Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


A RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS DE ARITMÉTICA NO EMBATE ENTRE CATÓLICOS E LIBERAIS
SOLVING ARITHMETIC PROBLEMS IN THE DISPUTE BETWEEN CATHOLICS AND LIBERALS
REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, vol.. 2, núm. 1, 2014
Universidade Federal de Mato Grosso

Artigos

REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
ISSN-e: 2318-6674
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 2, núm. 1, 2014

Os direitos autorais são mantidos pelos autores, os quais concedem à Revista REAMEC –Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática -os direitos exclusivos de primeira publicação. Os autores não serão remunerados pela publicação de trabalhos neste periódico. Os autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalho publicada neste periódico (ex.: publicar em repositório institucional, em site pessoal, publicar uma tradução, ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial neste periódico. Os editores da Revista têm o direito de proceder a ajustes textuais e de adequação às normas da publicação.

Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: Este texto discute o papel dos Problemas e as finalidades de sua resolução, no ensino de aritmética, nas práticas escolares das décadas de 1930 e 1940, período em que diversos grupos de intelectuais debatiam os novos rumos a serem propostos para a educação. A metodologia utilizou-se do ferramental teórico-metodológico construído por historiadores, sobretudo, da história cultural, principalmente, os conceitos de representação, prática e apropriação propostos por Roger Chartier e estratégias e táticas, apresentados por Michel De Certeau. Aponta-se, como resultados, para uma representação construída, principalmente, a partir das defesas de intelectuais ligados ao movimento que ficou conhecido como ―Escola Nova‖, das características de um Bom Problema, que deveriam ser reais, úteis e interessantes ao aluno, e que sobrepujaram outras propostas, em um cenário de embate entre grupos antagônicos pelo monopólio do signo do Novo.

Palavras-chave: Resolução de Problemas, Aritmética, História da educação matemática, Educadores Católicos, Liberais escolanovistas.

Abstract: This paper discusses the target of the Problems and goals of its resolution, in arithmetic teaching, in school practices from the 1930s to the 1940s, a period in which various groups of intellectuals debated the new directions to be proposed for education. We used the methodology based on the theoretical and methodological tools built by historians, especially by cultural historians, mainly considering the concepts of representation, practice and appropriation proposed by Roger Chartier and strategies and tactics, presented by Michel De Certeau. The results indicate a representation constructed mainly from the defenses of intellectuals linked to the movement known as "New School", of the characteristics of a Good Problem, that need to be real, useful and interesting to the student, which surpassed other proposals, in a scenario of dispute between competing groups by monopoly of the sign of the New.

Keywords: Solving arithmetic Problems, Arithmetic, History of mathematics education, Catholic Educators, New School Movement‘ liberals.

1. INTRODUÇÃO

A partir de 1920, o cenário educacional brasileiro apresentava a ―decepção‖ da população com o estado da arte da educação no país, passadas quatro décadas do início do governo republicano, que se contrapôs ao atraso da educação no regime monárquico, haja vista a frase do presidente honorário da Associação Brasileira de Educação, Miguel Couto (apud MONARCHA, 2009, p. 107), em 1927: ―No Brasil só há um problema Nacional: a educação do povo‖. Representantes de diversos grupos apresentaram-se ao debate com vistas a discutir e promover suas ideias acerca dos novos rumos que deveriam ser dados à educação no Brasil.

Um desses grupos estava diretamente ligado à igreja Católica. Outro grupo ficou conhecido como ―escolanovistas‖, em razão da defesa de um ideário chamado de Escola Nova. Carvalho (2004, p. 92) aponta o descontentamento em relação aos progressos educacionais prometidos pelos republicanos como fator preponderante para a mobilização dos educadores que estaria trazendo ―à cena a geração dos chamados Pioneiros da Educação Nova e rearticulando grupos católicos como seus adversários‖. Para esta autora seriam os debates e as iniciativas educacionais oriundas do embate entre católicos e liberais (os escolanovistas) que deram visibilidade as novas idéias e as novas práticas pedagógicas disseminadas na Europa e nos Estados Unidos. Defende ainda que ―é necessário analisar as estratégias editoriais dos dois grupos que, no período 1931-1935, foram antagonistas em torno do tema escola nova – os católicos e os chamados Pioneiros da Educação Nova‖ (CARVALHO, ibidem, p. 94). Assim, consideramos que, no contexto descrito, os manuais de ensino tornaram-se importantes estratégias editoriais que visavam disseminar as ideias de cada grupo sobre como deveriam ser as práticas educacionais. Os católicos refutavam aspectos defendidos pelos liberais, sobretudo a necessidade de laicidade do Estado e das práticas pedagógicas, e assumiam a defesa de modelos já instituídos na educação, a partir da Proclamação da República. Um dos principais líderes do grupo católico foi Everardo Backheuser, autor do manual ―Aritmética na ‗Escola Nova‘‖, que discutimos neste artigo.

A historiadora Rosa Fátima de Souza (2009, p. 27) analisa o ―Inquérito sobre a situação do ensino primário e suas necessidades‖, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 1914, para o qual, diversos profissionais da educação foram convidados. Apesar de divergirem sobre os problemas e soluções, todos foram unânimes em assinalar as primeiras reformas republicanas da instrução pública como marco inaugural da educação no estado de São Paulo, contrapondo-se ao atraso da educação no regime monárquico.

Segundo Carvalho (2000a), assim que a República é proclamada, o Estado de São Paulo investe na organização de um sistema educacional que a autora denomina ―ensino modelar‖, no aspecto da lógica da institucionalização e na força exemplar que passa a exercer na remodelação escolar de outros estados. Essa proposta educacional instituída em São Paulo é designada por Carvalho como ―Pedagogia Moderna‖, adota o método de ensino intuitivo[3] e fundamenta-se na chamada Teoria da Disciplina Mental. De acordo com Santos (2006, p. 127), essa teoria defendia que a mente seria uma coleção de potencialidades – a observação, atenção, memória, raciocínio, exatidão, concentração – e que elas poderiam ser fornecidas a partir de certos conteúdos e pode ser associada à metáfora da mente como músculos do corpo podem ser fortalecidos por meio de exercícios físicos, pela ―ginástica mental‖.

