v. 6, n. 1, Janeiro-Abril/2022 This work is licensed
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A
CONTRIBUIÇÃO DE HEGEL E MARX PARA A CONSTRUÇÃO DA TEORIA DO ESTRANHAMENTO EM
LUKÁCS
Petrus Alves Freitas
petrus.alves@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/1474091666288817
https://orcid.org/0000-0001-5313-3999
Universidade Federal Fluminense
Niterói/RJ
RESUMO
A intepretação de György Lukács sobre a teoria social de Marx configura-se uma das mais importantes da história do marxismo, sobretudo o do século XX. Destacam-se entre as problemáticas tratadas pelo filósofo húngaro, suas reflexões acerca do estranhamento [Entfremdung], presentes no último capítulo do segundo volume de Para uma Ontologia do Ser Social. Nesta obra, Lukács demonstra que o estranhamento é um fenômeno histórico-social, em que produz a deformação da personalidade dos sujeitos. Sob a influência e, ao mesmo tempo, se opondo a Hegel, Lukács cinde em sua análise do trabalho o processo de objetivação [Vergegenständlichung], referindo-se ao momento objetivo; do momento da alienação [Entäusserung], referindo-se ao momento subjetivo. Desta forma, passando pelas concepções de Hegel e Marx, sustentamos que o tratamento dado por Lukács acerca do estranhamento corresponde a uma nova e pertinente interpretação deste tema.
PALAVRAS-CHAVE: Hegel,
Marx, Lukács, Estranhamento, Alienação.
THE CONTRIBUTION OF HEGEL AND MARX TO THE
CONSTRUCTION OF THE THEORY OF STRANGEMENT IN LUKÁCS
ABSTRACT
György
Lukács' interpretation of Marx's social theory is one of the most important in
the history of Marxism, especially that of the 20th century. Among the issues
addressed by the Hungarian philosopher, his reflections on estrangement
[Entfremdung], present in the last chapter of the second volume of Towards an
Ontology of Social Being, stand out. In this work, Lukács demonstrates that
estrangement is a historical-social phenomenon, in which it produces the
deformation of the subject's personality. Under the influence and, at the same
time, opposing Hegel, Lukács splits in his analysis of the work the process of
objectification [Vergegenständlichung], referring to the objective moment; of
the moment of alienation [Entäusserung], referring to the subjective moment. In
this way, passing through the concepts of Hegel and Marx, we maintain that the
treatment given by Lukács about estrangement corresponds to a new and pertinent
interpretation of this theme.
KEYWORDS: Hegel,
Marx, Lukács, Estrangement, Alienation.
Submetido: 05/04/2022
Aceito: 28/04/2022
Publicado: 30/04/2022
1 INTRODUÇÃO
A
problemática da “alienação” [Entäusserung] e do estranhamento [Entäusserung]
ganhou, sem dúvidas, maior amplitude com Karl Marx. Sua concepção compõe a mais
influente das vertentes desta temática. Contudo, foi preciso que, antes de
Marx, esta temática passasse pelo tratamento do filósofo alemão Georg Wilhelm
Friedrich Hegel (1770-1831): expressão máxima da filosofia alemã do século XIX.
Após a sua investigação sobre Hegel, e depois do importante contato que teve
com os escritos de juventude de Marx, o filósofo húngaro György Lukács resgata
o que há de mais fundamental nestes autores e elabora sua própria interpretação
neste tema.
Antes de
tudo, precisamos realizar uma advertência fundamental quanto a tradução dos
termos Entäusserung e Entfremdung, que são utilizados nas obras
de Hegel, Marx e Lukács. Eles são, na maioria das vezes, traduzidos por
alienação e estranhamento, respectivamente. Optamos por manter a tradução
destas categorias tal como elas aparecem originalmente nas edições em português
das obras: O Jovem Hegel e os Problemas da Sociedade Capitalista
(LUKÁCS, 2018); Manuscritos Econômico-Filosóficos (MARX, 2015); e Para
uma Ontologia do Ser Social (LUKÁCS, 2012; 2013), com o intuito de
evitarmos quaisquer equívocos, contudo, indicaremos entre colchetes a palavra
correspondente em alemão toda vez que existir a necessidade de distinção.
Sabemos que a polêmica da tradução destes termos da língua alemã para o
português não é tão facilmente resolvida, entretanto o aprofundamento nesta
polêmica extrapola a intenção do presente trabalho.
Nesta
introdução, nos limitaremos em esclarecer que, em Hegel, fundamentalmente em A
Fenomenologia do Espírito, os termos aparecem quando o autor se dedica ao
tratamento do Espírito, (parte B) “O Espírito Estranhado de Si Mesmo. A
Cultura”; e ambas são componentes do sistema filosófico e evidenciam a evolução
da consciência ao mesmo tempo apresenta o desenvolvimento histórico da
humanidade, sobretudo na passagem do antigo regime para a sociedade burguesa
(HEGEL, 1992b, 35). Em Marx, nos Manuscritos, os dois termos são
utilizados sem uma clara distinção, com uma persistente conotação negativa,
isto é, no sentido de que significam um entrave ao pleno desenvolvimento do
gênero humano. Já na Ontologia, Lukács separa o processo de objetivação
do trabalho, referindo-se ao momento objetivo, material[1]; do processo da
alienação, referindo-se ao momento subjetivo, espiritual. Assim, todo
estranhamento [Entfremdung] somente pode surgir desta alienação, isto é,
para que o estranhamento se manifesta a alienação do sujeito se configura como
pressuposto, como veremos mais adiante.
Marx jamais
fez esta distinção, mas podemos seguramente afirmar que tanto em Marx quanto em
Lukács o termo estranhamento sempre carrega consigo uma conotação negativa,
devendo ser, portanto, superado. Enquanto que a alienação [Entäusserung]
– que também pode ser traduzida por exteriorização – é, para Lukács, um momento
inseparável da objetivação, e essa alienação pode se tornar um estranhamento ou
não. A distinção entre alienação e estranhamento, descrita na Ontologia,
intenta em opor à identificação hegeliana da alienação e a objetividade,
conforme veremos, concebendo estes dois momentos como uma unidade indissolúvel
(LUKÁCS, 2013).
Em O
jovem Hegel, Lukács destina sua análise detalhada ao conceito hegeliano de
alienação. Analisando as obras de juventude de Hegel, Lukács descobre três
acepções para a alienação. “A primeira refere-se ao trabalho […] Temos no
trabalho uma estrutura das relações sujeito-objeto na atividade humana,
relações que determinam o que poderíamos chamar de dinamismo do processo
histórico”; a segunda “uma espécie de antecipação do que Marx irá chamar de
‘fetichismo da mercadoria’”; a terceira “é a mais elevada do ponto de vista da
abstração ou generalização filosófica, ou seja, a que identifica exteriorização
[Entäusserung] com objetividade[2]”
(LUKÁCS, 2009, p. 105).
A oposição
de Lukács à filosofia hegeliana, como a de Marx, afasta ainda mais qualquer
interpretação idealista deste complexo de problemas, bem como as interpretações
subjetivistas, afirmando que o estranhamento é “um processo exclusivamente
histórico-social que emerge em certos picos do desenvolvimento em curso”, e que
assume variadas formas historicamente distintas, portanto, sem qualquer relação
com uma condição humana universal ou transcendente (LUKÁCS, 2013, p. 577).
Assim, o objetivo deste trabalho é demonstrar o esforço do filósofo magiar em
apresentar uma nova e pertinente interpretação do fenômeno do estranhamento,
ainda que o próprio Lukács vincule diretamente sua teoria do estranhamento aos
escritos de Marx.
