo mundo quer parecer com ele por jogar bem (E7).

 

Quero parecer com o Mc Pedrinho. [Por quê?] Porque ele canta muito bem (E8).

 

Quero ser igual à Paula Fernandes. [Por quê?] Ah, eu acho ela legal, bonita (E16).

 

Harry Potter. [Por quê?] Sou muito vidrado, sou fã, tenho todos os livros e filmes. (E23).

 

As pessoas ficam falando que eu pareço com a Sabrina Sato.  [E você gosta de parecer com ela?] Ah, eu gosto porque é um elogio, né? Então elogios são muito bons (E24).

 

Para Guedes (2001) e Bauman (2007), em função do momento de formação de personalidade, o consumidor infantil sofre considerável influência da mídia, chegando a ponto de querer consumir determinado produto para se parecer com o ídolo.

Nesse contexto, Bourdieu (2008) e Pasdiora e Brei (2014) afirmam que os grupos de referência primários são fortes fontes de influência no comportamento do consumidor infantil, mas destacam, também, que as crianças absorvem todo o tipo de informação que está em seu entorno, sofrendo, portanto, grande influência de outros grupos de referência, tais como artistas e celebridades, por exemplo.

 

Notavelmente, para o caso do presente estudo, os grupos de referência exercem uma influência considerável no comportamento de consumo infantil. Emergindo como os principais os personagens famosos (ídolos midiáticos) e a família, apontada pela literatura como o principal grupo de referência primário (Engel et al., 2000; Schiffman; Kanuk, 2000). Tais apontamentos corroboram as colocações de Laburthe-Tolra e Warnier (1997), segundo as quais o consumo, além de satisfazer uma necessidade utilitária, produz identidade pessoal e coletiva, sentido e sociabilidade.

Esta construção da identidade, assim como a socialização da criança ocorre de maneira distinta na sociedade contemporânea, uma vez que os pais estão mais ausentes dos lares (Bauman, 2007). A maioria dos relatos expõe que os pais trabalham fora, e essa ausência física dos pais nos lares, devida a excessivas jornadas de trabalho, faz com que o amor e o carinho sejam materializados. Sendo assim, essa recompensa, geralmente, se dá por meio de presentes e concessões dos pais, fato que estimula a formação da cultura do consumo.

Neste mesmo sentido, Santos (2009) expõe que as crianças se apresentam ansiosas diante ao consumo. Há os casos de crianças que têm todas as suas vontades de consumo satisfeitas pelos pais como modo de suprir o sentimento de culpa por causa da ausência, em especial os pais separados e os que trabalham fora. A entrevistada E44, filha de pais separados e que mora com a avó paterna, deixa claro a materialização da ausência via consumo.

 

O que a minha vó compra, ela faz de surpresa, aí sempre que eu volto da casa dos meus pais, eles são separados, aí sempre que eu volto da casa do meu pai ou da minha mãe, ela faz uma surpresa, ela compra alguma coisa e deixa no meu quarto ou no meu guarda roupas escondido. Até teve um dia que eu fiquei duas ou três semanas na casa do meu pai, aí quando eu voltei lá, eles já estavam fazendo uma mudança, porque quando eu chegasse lá, eu já ia chegar na casa nova, no apartamento, mas eu cheguei antes, e fui abrir a geladeira e não tinha mais nada lá (E44).

 

Nesta entrevista, a mesma criança expõe a paixão por sapatos de salto, assim como a irmã mais nova, evidenciando a precocidade em querer se tornar adulta logo. Conforme exposto por Furlan e Gasparin (2004), algumas crianças são, precocemente, expostas a hábitos adultos, e procuram se parecer com esses.

 

Eu gosto muito de ser criança e quero ser adolescente logo, porque adolescente sempre calça sapatos que eu quero, porque eu amo saltos, igual a minha irmã, ela também ama. [Sua irmã tem qual idade?] Ela tem 5, vai fazer 6 agora... ai, eu sempre amo e ela também ama e a gente só tem 2 sapatos de salto, um alto e um baixo, e eu sempre fico usando o alto e ela gosta muito do salto baixo e, de vez em quando, ela usa muito o alto, e eu aprendi a andar de salto com a minha irmã. [A de 6 anos?]. Sim (E44).

