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UMA DEMANDA FORMATIVA POR CONHECIMENTOS QUÍMICOS: O CONFRONTO COM CURRÍCULO
Mariuce Campos de Moraes; Larissa Kely Dantas; Mariele Rondon Santos Gonçalves
Mariuce Campos de Moraes; Larissa Kely Dantas; Mariele Rondon Santos Gonçalves
UMA DEMANDA FORMATIVA POR CONHECIMENTOS QUÍMICOS: O CONFRONTO COM CURRÍCULO
A FORMATIVE DEMAND FOR CHEMICAL KNOWLEDGE: THE CURRICULUM CONFRONTATION
REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, vol. 7, núm. 2, 2019
Universidade Federal de Mato Grosso
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Resumo: Neste texto nós refletimos sobre uma demanda de formação continuada para a docência em Química, apresentada por professores indígenas, destacando múltiplas dimensões do currículo da área das Ciências da Natureza. Partimos do questionamento a respeito das condições necessárias para dimensionar uma formação continuada comprometida com a produção curricular. Assim, visamos interpretar tais dimensões em relação às aspirações curriculares, relativas ao conhecimento químico. Os resultados indicam que as experiências formativas dos professores se apoiam em abordagens hegemônicas, mas também possuem características de uma política cultural. Os dados nos apontam desde adesões voluntárias, processos individuais e coletivos de estudo, até o reconhecimento de diferentes matrizes de conhecimento e distintas bases epistemológicas presentes na Educação Básica.

Palavras-chave: Currículo,Formação continuada,Educação em Química,Educação indígena.

Abstract: In this text we reflect about a demand for continuing education for Chemistry teaching, presented by indigenous teachers, highlighting multiple dimensions of the curriculum in the area of Natural Sciences. We start from the question about the necessary conditions to dimension a continuous formation committed to the curricular production. Thus, we aim to interpret these dimensions in relation to the curricular aspirations, related to chemical knowledge. The results indicate that teachers’ formative experiences rely on hegemonic approaches, but also have characteristics of a cultural policy. The data point us from voluntary adhesions, individual and collective processes of study, to the recognition of different matrices of knowledge and different epistemological bases present in Basic Education.

Keywords: Curriculum, Continuing Education, Education in Chemistry, Indigenous education.

Carátula del artículo

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UMA DEMANDA FORMATIVA POR CONHECIMENTOS QUÍMICOS: O CONFRONTO COM CURRÍCULO

A FORMATIVE DEMAND FOR CHEMICAL KNOWLEDGE: THE CURRICULUM CONFRONTATION

Mariuce Campos de Moraes
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil
Larissa Kely Dantas
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Mariele Rondon Santos Gonçalves
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Brasil
REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
ISSN-e: 2318-6674
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 7, núm. 2, 2019

Recepção: 30 Maio 2019

Aprovação: 10 Setembro 2019


1. INTRODUÇÃO

Propõe-se, neste trabalho, uma reflexão sobre currículo para uma formação de professores que seja contextual e culturalmente pertinente, por meio da Educação Química. Para tanto, acompanhamos os estudos no campo do currículo, que adotam posicionamentos e condutas contra hegemônicas apropriadas às exigências da atualidade. Oliveira e Destro (2005) afirmam que já se constituiu, contemporaneamente, uma abordagem metodológica no âmbito dos estudos de currículos escolares que propicia mostrar as relações políticas de aproximação entre o global e o local, sendo essa uma estratégia de análise cuja implicação é a configuração do currículo como uma política cultural.

Neste sentido, ganham relevância as discussões sobre as políticas curriculares elaboradas no formato de uma rede, na qual os conceitos curriculares, conhecimentos e cultura se inter-relacionam, não como um espaço de apologia à verdade ou às interpretações absolutas, mas sim, como espaço que possibilita questionamentos e entrelaçamentos de diferentes dimensões educacionais (OLIVEIRA, 1998).

Outras pesquisas discutem a pertinência de análises que ressaltam as múltiplas relações constitutivas do currículo na escola, que apontam tanto para a superação de tendências prescritivas quanto para a adoção da escola como um lugar onde se produz conhecimento. Tais pesquisas defendem que as relações constitutivas levam ao currículo como artefato social e histórico, logo, fruto de uma seleção da cultura mais ampla (LOPES, 1998; 2004; 2007; 2010) e também a uma noção de currículo como política de cultura (GIROUX, 1997). Decorrem de outros estudos curriculares o conceito de currículo como construção social, não desvinculado de um nível inicial de prescrição, constituído e constituindo um nível de processo e prática (GOODSON, 2013).

Estando de acordo com tais conceitos, consideramos necessário ter como partida os contextos históricos e culturais nos quais a formação continuada analisada neste texto esteve inserida, assim como propomos superar a dicotomia entre “currículo como fato” e “currículo como prática”, para um entendimento dos processos internos de definição e de modificação curricular que foram viáveis.

Lopes (2010, p. 82) lembra que as comunidades disciplinares dependem, desde sua constituição, da organização curricular disciplinar e de diversas ações decorrentes das especificidades de cada disciplina, isto é, os currículos são construções histórico-sociais, sendo assim as comunidades curriculares “lutam politicamente por certas demandas e se articulam com outras comunidades em virtude da possibilidade de atender a essas mesmas demandas”. Deste modo, a autora traz como pressuposto que, nesse processo de articulação, as identidades e as demandas se hibridizam, assim, os sujeitos operam reconstruindo tradições curriculares. Neste contexto teórico curricular, problematizamos a formação continuada, com a qual estivemos envolvidas, com o seguinte questionamento: como dimensionar uma formação continuada em Química, comprometida com a produção curricular, a partir de uma demanda formativa elaborada pela equipe de professores indígenas?