Para cumprir
com tal demonstração, este trabalho foi dividido em: i) uma apresentação breve
da tríade conceitual dos escritos de juventude de Hegel, a partir da obra
lukacsiana O jovem Hegel; ii) uma exposição da crítica de Marx a
concepção de Hegel; além de iii) uma apresentação da teoria da alienação em
Marx, a partir dos Manuscritos; iv) um esboço do entendimento de Lukács
ao tema do estranhamento; por isso, v) uma breve exposição sobre a
personalidade humana se faz necessária; e, por fim, vi) uma síntese do que foi
exposto nas considerações finais.
2
O
JOVEM HEGEL E A TRÍADE CONCEITUAL DA ALIENAÇÃO [Entäusserung]
A
problemática da alienação em Hegel é introduzida em seu sistema conceitual a
partir da Fenomenologia do Espírito.
Nesta obra, ele utiliza a expressão alienação, pela primeira vez com o rigor
filosófico[3]. E mesmo que o uso dessa
expressão não seja novo – aparecem tanto na Economia Política inglesa, para
denominar a alienação de uma mercadoria, quanto nas teorias jusnaturalistas do contrato social,
correspondendo à transmissão ou perda da liberdade natural para a sociedade
nascente deste contrato –, é nesta obra hegeliana que esta categoria aparece
com um tratamento muito mais elevado (LUKÁCS, 2018, p. 689). Apesar da prévia
utilização da alienação por outros autores, podemos considerar como uma criação
original de Hegel o tratamento conceitual dado na Fenomenologia, conforme nos esclarece Lukács: “A partir da Fenomenologia,
a ‘alienação’ aparece em um estágio muito elevado de universalização
filosófica. O conceito já se elevou muito acima de seu terreno original de
surgimento e aplicação, muito acima da economia e da filosofia da sociedade”
(LUKÁCS, 2018, p. 690).
No último
capítulo de O jovem Hegel, seção IV, intitulada “A ‘alienação’ como
conceito filosófico central da ‘Fenomenologia do Espírito’”, Lukács destina
sua análise detalhada ao conceito hegeliano de alienação. A concepção
filosófica de Hegel, parte da sua oposição ao materialismo mecânico e aos
empiristas ingleses, além do racionalismo transcendental alemão, desfecho final
da filosofia de Kant. O mais importante para se destacar do chamado período
republicano, período em que o jovem Hegel defende com entusiasmo a Revolução
Francesa, é que, mediante seu estudo da economia[4]
e da História, sua luta de Hegel contra o idealismo subjetivo alemão[5] que dá origem a uma nova
terminologia filosófica, uma expressão muito mais adequada destas conexões do
mundo moderno. Hegel, dessa maneira, “colocou a relação entre economia e
dialética como questão fundamental do método filosófico” (LUKACS, 2009, p. 90).
Ao conceito
hegeliano de alienação Lukács distingue três níveis, ou seja, uma tríade
conceitual: o primeiro refere-se à complexa relação entre sujeito-objeto ligado
com a atividade econômica e social do homem, o trabalho: “Surge aqui o problema
da objetividade da sociedade, de seu desenvolvimento, das leis desse
desenvolvimento, ao mesmo tempo que é mantida plenamente a ideia de que os
próprios homens fazem sua história” (LUKÁCS, 2018, p. 691). Hegel concebe a
história como desenvolvimento dialético, com uma complexa interação e
contradições cujo protagonista é o ser humano (mesmo sendo este um ser humano
abstrato), através da sua prática em sociedade[6].
Diz Lukács: “Hegel vê o homem como criador de si mesmo. O homem, ao trabalhar,
faz de si mesmo um homem: ele se torna homem por meio do trabalho. É este o
pensamento principal da Fenomenologia do
espírito” (LUKÁCS, 2009, p. 98). Para Lukács, essa apreensão permite dizer
que Hegel se converte no “precursor do materialismo histórico”. Assim, a
análise concreta do processo do trabalho humano, realizada por Hegel, nos
mostra que a contraposição entre causalidade e teleologia é uma contradição
dialética pela qual a conexão real da realidade objetiva se manifesta[7] (LUKÁCS, 2018, p 463).
A inferência
de Lukács fica clara quando ele vai referir ao segundo nível do conceito
hegeliano de alienação [Entäusserung][8].
Para Lukács, corresponde à forma especificamente capitalista da alienação, isto
é, o que mais tarde Marx chamará de fetichismo
da mercadoria. É claro que Hegel jamais poderia chegar a uma conclusão
idêntica à de Marx[9], pois Hegel viveu no final
do período de gênese do modo capitalista de produção, em que as marcas do
feudalismo ainda eram muito acentuadas no tecido da vida social, sobretudo no
plano econômico. Além disso, em seu pensamento, a característica do conceito é
a universalidade, que se expressa em particularidades no percurso da história.
Isso não impediu Lukács de retirar do pensamento hegeliano, de algum modo, “certas
intuições do problema da fetichização dos objetos sociais no capitalismo”
(LUKÁCS, 2018, p. 691). Podemos, assim, com essa interpretação lukacsiana,
reconhecer que Hegel como o único pensador do idealismo clássico alemão que se
debruçou seriamente sobre estes problemas.
Segundo
Lukács, o primeiro aspecto do tratamento da alienação dado por Hegel se funde
continuamente com este segundo, ou seja, Hegel vê a objetividade social
“alienada” ligada à forma de organização social do trabalho da sociedade capitalista.
Para Lukács, este é o problema nascente do fetichismo em Marx, já que nele, o
fetichismo da mercadoria é a forma em que a alienação assume com a divisão
capitalista do trabalho e da dupla dimensão do trabalho no capitalismo.
O último
nível do conceito hegeliano de alienação refere-se a “uma ampla universalização
filosófica do conceito” (LUKÁCS, 20180, p. 692), significando o mesmo que
coisidade ou objetividade: forma pela qual se expõe a história da objetividade,
a objetividade como momento dialético no trajeto de identidade entre
sujeito-objeto, através da exteriorização [Entäusserung] do
Espírito. Ora, “se a exteriorização é
idêntica à objetividade, isso significa que todo o mundo dos objetos, das
coisas etc. nada mais é do que o espírito objetivado” (LUKACS, 2009, p.
106).
A
identificação entre exteriorização e coisidade traz graves consequências à
determinação da essência da natureza, da sociedade e da história. Tanto a
natureza quanto a sociedade são, para Hegel, alienações da Ideia e do Espírito,
assim, a natureza “é uma perene alienação [Entäusserung] do espírito,
cujo movimento, por isso mesmo, é apenas pseudomovimento, um movimento do
sujeito”; a natureza não tem, portanto, uma história real, pois é a alienação
da Ideia no espaço e não no tempo[10] (LUKÁCS, 2018, p. 694).
A história
da prática social dos homens e a relação entre homem e natureza, “do mundo em
geral, é o desenvolvimento do espírito no tempo, assim como a natureza é o
desenvolvimento da ideia no espaço” (HEGEL, 2001, p. 123). Nessa concepção da
história humana, medular em Hegel, falta a verdadeira interação entre a
sociedade e natureza, pois, para ele, é o Espírito que tem de fazer a história,
e não as relações dos homens reais. Para Marx, quem faz a história é o homem
real em determinações concretas[11].
A despeito
disso, a formulação da história em Hegel nos fornece um valioso quadro de
determinações corretas em muitos aspectos metodológicos da ciência histórica,
embora não elimine seu elemento mistificador. Para Hegel, todo processo
histórico tem um fim, a autossupressão,
o retorno da história no sujeito-objeto idênticos no saber absoluto,
consequência natural da supressão da objetividade. Há, portanto, uma espécie de
mistificação religiosa do processo histórico. Os dois extremos místicos: a
criação do início e o fim dos tempos.