Um dos intelectuais que questionaram a possibilidade de transferência direta entre diversas lições ensinadas e o desenvolvimento de potencialidades foi Edward Lee Thorndike[4]. Para ele a aprendizagem de algum conteúdo, por si só, não seria suficiente para desenvolver toda uma gama de capacidades intrínsecas. Santos (2006) afirma que Thorndike, foi um dos precursores do combate à ―Teoria da Disciplina Mental‖ em favor de uma teoria em que a criança aprenderia por meio de conexões que estabeleceria entre o que já sabe, de sua experiência de vida, e os novos conhecimentos a serem adquiridos. Thorndike discordava dos métodos de ensino propostos sob a égide do simples benefício mental e se apoiou nos processos de seleção, elaboração e resolução de Problemas[5] para colocar em debate sua teoria. Inferimos que, ao também criticar a Teoria da Disciplina Mental, os defensores do ideário pedagógico da Escola Nova se aproximaram da proposta de Thorndike para o ensino de aritmética e, por consequência, acerca da resolução de Problemas.

2. REFERENCIAIS TEÓRICOS

As pesquisas vinculadas ao GHEMAT[6] consideram ―a história da educação matemática um tema dos estudos históricos, uma especificidade da história da educação‖ (VALENTE, 2013, p. 24), o que justifica a necessidade de apropriar-se e fazer uso do ferramental teórico-metodológico elaborado por historiadores para a escrita da História, mais especificamente, da História Cultural.

A História Cultural, como operação historiográfica, trata de organizar em uma narrativa histórica, construída a partir das interrogações às fontes, as relações entre o real e o discurso. Sua busca, segundo Chartier (2002, p.17) é ―identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler‖. Considerando que não é possível reviver esses ―diferentes lugares e momentos‖ a que Chartier se refere, faz-se necessário reconhecer a historiografia como uma representação do passado. Assim o conceito de ―representação‖ torna-se a altamente relevante para a construção dessa historiografia e traz consigo outro conceito de grande relevância para a história cultural: Prática.

Para Chartier (2002, p. 23) as práticas ―visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição‖. Assim o cotidiano, as atividades, as formas de pensar e agir dos professores e alunos, em aulas de aritmética, de maneira especial para essa pesquisa, em diferentes tempos constituem exemplos de práticas. Tais práticas chegam aos nossos dias representadas por documentos que trazem indícios de como elas ocorreram.

A razão para fazer do conceito de representação a pedra angular da produção historiográfica fundamentada na História Cultural é que este conceito permite articular a forma como a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos, as práticas que caracterizaram essa realidade e as formas como uns ―representantes‖ marcaram de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade (CHARTIER, 2002, p. 23).

Com isso, inferimos que, como não podemos observar as práticas escolares do passado, temos então que analisar os documentos que chegaram aos nossos dias e que indiciam tais práticas a fim de construir uma representação sobre elas. No caso deste artigo os documentos analisados foram dois manuais para o ensino de aritmética publicados no Brasil na década de 1930, que possibilitaram uma apropriação das propostas dos autores no contexto social e cultural daquele período.

Surge aqui mais um conceito importante: apropriação. Para Chartier a apropriação ―tem por objectivo uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas especificas que as produzem‖. Ele salienta ainda que a noção de apropriação deve ser ―colocada no centro de uma abordagem de história cultural que se prende com práticas diferenciadas, com utilizações contrastadas‖ (CHARTIER, 2002, p. 26).

As noções de Prática, Representação e Apropriação constituem, assim, a base para a pesquisa que se propõe a contribuir com a construção de conhecimento histórico cultural.

Outros dois conceitos relevantes para alcançar o objetivo desta análise foram as noções de estratégias e táticas propostas por Michel De Certeau. Na visão de De Certeau (1989) há uma correlação entre o que se deve compreender como estratégia e relações de poder. Inferimos que por estratégias entendem-se as relações utilizadas pelo sujeito para alcançar dados objetivos, fruto de seu querer. Concretamente, para este texto, os manuais para o ensino de aritmética publicados por lideranças dos grupos que discutiam as propostas a serem colocadas em prática no ambiente escolar, seriam estratégias de disseminação do ideário de cada grupo e crítica aos grupos concorrentes.

Para De Certeau, em razão da estratégia, pode-se definir as táticas. Para ele, ―tática é a arte do fraco‖ (DE CERTEAU, 1998, p. 101). Enquanto a estratégia é expressão da relação de poder a tática é a resposta do fraco a esta expressão.

Consideramos os conceitos de táticas e estratégias, propostos por De Certeau, importantes a análise, porque eles contribuem para compreender as representações das práticas que chegam a nós. Permite-nos, em nossos questionamentos, indagar qual era o lugar dos autores dos manuais no contexto social e cultural, compreendendo as relações existentes e, a partir daí, construir uma representação, tendo como base a noção de cultura ―que aponta as práticas comuns através das quais uma sociedade ou indivíduo vivem e refletem sobre sua relação com o mundo, com os outros e com ele mesmo‖ (CHARTIER, 2009, p. 34).

3. MATERIAIS E MÉTODOS

Este artigo apresenta resultados obtidos a partir da dissertação de mestrado intitulada ―A resolução de Problemas de aritmética no Ensino Primário: um estudo das mudanças no ideário pedagógico (1920-1940)‖ defendida em 2014, junto Programa de Pós-graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da Universidade Federal de São Paulo, e integrada ao projeto de pesquisa ―História da matemática escolar no curso primário: a tabuada e a resolução de Problemas no ensino da aritmética‖[7] que tem por objetivo analisar, em perspectiva histórica, a presença da tabuada e da resolução de Problemas no ensino de aritmética para o curso primário no Brasil, no período compreendido entre 1890-1970. A pesquisa teve como objetivo identificar quais eram as características e finalidades da utilização dos Problemas no ensino de aritmética na escola primária, no estado de São Paulo, entre as décadas de 1920 e 1940, e quais as transformações sofridas por estes Problemas a partir das mudanças oriundas das diferentes propostas didático-pedagógicas para o ensino. As fontes de pesquisa analisadas foram manuais para o ensino de aritmética e artigos publicados em Revistas Pedagógicas que estiveram em circulação durante o período que abarcou a pesquisa, a fim de verificar quais apropriações, acerca da resolução de Problemas, deste ou daquele ideário pedagógico, fizeram-se presentes naqueles periódicos.