Diante dessa problematização, o objetivo deste trabalho é interpretar uma demanda formativa em suas aspirações curriculares, apresentada por professores indígenas, relativas ao conhecimento químico para compor o currículo da Educação Básica. Para tanto, traz-se a demanda de professores indígenas de uma escola indígena, do Estado de Mato Grosso a professores da Universidade Federal de Mato Grosso na proposição de um currículo pertinente. Tal demanda desencadeou diferentes espaços e tempos de formação continuada. Entendemos que este trabalho se justifica frente a necessidade de promover a compreensão das políticas curriculares com a perspectiva de enfrentamento dos problemas oriundos da padronização do processo de escolarização.

2. APONTAMENTOS SOBRE POLÍTICA DE CULTURA E SUA IMPLICAÇÃO NA CRIAÇÃO DE CURRÍCULO

Lopes (1998, p. 33) ressalta que “currículo e conhecimento não são objetos, coisas dadas, mas produtos de relações sociais, e, portanto, só podem ser compreendidos a partir da percepção das relações sociais historicamente situadas.” Com esse ponto de vista, a autora indica a presença da correlação entre um quadro político-econômico condicionante do pensamento hegemônico e as políticas curriculares no país, e vai, além disso, apontando para análises das questões curriculares sob perspectivas diversas, entre as quais a pluralidade cultural. Para a autora, quando realizamos análises curriculares adotando ao currículo como oriundo do pensamento dominante, o negamos como uma construção social.

A problematização dessa questão exige compreender o caráter plural da cultura que não se restringe somente aos conhecimentos científico e erudito, mas também aos processos plurais e cotidianos, de produção de significados. Lopes (2004) argumenta que as políticas de constituição do conhecimento escolar são tanto construídas para a escola (por ações externas a essa), quanto pela escola (em suas práticas institucionais cotidianas). Neste sentido, toda política de currículo é simultaneamente de cultura, pois resulta de uma seleção em um campo conflituoso de produção de cultura, de modo que envolve embate entre sujeitos, concepções de conhecimento, visões de mundo, valores, significados e formas de construir o mundo. Logo, mais importante é entender o currículo implicado por questões de raça e etnia. Questões que não devem ser negligenciadas como se fossem válidos apenas os saberes supostamente universais.

E nesse sentido, destacamos como Silva (2010) ajuda a pensar o currículo:

Vivemos em um mundo social onde novas identidades culturais e sociais emergem, se afirmam, apagando fronteiras, transgredindo proibições e tabus identitários, num tempo de deliciosos cruzamentos de fronteiras, de um fascinante processo de hibridização de identidades (SILVA, 2010, p.7).

Deste modo, insistimos na noção de currículo como construção social que incide sobre “ser” e “viver” em sociedade, em que novas identidades culturais e sociais emergem, cruzam fronteiras e, então, hibridizam-se. Sob tal perspectiva, compreendemos que a reflexão crítica da relação intercultural, em um contexto de formação de professores, evoca muito além de conteúdos conceituais, sendo que, por seu caráter multidimensional, evoca dimensões relacionadas à produção curricular e à construção de compromissos sociais que podem vir a se articular com as políticas de currículo.

Para Giroux (1997), a construção da educação como política cultural é possível dada a relação das culturas populares e subordinadas com os modos dominantes da escolarização:

É uma tentativa de construir uma agenda teórica através da qual os educadores possam começar a considerar com seriedade as esperanças, ansiedades, experiências e histórias de grupos e classes subordinadas. Estamos utilizando o termo cultura com as maneiras distintas nas quais um grupo social vive e dá sentido as circunstâncias e condições de vida que lhes são “dadas”. Estas podem ser “inconscientes” ou não; certamente elas são o produto de processos históricos coletivos e não intenções meramente pessoais (GIROUX, 1997, p. 167).

Para o autor, tanto os professores como os estudantes devem ser vistos como intelectuais transformadores, de modo que em suas experiências vividas estão mais do que compromissos formais, estão relacionados múltiplos sentidos e ações, o que pode oferecer ao currículo escolar uma contra ideologia para as pedagogias instrumentais e administrativas. Para ele, os indivíduos formam seus propósitos e intenções dentro do seu reportório cultural.

Para Goodson (2013), um entendimento pleno do processo de escolarização exige observar o currículo por dentro, ou seja, parte da complexidade da escolarização deve ser decifrada a partir do processo interno de estabilidade e de mudança no currículo. Um currículo é produzido, negociado e reproduzido, por conseguinte, é formulado em uma variedade de áreas e níveis. Para o autor, entender a criação de um currículo é algo que deveria proporcionar mapas ilustrativos das metas e das estruturas prévias que situam a prática contemporânea. Deveríamos estar cientes de que a batalha para definir um currículo envolve prioridades sociopolíticas e discurso de ordem intelectual, pois o processo humano pelo qual as pessoas fazem sua própria história não se realiza nas circunstâncias de sua própria escolha, mas depende do contexto histórico que estão implicados pelos padrões anteriores de conflito e de poder. Neste sentido, uma perspectiva de análise curricular de mais longo alcance, passa pela reconceitualização do método de estudo curricular, que associe atos específicos de construcionismo social e impulsos sociais mais amplos.

3. APONTAMENTOS SOBRE A CRIAÇÃO DE CURRÍCULO E SUA IMPLICAÇÃO NA DISCIPLINA ESCOLAR

Para Goodson (2013), o contexto histórico reflete padrões anteriores de conflito e de poder também entre as disciplinas escolares, sendo que, o conflito social dentro de uma disciplina curricular é fundamental para entender as características da própria disciplina. Tendo realizado pesquisas sobre matérias escolares, o autor identifica pistas sobre a possibilidade de entender o currículo de Ciências. Para ele, a história social das matérias na escola secundária, ainda que na Grã-Bretanha, mostrou como professores foram estimulados a definir o seu conhecimento curricular em termos abstratos, formais e eruditos em troca de status, recursos, territorialidade e credenciais. Neste contexto, seus estudos sobre a organização do conhecimento curricular e da história de disciplina e matéria escolar são fundamentais para entender, nessa situação, a história da disciplina Química.