Trata-se,
como dissemos, da autossupressão da história; “A história é transformada em
mera realização de uma finalidade existente desde o início em seu sujeito, em
seu espírito”, e, concomitantemente, “supera-se sua imanência: não é a história
mesma que contém sua própria legalidade real e seu próprio movimento real, mas
tudo isso adquire existência real apenas […] no saber absoluto” (LUKÁCS, 2018
p. 699).
Em Hegel,
portanto, é o Espírito Absoluto o motor da história. Ele é o sujeito que sabe
de si mesmo, como autoconsciência absoluta, é a consciência que sabe de si e
intervém na realidade. Porém, como
adverte Marx, em A Sagrada Família, o Espírito Absoluto, o “portador da
história”, somente se constitui como espírito criador do mundo post festum, na cabeça do filósofo: “sua
fabricação da História existe apenas na consciência, na opinião e na
representação do filósofo, apenas na imaginação especulativa” (MARX, 2011, p.
103); como uma consequência necessária da alienação [Entäusserung] na
concepção hegeliana.
Nos Manuscritos, Marx
aborda esta concepção de história em Hegel, atribuindo a ela uma mera
aparência, isto é, a partir do momento que é o Espírito Absoluto que faz a
história, ele a faz apenas na aparência (MARX, 2015). Marx concentra sua
crítica na Fenomenologia[12],
mais precisamente sobre essa concepção hegeliana de alienação e a sua
superação. Grande parte desta crítica deriva de Feuerbach[13],
que deu largo passo em direção para a superação do idealismo pelo materialismo.
Porém, é preciso notar que foi Hegel quem, pela primeira vez, executou a
unificação da economia com a filosofia no tratamento da sociedade moderna, pois
ela contém o movimento dialético da vida econômica, da prática dos homens.
Segundo
Lukács, “a crítica de Marx parte da concepção mais profunda e mais correta dos fatos
econômicos”, o que foi possível compreender a real peculiaridade e
legalidade própria dos atos econômicos fundamentais, como a divisão social do
trabalho, a propriedade privada e sobretudo o trabalho, fazendo uma crítica
socialista da alienação do trabalho (LUKÁCS, 2018, p. 701). Marx, portanto, superou a concepção idealista e Hegel.
Em Marx
encontramos esta superação da dialética idealista de Hegel e a elevação em um
nível superior toda a articulação entre economia e filosofia, pois a compreensão
de Hegel aos problemas da sociedade capitalista era imperfeita, não
ultrapassava os limites da Economia Política clássica. Marx pôde criticar de
maneira ampla e dialética o que há de verdadeiro e falso, o que há de essencial
e mistificador na concepção hegeliana dos fenômenos da realidade. A conexão
entre economia e a filosofia é a metodologia necessária para uma real superação
da dialética idealista, e é neste sentido que Marx, como dissemos, irá
concentrar a sua crítica na Fenomenologia
de Hegel[14], dedicando a última parte
dos seus Manuscritos.
3
A CRÍTICA DE MARX À CONCEPÇÃO DE HEGEL
É, portanto,
nos Manuscritos que o tratamento da
alienação [Entäusserung] e do estranhamento [Entfremdung] –
tomadas como denominações distintas da mesma coisa –, realizado por Marx se
afasta categoricamente da alienação como coisidade e da objetivação do trabalho
em Hegel. Na concepção acertada de Marx, a objetivação é uma característica do
trabalho em geral; ela surge “da relação da práxis humana com os objetos do
mundo exterior” (LUKÁCS, 2018, p. 703). A alienação ou o estranhamento, por sua
vez, são em consequência da divisão social do trabalho no capitalismo, daquilo
que chamamos de “trabalho livre”, em que impera a compra e venda da força de
trabalho, a propriedade privada dos meios de produção e, consequentemente, a
apropriação do produto do trabalho pelo não-produtor, um ser alheio e
independente do trabalhador.
Assim como a
Economia Política clássica, Hegel captou o trabalho como autroprodução dos homens, e isso foi de grande importância para o
desenvolvimento marxiano. Contudo, os aspectos negativos do trabalho sob a
égide da sociedade capitalista não foram devidamente considerados. Todo
embasamento da crítica de Marx aos conceitos fundamentais contidos na Fenomenologia, segundo Lukács, recai
sobre a seguinte afirmação: “o fato de Hegel não ver esses aspectos [negativos]
do trabalho necessariamente faz com que surjam em sua filosofia separações
errôneas e unificações errôneas, mistificações idealistas” deste problema
(LUKÁCS, 2018, p. 704). Ademais, destacamos que o fundamento da crítica
materialista à concepção hegeliana de alienação [Entässerung] é a
dialética real do trabalho no capitalismo e a sua superação só pode ser
alcançada com a extinção do trabalho em sua forma estranhada.
Na visão
idealista de Hegel, a superação da alienação é realizada pela filosofia, isto
é, na consciência, no trajeto da história o espírito que retorna a si mesmo,
como espírito que reconhece plenamente a si mesmo, toma consciência de si, o
Espírito Absoluto (HEGEL, 1992). Ora, para Marx “o espírito filosófico não é
senão o espírito do mundo, pensante no interior da sua autoalienação, i. é, [o
espírito do mundo] alienado que se apreende abstratamente” (MARX, 2015, p.
366), que pensa a si mesmo, concebe a si mesmo abstratamente. Hegel concebe o movimento da consciência à
autoconsciência, mas que é antes um movimento do ser humano real, do próprio
ser humano concreto.
Para Hegel,
ainda nas palavras de Marx, o ser humano é a autoconsciência, a “sua essência
tornada completamente indiferente face a toda determinação real” (MARX, 2015, p. 366). A essência dos homens sem a
determinação real-concreta torna-se essência irreal. Toda alienação [Entässerung]
dos homens é, dessa maneira, necessariamente a alienação da autoconsciência,
segundo a concepção hegeliana. Mas a alienação da autoconsciência já é uma
manifestação, refletida no saber e no pensamento, da alienação real do ser
humano, e este movimento aparece de maneira invertida em Hegel. Segundo Marx:
“A essência humana, o homem, vale para Hegel = autoconsciência. Toda a alienação da
essência humana nada é, portanto, se não alienação da autoconsciência” (MARX,
2015, p. 372).
Esta conclusão
de Marx nos mostra que a falsa identificação do ser humano com a
autoconsciência produz uma falsa concepção acerca da alienação na realidade
social, sua mistificação, do lado subjetivo, com a identificação do ser humano
(o sujeito) com autoconsciência; e, do lado objetivo (aspecto fundamental da
apreensão hegeliana da alienação), com a equiparação da alienação com a
objetivação em geral (LUKÁCS, 2018, p. 706). De acordo Lukács, Marx traça com
muita clareza uma linha divisória entre a objetivação do trabalho em seu
sentido mais amplo, de produtor do ser social, e alienação do sujeito e do
objeto na forma capitalista em que o trabalho está submetido. Para a teoria
materialista de Marx, o ser humano é um ser da natureza, isto é, faz parte da
natureza, contudo, é um ser ativo que põe em movimento suas forças essenciais
objetivas, atuando na natureza, produzindo a si mesmo e os objetos para a sua
vida, afastando cada vez mais do seu condicionamento limitado natural.
Contudo, é preciso dizer que Hegel, mesmo
sendo idealista e permanecendo assim por toda a sua vida, foi capaz de oferecer
diversas determinações da realidade, essenciais sobre a economia, a história e
a dialética da realidade objetiva. Ao se
deter ao trabalho, Hegel concebeu esta atividade humana como o processo de
autoprodução do ser humano, descoberta, que seus antecessores do idealismo
alemão se mantiveram fechados para a característica humana da intencionalidade
do trabalho, projetando a teleologia ao Deus criador do mundo, da natureza e da
sociedade, isto é, a alienação religiosa, mistificadora do mundo dos homens.