Neste artigo destacamos dois desses manuais para o ensino de aritmética que estiveram em circulação no período, com o objetivo de tecer considerações comparativas entre ambos e destes com as propostas pedagógicas que estavam em pauta no estado de São Paulo. Um desses manuais foi escrito em 1921 pelo psicólogo norte-americano Edward Lee Thorndike e intitulado ―The new methods in Arithmetic‖, com o intuito de ―colocar em circulação mais um dispositivo de treinamento e formação, tanto do professor em exercício quanto do estudante da normal school, tornando-os potenciais difusores do padrão pedagógico que estava constituindo para o ensino de Aritmética‖ (SANTOS, 2006, p. 123), sendo traduzido em 1936 para o português do Brasil sob o título de ―A nova metodologia da aritmética‖. Outro manual foi ―Aritmética na ‗Escola Nova‘‖, de autoria de Everardo Backheuser, publicado em 1933 e republicado com o título ―Como se ensina aritmética‖, em 1946.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

4.1. O MANUAL DE EDWARD LEE THORNDIKE E A RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS.

Edward Lee Thorndike (1874-1949) foi um importante psicólogo norte-americano – segundo Santos (2006), ele poderia também ser considerado um ―educador matemático‖ em razão da importância de suas contribuições para o ensino de Aritmética, Álgebra e Geometria – e um defensor das provas experimentais e da importância dos pequenos detalhes dos processos de aprendizagem, a partir dos quais estabeleceu leis de aprendizagem contribuições tanto para a Psicologia quanto para a Educação (SANTOS, 2006, p. 2).

Em seu manual defendia que ―todo Problema deve, de preferência, versar sôbre situações que apresentem toda a probabilidade de ocorrer muitas vezes na vida real‖ (THORNDIKE, 1936, p. 135) pois, dessa maneira, haveria uma maior possibilidade de o estudante estabelecer uma conexão entre o que se deseja ensinar, a partir do Problema, e o que este já sabe para assim, construir uma nova aprendizagem.


Figura 1
Capas do Manual de Edward Lee Thorndike
Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisas em História da Educação Matemática no Brasil – GHEMAT

No capítulo I Thorndike sentencia que ―os velhos métodos ensinavam a aritmética pela própria aritmética, sem consideração às necessidades da vida. Os novos métodos põem em relevo os processos que a vida exige e os Problemas que ela oferece‖ (THORNDIKE, 1936, p. 13). Assim, nota-se a defesa por um ensino utilitário de aritmética e, por consequência, da resolução de Problemas, como ferramentas de preparação para a vida cotidiana. Por ―velhos métodos‖ inferimos que Thorndike refere-se à prática de utilizar Problemas como mero exercício mental, numa crítica velada à Teoria da Disciplina Mental. Para ele não parece ser suficiente utilizar Problemas apenas como exercício para desenvolver a capacidade de aplicar o que se observou em sala de aula. Ainda que Thorndike reconhecesse que Problemas fossem um dos melhores testes de inteligência desenvolvido por psicologistas[8], ele defendia que ―se nos dermos algum trabalho e tivermos algum engenho, não será difícil encontrar grande cópia de Problemas que, ao mesmo tempo exercitem convenientemente as aptidões mentais e contribuam para preparar a criança de modo mais completo e direto para as necessidades da vida‖ (THORNDIKE, 1936, p. 153).

Thorndike discordava dos métodos de ensino propostos sob a égide do simples benefício mental e se apoiou nos processos de seleção, elaboração e resolução de Problemas para colocar em debate sua teoria. Em busca de romper com as práticas que classificava como ―velhos métodos‖, como a Teoria da Disciplina Mental, por exemplo, Thorndike passou a incentivar mudanças significativas nos conteúdos e metodologias a serem adotados, seguindo, fundamentalmente, os preceitos de autonomia e liberdade, propondo Problemas ligados à realidade. Os ―novos métodos‖ propostos pelo autor buscavam aprimorar ou excluir aspectos educacionais que, segundo sua ideologia, não contribuíam, ou contribuíam pouco, com a tarefa de educar os alunos. Um desses aspectos criticados era a procura pela uniformização dos conteúdos e da maneira como tais conteúdos deveriam ser ensinados, assumindo que cada criança, centro do processo educativo, aprendia no próprio ritmo e segundo suas capacidades. Defendia que ―todo Problema deve, de preferência, versar sôbre situações que apresentem toda a probabilidade de ocorrer muitas vezes na vida real‖ THORNDIKE, 1936, p. 153) uma vez que, dessa maneira, haveria uma maior possibilidade de o estudante estabelecer uma conexão entre o que se desejava ensinar, a partir do Problema, e o que este já sabia, para, assim, construir uma nova aprendizagem. A nova teoria proposta por Thorndike foi denominada Teoria do Conexionismo. Essa teoria defendia que seria fundamental que

[...] os enunciados dos Problemas ou das atividades desenvolvidas pelo aluno contivessem ‗elementos idênticos‘ a situações que acontecessem fora do ambiente escolar. Era a presença de elementos idênticos que, segundo Thorndike (1905, 1913), garantiria que uma conexão fosse estabelecida e a aprendizagem ocorresse, pois para o autor aprendizagem é conexão (SANTOS, 2006, p. 137).

A ideia de conexão da realidade com a vida escolar do estudante, bem como a de que os Problemas deviam colocar o aluno em atividade para resolvê-lo, que despertassem o interesse do aluno por sua identificação com a situação descrita, constituiriam a tônica da proposta de Thorndike para a resolução de Problemas. Os professores de até o início do século XX acreditavam que a aritmética tinha a finalidade, quase que exclusiva, de ensinar a somar, subtrair, multiplicar e dividir e utilizavam valores elevados ou com muitas casas decimais com finalidade quase que exclusiva de complicar um Problema, o que seria absurdo por ser dissociado da realidade do aluno (THORNDIKE, 1936).

