v. 6, n. 1, Janeiro-Abril/2022

A CONTRIBUIÇÃO DE HEGEL E MARX PARA A CONSTRUÇÃO DA TEORIA DO ESTRANHAMENTO EM LUKÁCS

 

Petrus Alves Freitas

petrus.alves@gmail.com

http://lattes.cnpq.br/1474091666288817

https://orcid.org/0000-0001-5313-3999

Universidade Federal Fluminense

Niterói/RJ

 

 

RESUMO

A intepretação de György Lukács sobre a teoria social de Marx configura-se uma das mais importantes da história do marxismo, sobretudo o do século XX. Destacam-se entre as problemáticas tratadas pelo filósofo húngaro, suas reflexões acerca do estranhamento [Entfremdung], presentes no último capítulo do segundo volume de Para uma Ontologia do Ser Social. Nesta obra, Lukács demonstra que o estranhamento é um fenômeno histórico-social, em que produz a deformação da personalidade dos sujeitos. Sob a influência e, ao mesmo tempo, se opondo a Hegel, Lukács cinde em sua análise do trabalho o processo de objetivação [Vergegenständlichung], referindo-se ao momento objetivo; do momento da alienação [Entäusserung], referindo-se ao momento subjetivo. Desta forma, passando pelas concepções de Hegel e Marx, sustentamos que o tratamento dado por Lukács acerca do estranhamento corresponde a uma nova e pertinente interpretação deste tema.

 

PALAVRAS-CHAVE: Hegel, Marx, Lukács, Estranhamento, Alienação.

 

THE CONTRIBUTION OF HEGEL AND MARX TO THE CONSTRUCTION OF THE THEORY OF STRANGEMENT IN LUKÁCS

 

 

ABSTRACT

György Lukács' interpretation of Marx's social theory is one of the most important in the history of Marxism, especially that of the 20th century. Among the issues addressed by the Hungarian philosopher, his reflections on estrangement [Entfremdung], present in the last chapter of the second volume of Towards an Ontology of Social Being, stand out. In this work, Lukács demonstrates that estrangement is a historical-social phenomenon, in which it produces the deformation of the subject's personality. Under the influence and, at the same time, opposing Hegel, Lukács splits in his analysis of the work the process of objectification [Vergegenständlichung], referring to the objective moment; of the moment of alienation [Entäusserung], referring to the subjective moment. In this way, passing through the concepts of Hegel and Marx, we maintain that the treatment given by Lukács about estrangement corresponds to a new and pertinent interpretation of this theme.

KEYWORDS: Hegel, Marx, Lukács, Estrangement, Alienation.

 

 

Submetido: 05/04/2022

Aceito: 28/04/2022

Publicado: 30/04/2022

 

1 INTRODUÇÃO

 

A problemática da “alienação” [Entäusserung] e do estranhamento [Entäusserung] ganhou, sem dúvidas, maior amplitude com Karl Marx. Sua concepção compõe a mais influente das vertentes desta temática. Contudo, foi preciso que, antes de Marx, esta temática passasse pelo tratamento do filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831): expressão máxima da filosofia alemã do século XIX. Após a sua investigação sobre Hegel, e depois do importante contato que teve com os escritos de juventude de Marx, o filósofo húngaro György Lukács resgata o que há de mais fundamental nestes autores e elabora sua própria interpretação neste tema.

Antes de tudo, precisamos realizar uma advertência fundamental quanto a tradução dos termos Entäusserung e Entfremdung, que são utilizados nas obras de Hegel, Marx e Lukács. Eles são, na maioria das vezes, traduzidos por alienação e estranhamento, respectivamente. Optamos por manter a tradução destas categorias tal como elas aparecem originalmente nas edições em português das obras: O Jovem Hegel e os Problemas da Sociedade Capitalista (LUKÁCS, 2018); Manuscritos Econômico-Filosóficos (MARX, 2015); e Para uma Ontologia do Ser Social (LUKÁCS, 2012; 2013), com o intuito de evitarmos quaisquer equívocos, contudo, indicaremos entre colchetes a palavra correspondente em alemão toda vez que existir a necessidade de distinção. Sabemos que a polêmica da tradução destes termos da língua alemã para o português não é tão facilmente resolvida, entretanto o aprofundamento nesta polêmica extrapola a intenção do presente trabalho.

Nesta introdução, nos limitaremos em esclarecer que, em Hegel, fundamentalmente em A Fenomenologia do Espírito, os termos aparecem quando o autor se dedica ao tratamento do Espírito, (parte B) “O Espírito Estranhado de Si Mesmo. A Cultura”; e ambas são componentes do sistema filosófico e evidenciam a evolução da consciência ao mesmo tempo apresenta o desenvolvimento histórico da humanidade, sobretudo na passagem do antigo regime para a sociedade burguesa (HEGEL, 1992b, 35). Em Marx, nos Manuscritos, os dois termos são utilizados sem uma clara distinção, com uma persistente conotação negativa, isto é, no sentido de que significam um entrave ao pleno desenvolvimento do gênero humano. Já na Ontologia, Lukács separa o processo de objetivação do trabalho, referindo-se ao momento objetivo, material[1]; do processo da alienação, referindo-se ao momento subjetivo, espiritual. Assim, todo estranhamento [Entfremdung] somente pode surgir desta alienação, isto é, para que o estranhamento se manifesta a alienação do sujeito se configura como pressuposto, como veremos mais adiante.

Marx jamais fez esta distinção, mas podemos seguramente afirmar que tanto em Marx quanto em Lukács o termo estranhamento sempre carrega consigo uma conotação negativa, devendo ser, portanto, superado. Enquanto que a alienação [Entäusserung] – que também pode ser traduzida por exteriorização – é, para Lukács, um momento inseparável da objetivação, e essa alienação pode se tornar um estranhamento ou não. A distinção entre alienação e estranhamento, descrita na Ontologia, intenta em opor à identificação hegeliana da alienação e a objetividade, conforme veremos, concebendo estes dois momentos como uma unidade indissolúvel (LUKÁCS, 2013).

Em O jovem Hegel, Lukács destina sua análise detalhada ao conceito hegeliano de alienação. Analisando as obras de juventude de Hegel, Lukács descobre três acepções para a alienação. “A primeira refere-se ao trabalho […] Temos no trabalho uma estrutura das relações sujeito-objeto na atividade humana, relações que determinam o que poderíamos chamar de dinamismo do processo histórico”; a segunda “uma espécie de antecipação do que Marx irá chamar de ‘fetichismo da mercadoria’”; a terceira “é a mais elevada do ponto de vista da abstração ou generalização filosófica, ou seja, a que identifica exteriorização [Entäusserung] com objetividade[2]” (LUKÁCS, 2009, p. 105). 

A oposição de Lukács à filosofia hegeliana, como a de Marx, afasta ainda mais qualquer interpretação idealista deste complexo de problemas, bem como as interpretações subjetivistas, afirmando que o estranhamento é “um processo exclusivamente histórico-social que emerge em certos picos do desenvolvimento em curso”, e que assume variadas formas historicamente distintas, portanto, sem qualquer relação com uma condição humana universal ou transcendente (LUKÁCS, 2013, p. 577). Assim, o objetivo deste trabalho é demonstrar o esforço do filósofo magiar em apresentar uma nova e pertinente interpretação do fenômeno do estranhamento, ainda que o próprio Lukács vincule diretamente sua teoria do estranhamento aos escritos de Marx.