Lopes (2007, p. 76) ressalta que: “a disciplina escolar é uma unidade básica do currículo por excelência”, sendo que a história das disciplinas escolares se desenvolve de forma diversa da história do campo científico de referência. As disciplinas são construções históricas contingentes, dependem do contexto onde são produzidas, e decorrem das lutas políticas pela definição do que os profissionais são, de quais são as práticas curriculares, com quais demandas se articulam e em quais comunidades se situam.

Essa condição constitutiva das disciplinas curriculares é consonante com a noção construtiva das práticas e das propostas desenvolvidas nas escolas, ou seja, elas também são produtoras de sentidos para as políticas curriculares. Deste modo, há disputas, frequentemente não explícitas, entre diferentes grupos na definição dos conteúdos, daquilo que será valorizado e legitimado na escola.

Para Lopes (2010), no que concerne ao ensino de Química, a articulação discursiva construída pela sua comunidade disciplinar, na defesa de sua melhoria nas escolas, baseia-se no tipo de abordagem realizada do conhecimento químico escolar. Deste modo tornou-se mais importante integrar o saber químico escolar com os saberes cotidianos ou os saberes prévios dos alunos, como forma de produzir discursos sintonizados com o que se espera ser uma mudança no Ensino de Química.

4. A DEMANDA DE FORMAÇÃO EM CONHECIMENTOS QUÍMICOS: UMA BREVE ANÁLISE DAS FALAS SIGNIFICATIVAS

Em 2015, a sistematização de uma demanda para a formação em Química chega à Universidade Federal de Mato Grosso, para professores e pesquisadores vinculados ao Ensino de Química, após passar por outros formadores vinculados ao Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Professores (CEFAPRO), órgão da Secretaria de Educação de Mato Grosso. A referida demanda por conteúdos específicos, envolvendo conhecimentos químicos, foi apresentada conforme aparece no fragmento de texto:

…só agora consegui abrir meu e-mail, fico feliz de dar continuidade na formação continuada em ensino de química (...) então elenquei alguns deles, como: produção de materiais alternativos para atividades experimentais. Entender melhor: balanceamento de equações de oxirredução; estequiometria das reações eletroquímicas, concentração de soluções aquosas; cálculos químicos e funções químicas. Se não pedir demais também seria muito melhor se tivéssemos um laboratório de química para fazer experiências. (PROFESSORA INDÍGENA, 2016, registro eletrônico das autoras).

De imediato, a leitura da demanda apresenta dimensões da história vivida em formação continuada relacionada à Educação em Química. Concordando com Goodson (2013), a respeito do pressuposto da criação curricular, sendo o currículo tomado como uma construção social e não como prescrição, nosso primeiro movimento foi no sentido de definir um aporte teórico-metodológico para uma interpretação curricular e culturalmente pertinente.

Deste modo, recorremos inicialmente a uma interpretação delineada por fundamentos da pesquisa socioantropológica em Educação, nos termos que apresenta Brandão (2003). Para o autor, tal pesquisa se destina ao conhecimento dos sujeitos, concebidos como detentores de um saber próprio. Portanto, o pesquisador se coloca atento aos sujeitos, ao ouvi-los plenamente, em situações interativas, em que predominam conversas indiretas e coletivas, sistemáticas, mas livres e abertas, nas quais importa a produção de ideias e de imagens que tragam visões e versões vividas e pensadas.

Uma das origens desta modalidade de pesquisa está nas investigações de realidade social e de levantamento de palavras, temas e problemas geradores das experiências de Educação Popular. Assim, em conversas abertas, conhecemos as palavras com que se diziam os casos, os sentimentos e os sentidos, as imagens e os signos da vida. Ainda que pautada em sucessão de momentos de trabalhos individuais pressupõe-se o vínculo com as atividades de equipe e entre equipes. Por isso, importa saber ouvir, compreender e interpretar o que os sujeitos dizem dentro do contexto de vida e de cultura. Dentre o repertório do que é dito, é necessário selecionar passagens marcantes e descritivas por sua carga de criticidade. Brandão (2003) lembra que tal seleção leva a falas significativas:

Elas representam uma expressão de um pensamento, de um saber, quando se parte do princípio de que em qualquer pessoa humana há um crescendo de conhecimento vivenciado e acumulado sob a forma de uma integração cultural de saberes. Esses conhecimentos estão distribuídos em uma escala de sentido-do-saber que passa pelas diversas habilidades técnicas para o fazer produtivo; por diferentes conhecimentos a respeito dos diferentes planos em que se movem as pessoas que os pensam; por valores éticos, religiosos, espirituais, ideológicos-políticos, estéticos, artísticos e outros; por sistemas mais articulados e mais complexos de visões de mundo, da vida e de si mesmo (BRANDÃO, 2003, p. 142).

Para o autor, ao representar a fala das pessoas populares, as falas significativas evidenciam dimensões, ao mesmo tempo, históricas e cotidianas, sendo assim, essas expressam fluxos, estruturas, processos e relações constitutivas das condições de vida. Logo, consideramos apropriado interpretar a demanda acima como uma fala significativa. Também consideramos estar em consonância com abordagens qualitativas presentes nas pesquisas mais recentes em Educação em Ciências que estão em interface com a Educação Indígena (OLIVEIRA; BRITO; KALHIL, 2017).