Vale destacar que a dissertação de mestrado de Oliveira Marques[9] (2013, p. 124) analisou o manual traduzido de Thorndike e concluiu que o referido autor teria sido ―lido e apropriado pelos demais autores [de outros manuais]‖ – no que diz respeito ao ensino de aritmética e, em especial, acerca da resolução de Problemas. Considerou ainda que ―o teórico norte-americano parece ter se constituído na referência principal da organização de um novo modo de pensar o ensino de matemática para crianças‖ (OLIVEIRA MARQUES, 2013, p. 124).

Antes de Thorndike esboçar a suas concepções sobre o papel que os Problemas devem cumprir no ensino de aritmética, o autor tece considerações sobre como eles eram abordados e desenvolvidos nas práticas de professores de até então. Problemas como: ―Há 9 nozes em um pint. Quantos pints haverá em um monte de 6.789.582 nozes?‖ (THORNDIKE, 1936, p. 12) seria considerado adequado por professores de períodos anteriores, entretanto, tais Problemas ―em situação real, só poderão aparecer num hospital de alienados‖ (idem, ibidem, p. 14). Outro exemplo é apresentado sob uma perspectiva crítica: ―Gastei 2/3 do que possuía, com uma espingarda e a metade com uma barraca. Fiquei com $12. Quanto tinha?‖ (THORNDIKE, 1936, p. 15). A crítica é baseada no fato de que, na vida real, ninguém é levado a verificar quanto dinheiro tinha antes de comprar algo, sabendo ter gasto dois terços em uma coisa e metade em outra, sem realmente saber quanto tinha inicialmente. A crítica, em suma, é direcionada à artificialidade do Problema. Ainda que tal situação pudesse servir ao objetivo de aplicar as lições sobre frações aprendidas em sala de aula, a artificialidade do Problema não poderia conduzir, segundo as concepções de Thorndike, a uma aprendizagem.

Outra situação discutida: ―Um agricultor comprou 160 mudas de pessegueiro, que plantou em renques de 24 mudas. Quantos renques foram plantados e quantas mudas sobraram?‖ (THORNDIKE, 1936, p. 15). O autor, ao discutir a resposta que se espera do aluno com esse Problema (6 renques e 16 mudas, respectivamente), tece considerações de que seria perfeitamente possível que esse agricultor plantasse as 16 mudas que ―sobraram‖ numa fileira incompleta (e assim não restaria nenhuma muda), ou ainda, que esse agricultor, que pretendia plantar renques com 24 mudas cada, não compraria 160, mas sim um número de mudas que pudesse ser igualmente dividido entre os renques.

Thorndike não somente aponta as críticas, mas propõe uma maneira de reelaborar o Problema a fim de que ele se torne útil, e mais próximo da situação como ela se apresentaria numa situação real, de acordo com os objetivos propostos: ―Um agricultor possuía 150 mudas de pessegueiro. Pensou em plantá-las em filas de 24 mudas. Calculou quantas filas poderia obter assim. Então, pôs de lado as mudas mais feias e fracas para que não fossem utilizadas na formação de fileiras completas. Quantas mudas ficaram de lado?‖. Nesta reformulação o autor propõe uma aproximação entre o Problema e a situação como ela, segundo sua concepção, se aproximaria da realidade, sugerindo que um agricultor, numa situação real, se preocuparia com igual quantidade de mudas em cada fileira bem como em eliminar aquelas mudas que poderiam, no futuro, não produzir bons frutos.

Os novos métodos, propostos por Thorndike, contribuiram para a construção de uma nova representação do que seriam Bons Problemas. A proposta considera os padrões para escolha dos Problemas segundo quatro critérios principais, a saber:

(1) versar sôbre situações que apresentam toda a probabilidade de ocorrer muitas vezes na vida real; (2) tratá-las do modo por que o seriam na vida prática; (3) apresentá-las sob uma feição nem muito mais difícil, nem muito mais fácil de entender do que seriam se a própria realidade as apresentasse aos sentidos do aluno; (4) despertar, de certo modo, o mesmo grau de interêsse que acompanha a resolução de Problemas que se lhe deparam no curso real de suas ocupações. (THORNDIKE, 1936, p. 154)

Todavia o autor faz questão de frisar que são admitidos afastamentos desses critérios em prol da adaptação dos Problemas às características de cada classe, em alusão à autonomia e respeito ao ritmo de aprendizagem das crianças, que eram aspectos primordialmente defendidos pelos defensores das novas ideias. Para Thorndike, a grande dificuldade dos alunos para aprender a resolver Problemas (e dos professores para ensinar) era devida ao divórcio entre as situações utilizadas nos Problemas e as situações da vida real. Dessa maneira, os novos métodos procurariam oferecer situações reais que pudessem conduzir, de alguma forma, o aluno a se identificar com a pessoa do Problema ou, onde isso é impossível, pelo menos identificá-lo com os métodos utilizados (se determinada situação estivesse fora do campo de visão do aluno, os métodos que ele utilizaria para resolver tal Problema não estariam). Os novos métodos deveriam ainda utilizar Problemas sem dificuldade de vocabulário ou que não configurassem situações fora da realidade dos alunos.

Tudo indica que a Teoria da Disciplina Mental balizava as concepções escolares e fundamentava o método de ensino, chamado, intuitivo, que por sua vez, preconizava a observação e imitação de bons modelos como método para o desenvolvimento das faculdades mentais, conforme Carvalho (2000b). Nessa concepção o papel da resolução de Problemas era o de recurso, ou seja, aplicação e/ou fixação de conteúdos estudados. O Problema seria a finalidade da aprendizagem, em outras palavras, quando o aluno resolvesse satisfatoriamente o Problema poder-se-ia considerar que havia aprendido todo o processo anterior. Assim, o ―Bom Problema‖, na concepção do método de ensino intuitivo, seria aquele que servisse ao propósito de aferir o quanto de determinada lição o aluno teria aprendido e seria capaz de reproduzir, de maneira a demonstrar domínio da lição e, principalmente, desenvolvimento das faculdades mentais relacionadas ao conhecimento.