Para cumprir com tal demonstração, este trabalho foi dividido em: i) uma apresentação breve da tríade conceitual dos escritos de juventude de Hegel, a partir da obra lukacsiana O jovem Hegel; ii) uma exposição da crítica de Marx a concepção de Hegel; além de iii) uma apresentação da teoria da alienação em Marx, a partir dos Manuscritos; iv) um esboço do entendimento de Lukács ao tema do estranhamento; por isso, v) uma breve exposição sobre a personalidade humana se faz necessária; e, por fim, vi) uma síntese do que foi exposto nas considerações finais.

 

2       O JOVEM HEGEL E A TRÍADE CONCEITUAL DA ALIENAÇÃO  [Entäusserung]

A problemática da alienação em Hegel é introduzida em seu sistema conceitual a partir da Fenomenologia do Espírito. Nesta obra, ele utiliza a expressão alienação, pela primeira vez com o rigor filosófico[3]. E mesmo que o uso dessa expressão não seja novo – aparecem tanto na Economia Política inglesa, para denominar a alienação de uma mercadoria, quanto nas teorias jusnaturalistas do contrato social, correspondendo à transmissão ou perda da liberdade natural para a sociedade nascente deste contrato –, é nesta obra hegeliana que esta categoria aparece com um tratamento muito mais elevado (LUKÁCS, 2018, p. 689). Apesar da prévia utilização da alienação por outros autores, podemos considerar como uma criação original de Hegel o tratamento conceitual dado na Fenomenologia, conforme nos esclarece Lukács: “A partir da Fenomenologia, a ‘alienação’ aparece em um estágio muito elevado de universalização filosófica. O conceito já se elevou muito acima de seu terreno original de surgimento e aplicação, muito acima da economia e da filosofia da sociedade” (LUKÁCS, 2018, p. 690).

No último capítulo de O jovem Hegel, seção IV, intitulada “A ‘alienação’ como conceito filosófico central da ‘Fenomenologia do Espírito’”, Lukács destina sua análise detalhada ao conceito hegeliano de alienação. A concepção filosófica de Hegel, parte da sua oposição ao materialismo mecânico e aos empiristas ingleses, além do racionalismo transcendental alemão, desfecho final da filosofia de Kant. O mais importante para se destacar do chamado período republicano, período em que o jovem Hegel defende com entusiasmo a Revolução Francesa, é que, mediante seu estudo da economia[4] e da História, sua luta de Hegel contra o idealismo subjetivo alemão[5] que dá origem a uma nova terminologia filosófica, uma expressão muito mais adequada destas conexões do mundo moderno. Hegel, dessa maneira, “colocou a relação entre economia e dialética como questão fundamental do método filosófico” (LUKACS, 2009, p. 90).

Ao conceito hegeliano de alienação Lukács distingue três níveis, ou seja, uma tríade conceitual: o primeiro refere-se à complexa relação entre sujeito-objeto ligado com a atividade econômica e social do homem, o trabalho: “Surge aqui o problema da objetividade da sociedade, de seu desenvolvimento, das leis desse desenvolvimento, ao mesmo tempo que é mantida plenamente a ideia de que os próprios homens fazem sua história” (LUKÁCS, 2018, p. 691). Hegel concebe a história como desenvolvimento dialético, com uma complexa interação e contradições cujo protagonista é o ser humano (mesmo sendo este um ser humano abstrato), através da sua prática em sociedade[6]. Diz Lukács: “Hegel vê o homem como criador de si mesmo. O homem, ao trabalhar, faz de si mesmo um homem: ele se torna homem por meio do trabalho. É este o pensamento principal da Fenomenologia do espírito” (LUKÁCS, 2009, p. 98). Para Lukács, essa apreensão permite dizer que Hegel se converte no “precursor do materialismo histórico”. Assim, a análise concreta do processo do trabalho humano, realizada por Hegel, nos mostra que a contraposição entre causalidade e teleologia é uma contradição dialética pela qual a conexão real da realidade objetiva se manifesta[7] (LUKÁCS, 2018, p 463).

A inferência de Lukács fica clara quando ele vai referir ao segundo nível do conceito hegeliano de alienação [Entäusserung][8]. Para Lukács, corresponde à forma especificamente capitalista da alienação, isto é, o que mais tarde Marx chamará de fetichismo da mercadoria. É claro que Hegel jamais poderia chegar a uma conclusão idêntica à de Marx[9], pois Hegel viveu no final do período de gênese do modo capitalista de produção, em que as marcas do feudalismo ainda eram muito acentuadas no tecido da vida social, sobretudo no plano econômico. Além disso, em seu pensamento, a característica do conceito é a universalidade, que se expressa em particularidades no percurso da história. Isso não impediu Lukács de retirar do pensamento hegeliano, de algum modo, “certas intuições do problema da fetichização dos objetos sociais no capitalismo” (LUKÁCS, 2018, p. 691). Podemos, assim, com essa interpretação lukacsiana, reconhecer que Hegel como o único pensador do idealismo clássico alemão que se debruçou seriamente sobre estes problemas.

Segundo Lukács, o primeiro aspecto do tratamento da alienação dado por Hegel se funde continuamente com este segundo, ou seja, Hegel vê a objetividade social “alienada” ligada à forma de organização social do trabalho da sociedade capitalista. Para Lukács, este é o problema nascente do fetichismo em Marx, já que nele, o fetichismo da mercadoria é a forma em que a alienação assume com a divisão capitalista do trabalho e da dupla dimensão do trabalho no capitalismo.

O último nível do conceito hegeliano de alienação refere-se a “uma ampla universalização filosófica do conceito” (LUKÁCS, 20180, p. 692), significando o mesmo que coisidade ou objetividade: forma pela qual se expõe a história da objetividade, a objetividade como momento dialético no trajeto de identidade entre sujeito-objeto, através da exteriorização [Entäusserung] do Espírito.  Ora, “se a exteriorização é idêntica à objetividade, isso significa que todo o mundo dos objetos, das coisas etc. nada mais é do que o espírito objetivado” (LUKACS, 2009, p. 106). 

A identificação entre exteriorização e coisidade traz graves consequências à determinação da essência da natureza, da sociedade e da história. Tanto a natureza quanto a sociedade são, para Hegel, alienações da Ideia e do Espírito, assim, a natureza “é uma perene alienação [Entäusserung] do espírito, cujo movimento, por isso mesmo, é apenas pseudomovimento, um movimento do sujeito”; a natureza não tem, portanto, uma história real, pois é a alienação da Ideia no espaço e não no tempo[10] (LUKÁCS, 2018, p. 694).

A história da prática social dos homens e a relação entre homem e natureza, “do mundo em geral, é o desenvolvimento do espírito no tempo, assim como a natureza é o desenvolvimento da ideia no espaço” (HEGEL, 2001, p. 123). Nessa concepção da história humana, medular em Hegel, falta a verdadeira interação entre a sociedade e natureza, pois, para ele, é o Espírito que tem de fazer a história, e não as relações dos homens reais. Para Marx, quem faz a história é o homem real em determinações concretas[11].

A despeito disso, a formulação da história em Hegel nos fornece um valioso quadro de determinações corretas em muitos aspectos metodológicos da ciência histórica, embora não elimine seu elemento mistificador. Para Hegel, todo processo histórico tem um fim, a autossupressão, o retorno da história no sujeito-objeto idênticos no saber absoluto, consequência natural da supressão da objetividade. Há, portanto, uma espécie de mistificação religiosa do processo histórico. Os dois extremos místicos: a criação do início e o fim dos tempos.