4 A ABORDAGEM
DE MARX NOS MANUSCRITOS
A leitura
dos Manuscritos de Marx foi primordial para a superação dos resquícios
hegelianos em Lukács, além de ter revelado para ele um novo aparato teórico
marxiano[15]. O tratamento dado por Marx
à alienação parte do conjunto de relações da sociedade capitalista, em que os
trabalhadores se tornam “alienados”, isto é, com a divisão capitalista do
trabalho, a propriedade privada e o dinheiro, manifesta-se a autoalienação do
ser humano; que está alienado do produto do trabalho. Marx, portanto, tratou da
alienação saindo da crítica da religião para a crítica da política ou do
direito em Hegel, sob a influência de Feuerbach, e, com o estudo inicial da
Economia Política, para a crítica da sociedade burguesa. Suas preocupações com
a emancipação política alemã e a questão judaica (MARX, 2013) foram o princípio
da apreensão sobre a alienação. Nos
Manuscritos fica evidente que a crítica da religião e do Estado se
converteu em uma crítica da sociedade capitalista como tal, contudo, sua teoria
crítica a respeito do capitalismo estava muito longe de alcançar um mínimo
acabamento, que só virá nomeadamente em O Capital[16].
Na seção
intitulada “[Trabalho alienado e
propriedade privada]”, Marx começa tratando das descobertas dos autores da
Economia Política clássica, sobretudo Smith (1996) e Ricardo (1982). Marx chama
a atenção, e isso podemos tomar como ponto de partida, para o fato de que o
trabalhador “decai em mercadoria e na mais miserável mercadoria” (MARX, 2015,
p. 302). O trabalhador sucumbe à condição de mercadoria – embora saibamos que é
a força de trabalho que se torna uma mercadoria, mas esta distinção só seria
feita por Marx mais tarde –, pois no salário encontramos a maneira pela qual o
capitalista compra o trabalho e o “trabalhador”, e assim ele reproduz, enquanto
trabalhador, a si e a sua família.
A relação
desigual entre capital e trabalho, expressa também pelos salários, é evidenciada
por Marx nas primeiras páginas do Caderno I dos Manuscritos, e a “vitória para o capitalista” nesta relação (MARX,
2015, p. 243). Destarte, a separação feita entre capital, propriedade fundiária
e trabalho configura-se em uma cisão nociva ao trabalhador, além de necessária
e essencial ao capital (MARX, 2015, p. 244). No salário reside aquilo que é
necessário para a “subsistência do trabalhador durante o trabalho”, assim, “a
existência do trabalhador é, portanto, reduzida à condição da existência de qualquer
outra mercadoria” (MARX, 2015, p. 244-245).
A
propriedade privada e a forma capitalista de propriedade, que se desenvolveu ao
longo da história humana, é tomada, pelos economistas burgueses, como fórmula
geral abstrata que tem força de lei imutável, eterna e natural[17] (MARX, 2015, p. 303). Este
princípio, dos clássicos da Economia Política, não nos esclarece as origens da
propriedade privada nem da divisão entre trabalho e capital. Estas categorias,
como troca, salário, lucro etc., aparecem como “fato acidental” não como
“consequências necessárias, inevitáveis, naturais do monopólio, da corporação e
da propriedade feudal” (MARX, 2015, p. 303). Marx, a partir daí caminha para a
apreensão da conexão essencial de toda a alienação do dinheiro, da propriedade
privada e da cisão entre trabalho, capital, propriedade da terra, troca e
concorrência, relação “entre valor e desvalorização do homem” (MARX, 2015, p.
304).
O economista
burguês “supõe na forma do fato, do acontecimento, aquilo que deve deduzir; a
saber, a relação necessária entre duas coisas, p. ex., entre divisão do
trabalho e troca”, assim como “o teólogo explica a origem do mal pelo pecado
original, i. é, ele, supõe como um fato, na forma de história, o que deve
explicar” (MARX, 2015, p. 304). A Economia Política não explica, portanto, a
interconexão entre estes elementos da economia capitalista, mas toma como fato
dado e consumado, um princípio que deve ser o pressuposto inquestionável, e que
é, na realidade, uma condição derivada de determinações sociais e econômicas, e
sua filiação inicial deve ser, por isso, mais bem explicitada.
A
desvalorização dos homens a qual Marx se refere é a desvalorização tanto
material quanto espiritual do sujeito que trabalha: “O trabalhador torna-se
tanto mais pobre quanto mais riqueza produz”, portanto, com a “valorização do mundo das coisas, cresce
a desvalorização do mundo dos homens
em proporção direta”, pois “o trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se
a si próprio e o trabalhador como mercadoria” (MARX, 2015, p. 304). O trabalho
ingressa no centro da concepção de Marx de autoalienação, pois ele é atividade
criadora dos homens e, na sociedade capitalista, produtor desta alienação.
O produto do trabalho, o objeto que o trabalho produz, defronta o seu
produtor “como um ser alienado” como “um poder independente do produtor” (MARX,
2015, p. 304). Quanto mais objetos são produzidos pelo
trabalhador, tanto menos estes objetos lhe pertencem e pode ele possuí-los, tanto mais assola a dominação[18]
do seu produto pelo capital (MARX, 2015, p. 305). O que determina esta
alienação e a perda do objeto é o fato de que o “trabalhador se relaciona com o
produto do seu trabalho como um objeto alienado”. Enquanto perpetua a forma da
produção, o trabalhador reproduz a forma alienada do seu trabalho. Quanto mais o trabalhador trabalha, mais ele
fortalece a dominação do capital sobre ele mesmo. Seu trabalho se converte em
uma existência exterior, ademais, põe-se para fora de si, pois o objeto de seu
trabalho é existência independente, autônoma e alienada, que defronta o
trabalhador de “modo hostil” (MARX, 2015, p. 306).
O trabalho alienado mostra que há uma relação alienada e estranhada com
o produto do trabalho, mas também com
a sua atividade produtiva. O produto do
trabalho está alienado assim como a atividade, como atividade alienada. O trabalho se torna externo ao trabalhador,
não pertence ao seu ser, mas é a sua negação. Este trabalho alienado não
pertence ao trabalhador. É certo que, em sua essência, o trabalho é a relação
do trabalhador com a produção da sua própria humanidade (MARX, 2015, p. 308).
Entretanto, aquilo que lhe pertencia como atividade mediadora, criadora,
transforma-se em perda da atividade, perda de si mesmo (MARX, 2015, p. 309).
Mas a quem pertence o produto do trabalho se este não pertence ao próprio
trabalhador? Ora, a alguém que está fora dele (MARX, 2015, p. 315). O que o
trabalhador produz é fruição para outra pessoa, apropriado por outrem. Não mais
os deuses, muito menos a natureza: “o ser alienado,
a quem o trabalho e o produto do trabalho pertencem, a serviço do qual está o
trabalho e para a fruição do qual o produto do trabalho é, e só pode ser o
próprio homem” (MARX, 2015, p. 315).
A
autoalienação dos homens, de si e da natureza, explicita-se na relação prática
real que este estabelece com outros homens, isto é, pelo trabalho alienado o
ser humano não somente se relaciona com o seu produto e atividade de modo
alienado, mas com outros homens, também alienados, de modo hostil. A alienação
não se restringe apenas ao trabalhador, porém, ao capitalista ela se apresenta
de forma distinta: o “que aparece no trabalhador como atividade de exteriorização [Entässerung], de alienação [Entfremdung], aparece no não trabalhador como estado de exteriorização, de alienação” (MARX, 2015, p. 321).