No combate a essa concepção, de que a aprendizagem se desse, exclusivamente, por meio de exercícios que desenvolvessem as capacidades (potencialidades) mentais, Thorndike propõe a necessidade de que os conteúdos tivessem relação com o que a criança já conhecesse, para que ela pudesse realizar a conexão entre esses fatores (o que já conhece e o que se deseja ensinar). Com isso, a resolução de Problemas ganharia um novo papel em relação ao ensino de aritmética. O Bom Problema passaria a ser aquele que tratasse de situações que apresentassem boa probabilidade de ocorrer na vida real e na prática, apresentando-se sob uma feição nem muito mais difícil, nem muito mais fácil de entender do que seriam na realidade e despertando o mesmo grau de interesse de uma situação real. Não seria mais primordial que o professor treinasse, previamente, a criança nos cálculos que esta aplicaria depois nos Problemas, uma vez que os Problemas se relacionariam com situações reais, do interesse da criança, onde ela deveria dispor daquilo que já conhecia em busca da resolução do Problema proposto e, a partir dai, contando com a intervenção do professor, chegaria a um novo conhecimento.

Desta forma, a partir das concepções apresentadas por Thorndike e apropriadas por intelectuais ligados ao movimento escolanovista, os Problemas passaram a ser considerados não apenas como recurso de aplicação de modelos ensinados previamente, mas assumiram a característica de método para o ensino de aritmética.

4.2. O MANUAL DE EVERARDO BACKHEUSER E A RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS.

Everardo Backheuser (1879-1951) é considerado um impotante líder católico nas décadas de 1930 e 1940. Convertido ao catolicismo em 1928, por ocasião da morte de sua esposa, Backheuser foi, segundo Ghiraldelli Jr. (2001), professor da Politécnica e autor de vários livros e manuais. Foi, também, organizador e diretor do Museu Pedagógico no Distrito Federal[10], cargo ocupado a convite de Fernando de Azevedo, um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. Neste museu, Backheuser organizou a ―Cruzada pedagógica pela Escola Nova‖. Foi, também, o primeiro presidente da Confederação Católica Brasileira de Educação.

Backheuser, segundo Cunha (2000, p. 34), era defensor de uma educação fundamentada nos preceitos da religião católica, mas com uma apropriação das ―boas práticas‖ da ciência, assim entendidas como aquelas que não ferissem as premissas do catolicismo. Desta forma, ele tornou-se uma ―terceira via entre o tradicionalismo e o ideário da educação nova‖ (GHIRALDELLI JR., 2001, p. 52), ou seja, naquilo que o ideário da Escola Nova contrariava os preceitos da religião católica, Backheuser tecia críticas e naquilo em que propostas escolanovistas e doutrina religiosa não divergiam, o autor apontava potencialidades. Backheuser defendia uma educação que buscava ―beber da fonte da ciência e ainda assim cuidar de não se contaminar em suas águas‖ (CUNHA, 2000, p. 36).

Em 1933, Backheuser publica pela livraria católica o manual ―Aritmética na ‗Escola Nova‘‖ e em 1946 o manual ―Como se ensina aritmética‖, desta vez pela Livraria do Globo, considerado, essencialmente, o mesmo publicado no início da década anterior. O que teria levado Backheuser a alterar o título da obra, na segunda publicação? Ao intitular sua publicação de 1933 como Aritmética ―na‖ Escola Nova, ao invés de, por exemplo, Aritmética ―da‖ Escola Nova, Backheuser estaria apontando para sua representação distinta de ―escola nova‖, em pleno período de efevercência da vaga pedagógica e ainda reforçada pela presença das aspas no termo ―Escola Nova‖ no título. Ou seja, a estratégia de Backheuser consistiria em defender sua proposta como ―novidade para a escola‖ sem, no entanto, vinculá-la estritamente ao movimento renovador que defendia, entre outras coisas, a laicidade, mas com a possibilidade de concorrer pelos mesmos lugares e leitores.


Figura 2
Capa dos manuais de Everardo Backheuser.
Fontes: à esquerda: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/116434; à direita: livro próprio

Em relação ao ensino de aritmética e à resolução de Problemas as considerações do manual escrito por Backheuser seriam, em consonância com a estratégia adotada por ele, crítica a alguns aspectos, que ele considerava exagerados, e defesa de outros, que ele julgava adequados. A despeito do que indicavam as concepções da Escola Nova, por exemplo, ele propõe que, para crianças das duas séries iniciais da escola primária ―há necessidade de ser o ensino de caráter concreto (intuitivo) e dado ‗de autoridade‘ (isto é, sem permitir discussão por parte do aluno)‖. Para ele ―não é possível, no ensino de aritmética, deixar de parte nem o lado intuitivo, nem a memorização, nem o raciocínio, nem o sentido prático da vida‖ (BACKHEUSER, 1933, p. 106; 1946, p. 103)[11]. Essa afirmação compactua com a proposta pragmática, da Escola Nova, de vincular o ensino escolar à necessidade de raciocinar e à vida prática do aluno, ao mesmo tempo em que vai de encontro à recorrência excessiva ao uso da memória e da observação, defendidas no método intuitivo.

Especificamente sobre a resolução de Problemas, Backheuser tece muitas considerações e, entre elas, algumas críticas à maneira como os Problemas são propostos pelos liberais. Backheuser (1946, p. 97), por exemplo, cita o livro Psychology of Arithmetic, escrito por Thorndike, em que se acha a seguinte recomendação.

Os velhos métodos ensinavam a Aritmética por amor à própria aritmética. Os novos recomendam os processos que a vida exige e os Problemas que a vida oferece; os Problemas a serem resolvidos na escola têm por fim fazer com que os alunos resolvam os que a vida apresenta. (THORNDIKE, apud BACKHEUSER, 1946, p. 97).