Trata-se, como dissemos, da autossupressão da história; “A história é transformada em mera realização de uma finalidade existente desde o início em seu sujeito, em seu espírito”, e, concomitantemente, “supera-se sua imanência: não é a história mesma que contém sua própria legalidade real e seu próprio movimento real, mas tudo isso adquire existência real apenas […] no saber absoluto” (LUKÁCS, 2018 p. 699).

Em Hegel, portanto, é o Espírito Absoluto o motor da história. Ele é o sujeito que sabe de si mesmo, como autoconsciência absoluta, é a consciência que sabe de si e intervém na realidade. Porém, como adverte Marx, em A Sagrada Família, o Espírito Absoluto, o “portador da história”, somente se constitui como espírito criador do mundo post festum, na cabeça do filósofo: “sua fabricação da História existe apenas na consciência, na opinião e na representação do filósofo, apenas na imaginação especulativa” (MARX, 2011, p. 103); como uma consequência necessária da alienação [Entäusserung] na concepção hegeliana.

Nos Manuscritos, Marx aborda esta concepção de história em Hegel, atribuindo a ela uma mera aparência, isto é, a partir do momento que é o Espírito Absoluto que faz a história, ele a faz apenas na aparência (MARX, 2015). Marx concentra sua crítica na Fenomenologia[12], mais precisamente sobre essa concepção hegeliana de alienação e a sua superação. Grande parte desta crítica deriva de Feuerbach[13], que deu largo passo em direção para a superação do idealismo pelo materialismo. Porém, é preciso notar que foi Hegel quem, pela primeira vez, executou a unificação da economia com a filosofia no tratamento da sociedade moderna, pois ela contém o movimento dialético da vida econômica, da prática dos homens.

Segundo Lukács, “a crítica de Marx parte da concepção mais profunda e mais correta dos fatos econômicos”, o que foi possível compreender a real peculiaridade e legalidade própria dos atos econômicos fundamentais, como a divisão social do trabalho, a propriedade privada e sobretudo o trabalho, fazendo uma crítica socialista da alienação do trabalho (LUKÁCS, 2018, p. 701). Marx, portanto, superou a concepção idealista e Hegel.

Em Marx encontramos esta superação da dialética idealista de Hegel e a elevação em um nível superior toda a articulação entre economia e filosofia, pois a compreensão de Hegel aos problemas da sociedade capitalista era imperfeita, não ultrapassava os limites da Economia Política clássica. Marx pôde criticar de maneira ampla e dialética o que há de verdadeiro e falso, o que há de essencial e mistificador na concepção hegeliana dos fenômenos da realidade. A conexão entre economia e a filosofia é a metodologia necessária para uma real superação da dialética idealista, e é neste sentido que Marx, como dissemos, irá concentrar a sua crítica na Fenomenologia de Hegel[14], dedicando a última parte dos seus Manuscritos.

 

3      A CRÍTICA DE MARX À CONCEPÇÃO DE HEGEL

É, portanto, nos Manuscritos que o tratamento da alienação [Entäusserung] e do estranhamento [Entfremdung] – tomadas como denominações distintas da mesma coisa –, realizado por Marx se afasta categoricamente da alienação como coisidade e da objetivação do trabalho em Hegel. Na concepção acertada de Marx, a objetivação é uma característica do trabalho em geral; ela surge “da relação da práxis humana com os objetos do mundo exterior” (LUKÁCS, 2018, p. 703). A alienação ou o estranhamento, por sua vez, são em consequência da divisão social do trabalho no capitalismo, daquilo que chamamos de “trabalho livre”, em que impera a compra e venda da força de trabalho, a propriedade privada dos meios de produção e, consequentemente, a apropriação do produto do trabalho pelo não-produtor, um ser alheio e independente do trabalhador.

Assim como a Economia Política clássica, Hegel captou o trabalho como autroprodução dos homens, e isso foi de grande importância para o desenvolvimento marxiano. Contudo, os aspectos negativos do trabalho sob a égide da sociedade capitalista não foram devidamente considerados. Todo embasamento da crítica de Marx aos conceitos fundamentais contidos na Fenomenologia, segundo Lukács, recai sobre a seguinte afirmação: “o fato de Hegel não ver esses aspectos [negativos] do trabalho necessariamente faz com que surjam em sua filosofia separações errôneas e unificações errôneas, mistificações idealistas” deste problema (LUKÁCS, 2018, p. 704). Ademais, destacamos que o fundamento da crítica materialista à concepção hegeliana de alienação [Entässerung] é a dialética real do trabalho no capitalismo e a sua superação só pode ser alcançada com a extinção do trabalho em sua forma estranhada.

Na visão idealista de Hegel, a superação da alienação é realizada pela filosofia, isto é, na consciência, no trajeto da história o espírito que retorna a si mesmo, como espírito que reconhece plenamente a si mesmo, toma consciência de si, o Espírito Absoluto (HEGEL, 1992). Ora, para Marx “o espírito filosófico não é senão o espírito do mundo, pensante no interior da sua autoalienação, i. é, [o espírito do mundo] alienado que se apreende abstratamente” (MARX, 2015, p. 366), que pensa a si mesmo, concebe a si mesmo abstratamente. Hegel concebe o movimento da consciência à autoconsciência, mas que é antes um movimento do ser humano real, do próprio ser humano concreto.

Para Hegel, ainda nas palavras de Marx, o ser humano é a autoconsciência, a “sua essência tornada completamente indiferente face a toda determinação real” (MARX, 2015, p. 366). A essência dos homens sem a determinação real-concreta torna-se essência irreal. Toda alienação [Entässerung] dos homens é, dessa maneira, necessariamente a alienação da autoconsciência, segundo a concepção hegeliana. Mas a alienação da autoconsciência já é uma manifestação, refletida no saber e no pensamento, da alienação real do ser humano, e este movimento aparece de maneira invertida em Hegel. Segundo Marx: “A essência humana, o homem, vale para Hegel = autoconsciência. Toda a alienação da essência humana nada é, portanto, se não alienação da autoconsciência” (MARX, 2015, p. 372).

Esta conclusão de Marx nos mostra que a falsa identificação do ser humano com a autoconsciência produz uma falsa concepção acerca da alienação na realidade social, sua mistificação, do lado subjetivo, com a identificação do ser humano (o sujeito) com autoconsciência; e, do lado objetivo (aspecto fundamental da apreensão hegeliana da alienação), com a equiparação da alienação com a objetivação em geral (LUKÁCS, 2018, p. 706). De acordo Lukács, Marx traça com muita clareza uma linha divisória entre a objetivação do trabalho em seu sentido mais amplo, de produtor do ser social, e alienação do sujeito e do objeto na forma capitalista em que o trabalho está submetido. Para a teoria materialista de Marx, o ser humano é um ser da natureza, isto é, faz parte da natureza, contudo, é um ser ativo que põe em movimento suas forças essenciais objetivas, atuando na natureza, produzindo a si mesmo e os objetos para a sua vida, afastando cada vez mais do seu condicionamento limitado natural. 

Contudo, é preciso dizer que Hegel, mesmo sendo idealista e permanecendo assim por toda a sua vida, foi capaz de oferecer diversas determinações da realidade, essenciais sobre a economia, a história e a dialética da realidade objetiva.  Ao se deter ao trabalho, Hegel concebeu esta atividade humana como o processo de autoprodução do ser humano, descoberta, que seus antecessores do idealismo alemão se mantiveram fechados para a característica humana da intencionalidade do trabalho, projetando a teleologia ao Deus criador do mundo, da natureza e da sociedade, isto é, a alienação religiosa, mistificadora do mundo dos homens.