Para Brandão (2003), as falas, de algum modo, trazem denúncias. Desta forma, uma vez selecionadas as palavras e as frases da pesquisa de campo, e trazidas para um segundo momento de tratamento e de aplicação didática, a vivência simbólica se transforma em um complexo temático de temas cruzados. De modo que, dentro do repertório do que é dito é preciso compreender o que está sendo sugerido ou está sendo silenciado.

Para o autor, os princípios da pesquisa socioantropológica, quando trazidos ao momento de criação do currículo, devem ser transformados em sequências curriculares, conteúdos didáticos e em práticas pedagógicas. Pressupõem elaboração compartilhada de um planejamento de atividades, logo, abarca um conjunto de ações que, mesmo quando dirigidas a um conhecimento destinado a pensar e a planejar o trabalho didático de um período escolar, quase nada deixam de fora.

Diante do exposto, os procedimentos desta investigação foram organizados em quatro etapas: primeiro, o levantamento preliminar da demanda formativa concluída na escolha de uma fala configurada como fala significativa. Para tanto, recorre-se a fonte de informações que corresponde às mensagens eletrônicas enviadas aos formadores para definição do conteúdo programático da formação continuada para a Docência em Química. Na segunda etapa, a fala foi processada e analisada em suas dimensões sugeridas, tomadas como explícitas, relacionadas à produção curricular. Na terceira etapa, a fala foi analisada em suas dimensões silenciadas, tomadas com implícitas, suscitadas pelo conhecimento da trajetória histórica da comunidade de professores em formação. Na quarta etapa, foram analisadas dimensões que a fala suscitou, na equipe de formadores, durante a elaboração do currículo da formação proposta.

Assim, para uma análise de cunho construtivo-interpretativo desta demanda formativa, tomada como fala significativa, recorreu-se a interpretação de dimensões históricas e culturais, explícitas e implícitas, como uma rede de temas cruzados. Dessa forma, destaca-se o primeiro trecho “fico feliz”, que remete a um bom processo relacional até aquele momento, assim, as relações construídas já estavam satisfatórias. Junta-se ao trecho anterior, outras três dimensões daquela fala significativa, qual seja, “dar continuidade na formação continuada em ensino de química”, que nos remete a uma dimensão mais explícita que envolvia uma trajetória histórica, outra dimensão envolve a própria formação continuada de professores e outra dimensão está relacionada à Química.

Se a trajetória histórica a leva a estar feliz, pudemos supor que isso expressa uma relação precedente, interativa e de partilha que precisa ser conhecida para compor a formação que ocorrerá a partir de nosso ingresso. Naquilo que a existência da formação continuada já expressa uma organização contínua da realidade formativa, que os envolve, são juntadas outras três dimensões daquela fala significativa, qual seja, a “produção de materiais alternativos para atividades experimentais.” Seguida da expressão: “Entender melhor”, que levam a supor a explicitação da articulação teoria-prática, com a qual se sinaliza para uma formação reflexiva.

Por fim, outro trecho de expressão suscita ainda mais dimensões daquela fala significativa. “Entender melhor: balanceamento de equações de oxirredução; estequiometria das reações eletroquímicas, concentração de soluções aquosas; cálculos químicos e funções químicas” são aspectos que expressam, de modo mais explícito, todo um conjunto de conteúdos que envolvem oxirredução. Agrega-se ao trecho anterior, outras dimensões que podem ser compreendidas na expressão que segue: “Se não pedir demais também seria muito melhor se tivéssemos um laboratório de química para fazer experiências”, expressões que levam a supor a explicitação de um currículo da disciplina escolar da Química que se compõe, dentre outras estratégias, pelas atividades experimentais com as quais se fazem as experiências em laboratório.

Neste sentido, concordamos quando Goodson (2013, p.124) traz que, ainda no final do século dezoito, “uma versão da ciência pura de laboratório fora aceita como a forma correta de ciência que suprimia os objetivos utilitários e destacava o saber, a pesquisa pela pesquisa e as diferenças entre conceitos científicos abstratos e o mundo da experiência cotidiana”. O autor também relata que na história da ciência como matéria escolar registra-se um elo firme entre a definição da ciência pura de laboratório e o status que isso gerou. Para o autor, esse elo provém largamente do surgimento da pesquisa de laboratório nas universidades.

5. A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DOS PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA E A CONFIGURAÇÃO DA DEMANDA FORMATIVA

Entende-se que a fala traz além dos elementos mais explícitos, um conjunto de dimensões silenciadas acerca da trajetória histórica da comunidade dos professores em formação, pois a demanda suscitou uma relação de definição constitutiva, ou ainda, criativa de um currículo. Sendo assim, também recorremos a uma interpretação do campo de currículo delineada por fundamentos da história de currículo, segundo Silva (2013):

É igualmente importante que uma história do currículo não se detenha nas deliberações conscientes e formais a respeito daquilo que deve ser ensinado nas escolas, tais como leis e regulamentos, instruções, normas e guias curriculares, mas que investiguem também os processos informais e interacionais pelos quais aquilo que é legislado é interpretado de diferentes formas, sendo frequentemente subvertido e transformado (SILVA, 2013, p. 9).

Para o planejamento do currículo de nossa formação, buscamos elementos informais e interacionais para conhecimento da trajetória histórica da comunidade dos professores em formação. A trajetória histórica desta demanda formativa pode ser encontrada nos registros dos professores da Educação Básica da microrregião de Tangará da Serra, situada no noroeste do Estado de Mato Grosso. Trata-se de uma demanda construída ao longo de seis anos, articulada por professores formadores do CEFAPRO, do polo desta microrregião. Considera-se importante salientar que a formação continuada de professores da Educação Pública em Mato Grosso, é de responsabilidade do CEFAPRO, que se organiza em diferentes polos.