O autor concorda com Thorndike afirmando que ―excelentes exercícios de aritmética oferece a vida cotidiana, em casa, na rua, nas viagens, nos negócios, nos próprios divertimentos‖ (BACKHEUSER, 1946, p. 97), mas faz questão de firmar a ressalva que ―dar ao ensino a feição utilitária é bom; exagerá-la ou torná-la exclusiva, é mau. A vida não é composta apenas de interesses econômicos. Há valores morais que precisam ser postos em relevo‖ (BACKHEUSER, 1946, p. 99). Para ele a perspectiva pragmática da resolução de Problemas seria aceitável, desde que sem os excessos que significaria colocar tal necessidade de aplicabilidade acima dos ―valores morais‖, sobretudo, aqueles defendidos pela igreja.

Como Backheuser, em seu manual, propunha que fossem utilizados os Problemas nas aulas de matemática? Para responder, analisa-se a sugestão para o ensino de ―regra de três composta‖. O autor considera que, muitas vezes, os Problemas que envolvam ―regra de três‖ tornam-se demasiadamente complicados ―porque a própria questão não tem aos olhos do aluno nenhum interesse, versando [...] sobre assuntos absolutamente fora do ambiente familiar à classe‖. Como exemplo Backheuser cita

3 operários fazem um muro de 40 metros de extensão, 2 de altura e 0,25 de espessura em 15 dias; quantos dias serão necessários para que 4 operários executem um muro de 35 metros, 1,5 metros de altura e 0,20 de espessura? (BACKHEUSER, 1946, p. 124)

Nas considerações sobre o Problema o autor afirma que o cálculo aritmético apontaria um tempo menor que o tempo original (cerca de 15 dias), porém, segundo Backheuser (1946, p. 124), ―qualquer pedreiro rir-se-á do resultado‖, pois consideraria que 0,25 metros é a espessura de um tijolo, assim para construir um muro com apenas 0,20 metros de espessura o pedreiro demandaria um tempo extra para cortar todos os tijolos no tamanho desejado.

O Problema destacado e comentado exemplifica que Backheuser reconhece como fundamental que os Problemas apresentados durante as aulas de aritmética mantenham estreita relação com a forma como se apresentariam na vida real, todavia, critica que todos os Problemas devam, exclusivamente, descrever situações cotidianas. Em seu argumento fica implícita a necessidade de não tornar o Problema mais difícil do que se apresentaria na vida, e com isso ressaltar o interesse pelo Problema oriundo de uma situação real[12]. A característica que, ao que se nota, Backheuser considera ―dispensável‖ na construção de um Bom Problema seria a necessidade de utilidade.

Dessa maneira identificamos a proposta de Backheuser como distinta em relação às da Escola Nova. Na concepção escolanovista atividades que envolviam a memória, a observação, a repetição seriam expressões do pensamento, contudo, não seriam, expressão do pensamento reflexivo, ou seja, não representariam uma condição suficiente para que houvesse aprendizagem. Backheuser afirma, em contrapartida, que essas são formas tão eficientes de se alcançar a aprendizagem quanto as situações práticas da vida.

Também é ponto incontroverso, o da necessidade de imprimir a todo o ensino, e sobretudo ao de aritmética, uma feição prática. Ministrá-lo com o escopo primordial de servir à vida futura do cidadão foi a preocupação dos pedagogos e reformadores. Apenas variam os meios, porque variam os pontos de vista. Na pedagogia moderna procura-se trazer a vida até dentro dos umbrais da escola e não fazer da escola apenas uma espécie de antecâmara da vida (BACKHEUSER, 1946, p. 95).

Backheuser não se opunha à importância dos Problemas e de sua resolução para o desenvolvimento da criança, como pregava o movimento escolanovista. Todavia, ele tratou de negar que fosse aceitável que o ensino de aritmética se resumisse ao desenvolvimento da capacidade de resolver Problemas, bem como que tal capacidade devesse limitar-se aos Problemas relacionados à vida cotidiana. Tudo indica que Backheuser estaria propondo uma abordagem de Problemas, e de sua resolução, para o ensino de aritmética, mais próxima daquela adotada pela Pedagogia Moderna e, por consequência, pelo método de ensino intuitivo, ou seja, como forma de aplicação das lições ensinadas pelo mestre anteriormente.

Corretamente o principal exercício de raciocínio se reduz a, enunciado o Problema, pô-lo sob a forma de operações aritméticas. Escritas estas, umas após as outras, na sua eloquente singeleza, a tarefa de raciocínio está, a bem dizer, desempenhada (BACKHEUSER, 1946, p. 125).

O autor afirma, citando Kühnel[13], que seria necessário ao ensino de aritmética o ―exercício até a banalização, isto é, até tornar corrente o que se quer executar. ‗O fim do ensino é, afinal, a capacidade do aluno em solver por si, bem e depressa‘‖ (BACKHEUSER, 1946, p. 102). Em suas conclusões o autor é convicto ao afirmar ―que é indispensável fazer o exercício da repetição (cálculo mental ou tabuada), excelente auxiliar da inteligência na vida prática, isto em todas as fases, mas principalmente nas duas primeiras‖ (BACKHEUSER, 1946, p. 104).

Como vimos Backheuser era uma liderança dos grupos católicos no embate educacional entre estes e os liberais, essencialmente, defensores do modelo pedagógico da Escola Nova. Neste embate Backheuser defendia uma ―terceira via‖ que rechaçava aspectos considerados da ―escola tradicional‖ ao mesmo tempo em que pregava precaução diante dos ―excessos dos reformadores‖.

Carvalho (2011, p. 195) aponta que das disputas pelo monopólio do signo do Novo ―”a chamada pedagogia da escola nova emerge vencedora‖ e rotula” ―”pejorativamente, os saberes pedagógicos concorrentes como ‗pedagogia tradicional”. Nossa análise indica que, no que diz respeito ao ensino de aritmética, em especial à resolução de Problemas, as indicações destacadas por defensores do movimento escolanovista, também sobrepujaram as indicações dos movimentos pedagógicos concorrentes, de modo que práticas como a ―”imitação de bons modelos‖ e a resolução de Problemas como ―recurso de aplicação‖ de cálculos treinados anteriormente, passaram a ser consideradas ―tradicionais”.