 

4      A ABORDAGEM DE MARX NOS MANUSCRITOS 

A leitura dos Manuscritos de Marx foi primordial para a superação dos resquícios hegelianos em Lukács, além de ter revelado para ele um novo aparato teórico marxiano[15]. O tratamento dado por Marx à alienação parte do conjunto de relações da sociedade capitalista, em que os trabalhadores se tornam “alienados”, isto é, com a divisão capitalista do trabalho, a propriedade privada e o dinheiro, manifesta-se a autoalienação do ser humano; que está alienado do produto do trabalho. Marx, portanto, tratou da alienação saindo da crítica da religião para a crítica da política ou do direito em Hegel, sob a influência de Feuerbach, e, com o estudo inicial da Economia Política, para a crítica da sociedade burguesa. Suas preocupações com a emancipação política alemã e a questão judaica (MARX, 2013) foram o princípio da apreensão sobre a alienação. Nos Manuscritos fica evidente que a crítica da religião e do Estado se converteu em uma crítica da sociedade capitalista como tal, contudo, sua teoria crítica a respeito do capitalismo estava muito longe de alcançar um mínimo acabamento, que só virá nomeadamente em O Capital[16].

Na seção intitulada “[Trabalho alienado e propriedade privada]”, Marx começa tratando das descobertas dos autores da Economia Política clássica, sobretudo Smith (1996) e Ricardo (1982). Marx chama a atenção, e isso podemos tomar como ponto de partida, para o fato de que o trabalhador “decai em mercadoria e na mais miserável mercadoria” (MARX, 2015, p. 302). O trabalhador sucumbe à condição de mercadoria – embora saibamos que é a força de trabalho que se torna uma mercadoria, mas esta distinção só seria feita por Marx mais tarde –, pois no salário encontramos a maneira pela qual o capitalista compra o trabalho e o “trabalhador”, e assim ele reproduz, enquanto trabalhador, a si e a sua família.

A relação desigual entre capital e trabalho, expressa também pelos salários, é evidenciada por Marx nas primeiras páginas do Caderno I dos Manuscritos, e a “vitória para o capitalista” nesta relação (MARX, 2015, p. 243). Destarte, a separação feita entre capital, propriedade fundiária e trabalho configura-se em uma cisão nociva ao trabalhador, além de necessária e essencial ao capital (MARX, 2015, p. 244). No salário reside aquilo que é necessário para a “subsistência do trabalhador durante o trabalho”, assim, “a existência do trabalhador é, portanto, reduzida à condição da existência de qualquer outra mercadoria” (MARX, 2015, p. 244-245).

A propriedade privada e a forma capitalista de propriedade, que se desenvolveu ao longo da história humana, é tomada, pelos economistas burgueses, como fórmula geral abstrata que tem força de lei imutável, eterna e natural[17] (MARX, 2015, p. 303). Este princípio, dos clássicos da Economia Política, não nos esclarece as origens da propriedade privada nem da divisão entre trabalho e capital. Estas categorias, como troca, salário, lucro etc., aparecem como “fato acidental” não como “consequências necessárias, inevitáveis, naturais do monopólio, da corporação e da propriedade feudal” (MARX, 2015, p. 303). Marx, a partir daí caminha para a apreensão da conexão essencial de toda a alienação do dinheiro, da propriedade privada e da cisão entre trabalho, capital, propriedade da terra, troca e concorrência, relação “entre valor e desvalorização do homem” (MARX, 2015, p. 304).

O economista burguês “supõe na forma do fato, do acontecimento, aquilo que deve deduzir; a saber, a relação necessária entre duas coisas, p. ex., entre divisão do trabalho e troca”, assim como “o teólogo explica a origem do mal pelo pecado original, i. é, ele, supõe como um fato, na forma de história, o que deve explicar” (MARX, 2015, p. 304). A Economia Política não explica, portanto, a interconexão entre estes elementos da economia capitalista, mas toma como fato dado e consumado, um princípio que deve ser o pressuposto inquestionável, e que é, na realidade, uma condição derivada de determinações sociais e econômicas, e sua filiação inicial deve ser, por isso, mais bem explicitada.

A desvalorização dos homens a qual Marx se refere é a desvalorização tanto material quanto espiritual do sujeito que trabalha: “O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz”, portanto, com a “valorização do mundo das coisas, cresce a desvalorização do mundo dos homens em proporção direta”, pois “o trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se a si próprio e o trabalhador como mercadoria” (MARX, 2015, p. 304). O trabalho ingressa no centro da concepção de Marx de autoalienação, pois ele é atividade criadora dos homens e, na sociedade capitalista, produtor desta alienação.

O produto do trabalho, o objeto que o trabalho produz, defronta o seu produtor “como um ser alienado” como “um poder independente do produtor” (MARX, 2015, p. 304). Quanto mais objetos são produzidos pelo trabalhador, tanto menos estes objetos lhe pertencem e pode ele possuí-los, tanto mais assola a dominação[18] do seu produto pelo capital (MARX, 2015, p. 305). O que determina esta alienação e a perda do objeto é o fato de que o “trabalhador se relaciona com o produto do seu trabalho como um objeto alienado”. Enquanto perpetua a forma da produção, o trabalhador reproduz a forma alienada do seu trabalho.  Quanto mais o trabalhador trabalha, mais ele fortalece a dominação do capital sobre ele mesmo. Seu trabalho se converte em uma existência exterior, ademais, põe-se para fora de si, pois o objeto de seu trabalho é existência independente, autônoma e alienada, que defronta o trabalhador de “modo hostil” (MARX, 2015, p. 306).

O trabalho alienado mostra que há uma relação alienada e estranhada com o produto do trabalho, mas também com a sua atividade produtiva. O produto do trabalho está alienado assim como a atividade, como atividade alienada.  O trabalho se torna externo ao trabalhador, não pertence ao seu ser, mas é a sua negação. Este trabalho alienado não pertence ao trabalhador. É certo que, em sua essência, o trabalho é a relação do trabalhador com a produção da sua própria humanidade (MARX, 2015, p. 308). Entretanto, aquilo que lhe pertencia como atividade mediadora, criadora, transforma-se em perda da atividade, perda de si mesmo (MARX, 2015, p. 309). Mas a quem pertence o produto do trabalho se este não pertence ao próprio trabalhador? Ora, a alguém que está fora dele (MARX, 2015, p. 315). O que o trabalhador produz é fruição para outra pessoa, apropriado por outrem. Não mais os deuses, muito menos a natureza: “o ser alienado, a quem o trabalho e o produto do trabalho pertencem, a serviço do qual está o trabalho e para a fruição do qual o produto do trabalho é, e só pode ser o próprio homem” (MARX, 2015, p. 315).

A autoalienação dos homens, de si e da natureza, explicita-se na relação prática real que este estabelece com outros homens, isto é, pelo trabalho alienado o ser humano não somente se relaciona com o seu produto e atividade de modo alienado, mas com outros homens, também alienados, de modo hostil. A alienação não se restringe apenas ao trabalhador, porém, ao capitalista ela se apresenta de forma distinta: o “que aparece no trabalhador como atividade de exteriorização [Entässerung], de alienação [Entfremdung], aparece no não trabalhador como estado de exteriorização, de alienação” (MARX, 2015, p. 321).

Como elemento diferenciador do ser humano para o animal, daquilo que é próprio do ser humano, o trabalho, torna-o, nesta condição estranhada, mais animalesco[19]. Ou seja, o ser humano só se sente humano em atividades animais, e na atividade especificamente humana, um animal, pois o sujeito que trabalha “só se sente livremente ativo nas funções animais – comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adorno etc. –, e já só como animal nas suas funções humanas. O animal torna-se o humano e o humano, o animal” (MARX, 2015, p. 309). 