 

Das 53 crianças entrevistadas, dez afirmam que os pais ou familiares compram tudo que é solicitado. Elas afirmam que insistem muito para a efetivação da compra. Nesse aspecto, segundo Santos e Grossi (2007), os pais, muitas vezes, acabam acuados com a insistência de seus filhos, atendendo a todas as suas solicitações de consumo.

Ainda, 43 afirmaram que a família não compra tudo o que eles pedem, e que eles ficam tristes quando os pais não atendem a seus pedidos de compra. Ressalta-se que alguns relatam que entendem a situação, pois nem sempre eles têm dinheiro. Como exemplo, têm-se os relatos de E38 e E39.

 

Eu fico triste, mas eu não peço muita coisa pra eles. Quando é muito caro, eu não peço. E também eu recebo mesada e tem dia que eu pego meu próprio dinheiro, aí eu peço a minha mãe pra me levar numa loja e eu compro. Eu fazendo o meu cofrinho, quando ele estiver cheio, bem pesado, eu não vou pedir à minha mãe quase nada, porque enquanto eu tiver aquilo ali, eu vou gastando. [Você insiste muito pros seus pais comprarem o que você pede?] Ah, depende, algumas vezes eu entendo, algumas vezes eu fico: Ô papai! (E38).

 

Às vezes triste, vou para o meu quarto e acabo esquecendo. [Por que você acha que eles não compram?] Porque minha mãe tem muitas outras coisas pra comprar, muitas outras contas pra pagar e, às vezes, eu não precisando. [Você insiste muito pros seus pais comprarem o que você pede?] Não. Quando fala não, acabou, já sei que é não (E39).

 

Destaca-se que a influência da família se amplia para além do comportamento de consumo, mas também na formação da educação financeira. O hábito de poupar foi identificado em crianças que recebem mesada, o que, na pesquisa, compreendem doze crianças. Todas elas afirmam poupar suas mesadas até conseguirem o montante necessário para comprar o que desejam. Deste modo, verifica-se a influência familiar na educação financeira, fazendo com que suas ações presentes sejam pensadas a partir de consequências futuras.

Diante desses relatos reforçam-se as proposições de Bauman (2007), quando afirma que o comportamento de consumo das crianças é fortemente influenciado por experiências de vida, pelo comportamento dos pais e pelo contexto social em que se inserem.

 

4.3 O papel da mídia no consumo infantil

 

A maioria das crianças afirma que assiste à televisão todos os dias, sendo que algumas possuem, inclusive, horários para isso. As narrativas televisivas, juntamente com os estímulos audiovisuais, seduzem as crianças e aguçam o desejo por consumir (Castro, 1998), transformando as crianças em consumidoras, independentemente da classe social à qual ela esteja inserida (Andrade; Costa, 2010).

Neste sentido, as publicidades são permissivas, mostram que o indivíduo pode tudo, incentivam ao consumo, fazendo a criança pedir o que lhe desperta desejo. É uma situação à qual, às vezes, os familiares acabam cedendo. Nesse aspecto, quando questionadas se os seus pais compram os produtos que são exibidos nas propagandas televisivas, a maioria respondeu que sim.

 

Aham, comprei quando era da criança, eu vi um relógio do Ben10, aí minha mãe falou que quando tivesse dinheiro ela ia me dar, aí ela me deu (E39).

 

Sim. [O quê?] Quando passa na televisão, tipo um brinco, eu falo: ô vó, quando passar esse brinco, você compra pra mim? [Você fica querendo comprar o quê?]  Brinquedos, roupas e sapatos. [E sua vó compra?] Não, porque todos os produtos eu não gosto muito. Agora lançou Barbie sereia que solta bolhas, eu não gosto muito, mas a minha irmã, sempre que aparece alguma coisa na televisão, ela pede mais coisas que eu (E44).