5. CONSIDERAÇÕES

O embate entre diferentes grupos de intelectuais pelo monopólio das propostas para o desenvolvimento da educação no país, principalmente durante o segundo quartil do século XX, originou diversas estratégias para o ensino, de maneira geral, e para o ensino de aritmética, de maneira especial. Os grupos de Católicos e Liberais foram dois dos grupos que antagonizaram propostas neste embate e constituíram propostas para as características que permeariam os Problemas.

Enquanto Católicos, representados aqui pelo intelectual Everardo Backheuser, defendiam, em relação ao ensino de aritmética, que não seria possível deixar de lado o ensino intuitivo, a memorização, o raciocínio ou a relação entre Problema e realidade, os Liberais, representados por Thorndike, criticavam o ensino pautado na memorização ou na observação modelos, em favor da Teoria do Conexionismo, em que a criança aprenderia por meio das conexões que estabeleceria entre o que já sabia e os novos conhecimentos.

Neste contexto, Thorndike, de um lado, confere aos Problemas uma finalidade específica que culminou na representação das características do Bom Problema, em que estes deveriam tratar de situações da vida real, apresentando-se sob uma feição útil e despertando o mesmo grau de interesse de uma situação real. De outro lado, Backheuser reconhece a importância da conexão entre a situação apresentada nos Problemas e a realidade e do interesse que os mesmos devem despertar, mas refuta o caráter pragmático que os liberais tentavam impregnar aos Problemas, defendendo que, mais importante do que a preocupação com Problemas úteis seria o benefício mental envolvido na ação de resolvê-los e que ―valores morais‖, sobretudo os ensinados pela igreja Católica, seriam fatores mais importantes a serem ensinados em aritmética.

A indicação da necessidade de Problemas com enunciados ligados a situações reais constituíram propostas tanto de Católicos quanto de Liberais. Ainda que reconhecessem o benefício mental de Problemas de aritmética, ambos os grupos defendiam a necessidade de Problemas que pudessem desenvolver a habilidade de raciocínio durante a resolução, e não apenas o uso da memória. Essa convicção teria levado Backheuser, por exemplo, a afirmar que um profissional riria do resultado apresentado como correto para um Problema, em razão de sua dissociação da realidade. De maneira similar, Thorndike afirmava categoricamente que certos Problemas utilizados por professores ―de antigamente‖[14] só poderiam ser concebidos em um ―hospital de alienados.

Ao defender a necessidade de realidade como característica primordial de um Bom Problema, ambos os grupos reconheciam também a necessidade do interesse da criança pelo Problema. O interesse pelo problema propiciaria uma aprendizagem relacionada a uma Pedagogia menos arte e mais ciência, ao aproximá-la de outras ciências, já consolidadas, em especial a Psicologia. Nesse sentido, Thorndike – que, lembremos, era psicólogo – defendia que cada Problema deveria ter o potencial de despertar na criança interesse tal que ela fosse conduzida a estabelecer conexões entre o que já sabia e o novo conhecimento. Assim o interesse que um Problema poderia despertar seria uma ferramenta fundamental na condução do processo de aprendizagem, segundo ele. Também Backheuser defendia que o interesse deveria ser uma característica fundamental de cada Problema, como meio de relacionar Pedagogia e Ciência em uma estratégia que consistia em ―fagocitar‖ o conhecimento científico, aplicando-o ao ensino segundo uma ―interpretação católica‖. No que diz respeito ao ensino de aritmética, essa estratégia fica evidente ao potencializar a necessidade do interesse, a ser despertado nas crianças a partir dos Problemas.

Assim como as similaridades, as teses contraditórias defendidas por Católicos e Liberais, estavam longe de significar um consenso. O embate nesse sentido se fez presente em relação à defesa da necessidade de que os Problemas devessem ser úteis às situações cotidianas. Thorndike defende veementemente que o professor deveria reelaborar uma gama enorme de Problemas de modo a adaptá-los para as necessidades da vida.

Por outro lado, os Católicos trataram de estabeler ressalvas quanto à necessidade de que cada Problema devesse ter um caráter utilitário. Nas palavras de Backheuser (1946, p. 97) ―dar ao ensino a feição utilitária é bom; exagerá-la ou torná-la exclusiva, é mau‖. O autor considerava que preparar para a vida fora da escola seria um papel secundário do ensino. Mais importante do que isso seria necessário ensinar ―valores morais‖, a fim de formar cidadãos respeitosos e fiéis às boas práticas. O Problema não deveria preocupar-se em prepar para a vida, mas sim, em grande parte das vezes, ser útil aos objetivos do professor.

Em conclusão, podemos destacar que, no embate entre Católicos e Liberais escolanovistas pelo controle do aparelho escolar, os Problemas estiveram presentes, de modo a discutir quais deveriam ser as suas características. Da mesma maneira que o embate de ideias, as propostas para o ensino de aritmética também não foram consensuais. Pelo contrário, apresentaram propostas distintas e, ainda que algumas das características indicadas como adequadas para os Problemas fossem similares, as razões implícitas em cada proposta eram distintas e representavam as convicções políticas de cada grupo. Ambas as propostas, entre outras, coexistiram e estiveram em debate durante, principalmente, as décadas de 1930 e 1940, o que indica a a força desses grupos no cenário educacional no período.

REFERÊNCIAS

BACKHEUSER, E. A aritmética na “Escola Nova”. Rio de Janeiro: Livraria Católica, 1933.

______. Como se ensina a aritmética: Fundamentos Psicopedagógicos. São Paulo: Livraria do Globo, 1946.

CARVALHO, M. M. C. Modernidade pedagógica e modelos de formação docente. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 14, n.1, p. 111-120, 2000a.