Há mais uma consideração a ser feita sobre o trabalho alienado. Para Marx, o ser humano é um ser genérico[20]. É para consigo mesmo um ser universal. Sua existência é parte de um gênero humano, da humanidade, de uma espécie (MARX, 2015, p. 310). Tal como os animais, os homens vivem da natureza, seu “corpo inorgânico”, a qual ele domina, trabalha e modifica. Sabemos que os homens vivem dos produtos produzidos a partir da natureza, isto significa que os homens precisam estar constantemente movendo-a para manter-se vivos, transformando a natureza e, sendo eles parte desta natureza, transformando continuamente a si mesmos.  Desta forma, o trabalho alienado faz da vida humano genérica uma existência abstrata como finalidade da mera vida singular (MARX, 2015, p. 311).

O trabalho enquanto atividade produtiva se apresenta aos homens meramente como um meio de satisfazer suas necessidades vitais e, portanto, para manter sua mera existência individual. “Mas a vida produtiva é a vida genérica” (MARX, 2015, p. 312), assim, sua própria generidade aparece como apenas meio. Em sua diferenciação via atividade produtiva específica, o trabalho humano nesta condição alienada, aliena o homem da sua espécie, isto é, do ser genérico. Com o trabalho alienado o ser humano faz da sua atividade vital consciente, um meio de existência, dessa maneira, há a inversão da relação do ser humano com a sua própria essência[21].

Com este breve exposto, podemos afirmar que é com os Manuscritos que Marx inaugura uma nova visão de mundo e, a partir dela, desenvolve uma metodologia inovadora de análise da realidade. O autor dedica-se, em vista disso, à análise da sociedade capitalista, das categorias reais do desenvolvimento histórico-real, da condição material da reprodução da vida humana, e da produção da alienação a partir das relações sociais estabelecidas na sociedade burguesa. A alienação, portanto, é sempre alienação de algum sujeito, ou classe, diante de algo. Embora reconhecidamente apreendida de maneira ainda abstrata, a teoria da alienação de Marx se traduz num poderoso arsenal de crítica à sociedade capitalista. O desenvolvimento mais preciso da teoria do fetichismo de Marx, em O Capital, supõe o entendimento da alienação do trabalho. É possível dizer que Marx jamais vislumbraria o fetichismo se não tivesse reconhecido que as relações de exploração e apropriação do excedente econômico por não-produtores, implicam consequências drásticas para o trabalhador.

 

5      A INTERPRETAÇÃO DE LUCKÁCS AO FENÔMENO DO ESTRANHAMENTO [Entfremdung]

Na formulação dos “Traços ontológicos gerais do estranhamento”, exposto na seção que inicia o Capítulo IV do segundo volume da Ontologia, Lukács (2013) trava oposição não somente à filosofia de Hegel, como fizera Marx, mas também às correntes filosóficas posteriores, como o existencialismo de Heiddegger e o niilismo de Nietsche. Para o entendimento do fenômeno do estranhamento, portanto, “se quisermos delinear com nitidez e apreender corretamente” deve-se “visualizar de modo preciso a sua posição dentro da totalidade do complexo do ser social” (LUKÁCS, 2013, p. 577).

Com essa perspectiva, Lukács afasta qualquer interpretação idealista do problema, bem como as interpretações subjetivistas, afirmando que o estranhamento é “um processo exclusivamente histórico-social que emerge em certos picos do desenvolvimento em curso” e que assume variadas formas historicamente distintas, portanto, sem qualquer relação com uma condição humana universal ou transcendental, como na interpretação de Hegel da alienação [Entässerung], como vimos (LUKÁCS, 2013, p. 577). Em Hegel, as determinações do ser se fundamentam fora do plano ontológico-material, isto é, na consciência.

Com o reconhecimento da prioridade do ser frente à consciência, Marx concebeu o ser humano como “ser” objetivo, pois “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 1986, p. 37). Com isso, Marx destina a objetividade humana às relações materiais que se desenvolvem na própria realidade, ou melhor, à interrelação entre os indivíduos em uma realidade já existente: Um ser que não tenha nenhum objeto fora de si não é um ser objetivo” (MARX, 2015, p. 303).

Desse modo, o ponto de partida da análise do fenômeno que apresentaremos é a totalidade do processo de desenvolvimento do ser social que integra também o processo de desenvolvimento do indivíduo. Neste sentido, é o trabalho, para Lukács, como já aludimos, a atividade fundante da própria humanidade[22]. Todas as complexas e diversas formas deste ser social tem origem objetivamente neste ato teleológico, “através dele realiza-se, no âmbito do ser material, um pôr teleológico enquanto surgimento de uma nova objetividade” (LUKÁCS, 2013, p. 47). O nascimento simultâneo e inseparável do trabalho e da linguagem fundamentam, portanto, o desenvolvimento da humanidade, criando uma fissura “tão ampla e profunda que a herança animal, por vezes sem dúvida presente, não tem peso decisivo”, separando a espécie humana da espécie animal (LUKÁCS, 1966, p. 39).

Mais do que essa separação, este processo configura-se como produtor de transformações qualitativas, objetivas e subjetivas, que jamais estarão presentes na natureza. A interação prática do ser humano com o mundo previamente existente engendra diferentes momentos de reflexão acerca deste mundo, além de novas e diferentes formas de conhecimentos. Isto é, a existência humana – que se concretiza numa dada realidade objetiva – desenvolve formas de reflexão, no pensamento, sobre este mundo que existe objetivamente possibilitando desempenhar atividades no processo de trabalho, exigindo, dessa maneira, uma crescente complexificação da interação com a natureza e o seu domínio.  

No trabalho, mesmo em sua forma mais simples e longínqua, o ser humano opera uma síntese entre a ideação prévia e uma causalidade (dada pela natureza e posta pelo sujeito que trabalha), produzindo valores de uso necessários à existência humana. Com esta primeira objetivação, os seres humanos criam novos objetos não existentes na natureza, ao mesmo tempo em que se reconhecem enquanto sujeitos diferentes deste novo objeto criado. Na produção, um objeto natural deve ser trabalhado de maneira adequada, ou seja, deve-se avaliar positiva ou negativamente a maneira como foi produzido e o resultado obtido neste trabalho. Com isso, se produz não somente um novo objeto, mas também um conhecimento sobre a produção deste objeto que deverá servir, caso avaliado positivamente, na orientação para a práxis humana (uma ética), conduzindo também a prática cotidiana (um juízo de valor).

Aqui torna imprescindível dizer que, segundo Lukács, com o trabalho movemos séries causais que produzem resultados que individualmente não podem ser controlados totalmente. Toda escolha individual é tomada intencionalmente, gerando, na realidade concreta, uma nova ação relativamente independente. Neste princípio ontológico, indispensável do ato do trabalho, encontramos a chave para o entendimento do fenômeno do estranhamento, pois, na interação com a totalidade social, essas posições teleológicas colocadas em movimento se desenvolvem objetivamente, ocasionando resultados diferentes das finalidades que orientam a prática. Mesmo que essas finalidades sejam realizadas, é possível haver resultados que as ultrapassam – em muitos casos, resultados completamente opostos. Este é o caso do desenvolvimento das forças produtivas que potencializa frequentemente o desenvolvimento das capacidades humanas, mas que carrega consigo – e como é possível verificar na história das sociedades humanas – a possibilidade do esfacelamento completo de indivíduos ou grupos sociais, como no escravismo antigo, ou no trabalho assalariado[23].