Contam Monzilar, Souza e Monzilar (2014), que no ano de 2009, no contexto de um projeto de formação sobre Pedagogia da Alternância organizada pelos professores formadores do campo e indígena do polo do CEFAPRO de Tangará da Serra, nasceu a proposição inicial de um Plano de “Estudos Individuais” para cada professor envolvido na formação. Naquela experiência, a formação era uma parceria com escolas indígenas, do campo e de quilombos.

A previsão dos estudos individuais da proposta filosófica e metodológica da Alternância orientou as primeiras discussões sobre um planejamento pertinente entre os cursistas do Projeto Pedagogia da Alternância, que se estenderiam para os outros profissionais da educação participantes de formação continuada nas escolas de assentamentos, quilombos e indígenas da microrregião, que poderiam aderir voluntariamente à proposta. Tais discussões somente se consolidam em 2014, em uma Escola Indígena da microrregião, por meio de um Projeto enviado ao CEFAPRO. Resultou dessa formação que cinco entre os profissionais lotados na Escola Indígena, naquele mesmo ano, se inscreveram para disputar vagas para o mestrado em programas de pós-graduação no país. Duas vagas de mestrado foram conquistadas.

Para os autores, esses dados evidenciam que naquela escola a formação continuada esteve fortemente orientada para o acesso aos programas de pós-graduação strictu sensu, tal como prevê o encaminhamento das políticas educacionais no país, conforme o § 8º do Art. 20 da Resolução nº 5, de 22 de junho de 2012, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica. Monzilar, Souza e Monzilar (2014) compreendem que a busca pela autoformação, mesmo com a finalidade de acesso aos programas de qualificação profissional, implicaria em melhoria nas práticas educativas.

Para Kupodonepá, Souza, Kupodonepá (2014), nessa mesma experiência formativa, o projeto de formação continuada dos professores em curso no Estado se voltou, também, para ações que visavam minimizar os obstáculos relacionados aos processos de ensino e de aprendizagem da Educação Básica, avaliados e apresentados nos resultados das avaliações externas, tais como: Provinha Brasil, Prova Brasil e Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Os autores apresentam que o desempenho dos estudantes era um dos aspectos a ser considerado na elaboração do projeto de formação continuada de cada unidade escolar.

A intenção para com a formação em conhecimentos das Ciências da Natureza se registrou desde o início das relações entre os professores indígenas e o CEFAPRO, em Mato Grosso. Para Kupodonepá, Souza, Kupodonepá (2014), no caso específico das escolas em que atuam, vinculadas ao Sistema Estadual de Educação, a formação na área da Natureza e Matemática é uma meta importante, tendo em vista a melhoria dos indicadores da avaliação nacional na área.

Os autores informam que, apesar da requerida formação continuada tomar como base o projeto para os referidos professores indígenas, era sabido desde o início que as dificuldades relatadas pelos alunos indígenas, relacionadas com as disciplinas da área das ciências da natureza e matemática, que surgem, principalmente, ao acessarem o Ensino Superior, não estavam relacionadas exclusivamente aos alunos indígenas.

Os autores registram que as primeiras reflexões sobre a formação continuada e a docência em química para os professores indígenas, desse polo do CEFAPRO, partiram da análise relacionada ao domínio dos conteúdos pelos professores regentes, principalmente, do Ensino Médio. Assim, tais professores solicitavam uma formação muito específica acerca de conteúdos disciplinares bastante delimitados. Naquele momento se considerou que as dificuldades apontadas pelos professores indígenas poderiam estar relacionadas com uma formação de professores indígenas, anterior, cujo ponto de partida estava pautado em uma perspectiva étnico-cultural que levava a um modelo, em que a formação diferenciada para o ensino de Ciências e Matemática, dos professores indígenas, se distanciava do modo como estes conteúdos são cobrados nas Universidades.

Em decorrência daquela análise dos professores houve o desencadeamento de um novo processo de formação. O primeiro projeto de formação continuada para a docência em Química foi realizado em parceria com a Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT/Campus Tangará da Serra). Essa formação foi elaborada sob o eixo do trabalho colaborativo, em consonância com outras propostas formativas desenvolvidas na referida Escola Indígena. E sob o eixo do fortalecimento dos conteúdos específicos do Ensino Médio, conforme fossem elencados pelos professores indígenas, tendo como ponto de partida o livro didático adotado pela escola.

Kupodonepá, Souza e Kupodonepá (2014) avaliaram que a relevância do novo projeto residia na proposição de um ambiente de formação capaz de mobilizar diferentes atores em torno de discussões coletivas, tendo como central a qualidade das práticas pedagógicas e do trabalho docente nas escolas indígenas, que demandavam a formação. Ao mesmo tempo, se criavam possibilidades de aprendizagem para o projeto de formação continuada, ou seja, pelos formadores CEFAPRO e, para os projetos de Ensino, Pesquisa e Extensão da universidade, ao menos entre os professores universitários envolvidos.

Na avaliação dos autores, as aprendizagens levaram a propor, muito mais como desafio constante do que como uma possibilidade bem estabelecida, um modelo de formação de professores indígenas fundamentado no diálogo entre saberes que partem de matrizes distintas. Assim, em 2012, se estendeu a formação aos professores das escolas do campo e do quilombo, que também demandam reconhecimento e valorização de seus modos de viver e ver o mundo, bem como de construir e de socializar o conhecimento, além de terem em comum a luta pela terra.

Nesta etapa, a formação assumiu configuração de oficinas e procurou dar visibilidade à relação que se estabelece entre o conhecimento químico produzido no Ocidente, sistematizado a partir do método científico e, os saberes locais e tradicionais sistematizados e socializados pelos povos indígenas, ressaltando a compreensão de como as populações indígenas organizam e socializam seus saberes e que estes podem dialogar com autonomia e protagonismo com os saberes chamados científicos.