Como
elemento diferenciador do ser humano para o animal, daquilo que é próprio do
ser humano, o trabalho, torna-o, nesta condição estranhada, mais animalesco[19]. Ou seja, o ser humano só
se sente humano em atividades animais, e na atividade especificamente humana,
um animal, pois o sujeito que trabalha “só se sente livremente ativo nas
funções animais – comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adorno
etc. –, e já só como animal nas suas funções humanas. O animal torna-se o
humano e o humano, o animal” (MARX, 2015, p. 309).
Há mais uma
consideração a ser feita sobre o trabalho alienado. Para Marx, o ser humano é
um ser genérico[20]. É para consigo mesmo um ser universal. Sua
existência é parte de um gênero humano, da humanidade, de uma espécie (MARX,
2015, p. 310). Tal como os animais, os homens vivem da natureza,
seu “corpo inorgânico”, a qual ele domina, trabalha e modifica. Sabemos que os
homens vivem dos produtos produzidos a partir da natureza, isto significa que
os homens precisam estar constantemente movendo-a para manter-se vivos,
transformando a natureza e, sendo eles parte desta natureza, transformando
continuamente a si mesmos. Desta forma,
o trabalho alienado faz da vida humano genérica uma existência abstrata como
finalidade da mera vida singular (MARX, 2015, p. 311).
O trabalho
enquanto atividade produtiva se apresenta aos homens meramente como um meio de
satisfazer suas necessidades vitais e, portanto, para manter sua mera
existência individual. “Mas a vida produtiva é a vida genérica” (MARX, 2015, p.
312), assim, sua própria generidade aparece como apenas meio. Em sua
diferenciação via atividade produtiva específica, o trabalho humano nesta
condição alienada, aliena o homem da sua espécie, isto é, do ser genérico. Com o
trabalho alienado o ser humano faz da sua atividade vital consciente, um meio
de existência, dessa maneira, há a inversão da relação do ser humano com a sua
própria essência[21].
Com este
breve exposto, podemos afirmar que é com os Manuscritos
que Marx inaugura uma nova visão de mundo e, a partir dela, desenvolve uma
metodologia inovadora de análise da realidade. O autor dedica-se, em vista
disso, à análise da sociedade capitalista, das categorias reais do
desenvolvimento histórico-real, da condição material da reprodução da vida
humana, e da produção da alienação a partir das relações sociais estabelecidas
na sociedade burguesa. A alienação, portanto, é sempre alienação de algum
sujeito, ou classe, diante de algo. Embora reconhecidamente apreendida de
maneira ainda abstrata, a teoria da alienação de Marx se traduz num poderoso
arsenal de crítica à sociedade capitalista. O desenvolvimento mais preciso da
teoria do fetichismo de Marx, em O Capital, supõe o entendimento da
alienação do trabalho. É possível dizer que Marx jamais vislumbraria o
fetichismo se não tivesse reconhecido que as relações de exploração e
apropriação do excedente econômico por não-produtores, implicam consequências
drásticas para o trabalhador.
5
A INTERPRETAÇÃO DE LUCKÁCS AO FENÔMENO DO
ESTRANHAMENTO [Entfremdung]
Na
formulação dos “Traços ontológicos gerais do estranhamento”, exposto na
seção que inicia o Capítulo IV do segundo volume da Ontologia, Lukács
(2013) trava oposição não somente à filosofia de Hegel, como fizera Marx, mas
também às correntes filosóficas posteriores, como o existencialismo de
Heiddegger e o niilismo de Nietsche. Para o entendimento do fenômeno do
estranhamento, portanto, “se quisermos delinear com nitidez e apreender
corretamente” deve-se “visualizar de modo preciso a sua posição dentro da
totalidade do complexo do ser social” (LUKÁCS, 2013, p. 577).
Com essa
perspectiva, Lukács afasta qualquer interpretação idealista do problema, bem
como as interpretações subjetivistas, afirmando que o estranhamento é “um
processo exclusivamente histórico-social que emerge em certos picos do
desenvolvimento em curso” e que assume variadas formas historicamente
distintas, portanto, sem qualquer relação com uma condição humana universal ou
transcendental, como na interpretação de Hegel da alienação [Entässerung],
como vimos (LUKÁCS, 2013, p. 577). Em Hegel, as determinações do ser se
fundamentam fora do plano ontológico-material, isto é, na consciência.
Com o
reconhecimento da prioridade do ser frente à consciência, Marx concebeu o ser
humano como “ser” objetivo, pois “não é a consciência que determina a vida, mas
a vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 1986, p. 37). Com isso, Marx destina a objetividade humana às relações
materiais que se desenvolvem na própria realidade, ou melhor, à interrelação
entre os indivíduos em uma realidade já existente: “Um ser que não tenha nenhum objeto fora de si não é um ser
objetivo” (MARX, 2015, p. 303).
Desse modo, o ponto de partida da análise do fenômeno que
apresentaremos é a totalidade do processo de desenvolvimento do ser social que
integra também o processo de desenvolvimento do indivíduo. Neste
sentido, é o trabalho, para Lukács, como já aludimos, a atividade fundante da
própria humanidade[22]. Todas as complexas e diversas
formas deste ser social tem origem objetivamente neste ato teleológico,
“através dele realiza-se, no âmbito do ser material, um pôr teleológico
enquanto surgimento de uma nova objetividade” (LUKÁCS, 2013, p. 47). O
nascimento simultâneo e inseparável do trabalho e da linguagem fundamentam,
portanto, o desenvolvimento da humanidade, criando uma fissura “tão ampla e
profunda que a herança animal, por vezes sem dúvida presente, não tem peso
decisivo”, separando a espécie humana da espécie animal (LUKÁCS, 1966, p. 39).
Mais do que
essa separação, este processo configura-se como produtor de transformações
qualitativas, objetivas e subjetivas, que jamais estarão presentes na natureza.
A interação prática do ser humano com o mundo previamente existente engendra
diferentes momentos de reflexão acerca deste mundo, além de novas e diferentes
formas de conhecimentos. Isto é, a existência humana – que se concretiza numa
dada realidade objetiva – desenvolve formas de reflexão, no pensamento, sobre
este mundo que existe objetivamente possibilitando desempenhar atividades no
processo de trabalho, exigindo, dessa maneira, uma crescente complexificação da
interação com a natureza e o seu domínio.
No trabalho,
mesmo em sua forma mais simples e longínqua, o ser humano opera uma síntese
entre a ideação prévia e uma causalidade (dada pela natureza e posta pelo
sujeito que trabalha), produzindo valores de uso necessários à existência
humana. Com esta primeira objetivação, os seres humanos criam novos objetos não
existentes na natureza, ao mesmo tempo em que se reconhecem enquanto sujeitos
diferentes deste novo objeto criado. Na produção, um objeto natural deve ser
trabalhado de maneira adequada, ou seja, deve-se avaliar positiva ou
negativamente a maneira como foi produzido e o resultado obtido neste trabalho.
Com isso, se produz não somente um novo objeto, mas também um conhecimento
sobre a produção deste objeto que deverá servir, caso avaliado positivamente,
na orientação para a práxis humana (uma ética), conduzindo também a prática
cotidiana (um juízo de valor).
Aqui torna
imprescindível dizer que, segundo Lukács, com o trabalho movemos séries causais
que produzem resultados que individualmente não podem ser controlados
totalmente. Toda escolha individual é tomada intencionalmente, gerando, na
realidade concreta, uma nova ação relativamente
independente. Neste princípio
ontológico, indispensável do ato do trabalho, encontramos a chave para o
entendimento do fenômeno do estranhamento, pois, na interação com a totalidade
social, essas posições teleológicas colocadas em movimento se desenvolvem
objetivamente, ocasionando resultados diferentes das finalidades que orientam a
prática. Mesmo que essas finalidades sejam realizadas, é possível haver
resultados que as ultrapassam – em muitos casos, resultados completamente
opostos. Este é o caso do desenvolvimento das forças produtivas que
potencializa frequentemente o desenvolvimento das capacidades humanas, mas que
carrega consigo – e como é possível verificar na história das sociedades
humanas – a possibilidade do esfacelamento completo de indivíduos ou grupos
sociais, como no escravismo antigo, ou no trabalho assalariado[23].