Esse desenvolvimento desigual[24], conforme sustenta Lukács, é o fundamento ontológico do estranhamento. O que deve ficar claro é justamente essa desigualdade no desenvolvimento das forças produtivas que potencializa as capacidades humanas e o não correspondente desenvolvimento da personalidade humana. Em suma, é o antagonismo entre desenvolvimento das capacidades e desdobramento da personalidade o conteúdo das variadas formas de estranhamento que se manifestam nos diferentes estágios do desenvolvimento social. Quando esse processo atinge elevado grau de generalização, ele se faz presente em todos os atos do trabalho, “permanentemente como momentos indispensáveis desses atos” (LUKÁCS, 2013, p. 582).

Foi com o intuito de aclarar esta questão que Lukács separou o ato do trabalho em seus dois momentos inseparáveis: o da objetivação e da alienação, sempre ressaltando a unidade indissolúvel entre esses dois momentos. Na objetivação temos a materialização do objeto, a produção de um objeto novo inexistente na natureza, potencialmente criando e desenvolvendo nos seres humanos novas capacidades, habilidades e necessidades, o que corresponde ao desenvolvimento da sociabilidade humana. Na alienação [Entässerung], a personalidade do sujeito se revela no produto do trabalho como expressão da alienação no ato da produção. No produto podemos reconhecer a “impressão digital” (a personalidade) de seu produtor, que conserva traços da sua individualidade. Os exemplos dados por Lukács, do artesanato e da manufatura, esclarecem-nos que, enquanto no artesanato o produtor exprime no objeto sua marca, revelando a personalidade do sujeito, na manufatura a “digital” de quem produz tende a desaparecer com a divisão das atividades técnicas do trabalho (Lukács, 2013, p. 423).

Com o desenvolvimento e utilização da ciência na produção capitalista, seguindo com o exemplo, a tendência é a despersonalização dos produtos em torno das expressões individuais. Isso não necessariamente assume o caráter negativo, pelo contrário, é consequência do próprio desenvolvimento desantropormizador das forças produtivas, condição para o desenvolvimento das capacidades humanas. Por outro lado, com o desenvolvimento das forças produtivas impulsiona-se o processo de surgimento do indivíduo, chamado por Lukács de processo de individuação, ao mesmo tempo em que possibilita um ser social cada vez mais próximo do seu gênero. Para isso, cada vez mais também é necessária a ampliação e o desenvolvimento de personalidades mais ricas e complexas. Contudo, pode ocorrer totalmente o contrário, um desenvolvimento de uma personalidade cada vez mais mesquinha ou medíocre. Para Lukács, neste conflito a personalidade pode sofrer deformações. Veremos a seguir um pouco mais de perto a problemática da personalidade e sua “deformação”. 

 

6      PERSONALIDADE HUMANA E ESTRANHAMENTO

Lukács mostrou que trabalho é a categoria fundante do ser social, cuja análise permite reconhecer a gênese e o desenvolvimento da personalidade humana. A personalidade, para este autor, é o resultado do desenvolvimento das capacidades humanas em decorrência do próprio impulso do trabalho, por isso, sua base é de caráter social. Vimos também que pelo trabalho criador, surgem novas necessidades que demandam aprendizagem e aperfeiçoamento. Isso confere aos sujeitos novas habilidades, que modificam, portanto, o modo de agir do ser humano na sociedade, seu comportamento diante do mundo externo, avaliando ou fixando, na consciência, essas novas formas de pensamento e comportamento na vida cotidiana. O processo de trabalho e seu aperfeiçoamento permitem, desta forma, o aumento das mediações entre o próprio trabalho e a realidade objetiva. Assim, novas posições teleológicas vão surgindo, complexificando-se, tornando as determinações da vida humana cada vez mais sociais. Mesmo o ato mais primitivo do trabalho já carrega consigo caracteres exclusivamente sociais: fica-nos visível, em suma e para repetir, que a “personalidade, com toda a sua problemática, é uma categoria social” (LUKÁCS, 2013, p. 591). 

No objeto útil, já há a revelação da personalidade, portanto, a manifestação da alienação do sujeito, como dissemos, mas não somente. A explicitação da personalidade, na teoria de Lukács, está ligada às escolhas que cada indivíduo realiza, diante das possibilidades e alternativas concretas, ao longo da vida, o que nos permite evidenciar essa relação desigual: o desenvolvimento das forças produtivas potencializa as capacidades, mas, no plano concreto, se afirma como obstáculo socialmente posto ao enriquecimento da personalidade. “O homem torna-se personalidade mediante o desenvolvimento das forças produtivas sociais, mas pode também ser estranhado de si mesmo por força desse mesmo movimento”. Por esse motivo que o “progresso social e estranhamento humano estão acoplados no ser social […], o estranhamento brota do progresso social” (LUKÁCS, 2013, p. 747).

Desse modo, uma personalidade humana somente pode se constituir, desenvolver ou fracassar “num campo de ação histórico-social e concreto e específico” (LUKÁCS, 2013, p. 588). Todas as determinações da personalidade, portanto, têm origem, antes de tudo, nas relações do mundo prático, entre os indivíduos reais, como na sua atividade com a natureza e nos processos que se desenvolvem no plano concreto da sociedade. A personalidade humana é inseparável da totalidade da sociedade, e nesse desenvolvimento social desigual ela pode desenvolver-se autenticamente ou ser rebaixada “a mera particularidade, [e] esta é a consolidação final do estranhamento” (LUKÁCS, 2013, p. 621).

Para que a personalidade humana se desenvolva, nos termos em que colocamos aqui, como correspondente ao gênero humano que superou a sua mudez completamente, é necessário também o desenvolvimento da “formação superior de cada uma das capacidades”. A divisão social do trabalho impele ao indivíduo “de múltiplas tarefas, com muita frequência extremamente heterogêneas entre si” (LUKÁCS, 2013, p. 588). No cotidiano, as decisões pessoais sempre se apresentam sobre a base de determinações sociais concretas, em que indivíduo responde às perguntas numa situação concreta, através da síntese de suas capacidades também heterogêneas. Esta síntese resulta a uma uniformização da individualidade dentro da imediaticidade da vida cotidiana.

Assim, a explicitação da personalidade necessita de um campo de ação que possibilite tais realizações. Neste caso, o desenvolvimento social é um campo de ação de possibilidades de caráter unitário, isto é, um campo de ação real onde a individualidade pode atuar, “promovendo ou inibindo”. Desse modo, a personalidade, enquanto categoria social, somente pode emergir em um campo de ação que a promova. 

É necessário, portanto, que o desenvolvimento objetivo da sociedade permita a criação de um campo de ação rico em determinações genéricas, ou seja, rico em possiblidades, um campo, extensivo e intensivo, em que as capacidades humanas (do gênero) possam se manifestar. A necessidade de um campo de ação mais rico para a formação e atuação da individualidade humana não pode ser entendido como uma construção ideal abstrata, mas como uma possibilidade real e concreta, pela ação humana consciente.

Aqui tentamos localizar o estranhamento no conflito existente entre “o desenvolvimento das capacidades humanas pelas forças produtivas e a conservação (ou esfacelamento) da personalidade humana”. Foi preciso delinear os fundamentos sociais da personalidade (LUKÁCS, 2013, p. 591). Este desenvolvimento desigual, tendência do desenvolvimento da sociedade em geral, é enormemente acirrado com o desenvolvimento capitalista. Ao mesmo tempo em que o capitalismo produz verdadeiras maravilhas, produz crescentemente pobreza, miséria, destruição da natureza, destruição de vidas humanas, de individualidades e, consequentemente, aniquila personalidades neste processo.