Kupodonepá, Souza, Kupodonepá (2014) avaliam que, a partir de 2013, a formação contínua foi mantida pelo coletivo desses professores, em um esforço de construção de uma práxis diferenciada e plural, e alimentam a discussão sobre a valorização dos saberes do campo, indígenas e quilombolas, da construção dos currículos desde uma lógica multicultural e, principalmente, da negação da hegemonia do paradigma proposto pela modernidade nos espaços da educação escolar pública.

Neste contexto, em setembro de 2013, pesquisadores do Ensino de Química, haviam iniciado, a participação no I Fórum - Terra como Princípio Educativo, na UFMT. O evento aconteceu com o objetivo de fortalecer e dar visibilidade às práticas pedagógicas, aos saberes e as vivências das escolas que se mobilizam em torno da construção de um projeto educativo, que tem em comum a Luta pela Terra. As atividades expostas naquele Fórum procuravam afirmar, positivamente, os modos de viver e de ver o mundo, e foram pensadas como um espaço de reflexão e de diálogo que reconhecesse e valorizasse os modos tradicionais de produzir e de socializar o conhecimento, como uma das estratégias da afirmação política da identidade e das lutas pela permanência na terra.

Em 2015, efetivou-se a participação dos pesquisadores da UFMT, em parceria com a UNEMAT, com o CEFAPRO/Tangará da Serra, e com os professores das escolas indígenas, quilombolas e do campo. Desde então, a formação passou a ser planejada em termos conceituais e temáticos, de modo articulado às experiências já desencadeadas. Naquela oportunidade, como pesquisadores do Ensino de Química buscamos um posicionamento diante da temática: “Terra como princípio educativo e as epistemologias da educação do indígena, da educação do campo, quilombolas”, problematizados por questões das Ciências da Natureza.

Desde então, diante do posicionamento dos professores em formação, a presença das diretrizes curriculares é sempre notada em sua relação com as demandas socioculturais locais, o que nos mostra de um lado as implicações da globalização das políticas educacionais, ou seja, a pressão global por um bom desempenho, de outro lado os desafios do currículo como política cultural. Da parte dos formadores, encontrou-se tanto um posicionamento de enfrentamento de concepções utilitaristas e cognitivistas de educação, quanto um posicionamento pela preservação da autonomia dos professores destinada ao enfrentamento da ascensão de propostas curriculares de padronização das escolas públicas.

Disso, nos remetemos a outra dimensão implícita desta trajetória histórica, que tem a ver com a noção de currículo como política de cultura. Assim, sem desconsiderar as implicações das relações hegemônicas e, sem polarizar as relações entre global e local, consideramos a cultura de forma central. Hall (1997) defende a centralidade da cultura, sendo a visão do campo político ampliada, por meio da compreensão do vínculo entre cultura e política e, dessa forma, se constitui, para ele, a inter-relação entre o global e o local. Por considerarmos que a cultura em nível global influencia a cultura em um sentido mais local, então, diante desta trajetória histórica, reconhecemos duas lógicas de entrelaçamentos espaciais, sendo uma “urbana e aldeia”, e a outra “educação superior e educação básica”.

Reconhecemos, também, uma configuração multicultural de formação continuada como consonante com os estudos em que Moreira (2003; MOREIRA; MACEDO, 2002) tem discutido a temática do multiculturalismo, defendendo a reformulação de conhecimentos escolares, para oportunizar a consolidação das identidades de grupos minoritários. Sobre isso, Macedo (2006) afirma que embora haja diferença cultural no currículo, priorizando a formação de novas identidades, ainda há a centralidade da categoria do conhecimento científico marcando os aspectos da seleção e da organização do conhecimento escolar. Diante deste contexto, reconhecemos possibilidades viáveis de produção curricular com essa mesma configuração, ou seja, ainda que essa se desdobre em idas e vindas, em um longo tempo, de mais de seis anos, é devido a articulação de múltiplas experiências entre professores, nesses encontros formativos, que eles alcançam certa autonomia e autoria em seus espaços.

6. A CONFIGURAÇÃO DA DEMANDA FORMATIVA DECORRENTE DA FORMAÇÃO COMPLEXA E REFLEXIVA

A proposição dos conteúdos articulados a cultura propicia caminhar em direção a um currículo pertinente ao fazer pedagógico. Disto vem a possibilidade de interpretar outra dimensão, implícita ao fazer pedagógico daqueles professores, delineada a partir da Educação Escolar Indígena, relacionada ao comprometimento com uma dupla missão.

Baniwá (2013) apresenta distintas características da educação urbana e da indígena, sendo que na primeira o ser humano, que vive na cidade, é inserido em uma escola para que dessa forma seja dado início a sua formação escolar, tais características são diferentes da segunda que, por sua vez, tem uma dupla missão complexa. Entendemos que essa formação escolar ocorre desde que a criança nasce, pois, esses povos incluem tanto os mecanismos próprios que transmitem conhecimentos, quanto os adquiridos formalmente nas instituições. O autor alia-se a um entendimento comum entre os povos indígenas sobre a contribuição da escola no sentido de possibilitar uma relação menos desigual e desvantajosa entre eles e a sociedade nacional e global, ou seja, uma relação constitutiva desde que não seja em detrimento de seus conhecimentos, suas culturas e suas identidades.

Também, Melià (1999) apresenta uma perspectiva de que não há um problema na educação indígena, pelo contrário, o que existe é uma solução indígena ao problema da educação, totalmente ligado a um conceito chamado alteridade, que significa liberdade de ser ele próprio e, por sua vez, está relacionado com a ação pedagógica que apresenta três principais eixos, sendo: a língua, a economia e o parentesco.