______. Reformas da Instrução Pública na década de 1920. In: Eliane Marta Teixeira Lopes; Luciano Mendes Faria Filho; Cynthia Greive Veiga. (Org.). 500 anos de Educação no Brasil. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000b, v. , p. 225-252.

______. A Escola Nova no Brasil: uma perspectiva de estudo. Educação em Questão, Rio Grande do Norte, v. 21, n.7, p. 90-97, 2004.

______. Pedagogia Moderna, Pedagogia da Escola Nova e Modelo Escolar Paulista. In: Carvalho, Marta Maria Chagas de; Joaquim Pintassilgo. (Org.). Modelos culturais, saberes pedagógicos, instituições educacionais. 1ed.São Paulo: EDUSP, 2011, v. , p. 187-216.

CHARTIER, R. A História Cultural: Entre práticas e Representações. Tradução: Maria Manuela Galhardo. Lisboa, Portugal: DIFEL, 2002. 122p.

CUNHA, M. V. (Org.) . Ideário e Imagens da Educação Escolar. 1. ed. Campinas: Autores Associados, 2000. v. 1. 114p

DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. 3ª. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

______. Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

GHIRALDELLI Jr., P. Introdução à Educação Escolar Brasileira: História, Política e Filosofia da Educação. 2001. Disponível em: http://www.teleminiweb.com.br/Educadores/artigos/pdf/introdu-edu-bra.pdf. Acesso em 22 de abril de 2014.

MONARCHA, C. R. S.; Brasil arcaico, Escola Nova – ciência, técnica e utopia nos anos 1920-1930. São Paulo, SP. Ed. UNESP, 2009.

OLIVEIRA MARQUES, J. A. Manuais pedagógicos e as orientações para o ensino de matemática no curso primário em tempos de Escola Nova. 2013. 131f. Dissertação (Mestrado em educação e saúde na Infância e na Adolescência). Universidade Federal de São Paulo, São Paulo. 2013.

SANTOS, I. B. Edward Lee Thorndike e a conformação de um novo padrão pedagógico para o ensino da matemática (Estados Unidos, primeiras décadas do século XX). 2006. 283 f. Tese (Doutorado em Educação: História, Política e sociedade). Pontifícia Universidade Católica, São Paulo. 2006.

SOUZA, R. F. Alicerces da Pátria: história da escola primária no estado de São Paulo (1890 - 1976). Campinas: Mercado de Letras, v. 1. 2009. 407p.

THORNDIKE, E. L. A Nova metodologia da Aritmética. Tradução: Anadyr Coelho. Porto Alegre, RS: Edições Globo, 1936. 297p.

VALENTE, W. R. Oito temas sobre história da educação matemática. In: Revista de Matemática, Ensino e Cultura. Natal, RN: Ano 8, nº 12, p. 22-50. Jan - Jun 2013.

VIRGENS, W. P. A resolução de problemas de aritmética no ensino primário: um estudo das mudanças no ideário pedagógico (1920-1940). Universidade Federal de São Paulo. Dissertação de Mestrado. 2014.

Notas

[3] O método de ensino intuitivo generalizou-se, na segunda metade do século XIX, nos países da Europa e das Américas, como principal elemento de renovação do ensino, juntamente com a formação de professores. Ficou conhecido como o método do ensino popular por ser considerado, entre os educadores, como o mais adequado à educação das classes populares. (Fonte: SCHELBAUER, A. R. Método de Ensino Intuitivo. Disponível em http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_metodo_de_ensino_intuitivo2.htm. Acesso em 05/05/2014).
[4] Edward Lee Thorndike será melhor apresentado mais adiante neste artigo.
[5] Estabelecemos diferenciação entre o termo ―Problema‖, com inicial em minúscula, e o termo ―Problema‖, com inicial em letra maiúscula. Por ―Problema‖ compreenderemos uma definição genérica de Problema – dificuldade, transtorno, defeito – e por ―Problema‖ a referência a um Problema de aritmética.
[6] GHEMAT - Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática no Brasil. (http://www.unifesp.br/centros/ghemat/)
[7] Projeto financiado pelo CNPq sob a coordenação da Prof.ª Dr.ª Maria Célia Leme da Silva.
[8] Termo utilizado por Thorndike (1936, p. 153)
[9] A pesquisa de Oliveira Marques, intitulada ―Manuais Pedagógicos e as orientações para o ensino de matemática no curso primário em tempos de Escola Nova‖ (2013) está disponível no repositório de conteúdo digital, mantido pela Universidade Federal de Santa Catarina, no endereço: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/104818/JOSIANE%20A.%20O.%20MARQUES%20DIS SERTA%C3%87%C3%83O.pdf?sequence=1
[10] No período que limita nossa pesquisa o Distrito Federal era a cidade do Rio de Janeiro.
[11] Considerando que os conteúdos dos manuais de 1933 e 1946 são idênticos, as próximas referências remeterão apenas à versão de 1946.
[12] Os grifos nas expressões interesse e real, consideram a representação das principais características de um Bom Problema, a partir das concepções de defensores do movimento escolanovista, ou seja, o interesse, a realidade e a utilidade, melhor apresentada na pesquisa de mestrado que norteia este artigo. Inferimos que Backheuser considerava que a utilidade seria uma característica dispensável aos Problemas, mas a realidade e o interesse não. Essa consideração reforça a ideia de que as propostas de Backheuser seriam uma terceira via no embate entre diferentes discursos pedagógicos.
[13] Ernst Paul Johannes Kühnel foi um reformador da educação alemã e autor de obras como ―Reconstrução do Ensino de Aritmética‖, publicado em 1916. Defendia a necessidade de atividade, a valorização da experiência escolar, a adoção de métodos científicos e o papel da psicologia na educação (Fonte: http://de.wikipedia.org/wiki/Johannes_K%C3%BChnel_(P%C3%A4dagoge)esqueceu dela , tradução nossa).
[14] Professores do início do século XX, conforme Thorndike, que utilizavam qualquer questão como ―Problema‖ sob justificativa do benefício mental.

Ligação alternative



Buscar:
Ir a la Página
IR
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
Visor de artigos científicos gerado a partir de XML JATS4R