A breve exposição que fizemos sobre os fundamentos do estranhamento deve ser capaz de demonstrar que este fenômeno surge do próprio progresso social e assume diferentes formas nos diferentes estágios do desenvolvimento social, sendo a escravidão a sua “primeira forma extremamente brutal” (LUKÁCS, 2013, 743). O estranhamento, em Lukács, toma nova interpretação tanto com relação a qualquer outra formulação, inclusive a de Marx, embora possua nitidamente um fundamento que se possa dizer marxista.  Por exemplo, na formulação inovadora de Lukács, como na de Marx, o estranhamento deve ser entendido como um produto das relações sociais e econômicas objetivas, tendo sempre uma expressão ideológica e, em cada particularidade histórica, incide na subjetividade, isto é, no desenvolvimento da personalidade. A superação do estranhamento somente pode ser vislumbrada com a atividade prática objetiva dos sujeitos reais que vivem em sociedade.

 

7      CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho tentou demonstrar que o tratamento de Lukács acerca do fenômeno do estranhamento parte das questões mais fundamentais da sociedade em geral e se associa diretamente com formulações sobre as relações de produção. Ao assim fazê-lo, a teoria do estranhamento de Lukács confronta o desenvolvimento social com a dinâmica de valorização autoexpansiva do valor, da exploração e da divisão capitalista do trabalho. Como em Marx, o desenvolvimento social molda a sociabilidade de maneira contraditória e desigual, sendo essa a origem última das variadas formas de estranhamento que se expressão no esmagamento da personalidade de mulheres e homens. No caso do capitalismo, o chamado desenvolvimento econômico, o qual nos deparamos hoje, corresponde, para lidarmos com sua dimensão fundante, ao aniquilamento da classe trabalhadora.

Com a cisão entre os dois momentos indissolúveis, objetivação e alienação, Lukács concebe um novo tratamento do problema. A distinção entre estranhamento [Entfremdug] e alienação [Entäusserung], jamais realizado por Marx, mostra-nos que, na alienação, a personalidade do sujeito se revela, mas tal revelação não é necessariamente um estranhamento. Em poucas palavras: o estranhamento somente se manifesta quando o mesmo desenvolvimento que poderia ter facultado a elevação dessas capacidades tornou-se um empecilho a ela. Ele se expressa, por exemplo, no trabalho forçado, como deformação do trabalhador, questão já tematizada por Marx nos Manuscritos. Assim, a abordagem de Lukács se configura como uma interpretação própria do fenômeno do estranhamento, não somente pertinente, mas também urgentemente necessária para a renovação da crítica à sociedade capitalista contemporânea.

 

Referências Bibliográficas

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[1] É claro que aqui se trata não somente de objetivações tangíveis, mas como se trata do primeiro ato do trabalho, o trabalho em seu sentido originário, essa objetivação se verifica em um objeto material produzido, isto é, num valor de uso.

[2] Lukács fornece passagens elucidativas a respeito do que se refere à objetividade e suas implicações para a interpretação de Hegel: “Quando emprego a palavra ‘objetividade’, não quero que se pense apenas na palavra alemã Objektivität, mas também na palavra Gegenständlichkeit que é decisiva para o pensamento de Hegel nesta época e até mesmo para toda sua filosofia. É em Gegenständlichkeit que estou pensando quando falo em ‘objetividade’. Se a exteriorização [Entäusserung] é idêntica à objetividade, isso significa que todo o mundo dos objetos, das coisas etc., nada mais é do que o espírito objetivado; ou seja, se conhecermos a verdade sobre as cosias e suas relações conheceremos a nós mesmos na medida em que participamos do sujeito universal da evolução, do gênero humano, do Weltgeist [espírito do mundo].” Mais adiante “Mas esta mesma concepção torna-se caricatural e mistificadora quando se trata da objetividade que existe independentemente de nossa consciência, como é o caso da objetividade natural: em Hegel, esta aparece como uma Entäusserung, como uma exteriorização que pode ser retomada pelo sujeito, na forma de interiorização.” E isso incorre justamente no problema do fim da história, tão caro para a filosofia de Hegel (LUKÁCS, 2009, p. 105-106).

[3] Cabe aqui indicar a leitura da obra da autora Marcella D’Abbiero (1970), “Alienazione” in Hegel (uma tradução da “Introdução” deste livro pode ser encontrada em: (D’ABBIERO, 2015)), para melhor compreender a utilização de Entäusserung e Entfremdung em Hegel. Salientamos que esta polêmica é demasiadamente extensa.

[4] “Infelizmente, os manuscritos em que ele trata deste assunto se perderam. O jovem Hegel estudou economia na obra do inglês James Steuart; conhecemos apenas os títulos de seu comentário, escrito entre fevereiro e maio de 1799. Mas poucas linhas que Rosenkraz escreveu sobre isso mostram que ele nada compreendeu do assunto. Conhecemos bem mais os manuscritos sobre economia que Hegel escreveu em Iena. Sabemos que ele estudou atentamente Adam Smith” (LUKÁCS, 2009, p. 92).

[5] Hegel se opôs ao pensamento idealista subjetivo de Kant e seus seguidores.  Para uma apreensão mais aprofundada do assunto, ver a obra sempre citada: Lukács (2018), Capítulo III: “Fundamentação e defesa do idealismo objetivo” (Jena 1801-1803), sobretudo a seção II: “A crítica do idealismo subjetivo”. 

[6] Em outra seção de “O jovem Hegel”, Lukács investigou com detalhe o trabalho na perspectiva de Hegel. Para isso ver o terceiro capítulo, seção VI, intitulada “O trabalho e o problema da teleologia”.

[7] Esta complexa relação entre teleologia e causalidade incide em Marx de maneira muito profunda, sobretudo no Capítulo V d’O Capital. Foi nesse capítulo que Marx demonstrou que toda ação humana é direcionada a um fim (MARX, 1996, p. 297). Vale lembrar que quando os vários pores teleológicos colocados em movimento pelos seus agentes (indivíduos particulares), entram na relação uns com os outros, isto é, na totalidade social, interagem de tal maneira que se torna impossível ao certo saber qual resultado será alcançado, não havendo, portanto, uma teleologia na história (LUKÁCS, 2013, p.151).

[8] É preciso notar que nesta obra Lukács ainda não faz a distinção entre estranhamento [Entfremdug] e alienação [Entäusserung], muito menos a separação entre objetivação e alienação. Isso só viria a ocorrer em sua obra mais madura, na Ontologia.

[9] Lukács aponta que isso se deu porque Hegel não conseguiu vislumbrar a questão do valor, limitando-se à apreensão clássica. Para isso ver Lukács (2018) página 691.

[10] Segundo Engels, a concepção não-histórica da natureza de Hegel era “inevitável”; de um lado, pelos limites das Ciências da Natureza de sua época: o materialismo do século XVIII era predominantemente mecânico, limitado por não apreender o desenvolvimento do mundo como um processo. Neste sentido, o idealismo hegeliano representava um avançado sistema em relação ao materialismo vulgar, o qual Hegel fazia oposição (ENGELS, 1982, p. 32). Por outro lado, a posição entre natureza e a história da sociedade é formulada com uma radical diferenciação metodológica entre elas, porque Hegel precisava distinguir os aspectos especificamente correspondentes do desenvolvimento social do homem do desenvolvimento da natureza, também em decorrência de sua época histórica, como evidenciado por Lukács: “Hegel quis captar em termos filosóficos o caráter específico da história humana e tem de fazê-lo em uma época em que os pensadores mais próximos dele no campo da dialética do idealismo objetivo estiveram orientados de modo bastante unilateral para a natureza” (LUKÁCS, 2018, p. 696).