Em conformidade com Candau (2012), tem-se uma visão de que as escolas indígenas propiciam, no seu cotidiano interno e externo, experiências e vivências concretas de interculturalidade, de solidariedade, de reciprocidade e de complementaridade sociocultural, econômica, política e espiritual. É também um tema que está de acordo com o que diz a autora quanto às escolas indígenas propiciarem além de experiências e de vivências concretas de interculturalidade, uma vez que tratam da questão econômica e da formação política.

7. A CONFIGURAÇÃO DA DEMANDA FORMATIVA DECORRENTE DA DOCÊNCIA EM QUÍMICA

A demanda apresentada pelos professores suscitou outra dimensão relacionada com a responsabilidade curricular em atender aos conteúdos e metodologias adequadas. Sendo essa uma dimensão que já estava valorizada pelos professores, de modo que podemos ler quando retornamos ao trecho: “(...) balanceamento de equações de oxirredução; (...) seria muito melhor se tivéssemos um laboratório de química para fazer experiências”.

No entanto, consideramos relevante inserir uma informação pertinente para nossa interpretação relacionada a presença, na formação, de uma dimensão temática denominada “Terra como princípio educativo”, que problematiza a organização e criação de um currículo pertinente para as escolas envolvidas. Em um primeiro plano, ao contar com todo esse conjunto de conteúdo programático e também com esse tema, a formação realizada esteve voltada para a compreensão dos conceitos que envolvem a noção de oxidação, com os quais a Química explica diversos processos e eventos que rodeiam e envolvem a humanidade.

Diante desse conteúdo e tema, consideramos a possibilidade de avanços curriculares nas escolas envolvidas. Goodson (2013) apresenta que os estudos históricos das matérias secundárias, ainda que seus estudos sejam do currículo britânico, revelam uma mudança constante nos currículos. Mudanças que partem da marginalidade de status inferior no currículo, passando por um estágio utilitário e, finalmente, alcançando uma definição da matéria com a disciplina científica, caracterizam mudanças que resultam na criação de um currículo escrito, ainda que em uma frase. Assim, são conhecidas experiências de reforma de currículo que podem ser de “baixo para cima”, porque se pode constatar uma matriz educacional com uma série de combinações curriculares possíveis.

Também é Goodson (2013, p.91) quem alerta para as conexões conceituais que podem estar mais relacionadas com a complexidade de cada período histórico, neste sentido, a partir de 1850, no caso da Inglaterra, mas que rumou posteriormente para o litoral norte-americano, “a matéria de ciências, que fora pensada como coisa prática e pedagógica, acabou assim uma ‘pura ciência de laboratório’”. Lopes (2007, p.190) lembra que há quem responda a uma diferenciação dos saberes científicos dos saberes cotidianos, tendo o conhecimento experimental como caraterística central: “Segundo essa perspectiva, é na experimentação, na análise de dados empíricos, na verificação e/ou comprovação experimental de ideias cientificas, (que se encontra) o fundamento epistemológico das ações dos cientistas.”

Tendo toda essa base teórica como orientação, em respostas à demanda formativa, foi elaborado um curso de curta duração, que foi oferecido como Extensão Universitária, intitulado: “Transformações químicas e seus cálculos”. Segundo Lopes (2007, p. 99), a busca pela formulação de leis gerais levou a Ciência a conceitos invariantes a partir da observação de fenômenos naturais e do estabelecimento de um conjunto racional de conceitos científicos que seguem as diretrizes do método científico e isso se repete no ensino das Ciências da Natureza, o que “não deixou de ser um avanço na medida em que permitiu um questionamento a concepções empírico-dedutivas dominantes no ensino de ciências”. Acrescentamos que foi um avanço parcial, por não atender a complexidade da ciência no século XX, e ser uma ideia de risco se aliada a concepções epistemológicas a-históricas que separam as ciências naturais das relações sociais. Sendo assim, argumenta-se que a docência na escola indígena, no sentido de uma formação pertinente na contemporaneidade, exigiu tanto uma abordagem interdisciplinar com a utilização de temas geradores, tal como: “Ciclos Biogeoquímicos”, quanto um confronto de diferentes matrizes de conhecimento.

Naquilo que se refere ao entrelaçamento de experiências na formação desses professores da Educação Básica, na luta pela terra, o tema “Terra como Princípio Educativo”, propiciou pensar em aspectos contra hegemônicos na possiblidade de subversão ao esperado para o conhecimento químico escolar tradicional. Neste contexto, buscamos um planejamento problematizado e contextualizado pelos processos oxidativos, mais amplos relacionados com toda a constituição planetária que abarca a humanidade. Assim, é inclusive uma forma de trazer a noção de epistemologia da Química, que por sua vez abarca a própria ideia de produção de conhecimento, modos de compreensão, teorias, modelos, representações, explicações, predições, enunciados acerca de eventos, de processos naturais e culturais decorrentes de estruturas e de interações de sistemas naturais e culturais. Processos oxidativos dizem respeito à alimentação, à manipulação, ao cultivo, ao manejo de alimentos, de biodiversidade, de animais e de vegetais. Diz respeito à higiene, à sanitização e aos cuidados com a saúde.

Assim, entendemos atender ao compromisso curricular de abarcar uma seleção de conteúdos científicos e questionar um currículo desarticulado, que coloca em polos desconexos o conteúdo químico e o que ocorre no dia a dia dos professores. Sobretudo, pensa-se em problematizar a capacidade tanto de valorizar os aspectos fenomenológicos e atômico-molecular, quanto questionar o caráter essencialmente isolado dos compostos e dos sistemas, e os processos reversíveis. Na contemporaneidade se aprende a tratar dos sistemas complexos (PRIGOGINE, 2002). A complexidade articula princípios fundamentais, de organização e de processo, capazes de rebater aqueles da ciência clássica como separação, isolamento e redução, que vinculados ao princípio da determinação universal são usados para simplificar os sistemas complexos. Pensar complexo pressupõe analisar evoluções múltiplas e divergentes, justificando as modelizações de sistemas complexos, a partir de uma escolha de parâmetros solicitados ao sistema (PRIGOGINE; STENGERS, 1984).