Esse desenvolvimento desigual[24], conforme sustenta Lukács,
é o fundamento ontológico do estranhamento. O que deve ficar claro é justamente
essa desigualdade no desenvolvimento das forças produtivas que potencializa as
capacidades humanas e o não correspondente desenvolvimento da personalidade
humana. Em suma, é o antagonismo entre desenvolvimento das capacidades e
desdobramento da personalidade o conteúdo das variadas formas de estranhamento
que se manifestam nos diferentes estágios do desenvolvimento social. Quando esse processo atinge elevado grau de
generalização, ele se faz presente em todos os atos do trabalho,
“permanentemente como momentos indispensáveis desses atos” (LUKÁCS, 2013, p.
582).
Foi com o
intuito de aclarar esta questão que Lukács separou o ato do trabalho em seus
dois momentos inseparáveis: o da objetivação e da alienação,
sempre ressaltando a unidade indissolúvel entre esses dois momentos. Na
objetivação temos a materialização do objeto, a produção de um objeto novo
inexistente na natureza, potencialmente criando e desenvolvendo nos seres
humanos novas capacidades, habilidades e necessidades, o que corresponde ao
desenvolvimento da sociabilidade humana. Na alienação [Entässerung], a
personalidade do sujeito se revela no produto do trabalho como expressão da
alienação no ato da produção. No produto podemos reconhecer a “impressão
digital” (a personalidade) de seu produtor, que conserva traços da sua
individualidade. Os exemplos dados por Lukács, do artesanato e da manufatura,
esclarecem-nos que, enquanto no artesanato o produtor exprime no objeto sua
marca, revelando a personalidade do sujeito, na manufatura a “digital” de quem
produz tende a desaparecer com a divisão das atividades técnicas do trabalho
(Lukács, 2013, p. 423).
Com o
desenvolvimento e utilização da ciência na produção capitalista, seguindo com o
exemplo, a tendência é a despersonalização dos produtos em torno das expressões
individuais. Isso não necessariamente assume o caráter negativo, pelo
contrário, é consequência do próprio desenvolvimento desantropormizador
das forças produtivas, condição para o desenvolvimento das capacidades humanas.
Por outro lado, com o desenvolvimento das forças produtivas impulsiona-se o
processo de surgimento do indivíduo, chamado por Lukács de processo de
individuação, ao mesmo tempo em que possibilita um ser social cada vez mais
próximo do seu gênero. Para isso, cada vez mais também é necessária a ampliação
e o desenvolvimento de personalidades mais ricas e complexas. Contudo, pode
ocorrer totalmente o contrário, um desenvolvimento de uma personalidade cada
vez mais mesquinha ou medíocre. Para Lukács, neste conflito a personalidade
pode sofrer deformações. Veremos a seguir um pouco mais de perto a problemática
da personalidade e sua “deformação”.
6 PERSONALIDADE
HUMANA E ESTRANHAMENTO
Lukács
mostrou que trabalho é a categoria fundante do ser social, cuja análise permite
reconhecer a gênese e o desenvolvimento da personalidade humana. A
personalidade, para este autor, é o resultado do desenvolvimento das
capacidades humanas em decorrência do próprio impulso do trabalho, por isso,
sua base é de caráter social. Vimos também que pelo trabalho criador, surgem
novas necessidades que demandam aprendizagem e aperfeiçoamento. Isso confere
aos sujeitos novas habilidades, que modificam, portanto, o modo de agir do ser
humano na sociedade, seu comportamento diante do mundo externo, avaliando ou
fixando, na consciência, essas novas formas de pensamento e comportamento na
vida cotidiana. O processo de trabalho e seu aperfeiçoamento permitem, desta
forma, o aumento das mediações entre o próprio trabalho e a realidade objetiva.
Assim, novas posições teleológicas vão surgindo, complexificando-se, tornando
as determinações da vida humana cada vez mais sociais. Mesmo o ato mais
primitivo do trabalho já carrega consigo caracteres exclusivamente sociais:
fica-nos visível, em suma e para repetir, que a “personalidade, com toda a sua
problemática, é uma categoria social” (LUKÁCS, 2013, p. 591).
No objeto
útil, já há a revelação da personalidade, portanto, a manifestação da alienação
do sujeito, como dissemos, mas não somente. A explicitação da personalidade, na
teoria de Lukács, está ligada às escolhas que cada indivíduo realiza, diante
das possibilidades e alternativas concretas, ao longo da vida, o que nos
permite evidenciar essa relação desigual: o desenvolvimento das forças
produtivas potencializa as capacidades, mas, no plano concreto, se afirma como
obstáculo socialmente posto ao enriquecimento da personalidade. “O homem
torna-se personalidade mediante o desenvolvimento das forças produtivas
sociais, mas pode também ser estranhado de si mesmo por força desse mesmo
movimento”. Por esse motivo que o “progresso social e estranhamento humano
estão acoplados no ser social […], o estranhamento brota do progresso social”
(LUKÁCS, 2013, p. 747).
Desse modo,
uma personalidade humana somente pode se constituir, desenvolver ou fracassar
“num campo de ação histórico-social e concreto e específico” (LUKÁCS, 2013, p.
588). Todas as determinações da personalidade, portanto, têm origem, antes de
tudo, nas relações do mundo prático, entre os indivíduos reais, como na sua
atividade com a natureza e nos processos que se desenvolvem no plano concreto
da sociedade. A personalidade humana é inseparável da totalidade da sociedade,
e nesse desenvolvimento social desigual ela pode desenvolver-se autenticamente
ou ser rebaixada “a mera particularidade, [e] esta é a consolidação final do
estranhamento” (LUKÁCS, 2013, p. 621).
Para que a
personalidade humana se desenvolva, nos termos em que colocamos aqui, como
correspondente ao gênero humano que superou a sua mudez completamente, é
necessário também o desenvolvimento da “formação superior de cada uma das
capacidades”. A divisão social do trabalho impele ao indivíduo “de múltiplas
tarefas, com muita frequência extremamente heterogêneas entre si” (LUKÁCS,
2013, p. 588). No cotidiano, as decisões pessoais sempre se apresentam sobre a
base de determinações sociais concretas, em que indivíduo responde às perguntas
numa situação concreta, através da síntese de suas capacidades também
heterogêneas. Esta síntese resulta a uma uniformização da individualidade
dentro da imediaticidade da vida cotidiana.
Assim, a
explicitação da personalidade necessita de um campo de ação que possibilite tais
realizações. Neste caso, o desenvolvimento social é um campo de ação de
possibilidades de caráter unitário, isto é, um campo de ação real onde a
individualidade pode atuar, “promovendo ou inibindo”. Desse modo, a
personalidade, enquanto categoria social, somente pode emergir em um campo de
ação que a promova.
É
necessário, portanto, que o desenvolvimento objetivo da sociedade permita a
criação de um campo de ação rico em determinações genéricas, ou seja, rico em
possiblidades, um campo, extensivo e intensivo, em que as capacidades humanas
(do gênero) possam se manifestar. A necessidade de um campo de ação mais rico
para a formação e atuação da individualidade humana não pode ser entendido como
uma construção ideal abstrata, mas como uma possibilidade real e concreta, pela
ação humana consciente.