[11] Aqui temos a oportunidade distinguir o método de destes autores, conforme as próprias palavras de Marx: “Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de ideia, transforma num sujeito autônomo, é o demiurgo do real, real que constitui apenas a sua manifestação externa. Para mim, pelo contrário, o ideal não é nada mais que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem” (MARX, 1996, p. 20).

[12]  “Um olhar sobre o sistema de Hegel. Tem de começar-se pela Phanomenologie de Hegel, o verdadeiro lugar de nascimento e segredo da filosofia de Hegel” (MARX, 2015, p. 365).

[13] É necessário fazer o comentário de que a unilateralidade da crítica de Hegel feita por Feuerbach deve-se por ele não ter conseguido superar criticamente o idealismo hegeliano, por isso não levou às últimas consequências a alienação [Entäusserung] descoberta por Hegel, limitando-se apenas ao campo filosófico.  Segundo Engels (1982), a crítica feuerbachiana é unilateral, incompleta e demasiadamente abstrata, sem a real conexão entre a economia e a filosofia.

[14] Lukács explica que “essa concentração de fato tem também razões polêmicas, advindas da história da época, dado que a subjetivação da filosofia de Hegel, que estava sendo efetuada pelos jovens hegelianos radicais, sobretudo Bruno Bauer e Stirner, apoiava-se principalmente nessa obra de Hegel e levava a termo uma mistificação de sua metodologia que vai muito além de Hegel.” (LÚKÁCS, 2018, p. 700).

[15] O próprio Lukács reconheceu a importância da publicação dos Manuscritos, que se deu apenas em 1932: “Numa obra publicada somente há mais ou menos quinze anos, que é certamente uma das mais importantes da sua juventude, Marx critica a Fenomenologia do Espírito; não é casual que, falando do problema da relação entre economia e dialética, Marx faça uma análise exata do trabalho, demonstrando os limites precisos que distinguem, por um lado, o trabalho tal como é em si, enquanto relação entre homem e a natureza, e, por outro, o trabalho capitalista, no qual, nas condições da sociedade capitalista, nasce esta forma específica de Entäusserung, de exteriorização” (LUKÁCS, 2009, p. 107).

[16] Vale salientar que foi A Miséria da Filosofia, de 1847, a primeira obra propriamente econômica de Marx, a qual submete a obra de Proudhon, Sistemas de contradições de Proudhon ou Filosofia da Miséria, de 1846, ao trato analítico de um jovem estudioso da Economia Política clássica (MARX, 2017).

[17] É preciso notar que Marx aqui concentrava a sua crítica na propriedade privada e na divisão social do trabalho. Somente mais tarde ele vai reconhecer esses elementos como pressupostos da estrutura mercantil e concentrar a sua crítica na contradição própria da mercadoria.

[18] A palavra “dominação” tal como aqui utilizada não carrega consigo uma conotação moral, ainda que esta possa existir. O termo designa melhor uma relação de exploração de uma classe por outra. A análise do trabalho de Marx se desdobrou em diversas interpretações dentro da teoria crítica, além de Lukács, cabe destacar a obra de Moishe Postone. Postone soube estabelecer a relação intrínseca entre trabalho abstrato e a alienação. Segundo ele, “o sistema constituído pelo trabalho abstrato corporifica uma nova forma de dominação social que exerce uma forma de compulsão social cujo caráter objetivo é historicamente novo” (POSTONE, 2015, p. 186).

[19] De acordo com Lukács, na referida “passagem, a metáfora bastante drástica do “animalesco” não é nem usada em sentido meramente retórico, nem pode ser tomada meramente no sentido literal. Corretamente entendida, ela designa, muito antes, com bastante exatidão a condição que certos estranhamentos do homem provocam nele: sua exclusão do complexo do ser do homem, que se tornou possível para ele por meio do gênero (do ser social, do ser personalidade), que é fundamentalmente possibilitado pelo estado da respectiva civilização – incluindo naturalmente o desenvolvimento das capacidades enquanto seu fundamento” (LUKÁCS, 2013, p. 594).

[20] Segundo Márkus (2015), a apreensão da essência humana em Marx não é uma essência abstrata e inata do ser humano, para ele, a essência humana é “a verdadeira comunidade dos homens, estes produzem afirmando a sua essência, a comunidade humana, o ser social – que não é uma potência geral, abstrata diante do indivíduo isolado, mas o ser de cada indivíduo, a sua própria atividade, o seu próprio gozo, a sua própria riqueza” (MÁRKUS, 2015, p. 208).

[21] Com o ato de produzir, o ser humano relaciona-se para com o seu gênero, com a sua própria essência. Enquanto o animal produz o que lhe é necessário para o consumo imediato, o ser humano produz além da sua necessidade física, ou seja, universalmente (MARX, 2015, p. 312). É nesta “elaboração do mundo objetivo o homem se prova realmente como ser genérico” (MARX, 2015, p. 313). Deste modo, o trabalho alienado, na medida em que o resultado de sua produção é apropriado por outrem, retira do trabalhador a sua vida genérica, a sua objetividade. O trabalho alienado faz “do ser genérico do homem – tanto a natureza quanto a sua capacidade espiritual genérica (Gattungvermögen) – uma essência alienada a ele” (MARX, 2015, p. 313-314). Alienado do seu próprio corpo, da natureza e de sua essência. A consequência é, “que o homem está alienado do produto do seu trabalho, da sua atividade vital, do seu ser genérico, é a alienação do homem do homem”, pois este quando “se confronta a si próprio, enfrenta-o o outro homem” (MARX, 2015, p. 314).

[22] No primeiro capítulo do segundo volume da Ontologia, Lukács destina sua análise à categoria do trabalho, sem se esquecer de que qualquer ser somente pode sem compreendido corretamente em sua complexidade, isto é, na interação dos complexos de complexos heterogêneos da realidade (LUKÁCS, 2013, p. 41-45).

[23] As seguintes passagens de Lukács são lapidares neste sentido: “o fato de que o desenvolvimento das forças produtivas acarreta de imediato um incremento na formação das capacidades humanas, que, no entanto, abriga em si simultaneamente a possibilidade de sacrificar os indivíduos (e até classes inteiras) nesse processo” (LUKÁCS, 2013, p. 580). Mais adiante: “o desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente ao mesmo tempo o desenvolvimento das capacidades humanas. Contudo – e nesse ponto o problema do estranhamento vem concretamente à luz do dia –, o desenvolvimento das capacidades humanas não acarreta necessariamente um desenvolvimento da personalidade humana. Pelo contrário: justamente por meio do incremento das capacidades singulares ele pode deformar, rebaixar etc. a personalidade humana. (Basta pensar em muitos dos integrantes de equipes especializadas da atualidade, nos quais as habilidades específicas cultivadas de modo sofisticado têm um efeito altamente destrutivo sobre a sua personalidade)” (LUKÁCS, 2013, p. 581).

[24] Aqui é preciso fazer um brevíssimo esclarecimento acerca da concepção de desenvolvimento em Marx e, consequentemente, em Lukács, pois se refere à complexidade social, isto é, quando mais elementos complexos existem na determinada sociedade, mais desenvolvida, sob esse ponto de vista, ela é. Não contendo, portando, qualquer juízo valorativo. Aqui devemos indicar o livro Desenvolvimento em Marx e na Teoria Econômica, para maior aprofundamento no tema (BONENTE, 2016).