Considerando que é “preciso reconhecer que a inclusão ou exclusão no currículo tem conexões com a inclusão ou exclusão na sociedade” (SILVA, 2013, p.10), assim, argumentamos que para além da inclusão de balanceamento de processos oxidativos, experiências e laboratórios, na perspectiva de uma abordagem de cunho hegemônico. Pensa-se em uma Química com capacidade de, por exemplo, análise química, com potencial contra hegemônico, capaz de contribuir com as decisões de convivência entre os seres humanos, e outros seres do Planeta, de caráter local e de possibilidades globais.

O tema da Terra também suscita as demandas de manutenção das vidas e uma característica crescente da sociedade atual, que remete à Ciência e Tecnologia a solução de problemas diários. Neste sentido, do ponto de vista da ciência clássica ocidental, as soluções passam por explicações químicas. No entanto, não é somente a ciência que produz conhecimento. Viver exige conhecimentos de diversas origens. Assim se compreende ser relevante uma formação continuada configurada a partir dos seguintes preceitos: i) compreender que há múltiplas racionalidades de relação humana com a natureza; ii) a ciência é uma dessas racionalidades; iii) os saberes e práticas culturais de populações tradicionais revelam outras racionalidades; iv) não há superioridade de nenhuma sobre a outra; v) não há obrigatoriedade de uma se converter na outra.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso envolvimento com essa demanda formativa por conhecimentos químicos nos levou a compreender melhor a viabilidade da produção curricular, assim como nos possibilitou chegar a posicionamentos contra as abordagens hegemônicas, levando a perceber o relacionamento global e local no âmbito do currículo escolar e deste modo fortalecer os estudos que se posicionam de modo contra hegemônico. É possível pensar as políticas curriculares, nas quais os conceitos curriculares, formação de professores, cultura e disciplina escolar se inter-relacionam. Dessa forma, compartilhamos da compreensão de que é “preciso que se desenvolvam pesquisas em política curricular capazes de identificar, por meio da tradução de forças culturais, itinerários contra hegemônicos que estejam ocorrendo em espaços locais e em experiências históricas distintas” (OLIVEIRA; DESTRO, 2005, p.145).

Juntamente com Goodson (2013) reconhecemos uma vinculação com formas prévias de reprodução, ainda que estas se tornam criadoras de novas formas, mas também reconhecemos que é da formulação de currículo escrito, em diversos campos e níveis, que vem a compreensão da relação interativa em sala de aula. Também nos juntamos a Giroux (1997, p.161) para defender que é: “importante enfatizar que os professores devem assumir responsabilidade ativa pelo levantamento de questões sérias acerca do que ensinam, como devem ensinar, e quais são as metas mais amplas pelas quais estão lutando.”

Neste sentido, pressupomos a relevância de pensar na complexidade das implicações da relação local/global e, de adotar a política de cultura presente na constituição de currículos, nos princípios e na seleção de conteúdo para a formação de professores. O estudo da trajetória histórica e das experiências formativas dos professores que deram origem à demanda formativa, estudada neste trabalho, leva a identificação de abordagens hegemônicas das políticas de currículo, mas também aponta para dimensões que envolvem desde adesão voluntária, processos individuais e coletivos de estudo, ou seja, nos indica outros aspectos oriundos de diversos processos vinculados a formação continuada precedente que consideramos contra hegemônicos. Por isso, defendemos que é possível trabalhar dentro de uma nova perspectiva de elaboração e de prática das políticas de currículo, considerando a modificação de uma dinâmica de currículo, para o reconhecimento da atuação dos professores e das escolas na concepção de currículos.

Já o estudo daquilo que envolve a disciplina escolar Química nos levou tanto aos conceitos dos processos de oxidação, quanto ao reconhecimento das discussões das diferentes matrizes de conhecimentos e de diferenças epistemológicas presentes em propostas curriculares. Isso apontou aspectos contra hegemônicos no sentido de subversão ao esperado para o conhecimento químico escolar tradicional. Também nos alertou para um risco crescente, que se refere à consolidação da hegemonia científica na produção de conhecimento e como isso tem gerado dependência tecnológica, bem como levou a considerar o risco da exclusão do controle coletivo nas tomadas de decisão diante da vida e seus conhecimentos inerentes.

Por tudo isso, reconhecemos a necessidade de defender a capacidade explicativa dos conhecimentos produzidos no interior das práticas tradicionais de manutenção da vida. Sobretudo, entendemos que tanto a ciência é influenciada por fatores sociais quanto os conhecimentos tradicionais e populares são, crescentemente, influenciados pelos conhecimentos científicos. Neste sentido, como autores deste estudo nos inserimos entre aqueles que defendem que todo conhecimento local é uma forma de ver o mundo, e está carregado com a teoria (ampla) e com as razões da sociedade civilizatória.

Sobretudo, problematizados por tais dimensões, afirmamos a importância da abordagem cultural de currículo no sentido de ressignificar uma formação conjunta e reconceituar o papel dos conhecimentos em um currículo. Assim, a abordagem cultural se faz importante para a escola já que possibilita levantar informações sobre como este é compreendido e transforma a realidade escolar local e global e, em especial, dá sentido as relações entre os conhecimentos populares e científicos com o mundo, que partem do interior da escola.

Material suplementar
REFERÊNCIAS
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