Aqui
tentamos localizar o estranhamento no conflito existente entre “o
desenvolvimento das capacidades humanas pelas forças produtivas e a conservação
(ou esfacelamento) da personalidade humana”. Foi preciso delinear os
fundamentos sociais da personalidade (LUKÁCS, 2013, p. 591). Este
desenvolvimento desigual, tendência do desenvolvimento da sociedade em geral, é
enormemente acirrado com o desenvolvimento capitalista. Ao mesmo tempo em que o
capitalismo produz verdadeiras maravilhas, produz crescentemente pobreza,
miséria, destruição da natureza, destruição de vidas humanas, de
individualidades e, consequentemente, aniquila personalidades neste processo.
A breve
exposição que fizemos sobre os fundamentos do estranhamento deve ser capaz de
demonstrar que este fenômeno surge do próprio progresso social e assume
diferentes formas nos diferentes estágios do desenvolvimento social, sendo a
escravidão a sua “primeira forma extremamente brutal” (LUKÁCS, 2013, 743). O estranhamento,
em Lukács, toma nova interpretação tanto com relação a qualquer outra
formulação, inclusive a de Marx, embora possua nitidamente um fundamento que se
possa dizer marxista. Por exemplo, na
formulação inovadora de Lukács, como na de Marx, o estranhamento deve ser
entendido como um produto das relações sociais e econômicas objetivas, tendo
sempre uma expressão ideológica e, em cada particularidade histórica, incide na
subjetividade, isto é, no desenvolvimento da personalidade. A superação do estranhamento
somente pode ser vislumbrada com a atividade prática objetiva dos sujeitos
reais que vivem em sociedade.
7
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente
trabalho tentou demonstrar que o tratamento de Lukács acerca do fenômeno do
estranhamento parte das questões mais fundamentais da sociedade em geral e se
associa diretamente com formulações sobre as relações
de produção. Ao assim fazê-lo, a teoria do estranhamento de Lukács confronta o
desenvolvimento social com a dinâmica de valorização autoexpansiva do valor, da
exploração e da divisão capitalista do trabalho. Como em Marx, o
desenvolvimento social molda a sociabilidade de maneira contraditória e
desigual, sendo essa a origem última das variadas formas de estranhamento que
se expressão no esmagamento da personalidade de mulheres e homens. No caso do capitalismo, o chamado desenvolvimento econômico, o qual
nos deparamos hoje, corresponde, para lidarmos com sua dimensão fundante, ao
aniquilamento da classe
trabalhadora.
Com a cisão
entre os dois momentos indissolúveis, objetivação e alienação, Lukács concebe
um novo tratamento do problema. A distinção entre estranhamento [Entfremdug]
e alienação [Entäusserung], jamais realizado por Marx, mostra-nos que,
na alienação, a personalidade do sujeito se revela, mas tal revelação não é
necessariamente um estranhamento. Em poucas palavras: o estranhamento somente
se manifesta quando o mesmo desenvolvimento que poderia ter facultado a
elevação dessas capacidades tornou-se um empecilho a ela. Ele se expressa, por
exemplo, no trabalho forçado, como deformação do trabalhador, questão já
tematizada por Marx nos Manuscritos. Assim, a abordagem de Lukács se
configura como uma interpretação própria do fenômeno do estranhamento, não
somente pertinente, mas também urgentemente necessária para a renovação da
crítica à sociedade capitalista contemporânea.
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[1] É claro que aqui se trata não somente de objetivações tangíveis, mas como se trata do primeiro ato do trabalho, o trabalho em seu sentido originário, essa objetivação se verifica em um objeto material produzido, isto é, num valor de uso.
[2] Lukács fornece passagens elucidativas a respeito do que se refere à objetividade e suas implicações para a interpretação de Hegel: “Quando emprego a palavra ‘objetividade’, não quero que se pense apenas na palavra alemã Objektivität, mas também na palavra Gegenständlichkeit que é decisiva para o pensamento de Hegel nesta época e até mesmo para toda sua filosofia. É em Gegenständlichkeit que estou pensando quando falo em ‘objetividade’. Se a exteriorização [Entäusserung] é idêntica à objetividade, isso significa que todo o mundo dos objetos, das coisas etc., nada mais é do que o espírito objetivado; ou seja, se conhecermos a verdade sobre as cosias e suas relações conheceremos a nós mesmos na medida em que participamos do sujeito universal da evolução, do gênero humano, do Weltgeist [espírito do mundo].” Mais adiante “Mas esta mesma concepção torna-se caricatural e mistificadora quando se trata da objetividade que existe independentemente de nossa consciência, como é o caso da objetividade natural: em Hegel, esta aparece como uma Entäusserung, como uma exteriorização que pode ser retomada pelo sujeito, na forma de interiorização.” E isso incorre justamente no problema do fim da história, tão caro para a filosofia de Hegel (LUKÁCS, 2009, p. 105-106).
[3] Cabe aqui indicar a leitura da obra da autora Marcella D’Abbiero (1970), “Alienazione” in Hegel (uma tradução da “Introdução” deste livro pode ser encontrada em: (D’ABBIERO, 2015)), para melhor compreender a utilização de Entäusserung e Entfremdung em Hegel. Salientamos que esta polêmica é demasiadamente extensa.
[4] “Infelizmente, os manuscritos em que ele trata deste assunto se perderam. O jovem Hegel estudou economia na obra do inglês James Steuart; conhecemos apenas os títulos de seu comentário, escrito entre fevereiro e maio de 1799. Mas poucas linhas que Rosenkraz escreveu sobre isso mostram que ele nada compreendeu do assunto. Conhecemos bem mais os manuscritos sobre economia que Hegel escreveu em Iena. Sabemos que ele estudou atentamente Adam Smith” (LUKÁCS, 2009, p. 92).
[5] Hegel se opôs ao pensamento idealista subjetivo de Kant e seus seguidores. Para uma apreensão mais aprofundada do assunto, ver a obra sempre citada: Lukács (2018), Capítulo III: “Fundamentação e defesa do idealismo objetivo” (Jena 1801-1803), sobretudo a seção II: “A crítica do idealismo subjetivo”.
[6] Em outra seção de “O jovem Hegel”, Lukács investigou com detalhe o trabalho na perspectiva de Hegel. Para isso ver o terceiro capítulo, seção VI, intitulada “O trabalho e o problema da teleologia”.
[7] Esta complexa relação entre teleologia e causalidade incide em Marx de maneira muito profunda, sobretudo no Capítulo V d’O Capital. Foi nesse capítulo que Marx demonstrou que toda ação humana é direcionada a um fim (MARX, 1996, p. 297). Vale lembrar que quando os vários pores teleológicos colocados em movimento pelos seus agentes (indivíduos particulares), entram na relação uns com os outros, isto é, na totalidade social, interagem de tal maneira que se torna impossível ao certo saber qual resultado será alcançado, não havendo, portanto, uma teleologia na história (LUKÁCS, 2013, p.151).
[8] É preciso notar que nesta obra Lukács ainda não faz a distinção entre estranhamento [Entfremdug] e alienação [Entäusserung], muito menos a separação entre objetivação e alienação. Isso só viria a ocorrer em sua obra mais madura, na Ontologia.
[9] Lukács aponta que isso se deu porque Hegel não conseguiu vislumbrar a questão do valor, limitando-se à apreensão clássica. Para isso ver Lukács (2018) página 691.
[10] Segundo Engels, a concepção não-histórica da natureza de Hegel era “inevitável”; de um lado, pelos limites das Ciências da Natureza de sua época: o materialismo do século XVIII era predominantemente mecânico, limitado por não apreender o desenvolvimento do mundo como um processo. Neste sentido, o idealismo hegeliano representava um avançado sistema em relação ao materialismo vulgar, o qual Hegel fazia oposição (ENGELS, 1982, p. 32). Por outro lado, a posição entre natureza e a história da sociedade é formulada com uma radical diferenciação metodológica entre elas, porque Hegel precisava distinguir os aspectos especificamente correspondentes do desenvolvimento social do homem do desenvolvimento da natureza, também em decorrência de sua época histórica, como evidenciado por Lukács: “Hegel quis captar em termos filosóficos o caráter específico da história humana e tem de fazê-lo em uma época em que os pensadores mais próximos dele no campo da dialética do idealismo objetivo estiveram orientados de modo bastante unilateral para a natureza” (LUKÁCS, 2018, p. 696).