 

Segundo Santos (2009), as campanhas publicitárias transformam os bens supérfluos em bens vitais, abastecendo o mercado de objetos, imagens e símbolos, fazendo com que o consumidor consuma com a ilusão de ser feliz.

Em relação à programação que as crianças mais gostam na televisão, apareceu o desenho animado, sendo que o mais citado foi ‘Hora de Aventura’, e o canal Network. As novelas também aparecem em seus relatos, entre elas Carrossel e Chiquititas.

 

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

O trabalho teve como objetivo geral analisar o discurso de crianças, com idades entre 9 e 11 anos, residentes na Região Metropolitana de Belo Horizonte, MG, acerca do comportamento de consumo.

Dentre os principais resultados destaca-se que, o consumo, sob as lentes dessas crianças, representa algo que vai além do utilitarismo, como por exemplo, a aceitação em um grupo de referência, a elevação do seu status social, de aspiração e o desejo conspícuo, o que não difere de aspectos relacionados ao consumo de adultos.

No que tange aos aspectos simbólicos do consumo, as crianças destacam o sentimento de felicidade e alegria. As meninas, em especial, mencionam que o consumo faz com que se sintam mais bonitas. Tais aspectos estão associados ao status, pois existe a possibilidade de valorizarem as suas personalidades e se diferenciarem socialmente.

A maior parte das crianças se identifica com marcas famosas, sendo que 34 entrevistados afirmaram gostar de produtos de marca e conhecerem marcas de vestuário, cosméticos, brinquedos e outros.

A maioria dos relatos evidenciou o gosto por produtos de marca por eles proporcionarem maior durabilidade e qualidade.  Outras crianças afirmam que a marca gera status e prestígio. Identificou-se, ainda, o consumo de objetos como meio de exclusão ou inclusão em determinados grupos.

As marcas de maior preferência das meninas foram as de cosméticos, tais como Natura, Boticário, Mary Kay e Jequiti. As marcas Adidas e Nike foram as citadas predominantemente pelos meninos. Deste modo, observa-se que as crianças já sofrem influência e assumem gosto por produtos de adultos, uma vez que a maioria destas marcas não foca a fabricação de produtos infantis, apesar de ofertar linhas específicas para esse público.

Identificou-se que os desejos de consumo por determinados bens são similares aos dos adultos. Em relação aos seus sonhos de consumo, as crianças, além de jogos e brinquedos, desejam casas, mansões, carros e viagens para o exterior, o que pode ser um reflexo da influência familiar. Nesse aspecto é possível visualizar uma replicação do discurso de adultos com os quais convive.

Destaca-se que o desejo de atender aos sonhos de consumo dos pais ou avós foi evidenciado. Algumas crianças relatam que se tivessem muito dinheiro, comprariam uma casa para os pais, reformariam a casa deles ou dariam uma viagem para a cidade natal de seus pais, o que novamente evidencia a importância dos grupos de referência primários na formação do discurso infantil.

No construto grupos de referências identificou-se que o de maior peso é a família, em especial os pais, e os representantes legais da criança. O consumo, sob este prisma, assume um papel de aceitação nos grupos escolares ou de exclusão, constituindo, também, uma forma de a criança se diferenciar dentro do próprio grupo. Elas declaram que gostariam de se parecer com um dos pais ou com os avós, e que assim que compram algo querem mostrar para um dos seus familiares, sejam primos, tios ou avós.

Nesse contexto verifica-se a influência que a mídia exerce nas crianças, levando-as a quererem se parecer com seus ídolos, sejam do esporte, da música, da novela ou do cinema.

Dentre as contribuições, verifica-se a necessidade de regulamentação e de fiscalização mais assertiva em relação às estratégias utilizadas por algumas organizações que focam o público infantil. Deste modo, as propagandas tendem a ser legais, sem abusar do baixo senso critico das crianças, não gerando, assim, consequências mais graves para formação do indivíduo.

Para futuras pesquisas, sugerem-se entrevistas com crianças que tenham pais separados, podendo-se, assim, gerar comparações entre grupos com relação à exposição ao estímulo do consumo. Outra sugestão seria comparar crianças de escolas particulares com as de escolas públicas de regiões periféricas.

 

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