[11] Aqui temos a oportunidade distinguir o método de destes autores, conforme as próprias palavras de Marx: “Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de ideia, transforma num sujeito autônomo, é o demiurgo do real, real que constitui apenas a sua manifestação externa. Para mim, pelo contrário, o ideal não é nada mais que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem” (MARX, 1996, p. 20).
[12] “Um olhar sobre o sistema de Hegel. Tem de começar-se pela Phanomenologie de Hegel, o verdadeiro lugar de nascimento e segredo da filosofia de Hegel” (MARX, 2015, p. 365).
[13] É necessário fazer o comentário de que a unilateralidade da crítica de Hegel feita por Feuerbach deve-se por ele não ter conseguido superar criticamente o idealismo hegeliano, por isso não levou às últimas consequências a alienação [Entäusserung] descoberta por Hegel, limitando-se apenas ao campo filosófico. Segundo Engels (1982), a crítica feuerbachiana é unilateral, incompleta e demasiadamente abstrata, sem a real conexão entre a economia e a filosofia.
[14] Lukács explica que “essa concentração de fato tem também razões polêmicas, advindas da história da época, dado que a subjetivação da filosofia de Hegel, que estava sendo efetuada pelos jovens hegelianos radicais, sobretudo Bruno Bauer e Stirner, apoiava-se principalmente nessa obra de Hegel e levava a termo uma mistificação de sua metodologia que vai muito além de Hegel.” (LÚKÁCS, 2018, p. 700).
[15] O próprio Lukács reconheceu a importância da publicação dos Manuscritos, que se deu apenas em 1932: “Numa obra publicada somente há mais ou menos quinze anos, que é certamente uma das mais importantes da sua juventude, Marx critica a Fenomenologia do Espírito; não é casual que, falando do problema da relação entre economia e dialética, Marx faça uma análise exata do trabalho, demonstrando os limites precisos que distinguem, por um lado, o trabalho tal como é em si, enquanto relação entre homem e a natureza, e, por outro, o trabalho capitalista, no qual, nas condições da sociedade capitalista, nasce esta forma específica de Entäusserung, de exteriorização” (LUKÁCS, 2009, p. 107).
[16] Vale salientar que foi A Miséria da Filosofia, de 1847, a primeira obra propriamente econômica de Marx, a qual submete a obra de Proudhon, Sistemas de contradições de Proudhon ou Filosofia da Miséria, de 1846, ao trato analítico de um jovem estudioso da Economia Política clássica (MARX, 2017).
[17] É preciso notar que Marx aqui concentrava a sua crítica na propriedade privada e na divisão social do trabalho. Somente mais tarde ele vai reconhecer esses elementos como pressupostos da estrutura mercantil e concentrar a sua crítica na contradição própria da mercadoria.
[18] A palavra “dominação” tal como aqui utilizada não carrega consigo uma conotação moral, ainda que esta possa existir. O termo designa melhor uma relação de exploração de uma classe por outra. A análise do trabalho de Marx se desdobrou em diversas interpretações dentro da teoria crítica, além de Lukács, cabe destacar a obra de Moishe Postone. Postone soube estabelecer a relação intrínseca entre trabalho abstrato e a alienação. Segundo ele, “o sistema constituído pelo trabalho abstrato corporifica uma nova forma de dominação social que exerce uma forma de compulsão social cujo caráter objetivo é historicamente novo” (POSTONE, 2015, p. 186).
[19] De acordo com Lukács, na referida “passagem, a metáfora bastante drástica do “animalesco” não é nem usada em sentido meramente retórico, nem pode ser tomada meramente no sentido literal. Corretamente entendida, ela designa, muito antes, com bastante exatidão a condição que certos estranhamentos do homem provocam nele: sua exclusão do complexo do ser do homem, que se tornou possível para ele por meio do gênero (do ser social, do ser personalidade), que é fundamentalmente possibilitado pelo estado da respectiva civilização – incluindo naturalmente o desenvolvimento das capacidades enquanto seu fundamento” (LUKÁCS, 2013, p. 594).
[20] Segundo Márkus (2015), a apreensão da essência humana em Marx não é uma essência abstrata e inata do ser humano, para ele, a essência humana é “a verdadeira comunidade dos homens, estes produzem afirmando a sua essência, a comunidade humana, o ser social – que não é uma potência geral, abstrata diante do indivíduo isolado, mas o ser de cada indivíduo, a sua própria atividade, o seu próprio gozo, a sua própria riqueza” (MÁRKUS, 2015, p. 208).
[21] Com o ato de produzir, o ser humano relaciona-se para com o seu gênero, com a sua própria essência. Enquanto o animal produz o que lhe é necessário para o consumo imediato, o ser humano produz além da sua necessidade física, ou seja, universalmente (MARX, 2015, p. 312). É nesta “elaboração do mundo objetivo o homem se prova realmente como ser genérico” (MARX, 2015, p. 313). Deste modo, o trabalho alienado, na medida em que o resultado de sua produção é apropriado por outrem, retira do trabalhador a sua vida genérica, a sua objetividade. O trabalho alienado faz “do ser genérico do homem – tanto a natureza quanto a sua capacidade espiritual genérica (Gattungvermögen) – uma essência alienada a ele” (MARX, 2015, p. 313-314). Alienado do seu próprio corpo, da natureza e de sua essência. A consequência é, “que o homem está alienado do produto do seu trabalho, da sua atividade vital, do seu ser genérico, é a alienação do homem do homem”, pois este quando “se confronta a si próprio, enfrenta-o o outro homem” (MARX, 2015, p. 314).
[22] No primeiro capítulo do segundo volume da Ontologia, Lukács destina sua análise à categoria do trabalho, sem se esquecer de que qualquer ser somente pode sem compreendido corretamente em sua complexidade, isto é, na interação dos complexos de complexos heterogêneos da realidade (LUKÁCS, 2013, p. 41-45).
[23] As seguintes passagens de Lukács são lapidares neste sentido: “o fato de que o desenvolvimento das forças produtivas acarreta de imediato um incremento na formação das capacidades humanas, que, no entanto, abriga em si simultaneamente a possibilidade de sacrificar os indivíduos (e até classes inteiras) nesse processo” (LUKÁCS, 2013, p. 580). Mais adiante: “o desenvolvimento das forças produtivas é necessariamente ao mesmo tempo o desenvolvimento das capacidades humanas. Contudo – e nesse ponto o problema do estranhamento vem concretamente à luz do dia –, o desenvolvimento das capacidades humanas não acarreta necessariamente um desenvolvimento da personalidade humana. Pelo contrário: justamente por meio do incremento das capacidades singulares ele pode deformar, rebaixar etc. a personalidade humana. (Basta pensar em muitos dos integrantes de equipes especializadas da atualidade, nos quais as habilidades específicas cultivadas de modo sofisticado têm um efeito altamente destrutivo sobre a sua personalidade)” (LUKÁCS, 2013, p. 581).
[24] Aqui é preciso fazer um brevíssimo esclarecimento acerca da concepção de desenvolvimento em Marx e, consequentemente, em Lukács, pois se refere à complexidade social, isto é, quando mais elementos complexos existem na determinada sociedade, mais desenvolvida, sob esse ponto de vista, ela é. Não contendo, portando, qualquer juízo valorativo. Aqui devemos indicar o livro Desenvolvimento em Marx e na Teoria Econômica, para maior aprofundamento no tema (BONENTE, 2016).